Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10353/2005-7
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
FALTA DE CITAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/18/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
Decisão: NEGADA A REVISÃO E CONFIRMAÇÃO
Sumário: É de negar a revisão e confirmação de sentença estrangeira que julgou procedente acção de investigação de paternidade contra “ Herdeiros de José […]” considerando-se que não foi citado nenhum herdeiro nem sequer houve diligências no sentido de o (os) identificar, o que traduz violação do disposto no artigo 1096.º,alínea e) e 1101º do Código de Processo Civil

(SC)
Decisão Texto Integral: I – JOSÉ […]

intentou contra
HERDEIROS de JOSÉ ANTÓNIO […]

acção com processo especial de revisão e confirmação da sentença estrangeira do Trib. Regional da Guiné-Bissau que julgou procedente a acção de investigação da paternidade por si intentada contra Herdeiros de José António […]

Após diversas vicissitudes que envolveram, além do mais, a identificação e localização dos herdeiros de José António […], acabou por ser citado Carlos […] , seu filho, o qual não deduziu oposição, limitando-se a apresentar a peça que consta de fls. 83 e 84.

Foram efectuadas diligências com vista a apurar o modo como fora cumprido o princípio do contraditório no processo em que foi proferida a sentença revidenda.

O Ministério Público pronunciou-se no sentido de ser concedida a revisão e confirmação da sentença.

O requerente sustentou a pretensão inicial.

II – Elementos a ponderar:

- Correu termos na No Trib. Regional da República da Guiné-Bissau, Secção de Família, uma acção declarativa com processo ordinário, com vista à declaração de paternidade, instaurada pelo ora requerente contra Herdeiros de José António […] (fls. 11 a 13).
- Essa acção foi autuada com o nº 113 do ano de 2003 (fls. 11).
- No âmbito de tal acção, foi determinada a expedição de carta rogatória para citação dos herdeiros (não identificados) de José António […], ex-militar da Marinha Portuguesa.
- No âmbito da referida carta rogatória foi lavrada a certidão de citação que consta de fls. 108, com data de 20-10-04, tendo os referidos herdeiros (não identificados) sido citados na pessoa de Ana […], funcionária da “Direcção de Serviços de Pessoal, Repartição de Reservas e Reformados”, do Ministério da Defesa Nacional (Marinha).
- A carta rogatória foi devolvida juntamente com o documento cuja cópia consta de fls. 112, da referida Repartição, onde o respectivo chefe informa que José António […] faleceu em 18-8-96, e que, “desde essa data, não possuímos quaisquer dados actualizados relativos aos seus herdeiros”.
- Foi proferida sentença no referido processo, em cujo relatório se refere que, na sequência da referida “carta rogatória que citou os herdeiros do R.”, estes não contestaram “até ao presente momento a acção, decorridos mais de 240 dias …”, julgando-se provada e procedente a acção e decretando-se a “acção de investigação de paternidade como sendo a favor do Autor, reconhecendo por esta sentença o Senhor José Manuel […] como sendo filho legítimo do falecido José António […] …” (fls. 12, vº).
- A referida sentença transitou em julgado no dia 29-6-05 (fls. 102, vº).

III – Decidindo:

1. A eficácia jurídica da sentença proferida pelo Tribunal da República da Guiné-Bissau na ordem jurídica interna portuguesa está condicionada à sua prévia revisão e confirmação, nos termos do art. 1094º do CPC (e também do art. 13º do Acordo de Cooperação entre Portugal e a Guiné-Bissau, aprovado para ratificação pela Resolução da AR nº 11/89, de 19-5).

Para além de se tratar de um acto com valor de sentença, a revisão e confirmação pressupõe a verificação dos requisitos referidos nos arts. 1096º do CPC (e no art. 13º do Acordo citado).

2. Não foram suscitadas nem existem dúvidas quanto à autenticidade do documento apresentado nem sequer quanto ao seu conteúdo. Trata-se efectivamente de sentença de um Tribunal da República da Guiné-Bissau, transitada em julgado, versando matéria que não é da exclusiva competência dos tribunais portugueses.

Todavia, de acordo com a al. e) do art. 1096º, a revisão exige que o réu tenha sido regularmente citado para a acção, nos termos da lei do país do tribunal de origem, e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes.[1] E determina o art. 1101º que o tribunal deve negar a confirmação e revisão da sentença quando, pelo exame do processo, se apure que falta algum dos requisitos exigidos nas als. b) a e) do art. 1096º.

É o que se verifica relativamente ao modo como no tribunal de origem foi cumprido o princípio do contraditório.

2.1. A lei processual que vigora na Guiné-Bissau, de onde provém a sentença revidenda, é integrada fundamentalmente pelo Código de Processo Civil Português, na versão que vigorava na ocasião em que foi decretada a independência.

A acção foi intentada contra herdeiros, não identificados, de José António […].

Em face do disposto na redacção primitiva do art. 16º do CPC Português, não era líquido se o autor teria de apresentar justificação para a demanda de incertos. Alberto dos Reis (Comentário ao CPC, vol. II, pág. 707) defendia a tese negativa, com a justificação de que a sentença a proferir em tais circunstâncias não constituiria caso julgado contra pessoas determinadas. Já a solução inversa, implicando a prévia justificação da incerteza, fora defendida no Ac. do STJ, de 1-10-68, BMJ 180º/238.

Todavia, em face da natureza pessoal da acção de investigação de paternidade, interposta depois do óbito do pretenso pai, exigindo, como é óbvio, a identificação deste, não era legítimo prescindir da identificação dos respectivos herdeiros, nos termos do art. 467º, nº 1, al. a), do CPC, ou, ao menos, da apresentação de justificação para o seu desconhecimento, sendo demandados como herdeiros incertos.

Uma vez identificados, se acaso fossem dados como residentes em território estrangeiro, ficava aberta a possibilidade de se emitir carta rogatória para sua citação, nos termos do art. 244º do CPC. Tornando-se insolúvel a identificação dos herdeiros, abrir-se-ia a possibilidade de se determinar a citação dos herdeiros incertos por via edital, como o determinava o art. 251º.

2.2. Flui do relatório da sentença revidenda que o autor, ora requerente, praticamente se limitou a demandar os “herdeiros de José António […]”, pedindo a sua citação “através de carta rogatória dirigida ao cuidado do Ministério da Defesa nacional de Portugal – Direcção de Serviço de Pessoal, Repartição de Reservas e Reformados … para contestarem, querendo, no prazo e sob a cominação legal, até final os demais termos da lei”.

Sem que os autos revelem qualquer esforço da parte do autor ou do tribunal de origem no sentido da identificação dos referidos herdeiros (sendo que esta Relação conseguiu identificar um deles), foi remetida carta rogatória indicando-se como local da citação a referida Repartição Pública a que o de cujus esteve vinculado.

É verdade que era ao tribunal rogado que competia ordenar os termos em que deveria ser cumprida a carta rogatória, atento o disposto no art. 187º do CPC. Mas independentemente do que foi ou poderia ter sido determinado pelo tribunal português onde foi tramitado o cumprimento da carta rogatória, designadamente depois de, exarada a certidão de citação, ter sido recebida a informação de que era desconhecido o paradeiro ou identificação dos herdeiros de José António […], o tribunal da Guiné-Bissau, antes de passar á fase subsequente e, designadamente, antes de proferir a sentença, não poderia ter deixado de verificar a regularidade do processo, assegurando-se de que fora respeitado o princípio do contraditório através da citação regular dos interessados, nos termos do art. 483º do CPC.

Referindo-se na sentença que não houve oposição, fica também claro que, pelo modo como foi efectuada a citação e, antes disso, pelo modo como foi identificado o lado passivo da acção, não estavam reunidas as condições mínimas para que fosse proferida uma decisão de mérito.

2.3. Nos termos do art. 233º do CPC Português, na redacção relevante para o caso, a citação deve ser feita na própria pessoa do réu, só se admitindo que seja executada noutra pessoa nos casos em que a lei o prevê.

Tal situação excepcional não se verificava, tanto mais que se pretendia a citação de herdeiros não identificados. Por isso, nada permitia que se considerasse regularmente efectuada uma citação na pessoa de um funcionário do serviço ao qual o de cujus estivera vinculado.

Acresce ainda que, atento o disposto no art. 244º do CPC, a citação por carta rogatória deve reservar-se para casos em que o réu se encontre identificado, pois que, como o exige tal preceito, só nesse caso se pode dizer com propriedade que o “réu reside em país estrangeiro”.

Trata-se, aliás, de condição que decorre também da Convenção de Haia, de 15-11-65, Relativa à Citação no Estrangeiro, aplicável apenas “quando a morada do destinatário for conhecida” (art. 1º).

3. Importa, pois, extrair as devidas consequências:


Tendo em conta não apenas a total ausência de qualquer informação do autor acerca da identidade dos herdeiros de José António […], como a ausência de qualquer diligência efectuada pelo tribunal rogado ou pelo tribunal rogante no sentido do apuramento da identidade dos verdadeiros interessados passivos na acção, esta correu e terminou sem que qualquer herdeiro do alegado pai do ora requerente tivesse oportunidade para contestar.

Uma vez que a citação não foi feita na pessoa dos referidos herdeiros, antes na de um funcionário de uma Repartição do Estado, não poderia o tribunal de origem dar por satisfeitas as exigências relacionadas com a citação. Ao invés, deveria ter considerado, nos termos e para efeitos do art. 195º, nº 1, al. d), e nº 2, al. c), do CPC, que se estava perante uma situação equivalente à falta de citação, por preterição de formalidades essenciais.

Por tal motivo, atento o disposto nos arts. 1096º, al. e), e 1101º do CPC, não pode ser concedida a pretendida revisão e confirmação da sentença.

III – Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente a revisão e confirmação da sentença.

Custas a cargo do autor.

Notifique.

Lisboa, 18 de Setembro de 2007


(António Santos  Abrantes Geraldes)
(Maria  do Rosário Morgado)    
(Rosa Maria Ribeiro Coelho)

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[1] Considera-se, aliás, que o referido preceito se sobrepõe ao requisito ainda mais exigente que consta do art. 13º, al. d) do mencionado Acordo, o qual praticamente reproduzia a anterior redacção da al. d) do art. 1096º alterada pelo Dec. Lei nº 329-A/95, de 12-12.