Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
396/14.7TVLSB-A.L1-2
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: REIVINDICAÇÃO
ARRENDAMENTO URBANO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/09/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: . Realizando-se a audiência prévia, mesmo sem a comparência de algum mandatário, é legalmente injustificável a sua interrupção, motivada na circunstância de um dos mandatários estar impossibilitado de comparecer.
II. As questões a resolver na ação prendem-se, essencialmente, com o pedido e a causa de pedir formulados, por um lado, e com a matéria de exceção, por outro.
III. Ao resolver-se que não se dispunha do direito à transmissão do contrato de arrendamento, por morte da arrendatária, a restante argumentação dela dependente ficou prejudicada, não carecendo de pronúncia expressa, nos termos do disposto no art. 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
IV. O regime transitório, fixado no Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), continua a manter-se em vigor enquanto subsistirem os contratos de arrendamento para habitação celebrados antes ou durante a vigência do Regime do Arrendamento Urbano, aplicando-se aos contratos de arrendamento para habitação posteriores o regime previsto no art. 1106.º do Código Civil.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:


I – RELATÓRIO

M – Sociedade de Gestão e Investimento Imobilário, S.A., instaurou na Instância Central de Lisboa, Secção Cível, Comarca de Lisboa, contra V, ação declarativa, sob a forma de processo comum, pedindo que lhe fosse reconhecido o direito de propriedade sobre a fração autónoma identificada pela letra “B” do prédio urbano, sito na Rua das Trinas, n.º 120, freguesia da Lapa, concelho de Lisboa, e descrito, sob o n.º 21 (Lapa), na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, e o Réu condenado, designadamente, a restituir-lhe a fração livre e devoluta de pessoas e bens.
Para tanto, alegou em síntese, ser a única e legítima possuidora da fração, sendo ocupada pelo R. sem qualquer título que o legitime.
Contestou o R., alegando que o contrato de arrendamento com o anterior arrendatário não caducou com a sua morte, o qual lhe foi transmitido, continuando a A. a emitir os recibos de renda, e concluindo pela absolvição, designadamente, do pedido de restituição.
Foi designada a audiência prévia, durante a qual se conheceu de imediato do pedido de reivindicação, sendo proferido, em 12 de junho de 2015, despacho saneador-sentença, nos termos do qual foi reconhecido à Autora o direito de propriedade sobre a referida fração e o Réu condenado a restituí-la, à Autora, completamente livre e devoluta de pessoas e bens, e prosseguindo o processo, no demais, com a identificação do objeto do litígio e a enunciação dos temas da prova (pedido de indemnização).
Inconformado com o despacho saneador-sentença, em separado, recorreu o Réu e, tendo alegado, formulou essencialmente as seguintes conclusões:

a) A data da audiência prévia foi alterada nos termos do art. 151.º do CPC, a pedido da mandatária da A., tendo a mandatária da R., impossibilitada de comparecer, enviado requerimento, onde solicitava a interrupção dos trabalhos, para designação de data para a sua continuação.
b) Não foram atendidos os princípios da cooperação e da boa fé processual e foi posto em causa o direito de defesa do Recorrente.
c) O Juiz não se pronunciou sobre questões que deveria apreciar, o que constitui nulidade, nos termos da alínea d) do n.º 1 do art. 615.º do CPC.
d) É o art. 1106.º do CC que, atualmente, prevê o regime de transmissão do arrendamento, que revoga a norma transitória constante do art. 57.º do NRAU.
e) A decisão recorrida defende uma aplicação diferenciada entre ascendentes e descendentes, violando o disposto no art. 13.º da CRP, porque são ambos maiores e podem não ser deficientes.
f) Por outro lado, ao não permitir a transmissão para filhos maiores e sem deficiências que vivam em economia comum com os progenitores, titulares do contrato de arrendamento, a decisão recorrida viola o art. 65.º da CRP, não deixando que o Recorrente se mantenha na casa morada de família, que sempre foi a sua habitação.
g) A decisão recorrida violou ainda os arts. 20.º da Constituição da República Portuguesa, 7.º do Código Civil, 411.º e 608.º, ambos do Código de Processo Civil.

Pretende o Réu, com o provimento do recurso, a declaração de nulidade da sentença e a revogação da decisão recorrida, com a sua substituição por outra que considere a transmissão do arrendamento a seu favor, com todas as consequências legais.

Contra-alegou a Autora, no sentido da confirmação integral do despacho saneador-sentença.

O Mmo. Juiz a quo exarou despacho, concluindo pela não verificação de nulidade da sentença, por omissão de pronúncia.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

Neste recurso, está essencialmente em discussão, para além da nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, o direito de transmissão do contrato de arrendamento para habitação por morte do arrendatário.

II – FUNDAMENTAÇÃO

2.1. Na sentença recorrida, foram dados como provados os seguintes factos:

1. A A. é dona da fração autónoma identificada pela letra "B" do prédio urbano sito na Rua das Trinas, n.º 120, freguesia de Lapa, concelho de Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o n.º 21.
2. Por acordo escrito de 28 de janeiro de 1959, o proprietário desse prédio, à data, João, acordou com V Santos, casado com Ermelinda, em dar de arrendamento o primeiro andar do prédio, para habitação, cedendo-lhe o gozo e fruição.
3. O referido contrato foi celebrado por um período de seis meses, com início em 1 de fevereiro de 1959 e termo a 31 de julho de 1959, sendo sucessivamente renovável por iguais períodos.
4. A renda inicialmente contratada foi de 1 000$00.
5. Por sentença de 30/10/1987, proferida no 4° Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Sintra, nos autos de divórcio litigioso n.º 1098/85, transitada em julgado a 11/11/1987, foi decretado o divórcio entre V Santos e Ermelinda, sendo homologado o acordo estabelecido entre os cônjuges em ata de julgamento de 1/7/1986, que estabelecia que o arrendamento da casa de morada de família passaria a pertencer à mulher, tendo o proprietário tomado conhecimento, em 14 de outubro de 1986, que o direito ao arrendamento ficava a pertencer a Ermelinda.
6. Ermelinda faleceu no dia 1 de julho de 2013, no estado civil de divorciada de V Santos.
7. A A. foi informada desse facto em 9 de julho de 2013 pelo R.
8. O R. é filho de V Santos e de Ermelinda, tendo nascido no dia 26 de setembro de 1955.
9. Por carta registada, enviada em 15 de julho de 2013, a A. solicitou ao R. o envio dos documentos comprovativos da transmissão do arrendamento, nomeadamente certidão de óbito da arrendatária e certidão de nascimento do R.
10. Em resposta, e por carta de 21 de agosto de 2013, o R. transmitiu à A. que pretendia a transmissão do arrendamento, por força do disposto na alínea c), do n.º 1 do Art. 1106.º do Código Civil, atendendo ao facto de ter vivido em economia comum com a mãe, anexando, para esse efeito, os documentos requeridos pela A.
11. Por carta registada, de 3 de setembro de 2013, a A. comunicou ao R. que, tendo em conta que o contrato de arrendamento era anterior à vigência do RAU, o contrato tinha caducado, atenta a circunstância de ter falecido a arrendatária, pelo que o R. deveria proceder à entrega do imóvel no prazo de seis meses, a contar da data do óbito, solicitando a entrega das chaves até 1 de fevereiro de 2014.
12. Mais deixou aí declarado que “os pagamentos que continuarem a ser efetuados por V. Exas. não serão recebidos pela senhoria a título de rendas, uma vez que o contrato de arrendamento já caducou. Tais valores são, no entanto, devidos nos termos e para os efeitos do disposto no art. 1045.º, n.º 1, do Código Civil, e, por esse motivo, serão recebidos pela senhoria (…)”.
13. O R. respondeu, mediante o envio de carta registada, de 27 de dezembro de 2013, na qual reiterou a sua pretensão quanto à transmissão do arrendamento, por ter vivido em economia comum com a mãe, tendo ainda remetido o atestado de residência emitido pela Junta de Freguesia da Estrela.
14. Desde fevereiro de 2014 até à presente data, a fração tem estado a ser ocupada pelo R., que tem a posse efetiva das chaves e se recusa a entregá-las à A.
15. A A. emitiu as declarações de recibos de renda, datadas de 9 de setembro de 2013 e 8 de novembro de 2013, a fls. 57 e 58, e dos recibos de renda relativos a setembro, novembro e dezembro de 2013, juntas a fls. 59 a 61.


2.2. Delimitada a matéria de facto, expurgada de redundâncias, importa conhecer do objeto do recurso, definido pelas suas conclusões e cujas questões jurídicas emergentes foram oportunamente especificadas.
Embora o Apelante restrinja a impugnação ao despacho saneador-sentença, alega, no entanto, a violação do disposto no art. 411.º do Código de Processo Civil (CPC), por a audiência prévia não ter sido interrompida, por impossibilidade de comparência da sua mandatária, conforme requerimento prévio.
Como decorre do disposto no art. 591.º, n.º 4, do CPC, a falta das partes ou dos seus mandatários não constitui motivo de adiamento da audiência prévia.
Realizando-se a audiência prévia, mesmo sem a comparência de algum mandatário, é legalmente injustificável a sua interrupção, motivada na circunstância de um dos mandatários estar impossibilitado de comparecer.
Desse modo, e pelos termos genéricos em que a interrupção foi solicitada, abria-se a possibilidade de, sob a forma de interrupção, adiar a audiência prévia, em oposição direta com a lei.
Isso não significa, contudo, que a audiência prévia não possa ser interrompida, se, no seu decurso, surgirem circunstâncias justificativas para a economia do processo ou se houver impossibilidade, designadamente temporal, de realizar todos os fins da audiência prévia.
Ao contrário do alegado, o requerimento do Apelante não foi ignorado pelo Juiz, pronunciando-se este no sentido de que a “situação invocada não constitui fundamento para adiar a (…) audiência”, determinando-se a realização da audiência prévia, com prejuízo da tentativa de conciliação (fls. 35).
O Juiz agiu em conformidade com a lei aplicável, não tendo sido violado o disposto no art. 411.º do CPC, segundo o qual incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.
Para além do Juiz não ter infringido o princípio do inquisitório, também não se surpreende qualquer violação aos princípios da cooperação e da boa fé processual, não tendo ficado em causa o efetivo direito à defesa do Apelante, também invocada por este, ainda que genericamente.
De resto, o Apelante nem sequer arguiu qualquer nulidade processual, pelo que, consequentemente, só pode improceder toda a alegação desenvolvida nesta matéria, como a alegada violação do princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva (art. 20.º da Constituição da República Portuguesa).

2.3. O Apelante suscitou a nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no art. 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, alegando que a decisão recorrida não se pronunciou sobre a invalidade das comunicações efetuadas pela Recorrida (art. 11.º, n.º 5, do NRAU), o reconhecimento como arrendatário pela Recorrida, a intempestividade do pedido de restituição do imóvel e a vida em economia comum com a arrendatária.
A nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, está relacionada com o dever de cognição estabelecido no art. 608.º, n.º 2, do CPC, segundo o qual o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
As questões a resolver prendem-se, essencialmente, com o pedido e a causa de pedir formulados na ação, por um lado, e com a matéria de exceção, por outro.
Deste enunciado resulta, claramente, que tais questões não se identificam com os argumentos utilizados pelas partes, embora a decisão judicial, discutindo-os, possa vir a ser mais convincente e, nessa medida, alcançar uma melhor qualidade, legitimando a função soberana de julgar.
A Apelada instaurou a ação de reivindicação do imóvel, pedindo que lhe fosse reconhecido o direito de propriedade e o Apelante condenado à sua restituição, com fundamento deste último o ocupar sem título legítimo.
Por sua vez, o Apelante, contestando o pedido de restituição, alegou a transmissão do contrato de arrendamento, por morte da arrendatária, designadamente nos termos do art. 1106.º do Código Civil (CC).
A decisão recorrida, conhecendo da questão da restituição, concluiu que o Apelante não dispunha de título legítimo, para fruir e gozar do imóvel, depois de afirmar que a sua situação não se enquadra em nenhuma das situações previstas no art. 57.º, n.º 1, do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), aprovado pela Lei n.º 6/2007, de 27 de fevereiro, não lhe tendo sido transmitido o contrato de arrendamento, por morte da arrendatária, para além de não lhe ser aplicável o disposto no art. 1106.º do CC.
Foi, assim, julgada improcedente a matéria de exceção (perentória) arguida pelo Apelante.
Nestas condições, é manifesto que o Tribunal se pronunciou sobre a questão da transmissão do contrato de arrendamento, que o Apelante invocou na contestação, como facto impeditivo do efeito da restituição do imóvel, depois de reconhecido o direito de propriedade.
Conheceu, por isso, da questão relevante apresentada pelo Apelante.
Ao resolver que o Apelante não dispunha do direito à transmissão do contrato de arrendamento, por morte da arrendatária, a restante argumentação do Apelante, dela dependente, ficou prejudicada, não carecendo de pronúncia expressa (art. 608.º, n.º 2, do CPC).
De qualquer modo, a decisão recorrida expressou ainda, designadamente, que era “irrelevante” o caso do Apelante ter vivido “em economia comum com a anterior arrendatária”, o que revela ter havido pronúncia, nomeadamente de que tal argumento era desprovido de importância.
Por outro lado, importa também frisar que o alegado reconhecimento do Apelante, como arrendatário, foi mencionado na contestação, mas no contexto da transmissão do contrato de arrendamento por morte da arrendatária, questão que a decisão recorrida resolveu de forma diversa, como se descreveu.
Nestes termos, é manifesto que não houve omissão de pronúncia.
Por isso, improcede a arguição da nulidade da sentença.

2.4. Delimitada a matéria de facto, interessa agora apreciar a questão substantiva, nomeadamente se ao Apelante assiste o direito de transmissão do contrato de arrendamento, por morte da arrendatária, tendo por objeto o imóvel reivindicado.
Antes, porém, convém esclarecer, perante certa alegação do Apelante, que a matéria de facto dada como provada corresponde, no sua essência, à matéria alegada na petição inicial e admitida expressamente pelo Apelante na contestação (artigo 1.º), não sendo relevantes, por outro lado, as insignificantes discrepâncias verificadas, nomeadamente na matéria ora descrita sob os n.º s 9 e 11.
Por isso, não se justifica a introdução de qualquer modificação na matéria de facto, sendo certo também que a decisão recorrida especificou a sua motivação, a qual não foi especialmente impugnada.
A transmissão do arrendamento por morte do arrendatário tem sido uma questão que tem merecido muito interesse legislativo, nomeadamente ao longo dos últimos quarenta anos, levando a uma certa evolução normativa no seu tratamento, sendo certo que, por regra, o contrato de locação caduca por morte do locatário, nos termos do art. 1051.º, alínea d), do Código Civil (CC).
Primitivamente, o Código Civil previa que o arrendamento não caducava por morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual, se lhe sobrevivesse cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens ou de facto, ou deixasse parentes ou afins na linha reta que com ele vivessem, pelo menos, há um ano (art. 1111.º, n.º 1).
Depois, essa norma foi alterada pelo DL n.º 293/77, de 20 de julho, suprimindo o termo primitivo e, desse modo, ampliando os casos de transmissão do arrendamento.
Conexionada com esta matéria, tem interesse mencionar o DL n.º 420/76, de 28 de maio, que consagrou o “direito de preferência relativamente a novo arrendamento para a habitação, no caso de caducidade do anterior por morte do respetivo titular, ainda que não fosse o primitivo arrendatário” e que gerou enorme controvérsia, designadamente na jurisprudência.
Nova modificação foi introduzida pelo DL n.º 328/81, de 4 de dezembro, no sentido de que “o arrendamento não caduca por morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual, se lhe sobreviver cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens ou de facto ou deixar parentes ou afins, na linha reta, com menos de um ano ou que com ele vivessem, pelo menos, há um ano”.
Desta feita, a lei voltou a introduzir a expressão primitivo, reduzindo novamente as situações de transmissão do arrendamento, e, por outro lado, alargou os beneficiários, nomeadamente a parentes ou afins, na linha reta, com menos de um ano.
Não obstante nova alteração ao art. 1111.º do CC pelo art. 40.º da Lei n.º 46/85, de 20 de setembro, a norma manteve-se na sua essência.
Mais tarde, com o DL n.º 321-B/90, de 15 de outubro, que aprovou o Regime do Arrendamento Urbano (RAU), foi revogado o art. 1111.º do CC, estipulando o art. 85.º do RAU:

1 – O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual, se lhe sobreviver:
a) Cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens ou de facto;
b) Descendente com menos de um ano de idade ou que com ele convivesse há mais de um ano;
c) Ascendente que com ele convivesse há mais de um ano;
d) Afim na linha reta, nas condições referidas nas alíneas b) e c);
e) Pessoa que com ele viva há mais de cinco anos em condições análogas às dos cônjuges, quando o arrendatário não seja casado ou esteja separado judicialmente de pessoas e bens.
2 – (…)”.

A principal inovação foi alargar a transmissão do arrendamento às uniões de facto.
Por sua vez, com a Lei n.º 6/2001, de 11 de maio, aditou-se ao n.º 1 do art. 85.º do RAU uma alínea f), com a seguinte redação:

“f) Pessoas que com ele vivessem em economia comum há mais de dois anos”.

Com a aprovação do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, a matéria regressou, de novo, ao Código Civil, nomeadamente ao art. 1106.º, nos seguintes termos:

1. O arrendamento para habitação não caduca por morte do arrendatário quando lhe sobreviva:
a) Cônjuge com residência no locado ou pessoa que com o arrendatário vivesse no locado em união de facto e há mais de um ano.
b) Pessoa que com ele residisse em economia comum há mais de um ano.”
Todavia, no âmbito do NRAU, foi ainda fixado um regime transitório para os contratos habitacionais celebrados antes da vigência do RAU, nomeadamente no art. 57.º:

“1 – O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobreviva:
a) Cônjuge com residência no locado;
b) Pessoa que com ele vivesse em união de facto, com residência no locado;
c) Ascendente que com ele convivesse há mais de um ano;
d) Filho ou enteado com menos de um ano de idade ou que com ele convivesse há mais de um ano e seja menor de idade ou, tendo idade inferior a 26 anos, frequente o 11.º ou 12.º ano de escolaridade ou estabelecimento de ensino médio ou superior;
e) Filho ou enteado maior de idade, que com ele convivesse há mais de um ano, portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %.”

Finalmente, a Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, alterou o art. 57.º, n.º 1, do NRAU, nomeadamente nos seguintes termos:

c) Pessoa que com ele vivesse em união de facto há mais de dois anos, com residência no locado há mais de um ano;
d) Ascendente em 1.º grau que com ele convivesse há mais de um ano.”

Esta longa digressão pelo regime jurídico principal da transmissão do arrendamento urbano para habitação, por morte do arrendatário, mostra bem a evolução que a matéria teve, ampliando ou reduzindo as possibilidades de suceder no contrato ao arrendatário, numa área de extrema sensibilidade social. Daí, pois, o cuidado posto na sua regulação pelo legislador, expresso nas numerosas alterações descritas, não sendo expetável que a norma aplicável não tenha o conteúdo que o texto revela.

No caso vertente a arrendatária, para quem o contrato de arrendamento fora transmitido em 1986, na sequência de divórcio, faleceu em 1 de julho de 2013.
Poderia o Apelante, alegando ter vivido sempre em economia comum com a arrendatária, sua mãe, ter sucedido no arrendamento, obstando à sua caducidade, por morte da arrendatária?
Na sentença recorrida, respondeu-se negativamente a esta questão.
No entanto, o Apelante impugnou tal entendimento, sustentando a aplicação do disposto no art. 1106.º do CC, que, em seu entender, revogou a norma transitória do art. 57.º, n.º 1, do NRAU.
A razão, porém, não está com o Apelante.
Na verdade, como se viu, o art. 1106.º do CC foi introduzido pelo NRAU, não podendo ter revogado o art. 57.º do mesmo NRAU.
O art. 57.º do NRAU, com efeito, estabeleceu um regime transitório, quanto à transmissão por morte no arrendamento para habitação, aplicável aos contratos celebrados antes da entrada em vigor do RAU, aprovado pelo DL n.º 321-B/90, de 15 de outubro (art. 27.º do NRAU).
Um regime transitório semelhante foi também fixado para os contratos celebrados na vigência do RAU (art. 26.º, n.º s 1 e 2, do NRAU).
O art. 57.º, n.º 1, do NRAU sofreu, entretanto, alteração, decorrente da Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, nomeadamente no sentido de que a transmissão por morte no arrendamento para a habitação pode ser feita a “pessoa que com ele (“primitivo arrendatário”) vivesse em união de facto há mais de dois anos, com residência no locado há mais de um ano”.
O regime transitório, fixado no NRAU, continua a manter-se em vigor enquanto subsistirem os contratos de arrendamento para habitação celebrados antes ou durante a vigência do RAU, aplicando-se aos contratos de arrendamento para habitação posteriores o regime previsto no art. 1106.º do CC, consagrado pelo NRAU.
Tendo o contrato de arrendamento para a habitação dos autos sido celebrado em 28 de janeiro de 1958, é aplicável o regime transitório do NRAU, nomeadamente o disposto no art. 57.º, n.º 1.
Não sendo já a falecida a primitiva arrendatária, não podia transmitir-se ao Apelante o contrato de arrendamento para a habitação, mesmo que tivesse residido, em economia comum e há mais de um ano, com a mãe.
Para além disso, o Apelante não se enquadra em qualquer uma das categorias de beneficiários previstos nas diversas alíneas do n.º 1 do art. 57.º do NRAU.
Nestes termos, o contrato de arrendamento caducou, nos termos da alínea d) do art. 1051.º do CC, não se transmitindo ao Apelante.
Por isso, não há motivo válido que obste à restituição do imóvel, reconhecido o direito de propriedade.

Evidentemente que da aplicação da norma do art. 57.º, n.º 1, do NRAU, não resulta qualquer inconstitucionalidade, nomeadamente por violação dos arts. 13.º e 65.º da Constituição da República Portuguesa, com alega, sem suficiente fundamentação, o Apelante.
O art. 57.º, n.º 1, do NRAU, ao prever o ascendente do arrendatário que com ele convivesse há mais de um ano (alínea c)) como beneficiário da transmissão do contrato não viola o princípio da igualdade, por não ter contemplado, nos mesmos termos, os descendentes. Na verdade, o ascendente, sendo pessoa com mais idade do que o arrendatário, justifica uma proteção especial, derivada da sua situação mais vulnerável em face da idade e dos rendimentos, que, em regra, tendem a diminuir. Por isso, tratando-se de situações diferenciadas, é compreensível o tratamento normativo concedido ao ascendente, não se verificando uma discriminação injusta e arbitrária, e, consequentemente, a violação do princípio da igualdade, consagrado no art. 13.º da Constituição.
Por outro lado, também não ocorre a violação do disposto no art. 65.º da Constituição.
Desde logo, porque tal direito reveste mais natureza programática, que se dirige ao Estado, embora assumindo muita relevância, pela repercussão que a questão da habitação ainda tem hoje na sociedade portuguesa. Por outro lado, contemplando o art. 57.º, n.º 1, do NRAU, parte essencial do direito à habitação, ao estabelecer um conjunto alargado de beneficiários na transmissão por morte do arrendamento, nomeadamente nos contratos mais antigos e com um regime fortemente vinculístico, encontra-se salvaguardada, adequadamente, a essência do direito à habitação.
Por isso, ao legislar nos termos conhecidos, o Estado, no âmbito da sua função soberana enquanto legislador, assegurou, em termos razoáveis, o direito à habitação.
Concluindo que o contrato de arrendamento por morte da arrendatária não se transmitiu ao filho, tendo caducado, não dispõe o Apelante de título que legitime o gozo e fruição do imóvel, que esteve arrendado a seus pais, estando obrigado a restituí-lo à sua proprietária, depois de lhe ter sido reconhecido, sem contestação, o direito de propriedade.
Nesta matéria, a jurisprudência tem vindo a pronunciar-se em termos semelhantes, citando-se, designadamente, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12 de novembro de 2015 (processo n.º 894/13.0TVLSB.L1-6), acessível em www.dgsi.pt.

Nestes termos, improcede a apelação e confirma-se a sentença recorrida, a qual não violou qualquer disposição legal, designadamente as especificadas pelo Apelante.

2.5. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante:

I. Realizando-se a audiência prévia, mesmo sem a comparência de algum mandatário, é legalmente injustificável a sua interrupção, motivada na circunstância de um dos mandatários estar impossibilitado de comparecer.
II. As questões a resolver na ação prendem-se, essencialmente, com o pedido e a causa de pedir formulados, por um lado, e com a matéria de exceção, por outro.
III. Ao resolver-se que não se dispunha do direito à transmissão do contrato de arrendamento, por morte da arrendatária, a restante argumentação dela dependente ficou prejudicada, não carecendo de pronúncia expressa, nos termos do disposto no art. 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
IV. O regime transitório, fixado no Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), continua a manter-se em vigor enquanto subsistirem os contratos de arrendamento para habitação celebrados antes ou durante a vigência do Regime do Arrendamento Urbano, aplicando-se aos contratos de arrendamento para habitação posteriores o regime previsto no art. 1106.º do Código Civil.
V. Não sendo já a falecida a primitiva arrendatária, não podia transmitir-se ao filho, em 1 de julho de 2013, o contrato de arrendamento para a habitação, mesmo que tivesse residido em economia comum e há mais de um ano.
VI. O art. 57.º, n.º 1, do NRAU, não viola o princípio da igualdade e o direito à habitação, consagrados nos arts. 13.º e 65.º da Constituição, respetivamente.

2.6. O Apelante, ao ficar vencido por decaimento, é responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a regra da causalidade, consagrada no art. 527.º, n.º s 1 e 2, do CPC.

III – DECISÃO

Pelo exposto, decide-se:

1) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.

2) Condenar o Apelante (Réu) no pagamento das custas.

Lisboa, 9 de dezembro de 2015


(Olindo dos Santos Geraldes)

(Lúcia Sousa)

(Magda Geraldes)