Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2243/2008-6
Relator: FERREIRA LOPES
Descritores: EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/18/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: I – A excepção de não cumprimento radica num princípio de boa fé, segundo o qual quem viola uma obrigação não pode, sem abuso, exigir o cumprimento de uma outra que em relação àquela, está em nexo de reciprocidade;
II – Tendo Autora e Ré celebrado um contrato de concessão nos termos do qual a segunda cedeu à primeira o direito a vender em Portugal, em regime de exclusividade, produtos de determinada marca, obrigando-se a Autora a pagar 19.000.000$00 em prestações mensais e sucessivas, não pode esta última Autora suspender o pagamento com invocação da excepção de não cumprimento, por a Ré não dar quitação dos pagamentos já efectuados;
III – É que no caso não há incumprimento do contrato por parte da Ré; ademais, o direito á quitação (art. 787º do Cód. Civil) pressupõe o cumprimento integral da obrigação, o que não era o caso.
(sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa
A. Lda., intentou em 19-06-2001, nas Varas Cíveis de Lisboa, acção com processo ordinário contra D. Lda, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de 5.796.294$00, acrescida de 279.260$00 de juros de mora já vencidos e nos vincendos.
Como fundamento alegou ter prestado serviços de transporte à Ré no valor de 5.796.294$00 que a Ré não pagou, vencendo-se juros de mora desde as datas de vencimentos de cada uma facturas.
A Ré contestou por impugnação, negando que a Autora lhe tenha prestado os serviços de transporte cujo pagamento reclama; em reconvenção alegou ter celebrado com a Autora um contrato de concessão de exploração, pelo qual lhe cedeu o direito de vender os produtos de uma marca que representa em Portugal, obrigando-se a Autora a pagar-lhe 19.000 contos, de que só pagou 5.500 contos. Pede a condenação daquela a pagar-lhe 11.384.334$00, depois de operar a compensação com um crédito que Autora tem sobre si.
Na réplica, a Autora manteve a posição inicial, reduzindo, todavia, o pedido para 4.845.684$00, por, diz, ter cometido um lapso na formulação do pedido. Quanto ao pedido reconvencional, invocou a excepção de não cumprimento do contrato pela Ré (art. 428º do Cód. Civil), por aquela não ter emitido os recibos dos pagamentos que a Autora efectuou.

Feito o julgamento e dirimida a matéria de facto, foi proferida sentença que julgou a acção e reconvenção improcedentes, absolvendo a Autora e a Ré dos pedidos contra cada uma formulados.

Irresignada, a Ré-Reconvinte apelou, tendo formulado no essencial as seguintes conclusões:
1ª. Nos termos do art. 762º/1 do Código Civil (CC) o devedor só cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado; no caso, quando solve a dívida de 19.000.000$00.
2ª. Esclarecendo o art. 763º/1, que a prestação deve ser integralmente realizada e não por partes.
3ª. Assim, nos termos do art. 777º/1 do CC, a Ré tinha o direito – que exerceu – de exigir da Autora o cumprimento da obrigação por ela assumida.
4ª. Face ao exposto, os pagamentos parciais daquela dívida efectuados pela A. à R., não configuram o cumprimento da obrigação por ela assumida.
5ª. O cumprimento a que se refere o art. 787º do CC é o cumprimento integral (…).
6ª. E os direitos nela conferidos ao sujeito passivo da obrigação pressupõem o oferecimento daquele cumprimento integral e (…) a recusa do credor a dar quitação.
7ª…não a recusa a dar quitação de pagamentos parciais da dívida, já efectuados.
8. Por isso, admitindo, como mera hipótese, que a R. se recusou a dar quitação à A. dos pagamentos parciais, tal recusa seria justificada… (art. 813º do CC).
9ª Por outro lado, o recibo de quitação destina-se exclusivamente a provar o cumprimento, podendo tal prova ser feita por vários outros meios.
10ª. No caso concreto, a prova daqueles pagamentos parciais já efectuados pela A decorre dos extractos da conta bancária da A., está ínsita na carta referida em B dos Factos Assentes, e está expressa e inequivocamente confessada pela Ré no pedido reconvencional que deduziu.
11ª. (…) a sentença violou as normas supra referidas, pelo que deve ser revogada e substituída por outra que julgue totalmente procedente, por provado, o pedido reconvencional (…).

Não foram apresentadas contra alegações.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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Fundamentos.
A sentença julgou provados os seguintes factos:
1. A Ré é distribuidora exclusiva no território português dos alimentos para animais das marcas da sociedade “DOG SARL” e “VIRBAC SA”.
2. Entre a Autora e a Ré foi celebrado um contrato nos termos do qual esta concederia à A., em regime de exclusividade, o direito de exploração e venda dos alimentos para cães e para gatos das marcas da sociedade “Dog Internacional” no âmbito da área definida pelos distritos de Lisboa e Setúbal e pelas regiões autónomas dos Açores e Madeira, pagando-lhe a Autora por tal concessão 19.000.000$00.
3. Em 02/02/2000, ficaram acordadas as condições que regulariam as relações comerciais entre as partes, no âmbito do contrato referido em 2), designadamente que os serviços de transporte de mercadorias levados a cabo pela A. seriam da sua exclusiva responsabilidade, salvo nos casos em que esta optasse por que eles fossem efectuados pela Ré, caso em que seriam acordadas as respectivas condições.
4. Na sequência do acordo referido em 2), a A. emitiu a favor da Ré cheques pré-datados para o pagamento da quantia de 19.000.000$00.
5. Alguns dos cheques emitidos pela Autora, no valor total de 5.500.000$00, obtiveram pagamento.
6. A Autora emitiu os seguintes cheques no valor total de 13.500.000$00, sacados sobre a conta DO 00093010006, do balcão de Bucelas do Banco Espírito Santo, os quais apresentados a pagamento, foi o mesmo recusado, por motivo “extravio”:
a) nº 81449913702, data de emissão de 25.06.2000, valor: 7.500.000$00;
b) nº 2345384568, data de emissão de 25.06.2000, valor: 1.000.000$00;
c) nº 4845384576, data de emissão de 25.07.2000, valor: 1.000.000$00;
d) nº 7345384584, data de emissão de 25.08.2000, valor: 1.000.000$00;
e) nº 9845384592, data de emissão de 25.09.2000, valor: 1.000.000$00;
f) nº 6945384606, data de emissão de 25.10.2000, valor: 1.500.000$00;
7. A Ré enviou à Autora, que a recebeu, a carta registada com a/r, datada de 08-09-2000, na qual refere que “…Sendo a D. credora da Transportes A, Lda, no valor de 13.5000.000$00, deve essa sociedade considerar compensado aquele nosso débito de 662.233$00 com aquele nosso crédito até à concorrência do referido débito…”.
8. A Autora emitiu as facturas juntas aos autos a fls. 7,8,9,10 e 12, cujo teor aqui se dá por reproduzido, assim descriminadas:
a) nº 19, com data de vencimento a 29.12.2000, valor: €6.924,46;
b) nº 18, com data de vencimento a 29.12.2000, valor: € 11.263,30;
c) nº 17, com data de vencimento a 29.12.2000, valor: €1.032,27;
d) nº 16, com data de vencimento a 29.12.2000, valor: € 1.071,48;
e) nº 1119, com data de vencimento a 18.12.2000, valor: € 2.485,73.
9. A Ré não liquidou as facturas referidas no número anterior (resposta ao art. 2º da base instrutória).
10. A Autora enviou à Ré uma carta a solicitar que lhe fossem emitidos os recibos correspondentes aos pagamentos que lhe haviam sido efectuados no âmbito do acordo referido em 2) – resposta ao art. 8º da base instrutória.
11. A Ré não emitiu os recibos requeridos nem respondeu à carta da A. (resposta ao art. 9º da base instrutória).
O direito.
Da sentença só apelou a Ré-Reconvinte. Assim, apenas cumpre apreciar aquela na parte em que julgou o pedido reconvencional improcedente.
Em reconvenção, a ora Recorrente alegou ter celebrado com a Recorrida um contrato de concessão de exploração pelo qual lhe cedeu o direito de explorar e vender em exclusivo um determinado produto, obrigando-se a Autora a pagar-lhe 19.000.000$00 e que desta importância apenas pagou 5.500 contos, não tendo a Ré conseguido cobrar os cheques que titulavam a restante importância por a Autora, falsamente, os ter dado por extraviados.
Na resposta, a Autora veio invocar a excepção de não cumprimento do contrato pela Ré, por não ter emitido os recibos que lhe solicitou relativamente às importâncias que entregou para pagamento do preço da concessão.
A sentença, depois de citar o art. 787º/1 do Cód. Civil, segundo o qual “quem cumpre a obrigação tem o direito de exigir a quitação daquele a quem a prestação é feita, devendo a quitação constar de documento autêntico ou autenticado ou ser provida de reconhecimento notarial, se aquele que cumpriu tiver nisso interesse legítimo, julgou o pedido reconvencional improcedente, com o fundamento em “assistir à autora o direito de recusar o pagamento do remanescente da quantia relativa ao contrato de concessão, enquanto a ré recusar dar quitação dos pagamentos já efectuados pela autora”.
Contra este entendimento insurge-se a Apelante e com razão.
Vejamos.
O art. 428º, nº1 do Cód. Civil dispõe: “Se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento em simultâneo”.
A excepção de não cumprimento radica essencialmente num princípio de boa fé segundo o qual quem viola uma obrigação não pode, sem abuso, exigir o cumprimento de uma outra que, em relação àquela está em nexo de reciprocidade; pretende-se que os contraentes sejam compelidos ao cumprimento do contrato, evitando-se resultados contrários ao equilíbrio ou equivalência das prestações que caracteriza o contrato bilateral (Ac. da Relação do Porto de 17-05-93, CJ, III, pag. 204).

No caso em apreço, está bem de ver que não estamos perante um caso que autorize a Recorrida a invocar o princípio consagrado no nº1 do art. 428º.
Do contrato que celebraram emergiram para as partes as seguintes obrigações principais: para a Ré a de transmitir para a Autora o direito de exploração e venda de alimentos para animais da marca “Dog International”; para a Autora a de pagar à Ré, como contrapartida, a quantia de 19.000.000$00.
Dos factos apurados não resulta que a Ré tenha incumprido a obrigação de conceder à Autora o direito de vender os produtos da referida marca. Ao contrário, a Autora não cumpriu a obrigação de pagar o preço pela concessão.
A justificação que apresentou para a sua atitude de cancelar os cheques é manifestamente inidónea a sustentar a excepção de não cumprimento: só um incumprimento da Ré que afectasse a fruição do direito reconhecido à Autora no contrato poderia legitimar a decisão de não proceder ao pagamento, o que não sucede com a não emissão de recibos dos pagamentos efectuados.
Não se trata de a Ré recusar dar quitação dos pagamentos efectuados. O disposto no art. 787º do Cód. Civil – que reconhece a quem cumpre a obrigação o direito de exigir quitação - não é, salvo o devido respeito, de aplicar aqui, pois a hipótese aí prevista pressupõe o cumprimento integral da dívida, o que não é o caso dos autos.
O comportamento da Autora viola o princípio da boa fé. Como ensina Almeida Costa, citado no douto acórdão do STJ de 30.11.2000, CJ AcSTJ, III, pag. 150:
“Do princípio da boa fé, resulta o imperativo de uma apreciação, em face da circunstâncias concretas, da gravidade do cumprimento incompleto ou defeituoso, que não deve mostrar-se insignificante. Seria contrário à boa fé que um dos contraentes recusasse a sua inteira prestação só porque a do outro enferma de uma falta mínima ou sem suficiente relevo.”
É justamente o que ocorre no caso dos autos. É manifesta a desproporção entre a falta da Autora – que deixou de pagar o preço estabelecido no contrato – e da Ré ao não passar os recibos, dando de barato que recebeu a carta a que alude o nº 10 da matéria de facto.
As partes convencionaram que a dívida seria paga através de cheques, com diferentes datas de emissão, o que revela ter sido acordado o pagamento em prestações. Ora, de acordo com o princípio consagrado no art. 781º do CC, a Autora, ao não pagar um dos cheques, levou ao imediato vencimento das restantes prestações, ficando a Ré com o direito de exigir da Autora o cumprimento da integralidade da dívida.
A Reconvinte tem o direito de exigir da Autora a importância de € 56.785,00 (11.384.334$00), acrescida de juros de mora, calculados às taxas de juros comerciais sucessivamente em vigor, a contar da notificação da Autora do pedido reconvencional (art. 805º, nº1 do Cód. Civil).
Procedem as conclusões 1ª a 11ª, merecendo o recurso provimento.
Decisão.
Pelo exposto, julga-se procedente a apelação e em consequência, altera-se a sentença, revogando-a na parte em que julgou improcedente a reconvenção, pelo que se condena a Autora a pagar à Ré a importância de € 56.785,00 acrescida de juros de mora nos termos atrás referidos.
Custas pela Recorrida.
Lisboa, 18/09/2008
Ferreira Lopes
Manuel Gonçalves
Gilberto Jorge