Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
864/18.1YLPRT.L1-7
Relator: CONCEIÇÃO SAAVEDRA
Descritores: ARRENDAMENTO
RESOLUÇÃO
ABUSO DE DIREITO
INALEGABILIDADE DE NULIDADE FORMAL
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/05/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I- Ao recorrente que impugne a matéria de facto caberá, sob pena de rejeição imediata do recurso, indicar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (aos quais deve aludir na motivação do recurso e sintetizar depois nas conclusões), especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que, em seu entender, impunham decisão diversa quanto a cada um desses factos e propor, ainda, a decisão alternativa sobre cada um deles;
II- Nos termos dos arts. 373 do C.C. e art. 154 do Código do Notariado, a assinatura a rogo deve ser dada ou confirmada perante notário depois de lido o documento ao rogante que não saiba ou não possa assinar, e a subscrição respetiva só obriga se realizada nesses termos;
III- Apurando-se que foi a própria Ré no procedimento especial de despejo, para quem se transmitiu o arrendamento, quem subscreveu o denominado “aditamento ao contrato de arrendamento habitacional” a pedido de sua mãe então arrendatária, que não sabia ler, nem escrever, ou assinar o nome, depois de lhe ter sido lido o documento e de acordo com a vontade desta, não pode a mesma Ré invocar na causa a nulidade da respectiva declaração por preterição daquela formalidade legal;
IV- Nestas circunstâncias, deve considerar-se abusiva e contrária ao princípio da boa-fé, na modalidade de inalegabilidade de nulidade formal, a invocação do incumprimento da aludida formalidade que precisamente visa proteger o rogante do desconhecimento do verdadeiro conteúdo do documento que assina sem que o possa ler;
V- Os recursos visam apenas modificar as decisões impugnadas mediante o reexame das questões nelas equacionadas e não apreciar matéria nova sobre a qual o tribunal recorrido não teve ensejo de se pronunciar, a não ser que sejam de conhecimento oficioso
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.

I- Relatório:
A [ ……Unipessoal, Lda ] , intentou junto do Balcão Nacional do Arrendamento (BNA), procedimento especial de despejo contra B [ [ Maria …… ] , com vista ao despejo do rés-do-chão esquerdo do prédio sito na Travessa Santa Maria, nº , em Vialonga, a quem se transmitiu o arrendamento por óbito da mãe, com fundamento na cessação do contrato por oposição à renovação pelo senhorio comunicada em Maio de 2017.
A Ré deduziu oposição, invocando, em síntese, que o contrato de arrendamento inicial foi celebrado em 1.10.1975 com seu pai, na qualidade de inquilino, e que, face ao respetivo óbito em 19.7.1998, o mesmo se transmitiu ao cônjuge sobrevivo, Clarisse …... Diz que em 24.2.2013 pelos então senhorios foi apresentado à indicada Clarisse ….., em mão, um escrito particular intitulado “aditamento ao contrato de arrendamento habitacional”, sem qualquer acordo prévio, sendo que a referida inquilina tinha 85 anos de idade, diagnóstico médico comprovável de Alzheimer, e não sabia ler, nem escrever, nem tão pouco assinar o seu nome. Diz que o dito documento foi lido à arrendatária e assinado pela filha presente, a ora Ré, a rogo, porém sem qualquer reconhecimento presencial da assinatura, sendo, por isso, nula e ineficaz a declaração negocial da inquilina e nulo o aludido “aditamento ao contrato”. Conclui, assim, que não operou a transição do arrendamento para o NRAU e, por isso, não podia a A. opor-se à renovação do contrato. Mais refere que tendo falecido a referida Clarisse …… em 31.7.2017, o arrendamento transmitiu-se para a Ré, como a A. reconheceu, e que ainda que não fosse nulo aquele aditamento e se considerasse o mesmo celebrado a termo de 2 anos, só poderia a senhoria opor-se à renovação do contrato em 23.2.2019, não podendo fazê-lo, como fez, por carta de 12.5.2017, recebida em 15.5.2017, para produzir efeitos em 1.2.2018, tendo-se entretanto renovado, mais uma vez, o contrato.
Remetidos os autos à distribuição junto do Tribunal competente, foi a A. convidada a responder à matéria de exceção, concluindo pela respetiva improcedência, e pedindo a condenação da Ré como litigante de má-fé.
Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi, em 23.12.2019, proferida sentença que decidiu não condenar a Ré como litigante de má-fé e concluiu nos seguintes termos:“(…) julgo a presente acção procedente, por provada e, em consequência:
- declaro a resolução do contrato de arrendamento destinado a habitação, supra identificado, que vincula a senhoria e a arrendatária, e referente à fracção autónoma supra identificada, mais condenando a arrendatária, a despejar o locado e a proceder à sua entrega, livre de pessoas e bens, aos requerentes;
-  dada a forma de acção, autorizo desde já a entrada imediata no domicilio, conforme artigo  15º, n.º 7 e 15º-L, n.º 1 a contrario, ambos do NRAU;
-   absolva a arrendatária, do mais peticionado.
Custas a cargo da requerida, nos termos do disposto no art.º 527º, n.ºs 1 e 2 do C.P.C., aplicável ex vi art.º 549º do CPC, sem prejuízo do beneficio de apoio judiciário concedido.(…).”
Desta decisão interpôs recurso a Ré, apresentando as respetivas alegações que culmina com as conclusões a seguir transcritas:

A) Com o presente recurso visa a apelante, questionar a apreciação da prova feita, do que resultará ser posta em crise toda a douta decisão na parte respeitante à apelada.
B) Constitui inequívoco elemento que foi desconsiderado pelo douto Tribunal a quo a circunstância de não ser valorado o depoimento da testemunha Piedade …..         .
C) Na própria sentença refere por um lado que âmbito do depoimento da testemunha Piedade ….., se limitou a dizer que o ouvira aos filhos da D.Clarisse e por outro que a testemunha corroborou que a D.Clarisse não estava sozinha, esteve sempre acompanhada pela filha e esta sabe ler e que não ouviu o que a D.Lurdes dizia ou explicava porque estava de roda da D.Clarisse, e que afirmou ainda que foi a própria testemunha que quando viu os senhorios à data (2013) dirigirem-se a casa da falecida mãe da requerida dirigiu-se para lá e viu que se tratavam de papéis idênticos.
D) O depoimento da testemunha da Piedade ….., perante tal contradição deve ser valorado mostrando ter um conhecimento directo e concreto da situação, pois a mesma encontrava-se presente, ao contrário do que considera o Tribunal a quo, que a testemunha na qualidade de amiga e vizinha da requerida depôs com conhecimento limitado sobre os factos convertidos e não sendo totalmente isenta ou merecedora de credibilidade.
E) (…)
F) O facto da testemunha Piedade ter uma situação idêntica, não pode nem deve ser desconsiderado, desde logo, pelo principio basilar que “situações iguais devem ter tratamento igual” e depois demonstrativo de que a apelada pretende a “todo o custo”, fazer cessar os contratos de arrendamento mais antigos - independentemente da idade dos inquilinos ou da situação económica destes - com vista a celebrar novos contratos de arrendamento com rendas bastante superiores.
G) A alegante e no que respeita ao facto considerado como provado que depois de lido à arrendatária, a aqui requerida e filha da arrendatária, então presente, assinou-o a rogo de Clarisse ….., na presença daqueles e de acordo com a vontade desta o documento intitulado “aditamento ao contrato de arrendamento habitacional”,
H) vem discordar do mesmo, uma vez que os primitivos senhorios – António …..o e Maria de Lurdes ……. – e os primitivos inquilinos – Jerónimo …….e Clarisse …….. – já faleceram, não ficando demonstrado nem foi feita prova concreta e inequívoca de que tivesse sido lido à inquilina Clarisse …….. o documento intitulado “aditamento ao contrato de arrendamento habitacional” e esta tivesse expressado a sua vontade e manifestado a concordância na assinatura do referido documento.
I) Mostrando-se o documento intitulado “aditamento ao contrato de arrendamento habitacional”, assinado pela apelante a rogo por a mãe não saber ler nem escrever, terá o mesmo de ser considerado nulo, por não estarem preenchidos os requisitos formais previstos nos Artº 373º do C.C. e Artº 154º do C.N., nomeadamente a necessidade do reconhecimento presencial da assinatura perante notário (ou entidade legalmente habilitada para praticar actos de notariado).
J) Não se mostrando preenchidos os requisitos formais previstos nos Artº 373º do C.C. e Artº 154º do C.N., deve o documento particular em causa ser declarado nulo e consequentemente ser determinado que o contrato de arrendamento não se transmitiu para o NRAU.
K) Se for entendimento que houve transição do arrendamento para o NRAU, teríamos então um contrato de arrendamento para habitação própria e permanente da então inquilina, Clarisse ……., passando a renda para o valor de 79,00€, com a duração de 5 anos renovável por iguais períodos, se nenhuma das partes denunciar o referido contrato de arrendamento com a antecedência mínima de 240 dias, conforme carta registada com AR datada de 15.03.2013, enviada pelos primitivos senhorios à inquilina Clarisse …..    .
L) Tendo o supra mencionado aditamento sido alegadamente assinado a 24 de Fevereiro de 2013, e sendo a proposta remetida pela inquilina Clarisse ……. aceite nos termos referido no artigo anterior, o contrato vigoraria até 23 de Fevereiro de 2018, se alguma das partes se opusesse à sua renovação, de acordo com o preceituado no Artº 1097º do C.C.
M) O que não se verificou, pelo que usando o mesmo raciocínio o contrato de arrendamento se renovou por igual período, ou seja por mais 5 anos, vigorando até 23 de Fevereiro de 2023.
N) A apelada terá de esperar até 240 dias antes do termo do prazo – 23 de Fevereiro de 2023 – para comunicar válida e eficazmente à apelante e agora inquilina – a sua intenção de se opor à renovação do contrato de arrendamento.
O) Acontece que a 31 de Julho de 2017 faleceu a inquilina Clarisse …….., circunstancia que foi comunicada à apelada, tendo esta reconhecido por carta registada com AR datada de 2 Outubro de 2017, a aqui apelante como a actual inquilina.
P) Qualquer intenção de oposição à renovação por parte da apelada terá de ser comunicada por carta registada com aviso de recepção, dentro do prazo ora estipulado, dando cumprimento ao disposto no Artº 1097º do C.C.
Q) No caso em apreço, estamos perante um contrato com mais de 40 anos e que a considerar ter sido objeto de aditamento, em que as partes acordaram na duração do mesmo pelo prazo de 5 anos, podendo ser renovado automaticamente, e estabeleceram igualmente que a denúncia do contrato teria de ser com a antecedência mínima de 240 dias. 
R) Se, as partes tendo querido outorgar o mencionado aditamento, e posteriormente acordaram a duração do contrato pelo prazo de 5 anos, podendo ser renovado automaticamente, e estabeleceram igualmente que a denúncia do contrato teria de ser com a antecedência mínima de 240 dias, fizeram-no tendo como base quer no princípio da confiança, quer no princípio da “pacta sunt servanda” (os acordos devem ser cumpridos), pelo que se vincularam a cumpri-lo, nomeadamente no que respeita quer à vigência do mesmo, quer ao prazo de denúncia com a antecedência mínima de 240 dias.
S) Tendo o disposto no Artº 1097º do C.C. natureza imperativa, mas apenas quanto ao prazo mínimo de antecedência exigível para a oposição à renovação, não podem as partes estipular um prazo inferior, pois caso assim fizessem tal estipulação, a mesma seria nula de acordo com o previsto no Artº 294º do C.C.
T) Na senda do explanado mais uma vez o douto Tribunal a quo desvaloriza, fazendo “tábua rasa” do eventual acordo/proposta aceite pelas partes da renda passar para o valor de 79,00€, e o contrato ter a duração de 5 anos renovável por iguais períodos, se nenhuma das partes denunciar o referido contrato de arrendamento com a antecedência mínima de 240 dias,
U) Ao considerar como provado a transição do contrato para o NRAU, que o contrato passou a ter a duração máxima de 2 anos e que a renda passa a ser de 89,00€.
V) Ainda no caso em concreto se diz que renda mostra-se pontualmente paga, a apelante tem 65 anos de idade, reside no imóvel há mais 40 anos e tem uma situação económica precária, encontrando-se a receber pensão por invalidez absoluta e que tais factos são do conhecimento da apelada.
W) Nos casos de contratos de arrendamento celebrados em data anterior ao NRAU, mesmo que tenham transitado para este, ainda que se encontrem preenchidos todos os requisitos para a denúncia do contrato, o senhorio não o poderá fazer, sempre que se verifique alguma das seguintes situações em relação ao arrendatário ou subarrendatário autorizado: a) Ter idade igual ou superior a 65 anos; b) Encontrar-se em situação de reforma por invalidez absoluta, ou, não beneficiando de pensão de invalidez, sofra de incapacidade para o trabalho de 60% ; c) Ser o Rendimento anual bruto corrigido (RABC) do seu agregado familiar inferior a cinco retribuições mínimas nacionais anuais (RMNA)
X) Encontrando-se preenchidos todos os pressupostos referidos, no âmbito do regime de excepção previsto, inviabiliza a pretensão da apelada de não renovação do contrato.”
Pede a revogação da sentença recorrida.
Em contra-alegações, pede a apelada a rejeição do recurso quanto à matéria de facto, por não se mostrarem verificados os requisitos previstos no art. 640, nº 1, do C.P.C., mais invocando que a apelante invoca matéria nova que antes não alegou. Conclui pela manutenção do decidido e pede a condenação da apelante como litigante de má-fé atenta a falta de fundamento do recurso que a mesma não pode ignorar.
O recurso foi admitido como de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito suspensivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
***
II- Fundamentos de Facto:
A decisão da 1ª instância fixou como provada a seguinte factualidade:
1) Por escrito particular datado de 29 de Setembro de 1975, António ……, casado, na qualidade de senhorio, cedeu a Jerónimo ……, casado, na qualidade de arrendatário, o gozo e fruição do rés-do-chão esquerdo, do prédio sito na Travessa Santa Maria, n.º  , em Vialonga (ex Rua dos Combatentes da Grande Guerra, Lote ..), conforme doc. 1 junto com o RI, e doc. de fls. 6 verso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
2) Da cláusula 1ª do referido escrito, consta que “Este arrendamento é pelo prazo de seis meses, a contar do dia 1 de Outubro de 1975, termina no último dia do mês de Julho de 1976, supondo-se sucessivamente renovado por iguais períodos e nas mesmas condições, nos termos da Lei;”;
3) Na data referida em 1), Jerónimo …., era casado com Clarisse ……..;  
4) A requerente é atualmente a dona e legitima possuidora do rés-do-chão, lado esquerdo, do prédio urbano, referido em 1), conforme doc. de fls. 71, cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
5) Ana Maria …….. é a legal representante da Requerente e foi a anterior proprietária do rés-do-chão, referido em 1), conforme doc. de fls. 71, cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
6) Em 19 de Julho de 1998, faleceu Jerónimo …….;
7) A cônjuge sobreviva, Clarisse ……. manteve-se na fruição do imóvel referido em 1), até ao seu decesso, em 31 de Julho de 2017, conforme doc. de fls. 8 junto com o RI, cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
8) Em 24 de Fevereiro de 2013, os então senhorios António …… e esposa, Maria ……., deslocaram-se ao rés-do-chão referido em 1), e exibiram à então arrendatária Clarisse ……, um escrito particular por si elaborado, e intitulado “aditamento ao contrato de arrendamento habitacional”, para que esta o assinasse;
9) Clarisse ….., não tinha conhecimento até então, desta intenção dos senhorios, ou deste escrito, conteúdo não foi previamente acordado entre as partes, nem a data da sua celebração;
10) A inquilina, Clarisse ……, contava à data, com cerca de 85 anos de idade;
11) E não sabia ler, nem escrever, nem sequer sabia assinar o seu próprio nome;
12) Mas depois de lido à arrendatária, B, a aqui Requerida e filha da arrendatária, então presente, assinou-o a rogo de Clarisse ….., na presença daqueles e de acordo com a vontade desta;
13) Mediante carta registada e datada de 5 de Março de 2013 e recebida pelos primitivos senhorios, Clarisse …… comunicou-lhes não aceitar o teor do escrito referido em 8), quanto ao prazo de duração máxima de 2 anos, contrapondo um prazo de duração máxima de 5 anos, renováveis, e o valor atualizado de renda (€ 89,00), contrapondo com outro valor (€ 79,00), conforme doc. de fls. 72/73 junto com o RI, cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
14) Os primitivos senhorios, aceitaram esta contraproposta, o que comunicaram a Clarisse ……, mediante carta datada de 15 de Março de 2013, conforme doc. de fls. 74 junto com o RI, cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
15) Clarisse …… passou a pagar € 79,00 de renda, mensais;
16) Mediante carta registada e datada de 12 de Maio de 2017 e recebida em nome daquela por B, em 15.05.2017, a Requerente comunicou à então arrendatária Clarisse …., a sua intenção de opor-se à renovação do contrato celebrado em 1975, com o aditamento de 2013, não renovação para produzir efeitos em 31 de Janeiro de 2018, conforme doc. de fls. 4, 5 e 5 verso, junto com o RI, cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
17) No dia 31 de Julho de 2017, faleceu a arrendatária Clarisse ….., pelo que o arrendamento transmitiu-se por morte à sua filha e requerida nos autos, consigo residente;
18) Mediante carta registada e datada de 6 de Setembro de 2017, e recebida pela Requerente, B comunicou através de Mandatário, à então proprietária e senhoria, a intenção de beneficiar da transmissão por morte do contrato de arrendamento celebrado com a Mãe, mais juntando três documentos, um deles com a sua identificação pessoal, conforme doc. de fls. 9 e 9 verso, junto com o RI, cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
19) Mediante carta registada e datada de 2 de Outubro de 2017, e recebida pela destinatária, a Requerente comunicou através de legal representante, reconhecer a transmissão por morte do contrato de arrendamento celebrado, conforme doc. de fls. 11 verso, 12 e 12 verso, junto com o RI, cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
20) Do escrito referido em 8), conta na cláusula 1ª que: “Os Primeiros Outorgantes e Segundos Outorgantes, aceitam e querem que o contrato de arrendamento que se encontra a decorrer entre ambos, desde o ano de 01/10/1975, transite para o novo regime jurídico aplicável ao arrendamento urbano, regulado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, alterada pela Lei n.º 31/2012, passando a estar submetido à legislação acima referida.”, conforme doc. de fls. 2 e 3 junto com o RI, cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
21) Do escrito referido em 8), resulta a transição do contrato de arrendamento para o NRAU, que o contrato de arrendamento passou a ter a duração máxima de dois anos e que a renda passa a ser de € 89,00;
Deu-se ainda como não provado:
1. A inquilina, Clarisse ….., tinha em 2013, um diagnóstico médico de doença Alzheimer;
2. A inquilina e a filha, foram forçadas a aceitar o escrito referido em 8) apondo aquela a sua assinatura a rogo.
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III- Fundamentos de Direito:
Como é sabido, são as conclusões que delimitam o âmbito do recurso. Por outro lado, não deve o tribunal de recurso conhecer de questões que não tenham sido suscitadas no tribunal recorrido e de que, por isso, este não cuidou nem tinha que cuidar, a não ser que sejam de conhecimento oficioso.
De acordo com as conclusões das recorrentes acima transcritas, em causa está apreciar:
- da impugnação da matéria de facto;
- da subsunção jurídica (do regime jurídico aplicável e da renovação do contrato de arrendamento).
Apreciaremos, ainda, a questão da litigância de má-fé da apelante suscitada nas contra-alegações.
A) Da impugnação da matéria de facto:
A apelante/Ré começa por manifestar no recurso a sua discordância quanto à decisão da matéria de facto, aludindo ao depoimento da testemunha Piedade …..
A recorrida pede, em contra-alegações, a rejeição do recurso nesta parte, invocando não se mostrarem verificados os requisitos previstos no art. 640, nº 1, do C.P.C..
Vejamos.
De acordo com o princípio consagrado no art. 607, nº 5, do C.P.C. de 2013, o tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em conformidade com a convicção que haja firmado acerca de cada facto controvertido, salvo se a lei exigir para a existência ou prova do facto jurídico qualquer formalidade especial, caso em que esta não pode ser dispensada. As provas são assim valoradas livremente, sem qualquer grau de hierarquização nem preocupação do julgador quanto à natureza de qualquer delas.
Os poderes do tribunal da Relação de alteração da decisão de 1ª instância sobre a matéria de facto foram, por seu turno, largamente ampliados e reforçados pelo C.P.C. de 2013, como decorre do seu atual art. 662, no confronto com o anterior art. 712 do C.P.C. 1961.
No entanto e ao mesmo tempo, tal como já antes sucedia, a impugnação da decisão relativa à matéria de facto obedece a determinadas exigências que surgem agora mais precisas que no anterior C.P.C. de 1961 e cuja observância não pode deixar de ser apreciada à luz de um critério de rigor([1]).
Assim, de acordo com o art. 640, nº 1, do C.P.C. de 2013: “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”
No que toca à especificação dos meios probatórios, incumbe ainda ao recorrente “sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (al. a) do nº 2 do 640).
Por sua vez, tais regras hão-de conjugar-se com aquela outra já indicada de que as conclusões delimitam o âmbito do recurso (art. 635, nº 4, do C.P.C.).
Como referido no Ac. do STJ de 27.10.2016([2]): “(…) As conclusões são, não apenas a súmula dos fundamentos aduzidos nas alegações stricto sensu, mas também o elemento definidor do objeto do recurso e balizador do âmbito do conhecimento do tribunal ad quem. Por conseguinte, as conclusões terão que conter a indicação de quais os concretos pontos de facto cuja alteração se pretende e o sentido e termos dessa alteração, “ónus que verdadeiramente permite circunscrever o objecto do recurso no que concerne à matéria de facto. (…).”([3])
A. Abrantes Geraldes resume as obrigações impostas ao recorrente que impugne a matéria de facto no domínio do C.P.C. de 2013 do seguinte modo: a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; b) Quando a impugnação se fundar em meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados, o recorrente deve especificar aqueles que, em seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; c) Relativamente a pontos da decisão da matéria de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre ao recorrente indicar com exactidão as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos; d) O recorrente deixará expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência nova que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente, também sob pena de rejeição total ou parcial da impugnação da decisão da matéria de facto. (…)”.([4])
Em síntese, ao recorrente que impugne a matéria de facto caberá indicar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados (aos quais deve aludir na motivação do recurso e sintetizar depois nas conclusões), especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que, em seu entender, impunham decisão diversa quanto a cada um desses factos e propor, ainda, a decisão alternativa sobre cada um deles.
A não observância de tais regras implicará a rejeição imediata do recurso, pois a deficiência que conduz ao aperfeiçoamento previsto no art. 639, nº 3, do C.P.C. não integra a omissão dos requisitos previstos no art. 640 do C.P.C.([5]).
Revertendo para o caso em análise, verificamos que a apelante não dá o mínimo cumprimento às indicadas exigências legais, como refere a apelada.
Assim, é evidente que aquela não indica, com a necessária clareza, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, nem refere os meios probatórios que justificariam decisão diversa quanto a cada um desses factos, muito menos propondo a resposta alternativa sobre cada um deles.
Na verdade, esta menciona, logo na conclusão A) do seu recurso, que pretende “questionar a apreciação da prova feita, do que resultará ser posta em crise toda a douta decisão na parte respeitante à apelada”.
No entanto, limita-se depois a fazer uma apreciação do depoimento prestado pela única testemunha inquirida, sem indicar sequer as passagens da respetiva gravação em que se funda, nem precisar quais os factos que deveriam ser julgados provados e/ou não provados.
Em suma, à apelante caberia indicar os pontos de facto que considerava incorretamente julgados mas explicando em seguida, detalhadamente e em relação a cada um deles, quais os meios de prova deficientemente valorados, designadamente com transcrição do essencial do depoimento que o justificaria.
A ausência desse exercício acaba por redundar num recurso genérico contra a decisão da matéria de facto que a lei manifestamente proíbe.
A irregularidade assinalada compromete, só por si, de forma irremediável, o recurso quanto à decisão da matéria de facto, pois, como dissemos, a inobservância dos requisitos previstos no art. 640 do C.P.C. impõe logo a rejeição do recurso nessa parte, sem lugar a aperfeiçoamento, prejudicando a apreciação por esta Relação sobre a modificabilidade da decisão de facto prevista no art. 662 do C.P.C..
Assim, rejeita-se o recurso sobre a decisão da matéria de facto, com o que se mantém inalterada a factualidade fixada em 1ª instância.
B) Da subsunção jurídica (do regime jurídico aplicável e da renovação do contrato de arrendamento):
Fixada, em definitivo, a matéria de facto, cumpre proceder ao respetivo enquadramento jurídico.
Defende a apelante que o intitulado “aditamento ao contrato de arrendamento habitacional”, assinado pela apelante a rogo, dado a mãe não saber ler nem escrever, deve ser considerado nulo, por não se encontrarem preenchidos os requisitos formais previstos nos arts. 373 do C.C. e art. 154 do Código do Notariado, nomeadamente a necessidade do reconhecimento presencial da assinatura perante notário (ou entidade legalmente habilitada para praticar atos de notariado). Donde, conclui que, em consequência, o contrato de arrendamento não se transmitiu para o NRAU.
Mais defende que, mesmo entendendo-se que houve transição para o NRAU, o contrato vigoraria até 23.2.2018, pelo que a A. tinha de opor-se à renovação 240 dias antes desse termo o que não sucedeu, renovando-se, por isso, o mesmo.
Finalmente, invoca que a renda do locado se mostra pontualmente paga, a apelante tem 65 anos de idade, reside no imóvel há mais 40 anos e tem uma situação económica precária, encontrando-se a receber pensão por invalidez absoluta, o que é do conhecimento da A., pelo que esta não podia proceder à denúncia do contrato.
Contrapôs a apelada que a alteração ao regime do contrato decorre do acordo das partes referido nos pontos 13 a 15 supra e que a situação de exceção invocada pela apelante constitui matéria nova, não discutida nem comprovada na ação, em todo o caso apenas aplicável a contratos de arrendamento que não transitaram para o NRAU. Mais refere que a transmissão do arrendamento para a Ré não altera o facto do contrato ter caducado por oposição à renovação comunicada anteriormente, nos termos do art. 1051, al. a), do C.C..
Na sentença concluiu-se pela procedência da causa, discorrendo-se da seguinte forma: “(…) Em face da posição assumida na Oposição pela Requerida, temos admitida a existência de um contrato de arrendamento destinado a habitação, celebrado por escrito, entre os primitivos outorgantes, que se transmitiu por óbito, ao cônjuge sobreviva do arrendatário e por decesso desta, a si, como filha, que com ela residia há muitos anos.
Em causa para a Requerida está a existência de um escrito válido, como aditamento a esse contrato, que altera as suas regras nomeadamente com a sua transição para o NRAU, seja quanto ao período máximo de duração, quanto ao pré-aviso para oposição à renovação seja ainda quanto à renda actualizada.
É evidente da factualidade apurada, que tal escrito não padece de qualquer nulidade, sequer na invocação de que a assinatura a rogo da arrendatária, é nula, por falta de forma, porquanto tal constituiria um flagrante abuso de direito por venire contra factum proprium, proibido por flagrante violação do principio da confiança, pois que foi a própria Requerida que o assinou pela sua mãe e que com ela colaborou no envio da carta e registo de fls. 72 e 73, do que ficou absolutamente convencido o Tribunal, como supra aduzido em sede de fundamentação de facto. De resto, apesar de não saber ler, e assinar, nada nos autos permite inferir que a então arrendatária D. Clarisse foi obrigada a assinar ou não compreendeu o que assinava, pois que a carta seguinte é esclarecedora desse entendimento, como o é o pagamento das rendas subsequentes.
Ora, estabelecem os artigos 1094º e ss. da Lei n.º 6/2006, de 27.02, na redacção introduzida pela Lei n.º 31/2012, de 14.08 que O contrato de arrendamento urbano para habitação pode celebrar-se com prazo certo e ainda que o prazo não pode ser inferior a 5 anos, e que renova-se automaticamente, no seu termo, e por períodos mínimos de três anos, sendo que qualquer das partes se pode opor à renovação, estipulando o art.º 1097º quanto à oposição à renovação por iniciativa do senhorio, sobre a antecedência que deve observar.   
A oposição à renovação, do prazo do contrato de arrendamento por iniciativa do senhorio, deve ser comunicada ao inquilino, pela forma prevista nos artigos 9º e 10º do NRAU.
Tal comunicação serve de base ao procedimento especial de despejo, nos termos do artigo 15º n.º 1 e n.º 2, alínea c) do NRAU e é feita por carta registada com aviso de recepção, remetida para o domicílio convencionado, conforme doc. de fls. 4 verso e 5, comunicando à Requerida, a oposição à renovação, com a antecedência de 240 dias (8 meses), como acordaram as partes, sendo que, em 15 de Maio de 2017, estava em prazo para se opôr à renovação, em 31 de Janeiro de 2018, pois faltavam cerca de 8 meses e meio.
Ora, in casu, como vimos logrou a Requerente comprovar a factualidade que alegara, a cessação do contrato e aditamento, reduzidos a escrito, com observância do que acordaram, com a liberdade conferida pela transição do contrato para o NRAU, e sem necessidade de invocação de qualquer motivo para tal oposição, como não fez.
De resto, não se tendo por verificada qualquer forma impeditiva da resolução do contrato em causa, não sendo a consignação em depósito de várias rendas, forma de a tal obstar, tanto mais que como refere a Requerente se trata de um arrendamento findo, impõe-se determinar a procedência do requerido neste Procedimento Especial, mas com efeitos a 28 de Fevereiro de 2018, porquanto o aditamento em causa, vigora desde 1 de Março de 2013, face à aceitação do arrendatário, expressa na resposta que deu por carta, que se considerou provada, apesar do propugnado pela Requerida neste tocante. (…).”
A decisão proferida não merece reparo no essencial.
Com efeito, em face da factualidade apurada, é manifesto que a Ré não pode invocar a nulidade do mencionado “aditamento ao contrato de arrendamento habitacional” referido no ponto 8 supra com fundamento em que não se encontram preenchidos os requisitos formais previstos nos arts. 373 do C.C. e art. 154 do Código do Notariado, quanto ao reconhecimento presencial da assinatura.
Muito embora dos normativos indicados decorra que a assinatura a rogo deve ser dada ou confirmada perante notário depois de lido o documento ao rogante que não saiba ou não possa assinar, e que a subscrição só obriga se realizada nesses termos, constatamos que, no caso, foi a própria Ré quem assinou tal documento a rogo da arrendatária sua mãe, Clarisse …., que não sabia ler, nem escrever, ou assinar o nome, depois de lhe ter sido lido o documento e de acordo com a vontade desta (ver pontos 8 a 12 supra).
Por conseguinte, a invocação do incumprimento da aludida formalidade não pode deixar de considerar-se abusiva e contrária ao princípio da boa-fé.
Na realidade, dispõe o art. 334 do C.C. que: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”
A ilegitimidade em que se traduz o abuso de direito não resulta da violação formal de qualquer preceito legal em concreto mas da utilização manifestamente anormal, excessiva, do direito, independentemente do animus ou da consciência que o seu titular tenha do carácter abusivo da sua conduta([6]).
“(…) Para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder.
É preciso, como acentuava M. de Andrade, que o direito seja exercido, «em termos clamorosamente ofensivos da justiça» (…)”([7]).
O abuso de direito surge, deste modo, como a exceção oposta ao direito, cuja existência em si não é questionada, mas cujo exercício, por circunstâncias concretas, se torna inadmissível. Daí que a verificação em concreto do abuso legitime a oposição ao seu exercício e paralise a respetiva execução.
Uma das modalidades desse abuso é a chamada conduta contraditória, venire contra factum próprio, em combinação com o princípio da tutela da confiança.
Por sua vez, como subtipo do venire contra factum proprium, destaca-se ainda a figura da inalegabilidade de nulidade formal, caracterizada por apenas se aplicar às invalidades decorrentes da preterição da forma legalmente exigida. Neste caso, pretendendo evitar-se comportamentos contraditórios e a frustração da confiança criada na contraparte, estará ainda em causa a contradição entre dois comportamentos em que pelo menos um deles é ilícito (uma vez que houve a violação de uma regra de forma)([8]).
“(…) Na inalegabilidade de nulidades formais, o que está em causa não é a existência ou a ocorrência do negócio jurídico (pois quanto a este facto não poderá haver dúvidas), mas antes a validade do negócio jurídico que corresponde à vontade das partes, o qual, porém, não respeitou as exigências formais exigidas para o mesmo.(…).”([9])
Ora, se foi a própria Ré quem subscreveu o aludido documento a pedido de sua mãe e de acordo com a vontade desta, não pode agora invocar a preterição de formalidade legal que visa precisamente proteger o rogante do desconhecimento do verdadeiro conteúdo do documento que assina sem que o possa ler.
Ou seja, não pode a mesma arguir a nulidade do referido aditamento com fundamento na invalidade da respetiva subscrição pela inquilina, sob pena de abuso de direito na indicada modalidade de inalegabilidade de nulidade formal.
Acresce que, como salienta a recorrida em contra-alegações, a alteração ao regime do contrato de arrendamento decorre ainda do ulterior acordo das partes consubstanciada nos pontos 13 a 15 supra. Assim, provou-se que, por carta registada de 5.3.2013 e recebida pelos primitivos senhorios, Clarisse ….. comunicou àqueles não aceitar o dito “aditamento ao contrato de arrendamento habitacional” referido no ponto 8 supra quanto ao prazo de duração máxima de 2 anos, contrapondo um prazo de duração máxima de 5 anos, renováveis, e o valor atualizado de renda (€ 89,00), contrapondo com outro valor (€ 79,00), o que aqueles senhorios aceitaram por carta de 15.3.2013, passando a referida inquilina a pagar a renda mensal de € 79,00.
Em suma, é de concluir, em face da factualidade apurada sob os pontos 1 a 15 supra, que o contrato de arrendamento em apreço transitou para o NRAU, por acordo das partes, nos termos referidos.
Por sua vez, tendo as partes acordado na duração do contrato por 5 anos, renovável por iguais períodos, salvo denúncia por alguma das partes com a antecedência mínima de 240 dias (cfr. fls. 72/73 e 74 – pontos 13 e 14 supra), cremos que a carta registada remetida pela senhoria à inquilina Clarisse …..em 12.5.2017, e recebida em 15.5.2017, para produzir efeitos em 31.1.2018, observa a referida antecedência mínima acordada, contra o defendido pela apelante.
Acresce que a antecedência mínima de 240 dias prevista não contraria o disposto no art. 1097 do C.C., como se sugere.
Concorda-se, ainda assim, como se entendeu na sentença, que tais efeitos apenas se podiam produzir em 28.2.2018, posto que o aditamento ao contrato inicial apenas terá entrado em vigor em Março de 2013.
Dir-se-á, por sua vez, que a tanto não obsta a circunstância de, entretanto, o arrendamento se ter transmitido à Ré por óbito da mãe em 31.7.2017 (pontos 17 a 19 supra), de acordo com o previsto no art. 1051, al. a), do C.C., tanto mais que tal foi expressamente salvaguardado pela A. na carta referida no ponto 19 supra em que reconheceu a transmissão do arrendamento para a Ré.
Por último, quanto ao invocado pela apelante nas conclusões V) a X) do recurso, sobre o regime de exceção que impediria a denúncia do contrato (pagamento pontual da renda, 65 anos de idade da Ré, residência no imóvel há mais 40 anos, e situação económica precária, encontrando-se a receber pensão por invalidez absoluta), corresponde, como refere a apelada, a matéria nova que à apelante está vedado agora suscitar uma vez que antes a não invocou na causa, designadamente na oposição por si deduzida.
Como dissemos, o tribunal “ad quem” não pode conhecer de questões que não tenham sido invocadas no tribunal recorrido, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, sendo incontroverso que, sem prejuízo destas últimas questões, os recursos visam apenas modificar as decisões impugnadas mediante o reexame das questões nelas equacionadas e não apreciar matéria nova sobre a qual o tribunal recorrido não teve ensejo de se pronunciar. Tal constitui, de resto, importante limitação do objeto do recurso que tem por fim “obviar a que numa etapa desajustada, se coloquem questões que nem sequer puderam ser convenientemente discutidas ou apreciadas”, sendo ainda certo que tal apreciação sempre equivaleria a suprimir um ou mais graus de jurisdição([10]).
Em todo o caso, o regime de exceção a que a apelante faz apelo não poderia ter qualquer aplicação no caso, posto que a oposição à renovação do contrato teve lugar em Maio de 2017 quando era ainda arrendatária a falecida Clarisse ….., por conseguinte, antes de operar a transmissão do arrendamento para a aqui Ré.
Acresce que um eventual regime de exceção que pudesse ser oposto à denúncia sempre teria de ser invocado em resposta à mesma e não mais tarde, em procedimento especial de despejo subsequente.
Improcede, deste modo, forçosamente o recurso.
A) Da litigância de má-fé da apelante suscitada nas contra-alegações:
Como vimos, a A. pedira antes na causa a condenação da Ré como litigante de má fé, o que na sentença foi julgado improcedente.
Nas contra-alegações do recurso, pede agora a apelada a condenação da apelante como litigante de má-fé, e a condenação desta em multa não inferior a 10 vezes a taxa de justiça, invocando, em síntese, a falta de fundamento do recurso que esta não pode ignorar.
Desde logo se recorda que a sentença transitou em julgado no que respeita à litigância de má-fé da Ré, posto que é irrecorrível nessa parte (cfr. arts. 542 e 629 do C.P.C.).
Ora, no recurso a apelante replicou, no essencial, a argumentação antes aduzida, pelo que não poderia ser agora proferida nesta instância decisão em sentido diverso.
Em todo o caso, sempre se dirá que, face aos termos do recurso, não se verificam os pressupostos para a condenação da apelante nos termos pretendidos.
Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave, tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar, tiver alterado a verdade dos factos ou omitido outros relevantes para a decisão da causa, tiver praticado omissão grave do dever de cooperação ou tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão (cfr. art. 542, nº 2, do C.P.C.).
Por seu turno, o dever da boa-fé processual encontra-se instituído como um princípio geral do processo civil, segundo o qual os litigantes devem agir como pessoas de bem, isto é, usando entre si de correção, honestidade e lealdade (cfr. arts. 7, 8 e 9 do C.P.C.). A violação desse dever implica a condenação do litigante respetivo em multa e ainda em indemnização à parte contrária, caso por esta seja pedida.
É, por conseguinte, inerente ao princípio da boa-fé que a parte, ao litigar, esteja genuinamente convencida da sua pretensão.
Conforme se observou no Ac. da RL de 24.6.2008([11]), ainda que no domínio do C.P.C. anterior: “Se a parte procedeu de boa fé, sinceramente convencida de que tinha razão, a conduta é perfeitamente lícita; se não tiver sucesso na sua pretensão, suporta unicamente o encargo das custas, como risco inerente à sua actuação. Mas se procedeu de má-fé ou com culpa, se sabia que não tinha razão ou se não ponderou com prudência as suas pretensas razões, a sua conduta assume o aspecto de conduta ilícita, impondo o art. 456, nº 1, do C.P.C. que a parte que litigar dessa forma seja condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.”
Revertendo para o caso em análise, constatamos que a apelante reeditou no recurso em apreciação os motivos por si já aduzidos na oposição – e apresentou até, como vimos, nova argumentação – que correspondem a razões de direito que, na sua opinião, justificariam a improcedência do pedido.
Fê-lo ao abrigo do disposto no art. 629, nº 3, al. a), do C.P.C., que consente o recurso para o Tribunal da Relação em ações como a presente, independentemente do valor da causa e da sucumbência e, assim, a reapreciação das mesmas questões por um tribunal superior.
A apelante valeu-se de interpretações jurídicas que o Tribunal não acolheu, mas tal não significa, forçosamente, que a mesma as devesse ter por forçosamente infundadas e que tenha agido contra as regras da boa-fé. Trata-se da invocação de soluções de direito que não pode, em rigor, qualificar-se como ilícita no quadro normativo indicado.
O facto de não obter êxito no recurso não corresponde necessariamente a qualquer atuação de má-fé, e não significa que a ora apelante tenha deduzido, com dolo ou negligência grave, argumentação recursiva cuja falta de fundamento não devia ignorar.
Não se surpreende, em suma, ilicitude na conduta da apelante que deva agora sancionar-se por via do instituto da litigância de má-fé.
***
IV- Decisão:
Termos em que e face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e manter a sentença recorrida.
Custas pela apelante/Ré, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficie.
Notifique.

Lisboa, 5.5.2020
Maria da Conceição Saavedra
Cristina Coelho
Luís Filipe Pires de Sousa
_______________________________________________________
[1] Ver Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2013, págs. 128/129.
[2] Proc. 110/08.6TTGDM.P2.S1, em www.dgsi.pt.
[3] Ver também, sobre o conteúdo das conclusões quanto à impugnação da matéria de facto, entre outros, os Acs. do STJ de 27.9.2018, Proc. 2611/12.2TBSTS.L1.S1, de 31.10.2018, Proc. 2820/15.2T8LRS.L1.S1, de 12.7.2018, Proc. 167/11.2TTTVD.L1.S1, de 6.6.2018, Proc. 4691/16.2T8LSB.L1.S1, de 12.5.2016, Proc. 324/10.9TTALM.L1.S1, de 18.2.2016, Proc. 558/12.1TTCBR.C1.S1, e de 19.2.2015, Proc. 299/05.6TBMGD.P2.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[4] Ob. cit., págs. 126 e 127.
[5] Nesse sentido, ver ainda, designadamente, os Acs. do STJ de 27.9.2018, Proc. 2611/12.2TBSTS.L1.S1, de 27.10.2016, Proc. 3176/11.8TBBCL.G1.S1, e ainda de 27.10.2016, Proc. 110/08.6TTGDM.P2.S1, em www.dgsi.pt.
[6] Cfr. “Dicionário Jurídico”, Ana Prata, 3ª ed., pág. 7, e Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 5ª ed., pág. 498.
[7] Ainda Antunes Varela, ob. cit., págs. 498/499.
[8] Cfr. Carolina Rebordão Nunes, “Da Tutela da Confiança como limite à Invocação de Nulidades Formais”, Dissertação de Mestrado Científico na Especialidade de Ciências jurídicas, 2018, págs. 79 e ss..
[9] Carolina Rebordão Nunes, ob. cit., pág. 94.
[10] Abrantes Geraldes, ob. cit., págs. 87/88.
[11] Proc. 2889/2008-6, em www.dgsi.pt.