Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
409/2007-1
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: REGISTO PREDIAL
CITAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/27/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I. A citação dos herdeiros do titular da inscrição a que se reporta o artº 119º nº2 do C. do Registo Predial, desde que aqueles sejam conhecidos e localizados, deve ser feita via pessoal e não via edital, sendo que esta via apenas pode ser usada para os casos de ausência também em tal segmento normativo previstos.
II. A necessidade de obediência e vinculação ao caso julgado e sua consequência: extinção do poder jurisdicional do juiz (artº 666º do CPC) varia consoante a decisão seja a sentença de mérito final – caso em que tal necessidade é tendencialmente absoluta - ou seja um mero despacho interlocutório que não faça o acertamento definitivo dos interesses em causa, devendo, neste caso, tais figuras serem perspectivadas em termos mais mitigados ou maleáveis, a definir em função das circunstâncias de cada caso, de sorte a operar um justo equilíbrio entre os princípios da certeza, segurança e coerência e os não menos relevantes fitos da obtenção da justiça com maior celeridade e economia de meios possíveis.
(CM)
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

1.
Em processo executivo instaurado pela ora recorrente J Filhos, Lda, contra V e outros, veio aquela nomear á penhora fracção autónoma ali melhor identificada.
Apresentada a certidão de ónus e encargos de tal fracção verificou-se a inscrição da aquisição da dita fracção a favor de terceiro.
Foi ordenado o cumprimento do disposto no artº 119º nº1 do CRP.

A exequente informou e provou nos autos o falecimento do titular inscrito e indicou logo os seus herdeiros, bem como as respectivas moradas.
Requerendo a sua citação, nos termos do artº 119º do CRPredial, através da afixação de editais.
No seguimento do que foi ordenado o cumprimento do disposto no nº2 de tal preceito, com a afixação de editais.
Não tendo sido feita declaração alguma pelos herdeiros, foi dado cumprimento ai disposto no nº 3 do mesmo normativo.
Seguidamente foi dado cumprimento ao disposto o artº 864º do CPC.

Posteriormente a secção de processos concluiu os autos com a seguinte informação: «verifica-se não terem sido citados os herdeiros identificados a fls. 51/52».
Na sequência da qual foi proferido despacho, em 2001.01.09, a ordenar a citação de tais herdeiros.
Em 14 de Fevereiro de 2001 uma das citadas declarou que o bem (fracção dada à penhora) lhe pertence por herança.
Por despacho de 2006.04.20 foram dados sem efeito os despachos que tinham ordenado o cumprimento do nº3 do artº 119º do CRP e do artº 864º do CPC – o que tinha já originado a conversão da penhora – com o fundamento que: «se tinha presumido que os sucessores (do falecido) haviam sido citados quando o não foram» e novamente comunicado este facto à Conservatória do Registo Predial.

2.
Inconformada com este despacho dele agravou a exequente.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1ª O despacho recorrido parte do pressuposto de que os herdeiros do titular inscrito não foram citados.
2ª Porém os mesmos foram citados editalmente, conforme dispõe o artº 119º do CRPredial.
3ª E nada disseram no prazo de trinta dias…pelo que teria de ser expedida – como o foi – certidão do facto à Conservatória competente a fim de ser convertido o registo.
4ª Assim estava vedado à Mma Juiz dar sem efeito os despachos… e ordenar a comunicação à Conservatória para dar sem efeito a conversão do registo.
5ª Aliás estava esgotado o poder jurisdicional do Tribunal a quo quanto à questão decidida, nos termos do artº 666 nºs 1 e 3 do CPC, tendo-se verificado violação do caso julgado formal.

3.
A Sra- Juíza sustentou o despacho, no entendimento que a citação dos herdeiros do falecido, quando forem identificados e localizados, não se efectiva, nos termos do artº 119º nº2 do CRP, através da afixação de editais e que a decisão que ordenou a citação mediante esta afixação se deveu a lapso manifesto pelo que é rectificável nos termos do artº 667º do CPC

4.
Sendo que, por via de regra - de que o presente caso não constitui excepção -o teor das conclusões define o objecto do recurso, as questões essenciais decidendas são as seguintes:


Modo de citação dos herdeiros do titular falecido nos termos e para os efeitos do artº 119º nº2 do CRPredial.

Esgotamento do poder jurisdicional do juiz.

5.
Os factos a considerar são os resultantes do relatório supra.

6.
Apreciando.

6.1.
Primeira questão.
A citação edital constitui uma forma de comunicação dos actos processuais de cariz residual e efectuada “no limite” para certos tipos de situações, relativamente ás quais outra solução não é frutíferamente perspectivada.
A situação tipo atinente é a da ausência – artº 243º do CPC.
É evidente que tal comunicação constitui, a maior parte das vezes, mais um descargo de consciência legal e uma mera formalidade, pois que, na prática, ela não opera o pretendido desiderato de dar conhecimento ao citando do acto processual.
E tal handicap é tanto mais relevante e de evitar, quanto é certo que, pelo menos por via de regra, o citando é verdadeiro interessado substantivo a quem convinha tomar efectivo conhecimento do processo.
Razão pela qual a lei tipifica e restringe as situações em que tal forma de citação pode ser usada.
Note-se que mesmo no domínio do cumprimento do artº 864º do CPC só a citação do executado pode ter lugar pela via edital (nº1).
Assim sendo a solução interpretativa nesta matéria deverá sempre optar por uma resposta restritiva quando está em jogo a utilização ou não utilização de tal via ou meio de citação.
Nesta conformidade importaria ser esta a solução que, In casu, deveria ser acolhida se dúvidas consistentes houvessem.
Que, todavia e bem vistas as coisas, não existem.
Na verdade, estatuindo o nº 2 do artº 119º do CRPredial que: «no caso de ausência ou falecimento do titular da inscrição, far-se-á a citação deste ou dos seus herdeiros…afixando-se editais pelo prazo de trinta dias na sede da junta de freguesia da situação dos prédios e na conservatória competente», tem de entender-se, por aplicação dos aludidos critérios e princípios legais e por apelo aos elementos lógico e teleológico da hermenêutica jurídica, que a citação edital apenas se reporta à situação de ausência e não à situação em que os herdeiros do falecidos são conhecidos e localizados.
Como se verifica no caso sub júdice, tendo sido, inclusive – e bem, no correcto cumprimento do seu dever de colaboração – a própria exequente/recorrrente que indicou tais elementos.

6.2.
Segunda questão.

6.2.1.
O que distingue o erro material –lapsus calami – do erro de julgamento é que, naquele caso, há um lapso de expressão da vontade do julgador – a sua vontade declarada diverge da sua vontade real - detectável pelo simples facto de a conclusão (decisão) não ser permitida pelas premissas ou fundamentos em que se sufraga; enquanto que neste caso o julgador manifesta na decisão um determinado entendimento, desejado em função do que lhe foi peticionado e dos factos em que se baseia, mas esse entendimento é contra legem, sendo que, neste caso, o erro incide sobre o processo interno de formação do seu juízo – cfr. Ac. do STJ de 13.01.1989, BMJ, 383º, 462..
No caso vertente a decisão de mandar citar os herdeiros do falecido via edital resulta do requerimento que nesse sentido lhe foi feita pela exequente, sufragada juridicamente no artº 119º nº2 do CRP.
Não se pode dizer que tal preensão da exequente, seja, liminarmente e de todo em todo, insustentável face á literalidade de tal segmento normativo, ainda que, como se viu, não seja esse o melhor entendimento a retirar da interpretação do mesmo.
Assim sendo não se pode concluir que ao proferir o despacho que ordenou a citação edital, a Sra. Juíza se tenha fundamentado em premissas que não permitiam a decisão que tomou.
Antes pelo contrário e sendo suposto que ela leu tal requerimento, o deferimento do nele impetrado clama a conclusão que anuiu com os fundamentos nele aduzidos.
E não resultando dos autos que tenha havido lapso manifesto na expressão da sua vontade.
Ou seja, in casu a decisão não foi proferida apenas por mero lapso material e, assim, rectificável, encontrando-nos antes perante uma decisão prolactada mediante uma desconforme aplicação dos factos à lei, consubstanciadora de um erro de julgamento.

6.2.2.
O caso julgado formal – a valer dentro do processo – que implica a extinção do poder jurisdicional do juiz quanto á matéria da causa, nos termos do artº 666º do CPC, prossegue a defesa doas valores da estabilidade da decisão, pretendendo-se evitar que o juiz: «dê o dito por não dito…o que é intolerável e criaria a desordem, a incerteza e a insegurança» - Prof. Alberto dos Reis, Anotado, 1981, 5º, 127.

Há que notar, porém, que a força jurídica deste preceito e a necessidade de obediência e vinculação ao mesmo varia consoante a decisão seja a sentença de mérito final ou seja um mero despacho interlocutório que não faça o acertamento definitivo dos interesses em causa.
Pois que neste caso o princípio da extinção do poder jurisdicional apenas se aplica: «até onde seja possível» - nº3 do artº 666º.
Estamos em crer que esta maior limitação, mitigação ou plasticidade na perspectivação e aplicação do princípio aos despachos, pretende conjugar e compatibilizar, na medida do possível – atentos critérios de sensatez e razoabilidade - a defesa dos aludidos princípios da certeza, segurança e coerência, com o não menos relevante princípio da obtenção do fito primeiro e último do processo: a justiça e a verdade material.
A qual pode ser afectada por uma decisão menos ponderada, a maior parte das vezes resultante do consabido assoberbamento do julgador decorrente da elevada pendência processual.

No caso vertente a Sra. Juíza rectificou a sua decisão num sentido que este tribunal ad quem entende ser o legalmente correcto.
Na verdade a citação pessoal dos herdeiros mostra-se a mais consentânea com a pretensão legal de dar efectivo conhecimento aos respectivos interessados dos seus direitos e deveres decorrentes da dinâmica processual.
Assim lhes permitindo exercitar real e cabalmente o princípio do contraditório.
Tudo com vista à obtenção da verdadeira justiça material e não meramente processual-formal.
Não se afigurando que com tal alteração os interesses da exequente resultem intoleravelmente afectados, pois que sempre e em última análise, os poderá defender nos meios comuns, através de diversos meios, vg. acção pauliana.
Da tese contrária é que tal poderia resultar, pois que se correria o risco de se estarem a penhorar e adjudicar ou vender bens não pertencentes aos executados, o que já se indicia do processo, atenta a declaração de uma citada que já veio declarar que a fracção lhe pertence.

Acresce que os despachos de fls.59 e 74, que foram dados sem efeito, apenas foram notificados á exequente, não o tendo sido aos executados.
Como deviam, pois que não se vislumbra impedimento legal nesse sentido.
O que acarreta que os mesmos ainda não transitaram em julgado.
Logo não se pode dizer que sobre os mesmos se tenha formado o caso julgado formal, como alega a exequente.
O que, apesar de não obstar à aplicação do artº 666º nº1, pois que este não exige o trânsito em julgado, mas apenas a prolação da decisão, lhe retira a totalidade da sua carga impositiva, permitindo uma maior aplicação compreensiva do mesmo, em função da ponderação de toda a tramitação processual e a pretensão da consecução do supra mencionado objectivo primordial: a obtenção de uma decisão substancialmente justa e equitativa, prolactada processualmente, senão em termos de um rigor estrito, pelo menos de um modo aceitável.

7.
Decisão.
Termos em que, e ainda que com fundamentos parcialmente diferentes dos aduzidos no despacho de sustentação do agravo, se julga o recurso improcedente e, consequentemente, se confirma tal despacho.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 2007.02.27
(Carlos Moreira)
(Isoleta Almeida e Costa)
(Rosário Gonçalves)