Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1047/2006-2
Relator: ANA PAULA BOULAROT
Descritores: JULGADO DE PAZ
COMPETÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/18/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Sumário: I A não consagração na Lei n° 78/2001 de forma expressa, da competência exclusiva dos julgados de paz não aponta, no sentido da competência alternativa, porque tal não resulta nem do seu espirito, nem tão pouco da sua letra, sendo nossa firme convicção que a intenção legislativa foi atribuir tal exclusividade aos apontados órgãos, sendo esta a interpretação que mais se coaduna com o disposto no artigo 9º, nº1 do CCivil.
II Todavia, os Julgados de Paz, não são competentes para o conhecimento das acções tendentes ao cumprimento de uma obrigação pecuniária desde que, cumulativamente, tal obrigação seja para a obtenção de uma quantia em dinheiro e o credor originário, seja ou tenha sido, uma pessoa colectiva, situação esta excepcionada pelo artigo 9º, nº1, alínea a), da Lei 78/2001 de 13 de Julho onde se predispõe que «Os julgados de paz são competentes para apreciar e decidir: a) As acções destinadas a efectivar o cumprimento de obrigações, com excepção das que tenham por objecto prestação pecuniária e de que seja ou tenha sido credor originário uma pessoa colectiva; (…)», sendo neste caso da competência do Tribunal comum.
(APB)
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA


I C intentou contra COMPANHIA DE SEGUROS …., SA, acção declarativa com processo sumaríssimo no Tribunal de Pequena Instância Cível de Lisboa, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de € 2.859, 09, acrescida de juros vincendos quantia esta proveniente da prestação de cuidados de saúde a Florinda Veloso Alvarez a qual foi vitima de um atropelamento provocado por um velocípede sem motor que participava numa prova de ciclismo organizada pela Fundação …., segurada na Ré.

O Tribunal, a final, produziu sentença a julgar-se materialmente incompetente para o conhecimento da acção, uma vez que se entendeu, ser a mesma da competência exclusiva dos Julgados de Paz.

Inconformado com tal decisão, recorreu o MP, apresentando as seguintes conclusões:
- A Lei n° 78/2001, de 13 de Julho, que regula a competência e funcionamento dos julgados de paz e a tramitação dos processos da sua competência, não consagra qualquer norma de competência exclusiva aos julgados de paz, ao contrário dos projectos de lei que foram discutidos nos trabalhos preparatórios.
- Os julgados de paz foram criados com carácter experimental e circunscritos apenas a algumas comarcas.
- Os julgados de paz foram criados como um meio alternativo à via dos tribunais judiciais, para resolver pequenos diferendos da vida quotidiana e com vista a aliviar a sobrecarga dos tribunais judiciais e não para os substituir, sendo a sua competência optativa.
- Tendo o Autor escolhido intentar a acção no tribunal de Pequena Instância Cível de Lisboa deverá este ser considerado competente para apreciar a decidir a acção dos autos.
- Assim, foram violadas as disposições constantes nos artigos 211° da Constituição da República Portuguesa, 66° do Código de Processo Civil e 101° da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais em conjugação com a Lei n° 78/2001, de 13 de Julho.

Não houve contra alegações e foi sustentada a decisão recorrida.

II A única questão que se nos põe no âmbito do presente recurso é a de saber se, no caso sub juditio, o Tribunal recorrido tem ou não competência para o conhecimento da presente acção, ou se tal competência, como se decidiu, deverá ser deferida, exclusivamente, aos Julgados de Paz.

No que à economia do recurso concerne, mostra-se assente que:
- A Autora, na Petição Inicial formulou contra a Ré o seguinte pedido (sic) "(...) deve (..) a Ré. ser condenada a pagar ao A. a quantia de Euros 2859, 09, acrescida de juros vincendos desde a citação. ".

É com base neste petitório formulado pelo Autor – Centro Hospital de Lisboa – que teremos de analisar, além do mais, a competência do Tribunal.

Vejamos então.

A competência dos tribunais em geral é a medida da sua jurisdição, o modo como entre eles se fracciona e reparte o poder jurisdicional, que tomado em bloco, pertence ao conjunto dos tribunais, cfr Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, 88 e 89.

Desta definição, podemos passar para uma classificação de competência, a qual em sentido abstracto ou quantitativo, será a medida da sua jurisdição, ou seja a fracção do poder jurisdicional que lhe é atribuída, ou, a determinação das causas que lhe cabem; em sentido concreto ou qualitativo, será a susceptibilidade de exercício pelo tribunal da sua jurisdição para a apreciação de uma certa causa, cfr Manuel de Andrade, ibidem e Miguel Teixeira de Sousa, A Competência e Incompetência dos Tribunais Comuns, 7.

Assim, a incompetência será a «insusceptibilidade de um tribunal apreciar determinada causa que decorre da circunstância de os critérios determinativos da competência não lhe concederem a medida da jurisdição suficiente para essa apreciação. Infere-se da lei a existência de três tipos de incompetência jurisdicional: a incompetência absoluta, a incompetência relativa e a preterição do tribunal arbitral.», cfr Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, 128.

No caso sub juditio a questão suscitada, pretende-se com a incompetência absoluta do Tribunal recorrido, em razão da matéria.

Dispõe o normativo inserto no artigo 66º do CPCivil (em consonância com o artigo 211º da CRP «Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.») «São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.», acrescentando o artigo 67º «As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais judiciais dotados de competência especializada.».

Os tribunais integram, assim, diversas ordens - a que a Constituição chama categorias (no citado artigo 211º) e aos tribunais da organização judiciária comum atribui a lei competência, genérica e competência especializada (para aqui não tem relevância a competência especifica, determinável em razão da forma de processo - artigos 72º a 77º da LOTJ e 69º do CPCivil) e o confronto destas duas resolve-se através do critério estabelecido naquele artigo 67º do CPCivil.

Assim: «As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais judiciais dotados de competência especializada», de onde deflui que as causas que por ela não forem atribuídas a alguma jurisdição especial, são da competência do Tribunal comum e a competência dos Tribunais especializados se fixa e se conhece directamente, mediante a análise dos dispositivos que lhes atribuem a mesma, ao passo que a Competência dos Tribunais comuns, nos é dada por via indirecta ou por exclusão, sendo constituída pela «parte sobrante».

Veja-se, neste conspectu, o que consagra o artigo 213º, nº1 da CRPortuguesa - «Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas as outras ordens judiciais» - acrescentando o nº2 que «Na primeira instância pode haver tribunais com competência específica e tribunais especializados para o julgamento de matérias determinadas», sendo que estes princípios têm consagração a nível da orgânica judiciária no artigo 18º, nº1, da Lei nº. 3/99, de 13 de Janeiro onde se prevê serem da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.

Ora, dispõe o artigo 6º, nº1 da Lei 78/2001, de 13 de Julho «A competência dos julgados de paz é exclusiva a acções declarativas.», especificando o seu artigo 8º a limitação da competência em razão do valor, a qual está espartilhada às questões cujo valor não exceda a alçada do Tribunal de primeira instância.

O artigo 9º daquela mesma Lei, enumera, nas suas várias alíneas, quais os temas (agora em razão da matéria) que são da competência daqueles órgãos, competência essa exclusiva, sem prejuízo do surgimento de uma eventual dependência a um Tribunal de competência cível, se forem suscitados incidentes e/ou for requerida prova pericial (artigos 41º e 59º, nº3 da mesma Lei), sendo certo que esta dependência, não é determinante, a se, para retirar àquele Julgado o cariz de exclusividade, já que, o mesmo poderá acontecer noutro tipo de acções, vg, em acção declarativa instaurada como sumária no competente juízo cível nos termos do artigo 99º da LOFTJ, atento o seu valor, mas que por via de eventual pedido reconvencional deduzido pelo Réu, passe a ordinária, devendo, neste caso, passar a correr numa vara cível, de harmonia com o disposto nos artigos 97º, nº1, alínea a) da LOFTJ, 308º, nº2, 221º e 220º, alínea a) do CPCivil (aqui também nos surge uma «dependência», determinada pelo valor, e que irá impor a nível de processado outras garantias quer nível de prazos, quer a nível de produção de prova (número de testemunhas), formalismo de audiência e posteriormente, uma ou duas instâncias de recurso, enquanto ali é determinada quer por intercorrências processuais, quer por diligências probatórias periciais, que influirão, igualmente, nos formalismos subsequentes, oferecendo às partes maiores garantias de defesa, mas essa «dependência» é afinal o apanágio da unicidade do sistema jurisdicional).

Também o argumento do carácter experimental dos Julgados de paz não nos impressiona, uma vez que o legislador optou igualmente noutras situações, por regimes experimentais, cuja aplicação é circunscrita, por ora, a um pequeno conjunto de Tribunais. Referimo-nos à criação do regime processual civil de natureza experimental, introduzido pelo DL 108/06 de 8 de Julho aplicável, apenas, nos Tribunais referidos no artigo único da Portaria 955/06, de 13 de Setembro e não se diga que aqui a parte terá a faculdade de optar entre o regime simplificado e instituído por aquele diploma e outro decorrente da aplicação das regras gerais, face ao que dispõe o seu artigo 1º «O presente decreto-lei aprova um regime processual experimental aplicável a acções declarativas cíveis a que não corresponda processo especial e a acções especiais para o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos.».

Veja-se que aqui, o legislador não procedeu a qualquer alteração ao CPCivil, tendo regulado naquele mesmo diploma, o processado de tais acções, o que significa a desnecessidade de modificações do corpo base da Lei, porque a legislação especial que cria o tipo de processo, poderá prever a mesma, aliás de harmonia com o que aquele compêndio processual prevê no normativo inserto no artigo 462º, sob a epígrafe “(Domínio de aplicação do processo ordinário, sumário e sumaríssimo)”, onde se lê «(…) não havendo procedimento especial (...)».

Poder-se-á constatar que o legislador, face ao aumento do número de processos e às questões de morosidade processual, a fim de descongestionar os Tribunais e tornar a resolução dos litígios de baixa densidade mais célere, tem ensaiado várias ordens de soluções, o que não significa, que com esses ensaios sejam facultadas às partes mais opções de litigância, oferecendo-lhes a possibilidade múltipla de litigarem neste ou naquele Tribunal ou Julgado de Paz, ou utilizando este ou aquele meio processual, sob pena de se frustrar a intenção legislativa que é a da diminuição da movimentação processual e consequente descongestionamento dos órgãos judiciais.

Ainda se acrescenta, ex abundanti, - embora não seja utilizado como argumento conclusivo neste recurso - que mesmo a não previsão da intervenção do Estado neste tipo de acções, não aponta, no sentido da competência alternativa, nem serve de ponto de partida para a desconsideração daqueles órgãos como jurisdicionais, uma vez que, nos Tribunais Arbitrais, o Estado não tem qualquer intervenção – a mesma não tem qualquer previsão legal, cfr LAV (Lei 31/86, de 29 de Agosto) – e ninguém põe em causa (em termos de princípio) a sua natureza de «outra ordem judicial» (na letra da Lei Fundamental, artigo 213º, nº1) e a sua competência exclusiva, desde que as partes assim o convencionem, de harmonia com o preceituado nos artigos 1º e 2º daquele diploma.

A não consagração na Lei n° 78/2001 de forma expressa, da competência exclusiva dos julgados de paz não aponta, no sentido da competência alternativa, porque tal não resulta nem do seu espirito, nem tão pouco da sua letra, sendo nossa firme convicção que a intenção legislativa foi atribuir tal exclusividade aos apontados órgãos, sendo esta a interpretação que mais se coaduna com o disposto no artigo 9º, nº1 do CCivil.

Todavia, sem embargo dos argumentos analisados, in casu, deparamo-nos com outra questão qual é a da Autora ser uma pessoa colectiva (uma sociedade anónima) e, neste particular, concretiza o artigo 9º, nº1, alínea a), da Lei 78/2001 de 13 de Julho «Os julgados de paz são competentes para apreciar e decidir: a) As acções destinadas a efectivar o cumprimento de obrigações, com excepção das que tenham por objecto prestação pecuniária e de que seja ou tenha sido credor originário uma pessoa colectiva; (…)».

Daqui decorre, com mediana clareza, e ao contrário do que é defendido pela decisão recorrida, que os Julgados de Paz, não são competentes para o conhecimento das acções tendentes ao cumprimento de uma obrigação pecuniária desde que, cumulativamente, tal obrigação seja para a obtenção de uma quantia em dinheiro e o credor originário, seja ou tenha sido, uma pessoa colectiva, precisamente a situação submetida à apreciação do Tribunal recorrido.


Queremos nós dizer que, independentemente da vexata quaestio de saber se a competência dos Julgados de Paz, em termos de princípio, é exclusiva ou opcional, no caso concreto, o Julgado de Paz não é competente uma vez que a acção em causa se integra naquela mencionada excepção (sempre se adiantando que nos demais casos em que não se verifiquem quaisquer excepções, é nossa opinião já expressada no Acórdão desta secção, proferido no processo 3364/05 em que fomos Relatora, in www.dgsi.pt (bem como nos Acórdãos proferidos nos processos 9246/06 e 8989/06, também desta secção e que igualmente relatamos), que existe competência exclusiva dos Julgados de Paz, vide neste sentido cfr o Ac STJ de 4 de Março de 2004 (Relator Cons Neves Ribeiro), ibidem, confrontar também Cardona Ferreira, in Julgados de Paz Organização e Funcionamento, 28, sem prejuízo da constatação de jurisprudência em sentido contrário).

Assim sendo, as conclusões procedem, embora por fundamentação diversa, não se podendo manter a decisão recorrida.

III Destarte dá-se provimento ao Agravo, revogando-se em consequência a decisão recorrida, devendo ser substituída por outra que ordene o prosseguimento normal dos autos.

Sem custas.

Lisboa, 18 de Janeiro de 2007


(Ana Paula Boularot)
(Lúcia de Sousa)
(Luciano Farinha Alves)