Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
504/04.6JFLSB.L1-5
Relator: ARTUR VARGUES
Descritores: CORRUPÇÃO
CORRUPÇÃO ACTIVA
CORRUPÇÃO PASSIVA
INDÍCIOS SUFICIENTES
PROVA INDICIÁRIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/15/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: Iº Os indícios qualificam-se como suficientes quando justificam a realização de um julgamento, o que ocorre quando a possibilidade de condenação em função dos indícios for razoável, ou seja, quando os indícios manifestem potencialidade para ultrapassar a barreira do in dubio pro reo na fase do julgamento;
IIº Para que o juízo de inferência em relação aos factos indiciários resulte em verdade convincente, é necessário que aqueles factos se revelem suficientes e sólidos e que a argumentação sobre que assenta a conclusão probatória seja razoável, face a critérios lógicos do discernimento humano, ou seja, que o facto “consequência” resulte de forma natural e lógica dos factos-base, segundo um processo dedutivo, baseado na lógica e nas regras da experiência, sendo que estas se alicerçam na observação daquilo que acontece na maioria das situações com similitude entre si, de onde resulta um juízo hipotético ou de probabilidade de conteúdo genérico de uma idêntica actuação humana;
IIIº O bem jurídico protegido no crime de corrupção é a legalidade da actuação dos agentes públicos, a quem está interdito mercadejar com o cargo;
IVº Com a alteração ao art.372, do Código Penal, introduzida pela Lei nº108/01, de 28Nov., foi eliminada a referência à “contrapartida” do acto em face da vantagem solicitada ou aceite pelo funcionário, com o que o legislador pretendeu afastar a indispensabilidade do sinalagma entre a conduta do funcionário e a do corruptor;
Vº Para que se verifique a consumação do crime não se mostra necessário que o acto seja praticado, não se exige a proporcionalidade entre o valor do suborno e o valor ou importância do acto e não é elemento essencial a existência de um acordo expresso para a adopção de uma conduta já perfeitamente determinada de forma precisa em todos os seus aspectos, até porque é também incriminada a corrupção subsequente, em que o funcionário no momento da prática do acto não perspectivava pedir ou aceitar uma vantagem, nem esta lhe tinha sido oferecida, pelo que afastada está também a concepção que reporta o suborno a critérios de causalidade adequada;
VIº Aquele preceito incriminador continua a exigir a demonstração de uma qualquer relação entre o contributo do corruptor (a vantagem) e o do funcionário, a prática de um acto conexionado, implícita ou explicitamente, com as suas funções (já praticado ou a praticar);
VIIº O crime de corrupção passiva está consumado, desde logo, com o conhecimento pelo interlocutor ou destinatário da manifestação de vontade de aceitação da vantagem pelo funcionário e o de corrupção activa, com o conhecimento pelo funcionário destinatário da manifestação de vontade de oferta/promessa da vantagem, isto quer o funcionário aceda ou não à pretensão do corruptor;
VIIIº Estando suficientemente indiciado que o funcionário recebeu vantagens patrimoniais, traduzidas no pagamento de despesas respeitantes a deslocações e alojamento no estrangeiro, como compensação do fornecimento por ele de informações sobre actividades de determinado serviço público, justifica-se a pronúncia pelo crime de corrupção passiva para acto ilícito.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I - RELATÓRIO

1. Nos presentes autos com o NUIPC 504/04.6JFLSB, do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, 1º Juízo-A, foi proferida, aos 29 de Outubro de 2010, decisão instrutória de não pronúncia dos arguidos A..., B..., C... e D..., pela prática dos crimes de que se mostram acusados pelo Ministério Público ou por qualquer outro.


2. O Ministério Público não se conformou com esse despacho e dele interpôs recurso, impetrando que seja substituído por outro que pronuncie os arguidos nos exactos termos que constam da acusação que oportunamente deduziu.

2.1 Extraiu o recorrente da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

1. A decisão ora recorrida enferma de um vício de direito: parte de uma definição legal de corrupção passiva que, à data dos factos, não se encontrava em vigor, face às alterações introduzidas pela Lei nº 108/2001, de 28 de Novembro legislação de 2001;
2. Violando a norma do artº 372º do CP, com a redacção introduzida pela Lei nº 108/200, de 28/11;
3. Sendo certo que o referido quadro legal erroneamente tido em conta pela Mmª JIC, propiciou diversa jurisprudência que, tal como a decisão ora recorrida, considerava crucial ao preenchimento objectivo dos tipos de corrupção activa e passiva a ocorrência do acto concreto e determinado visado e praticado pelo corrompido (cfr. Ac. Rel. Coimbra de 19/09/2001; Ac. do STJ de 14/02/1996; Ac. STJ de 30/10/97, todos criticamente analisados por Claúdia Santos, in “A Corrupção”, Liber Discipulorum, Coimbra Editora, 2003, p. 971-981).
4. Tal erro manifesto na indicação do quadro jurídico aplicável inquinou, no entender do MP, todo o discurso lógico-argumentativo que fundou a decisão de não pronúncia, a qual teve por base uma praxis jurisprudencial - já antes de 2001 - desfasada da doutrina, culminando num juízo erróneo de atipicidade que, só por cautela, supõe-se, não conduziu a que a Mmª JIC tivesse cunhado com o anátema processual da nulidade a acusação deduzida uma vez que imputaria aos arguidos factos não integradores de crime (cfr. artºs 283º, nº 3, al. a) do CP);
5. As alterações de 2001, no que ao crime de corrupção própria concerne, explicitaram, ao nível do recorte do tipo, as posições doutrinais já firmadas entre nós, não consubstanciando, na íntegra, um alargamento do âmbito da incriminação (neste sentido cfr. Ac. Rel. de Coimbra de 02/10/2002);
5. (numeração repetida no original) Consistindo, tais alterações: na eliminação da referência à “contrapartida” do acto face à vantagem solicitada ou aceite, esclarecendo, ainda, a incriminação não só da corrupção antecedente, como da corrupção subsequente; bem como na eliminação da circunstância modificativa atenuante do nº 2;
6. A referida eliminação da referência à “contrapartida” parece ter visado, exactamente, as dificuldades inerentes à prova de um alegado “sinalagma” entre a conduta do corrupto e a prestação do corruptor que alguma prática jurisprudencial vinha a exigir;
7. Sendo este, precisamente, o vício de interpretação (de norma, aliás, não em vigor à data dos factos) em que, salvo melhor opinião, incorre a decisão ora recorrida ao não se bastar com uma conexão entre a prestação do corruptor e o acto de serviço visado (no entendimento do MP a prestação de “informação privilegiada” acerca da actividade do SEF, designadamente no âmbito da sua actividade de cooperação internacional), exigindo uma descrição concreta , determinada, dos singulares actos de disponibilização de informação praticados na execução do acordo;
8.Também a eliminação da atenuante do nº 2 do artº 372º reforçou a ideia de que a corrupção passiva se consuma com a solicitação ou recebimento da vantagem acompanhada da intenção de praticar um acto, quer ele ocorra efectivamente ou não;
9. Face ao recorte típico do crime de corrupção passiva resultante da Lei de 2001, não sobram dúvidas de que o “o núcleo do delito reconduz-se à simples actividade de mercandejar com o cargo”, de tal modo que “fala-se (...) de “contraprestação” num sentido tão só virtual, já que a simples “solicitação” de suborno pelo empregado público integra uma corrupção “passiva”consumada” (cfr. António Manuel Almeida Costa, “Sobre o Crime de Corrupção”, Almedina, 1987, pp-114-5);
10.Também a autonomia típica do crime de corrupção activa torna a consumação do delito, em certos termos, absolutamente independente face à prática de um qualquer acto pelo funcionário;
11.Tal - ao contrário do raciocínio que funda a decisão ora recorrida – utilizando a expressão de Claúdia Santos, in “A Corrupção”, Liber Discipulorum, Coimbra Editora, 2003, p. 968, conduz a que “os requisitos da conexão e interdependência entre o suborno e o acto do agente público são muito menos densos do que se poderia supor”;
12. Dispensa-se, pois, qualquer estabelecimento de um verdadeiro sinalagma entre as prestações do corruptor e do funcionário corrupto. Tal negação da indispensabilidade de uma relação sinalagmática entre suborno/acto desdobra-se, segundo Almeida Costa (op. cit. p.113 e ss), em três proposições:
-abrangência de benefício não patrimoniais no que respeita à natureza e qualidade do subornos;
- no que respeita ao aspecto quantitativo, inexigibilidade de proporcionalidade entre o valor do suborno e o valor ou importância do acto a praticar (estando-se ante um crime de corrupção sempre que o suborno ou gratificação não forem considerados “irrelevantes” ou até “consentidos” pelos hábitos e praxes sociais gerais ou do sector de actividades);
-o suborno poderá até não constituir uma contrapartida por um qualquer acto de funcionário, “sempre que, à luz dos critérios da experiência comum, a simples dádiva - considerados, de forma cumulativa, o eu exagerado valor e, por outro lado, as circunstâncias em que ocorreu ou a pessoa de que proveio - não se mostre justificável de outro modo, assumindo, inequivocamente, o aludido significado de criar um clima de “permeabilidade” ou “simpatia” para posteriores diligências.”;
13. Ao pressupor uma negociação ilegítima com os poderes associados a determinado cargo, a corrupção exige sempre, todavia, uma qualquer conexão entre o “contributo” do agente da corrupção activa e o “contributo” – a eventual prática de um acto – do agente da corrupção passiva;
14. O juízo positivo de tal conexão, todavia, haverá de ser efectuado à luz do bem jurídico protegido: a autonomia intencional do Estado lesada com a infracção das regras de legalidade, objectividade, independência a que, num Estado de Direito, haverá de obedecer a conduta do agente público;
15. Como refere Claúdia Santos, op. cit., p. 970, “o que o legislador pretende evitar com a incriminação da corrupção é sobretudo a criação de uma mera possibilidade de actuação, por parte do agente público, de acordo com critérios que não os estritamente objectivos”;
16. Tal conduz a que o agente público quando aceita ou solicita o recebimento de um suborno fique de imediato com a sua imparcialidade prejudicada.
Independentemente da prática de qualquer acto, a sua autonomia intencional já está condicionada. O resultado desvalioso para o bem jurídico já ocorreu, quer o acto que se pretenda praticar não venha a ocorrer, por qualquer razão, quer não se consiga demonstrar sequer a intenção de praticar um acto concreto e determinado (cfr. Claúdia Santos, op. e loc. cit.);
17. Tal concepção do crime de corrupção como crime de resultado de dano, visando tutelar um bem jurídico definido como a “autonomia intencional do Estado”, leva à consideração como típicas de várias condutas lesivas de tal bem jurídico e não excluídas do âmbito da norma incriminadora que, numa errónea concepção sinalagmática do suborno e do acto, estariam excluídas da incriminação.
18. À luz de tal concepção doutrinal Claúdia Santos, na senda de Almeida Costa, elenca algumas situações exemplificativas ilustrativas de tipicidade:
19. Ou seja, ao contrário do entendimento que parece propugnar-se na decisão ora recorrida, a definição concreta e determinada das informações cedidas, ou seja do acto visado, não integra os tipos-legais de crime em apreço, não a relevância típica pretendida para o juízo a efectuar quanto à consumação do ilícito;
20. A indicação e determinação (ainda que genérica) do acto almejado pelo acordo da corrupção tem, obviamente, relevância. Desde logo para efeito de diferenciar uma situação de corrupção própria (artº 372º) de uma situação de corrupção imprópria (artº 373º). Mas a sua relevância típica esgota-se aí;
21. Não se impondo, para efeitos de recondução do facto à previsão legal, de descrever detalhadamente o acto, de o circunscrever espácio-temporalmente, nos casos em que tal não se apura na investigação;
22. O crime de corrupção activa e passiva é um crime de execução instantânea: consuma-se no momento da oferta e da aceitação ou solicitação da peita, ainda que possa produzir efeitos anti-jurídicos (não compreendidos no tipo) que se prolongam no tempo. O estado anti-jurídico típico, todavia, verifica-se no momento da oferta e da aceitação ou solicitação, respectivamente na corrupção activa e passiva (cfr., neste sentido, o Ac. RL, de 13/07/10, proferido no Pº 712/00.9JFLDB);
23. Ora da prova produzida quer em sede de inquérito, quer em sede de instrução, resulta indiciado que os dois arguidos funcionários do SEF, sem que qualquer razão de serviço o justificasse, auferiram de viagens pagas pela IN..., no contexto temporal explicitado na acusação, coincidente com o decurso de um procedimento concursal público no qual a empresa (IN...), ao serviço de quem trabalhavam os arguidos C... e D..., era concorrente e o arguido A... membro do júri respectivo (vogal) e da comissão técnica de avaliação de propostas, como a Mmª JIC, e bem, o reconhece;
24. Mais se indicia que o arguido C... remeteu à sua hierarquia funcional, com conhecimento ao seu superior hierárquico imediato, o arguido D..., o e-mail de fls. 353 dos autos no qual refere que se irá encontrar com o arguido C..., na casa deste em AB..., a fim de saber do andamento do concurso – então em fase (não pública) de apreciação de propostas;
25. Arguido C... que, nas suas declarações em sede de inquérito, expressamente referiu que «todos os procedimentos por si efectuados enquanto colaborador da IN... foram sempre realizados no estrito seguimento das normas de gestão da IN..., que lhe foram sendo comunicadas ao longo do tempo, pela estrutura da empresa» (cfr. fls. 1039);
26. Bem como se revela indiciado o facto de a IN... ter tido conhecimento de uma deslocação do arguido A... a Cabo Verde, no âmbito da cooperação internacional deste organismo público, tendo custeado a viagem de B... a fim de que este se inteirasse de assuntos do interesse comercial da IN..., designadamente proceder à análise de custos possíveis com o Projecto de Passaportes SEF-Caboverde (cfr. quanto aos propósitos de tal viagem as próprias declarações do arguido B... em sede de inquérito);
27. Da prova documental carreada para os autos pelo Ministério Público, resulta igualmente que a IN... viria a desenvolver, em data ulterior, projectos comerciais em Cabo Verde, nos quais teria directo envolvimento o SEF, designadamente a adjudicação pelo SEF, em 2005, à IN... do fornecimento de impressoras para a emissão de passaportes em Cabo Verde, desenvolvimento do respectivo projecto de personalização e serviços de parametrização, instalação , configuração e realização de testes no local (cfr. fls. 1028, T V e T VI, ap. 1);
28. Fazendo uso das regras da experiência comum, e partindo da indiciação de tais factos, não se revela falho de racionalidade indutiva a conclusão do facto - expressamente alegado na acusação - de que as viagens e alojamentos pagos pela IN... aos funcionários do SEF visavam, não apenas criar um clima de simpatia ou permeabilidade, mas compensar a “informação privilegiada” acerca da actividade do SEF, nomeadamente no âmbito de actividades concursais, e de oportunidades de negócio geradas no seio da actividade de cooperação internacional do SEF na qual trabalhavam os arguidos funcionários do SEF;
29. Informação privilegiada esta que – sendo um conceito normativo, por exemplo, em sede de crimes de mercado de valores mobiliário – surge, na economia do texto da acusação, no seu sentido corrente e comum de “informação não livremente acessível”;
30. Sendo o alcance de tal expressão totalmente perceptível, em termos de exercício do direito de defesa, desde logo quando cotejada com a imposição legal - aliás, expressamente referida na acusação – do estrito dever de sigilo imposto aos funcionários do SEF (cfr. artº 2 da acusação e artº 9º da Lei Orgânica do SEF, aprovada pelo DL nº 252/2000, de16/10);
31. E, para além do mais, expressamente explicitada quanto ao seu objecto, no próprio texto da acusação, no qual se refere que tal informação visava não só o procedimento concursal em curso como outras actividades do SEF geradoras de oportunidades de negócio para a IN..., nomeadamente no seio da actividade de cooperação internacional na qual directamente trabalhavam os arguidos A... e B...;
32. Ou seja, consta da prova colhida em inquérito e dos factos descritos na acusação, não sendo posto em causa pela prova produzida em sede de instrução, que as benesses auferidas pelos arguidos, o foram como compensação da disponibilização de informação sobre a actividade do SEF.
33. Assim como consta descrita na causação a natureza ilegal de tal actividade, atentos os deveres específicos de sigilo impostos aos arguidos enquanto funcionários do SEF;
34. Não constando expressamente, por falta de exigência típica, o “quando”, o “como”, e “qual” a informação concretamente disponibilizada, ou mesmo se esta veio a ocorrer efectivamente;
35. Excepção feita à deslocação de serviço de A... a Cabo Verde, no âmbito da actividade de cooperação internacional do SEF, da qual foi dado necessário conhecimento pelos arguidos à IN... que, na posse de tal informação, custeou, através dos arguidos C... e D..., a viagem de B..., funcionário do SEF, a fim de que este, no âmbito de tal viagem, se inteirasse de aspectos da cooperação com conexão com os seus interesses comerciais;
36. Ou seja, não se tratando embora de um elemento objectivo do tipo, a acusação contém descrito, pelo menos, um dos actos de execução do entendimento estabelecido entre os agentes corruptores e os agentes corruptos, ao contrário do que é referido na decisão ora recorrida;
37. Pelo que, ainda que se concordasse com a interpretação legal da norma incriminadora efectuada pela Mmª JIC – o que não acontece – os factos indiciados e descritos na acusação, sempre se revelariam, no entendimento do MP, subsumíveis ao crime de corrupção passiva para acto ilícito e ao crime de corrupção activa;
38. Ainda que a Mmª JIC – face à prova produzida em inquérito e em instrução - não desse como assente que o pagamento de viagens se destinava a premiar uma disponibilização de informação não livremente acedível e relacionada com a actividade do SEF, e sujeita a sigilo nos termos da lei – no que não concedemos - deveria ponderar a subsunção das condutas descritas a uma situação de corrupção imprópria (cfr. artº 373º do CP), o que de todo omitiu;
39. Com efeito, a Lei nº 108/2001, de 28/11, introduziu o nº 2 do artº 373º do CP, o qual dispõe que: “na mesma pena incorre o funcionário que por si, ou por interposta pessoa com o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, sem que lhe seja devida, vantagem patrimonial ou não patrimonial de pessoa que perante ele tenha tido, tenha ou venha a ter qualquer pretensão dependente do exercício das suas funções públicas”;
40. Ora, tal sempre haveria de haver-se como concretamente indiciado. Não constituindo a alteração de qualificação jurídica, na referida situação, qualquer alteração substancial dos factos que inquinasse da decisão de pronúncia – cfr. artº 1 º, al. f) e artº 303º, nº 1 e 5 do CPP;
41. Ou seja, a Mmª JIC, para além de tudo o mais, descurou exactamente a subsunção da situação à excepção referida por Almeida Costa – e por si citada na excursão teórica que efectuou – que é aquela de o suborno não se dirigir à prática de um qualquer acto (ao contrário do propugnado pelo Ministério Público), mas, tão só, à criação de um clima de simpatia e permeabilidade para eventuais e futuras diligências que venham a requerer-se;
42. A previsão do nº 2 veio, afinal, com a alteração legislativa de 2001, a dar guarida legal à referida situação já contemplada por Almeida Costa, tratando-se de uma norma que, em parte, clarifica a norma anterior tipificadora da corrupção para acto lícito, não sendo, pois, a nosso ver, nesta parte, uma neo-incriminação;
43. Ora, para que se preencha o tipo da corrupção imprópria, apenas haverá que ter-se como demonstrado a conexão da oferenda com a actividade exercida pelo funcionário, de modo a que se possa configurar um “mercandejar com o cargo” e que a vantagem seja proveniente de pessoa que mantenha uma qualquer relação funcional com o agente público;
44. A fim de estabelecer tal conexão da oferenda com o cargo, de modo a afastar qualquer outra justificação socialmente adequada (como, por exemplo, a mera cortesia, os costumes ou praxes sociais), haverá que lançar mão de critérios vários, como o valor da oferenda; as circunstâncias em que a mesma é solicitada ou aceite ; as características de quem a ofereceu;
45. No que respeita ao valor da oferenda, não tendo o legislador indicado qualquer patamar quantitativo, haverá que efectuar-se uma avaliação casuística, lançando-se mão de critérios de adequação social;
46. Ora, a MMª JIC, ao referir-se expressamente ao “ valor irrisório” das viagens, no entendimento do MP, não fez uso criterioso de tal princípio de adequação social, o qual operará, no nosso entendimento, em determinados sectores de actividade, apenas nos casos de lembranças de cortesia; de pequenas ou simbólicas gratificações em épocas festivas; de pequenas ofertas com fins publicitários; benesses honoríficas;
47.Com efeito, não nos parece correcto e compaginável como os valores sócio-culturais hodiernos, nem tampouco com a realidade sócio-económica nacional e o estatuto sócio-profissional dos arguidos, considerar como socialmente adequada a oferta de viagens e de estadias para o estrangeiro nos valores apurados de 1.525,25€; 346,50€;1.112,27€; 858, 76€ ;
47. (numeração repetida no original) Não obstante a Mmª JIC não haver, na referida decisão, curado de especificar quais os factos que considerou indiciados e não indiciados, após a realização da instrução, considerando o âmbito do recurso alargado à matéria de facto, o MP parece deduzir da decisão recorrida que a Mmª JIC não terá dado como assente o pagamento pela IN... do alojamento dos arguidos a Idanha-a-Nova no Hotel …;
48. Terá a Mmª JIC, neste particular, dado, pois, credibilidade à versão do arguido A... e C..., os quais referiram que tais valores foram adiantados pela IN..., e que os arguidos funcionários do SEF os teriam restituído;
49.Ora, salvo o devido respeito por tal posição, o MP tem dos indícios colhidos uma diversa interpretação;
50. Conforme refere Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, «é clássica a distinção entre prova directa e prova indiciária. Aquela refere-se aos factos probandos, ao tema da prova, enquanto a prova indirecta ou indiciária se refere a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio das regras da experiência, uma ilação quanto ao tema da prova. Assim, se o facto probatório (meio de prova) se refere imediatamente ao facto probando fala-se de prova directa, se os mesmos se refere a outro do qual se infere o facto probando fala-se em prova indirecta ou indiciária.
51.«Na prova indiciária, mais do que em qualquer outra, intervém a inteligência e a lógica da entidade que a afere. Porém qualquer um desses elementos intervém em momentos distintos. Em primeiro lugar é a inteligência que associa o facto indício a uma máxima da experiência ou a uma regra da ciência ; em segundo lugar intervém a lógica, através da qual, na valoração do facto, outorgaremos à inferência feita maior ou menor eficácia probatória (...) conforme refere André Marieta (La Prueba em Processo Penal, p. 59), são dois os elementos da prova indiciária:
a) Em primeiro lugar o indício que será todo o facto certo e provado com virtualidade para dar a conhecer outro facto que com ele está relacionado (...) O indício constitui a premissa menor do silogismo que, associado a um princípio empírico ou a uma regra da experiência, vai permitir alcançar uma convicção dobre um facto a provar (...);
c) (falta a alínea b) no original) Em segundo lugar é necessária a existência de uma presunção que é a inferência que obtida do indício permite demonstrar um facto distinto. A presunção é a conclusão do silogismo construído sobre uma premissa maior: a lei baseada na experiência, na ciência ou no sentido comum que apoiada no indício-premissa menor-permite a conclusão sobre o facto a demostrar. A inferência realizada deve apoiar-se numa lei geral e constante e permite passar do estado de ignorância sobre a existência de um facto para a certeza, ultrapassando os estados de dúvida e de probabilidade» (vide Tolda Pinto, op. e loc. cit);
52. Atentas tais considerações acerca do que se deva entender pela prova indiciária, entende o MP ser diversa a leitura dos afctos indiciados daquela aparentemente efectuada pela MMª JIC;
53. Com efeito, ao contrário do referido pelos arguidos, inexiste na contabilidade apreendida nos autos qualquer referência ao posterior reembolso das quantias “adiantadas” pela IN...;
54. Não se revela, por outro lado, qualquer racionalidade em tal adiantamento;
55. Sendo, a tal respeito, díspares as versões apresentadas pelos arguidos nos seus interrogatórios em sede de instrução (versões harmonizadas no que respeita ao posterior reembolso à IN... em numerário) e em sede de inquérito (disparidades absolutas, designadamente nas declarações do arguido B..., que refere, inclusivamente, ter sido o próprio quem pagou a estadia em numerário, tratando-se do encontro com A... uma mera casualidade, não encontrando qualquer justificação para que a IN... houvesse pago tal alojamento, nem para o pretenso encontro “funcional” do arguido A... e do arguido C...);
56. Acresce que, a haver-se o pagamento da IN... - documentado nos autos - como um mero adiantamento de verbas, juntamente com o serviço de reserva efectuado através de uma agência de viagens que operava com a IN..., sem outro fim que não o da mera “comodidade pessoal” dos arguidos funcionários (no que o MP não concede), tal haveria, ainda, salvo melhor opinião, atento o inusitado de tal cortesia e o contexto em que foi dispensada, de haver-se como uma vantagem não patrimonial indevida;
57. Ou seja, uma oferta sem valor patrimonial despropositada face à relação da IN... com o SEF e com os arguidos funcionários;
58. Pelo que entende, em suma, o MP que a decisão ora recorrida violou as disposições dos artºs 372º, 373º e 374º do Cód. Penal, interpretando-as erroneamente, tendo, outrossim, pelas razões acima apontadas, efectuado uma errónea avaliação da prova indiciária produzida nos autos.


3. Respondeu o arguido B... à motivação de recurso, pugnando pela confirmação da decisão recorrida, aduzindo as seguintes razões, em conclusão (transcrição):

1 Como a douta decisão recorrida, o respondente entende que a acusação é uma peça conclusiva, não contendo factos que com razoável possibilidade pudessem conduzir à sua condenação.
2 O respondente era técnico de informática do departamento de Sistemas e Comunicações do SEF, na dependência funcional do Diretor da Direção Central de Informática, sendo responsável pela área da segurança informática do SEF.
3 Não integrou o Júri do concurso internacional 1/2002 nem qualquer comissão técnica nele constituída.
4 Como funcionário subalterno recebia ordens dos superiores hierárquicos e de quem dependia funcionalmente, em obediência às quais fez as deslocações referidas na acusação, em objeto de serviço, nada tendo a ver com procedimentos administrativos a elas referentes ou relacionados, nomeadamente, processamento e pagamento de despesas.
5 O despacho recorrido não está viciado por erro de direito.
6 O artigo 372.º, n.º 1 do Código Penal, na redação que lhe deu a Lei n.º 108/2001, integra na tipicidade do crime de corrupção passiva a solicitação de vantagem, ou a sua promessa, para um qualquer acto ou omissão contrários aos deveres do cargo.
7 O crime de corrupção passiva, p. e p. pela citada disposição legal, como tem sido entendido pela jurisprudência, é um crime de dano, postulando uma efetiva violação da atividade do Estado e não um mero risco.


4. Respondeu também o arguido A…, sustentando a confirmação da decisão recorrida, com os seguintes fundamentos, em síntese:

Os arguidos A... e B... pagaram, em numerário, ao arguido C... a estadia no Hotel ….
A deslocação a Madrid foi determinada pelo interesse manifestado no projecto BDEF mediante a necessidade da sua apresentação e confirmação da sua operacionalidade.
A deslocação a Cabo Verde foi determinada pela necessidade de resolver uma questão de trabalho.
Não ocorreu qualquer violação dos deveres do cargo do arguido A... no âmbito do Concurso Público Internacional nº 1/2002.
Não consta da acusação qualquer outro elemento factual, concreto e determinado, que permita imputar aos arguidos a violação de qualquer dever.
Não consta da acusação qualquer elemento factual, concreto e determinado, que permita concluir pelo favorecimento da IN... no âmbito da actuação do SEF através do arguido A...
Não foi apurado qualquer elemento factual, concreto e determinado, que permitisse concluir pela existência de indícios de contrapartidas oferecidas ao arguido A....


5. Igualmente respondeu o arguido C..., pugnando pela rejeição do recurso interposto ou, subsidiariamente, a confirmação da decisão recorrida, nos seguintes termos, em síntese:

A decisão instrutória recorrida foi lida no dia 29 de Outubro de 2010 e nesse mesmo dia foi entregue cópia da decisão aos presentes.
O Ministério Público, apesar de regularmente convocado para o acto, não compareceu à leitura da decisão instrutória, tendo a notificação da decisão instrutória lhe sido efectivamente efectuada em 4 de Novembro de 2010. O prazo de 20 dias para interposição de recurso terminou no dia 29 de Novembro (com três dias de multa), pelo o recurso interposto é claramente intempestivo.
Para se incriminar a conduta do agente, nunca se poderá abrir mão da existência de um qualquer nexo entre a prestação do agente activo e a prestação do agente passivo, ou seja, de um acordo/pacto, expresso ou tácito, de corrupção, na medida em que a vantagem a oferecer só o é – tem que haver uma razão, sob pena de se lidar com mera liberalidade estulta do pretenso corruptor – porque há efectivo ou esperado “acto contrário ao dever do cargo”.
No caso em apreço, não basta, para integração na tipicidade relevante, o pagamento de determinadas viagens com a proclamação abstracta da oferta ou promessa de oferta de “informações privilegiadas”, exige-se o concreto pagamento de viagens para a concreta dispensa ou promessa de dispensa de informações privilegiadas.
E, não só nunca tal acordo existiu, como nunca foram disponibilizadas quaisquer informações sobre o concurso 1/2002 ou outra matéria, assim como nunca sequer foram prometidas essas mesmas informações.
Para que fosse possível pronunciar o arguido Exponente pelo crime de Corrupção activa, seria necessário demonstrar, o que, atentos os factos em causa é simplesmente impossível, que actuou, no que ao dolo-do-tipo respeita, com conhecimento e vontade de dar vantagem patrimonial a funcionário, com o conhecimento e vontade de que tal vantagem não lhe era devida e com conhecimento e vontade de que tal vantagem visava a prática de um acto do funcionário, com conhecimento e vontade de que tal acto seria contrário ao dever do cargo desse mesmo funcionário.
Quer em sede de inquérito, quer principalmente considerando as diligências instrutórias, não se encontra qualquer – uma que seja – referência ao acto contrário ao dever do cargo. Note-se ainda que o tipo não se esgota na atribuição de uma vantagem indevida, sempre será necessária a referência ao acto contrário ao dever do cargo.
Apesar de várias vezes se referir o acesso almejado a informações relativas a procedimentos concursais públicos e oportunidades de negócio, ter-se-ia sempre de densificar o tipo de informações, para até se poder perceber se as mesmas poderiam ou não ser cunhadas de “privilegiadas” ou não.
Da acusação nada resulta, pelo que os factos referidos na acusação, mesmo que se considerassem inteiramente indiciados ou provados não constituem crime.
Não só não é possível determinar a eventual promessa ou efectiva obtenção de informação privilegiada por parte da sociedade IN... através do ora Exponente, como além disso, não poderá o arsenal criminal ser utilizado com base em suposições ou expressões não confirmadas como “poderá ter tido conhecimento prévio”.
O recurso apresentado não põe em causa a matéria de facto subjacente à decisão recorrida, sendo que o Recorrente não cumpre também qualquer um dos requisitos nos nºs 3 e 4 do artigo 412º, do CPP, previstos para impugnação da decisão sobre os factos.
Não obstante, o presente processo crime tem a sua origem em denúncia anónima de Dezembro de 2003, em que um funcionário do SEF referia que o concurso 1/2002 estava viciado tendo dado como exemplo da eventual viciação do concurso as relações estreitas entre o ora Exponente e os funcionários do SEF arguidos, contudo, quanto a este concurso conclui-se que tudo foi regular.
Quanto às viagens em questão, as mesmas não assumem o significado criminalmente relevante pretendido pelo Recorrente. As viagens em causa são:
1) Madrid – Junho de 2003;
2) Idanha-a-Nova – Agosto de 2003;
3) Cabo Verde – Setembro de 2003;
4) Madrid – Dezembro de 2003;
Quanto à primeira das viagens elencadas, resulta dos autos, quer do inquérito quer da instrução, que a mesma se encontra perfeitamente contextualizada, aliás, como comprovado pela Policia Judiciária através do fax de 6/6/2003, remetido pelo ora Exponente para a comissão de análise das propostas. Aí se refere que os encargos serão pagos pela IN... existindo ainda um fax a marcar reunião no próprio SEF. Naturalmente, estando em causa questões relacionadas com o sistema AF..., os concorrentes é que deveriam suportar, conforme contratualmente imposto, a demonstração técnica efectuada na Direcção Geral da Polícia espanhola (cfr., Relatório intercalar da PJ, fls. 277).
Quanto à situação de Idanha-a-Nova, não é verdade que os co-arguidos A... e B..., no decurso de uma viagem de serviço, tenham aceite a oferta do pagamento pelo ora Exponente do custo da estadia no Hotel, no valor de € 346,50. O facto é que existiram os necessários reembolsos para acerto de contas, cuja necessidade decorreu de mero lapso no preenchimento dos vouchers.
Quanto à viagem a Cabo Verde, não se mostra razoável imputar à sociedade IN... o pagamento de uma viagem em Setembro de 2003, cujos “frutos” apareceriam mais de 2 anos depois.
No que concerne ao e-mail de fls. 353 referido pelo Recorrente, a comunicação em causa:
1) Foi directamente enviada para E... como uma fraca tentativa do Exponente “mostrar trabalho” perante aquele;
2) Não existia sequer qualquer casa na AB...;
3) Nunca ocorreu tal encontro;
Acresce que nunca poderia saber como estaria o desenvolvimento do concurso porque não só quem detinha tal informação não era qualquer arguido no presente processo como daí nada resultaria para a sociedade IN....


6. Respondeu à motivação de recurso o arguido D..., pugnando pela improcedência do recurso, tendo apresentado as conclusões que se seguem (transcrição):

A) A matéria de facto dada como assente o douto despacho recorrido não foi legalmente posta em causa no Recurso uma vez que o Ministério Público não cumpriu o preceituado no artigo 412.° n.° 3 alíneas a) e b) e n.° 4 do Código de Processo Penal.
B) Não tendo sido legalmente posta em causa tal matéria de facto, do douto Despacho de Não Pronúncia resulta que não foi possível descortinar qualquer contrapartida/compensação, em concreto, prestada à empresa IN....
C) O artigo 372.° do Código Penal vigente ao tempo da prática dos factos exigia que à vantagem solicitada ou aceite estivesse relacionada uma compensação consubstanciada por um qualquer acto ou omissão contrários aos deveres do cargo.
D) Ainda que tenha ocorrido uma alteração naquele preceito legal, substituindo-se a palavra "contrapartida" por uma expressão que refere "para um qualquer acto ou omissão contrários aos deveres do cargo, ainda que anteriores àquela solicitação ou aceitação", a Lei não deixou de continuar a exigir um especifico comportamento relacionado com uma qualquer vantagem solicitada ou aceite.
E) Apenas com a alteração operada no Código Penal pela Lei 32/2010 de 2 de Setembro, que entrará em vigor em 2 de Março de 2011, é que se veio a introduzir o tipo legal de Recebimento Indevido de Vantagem, deixando de se exigir uma relação de compensação/contrapartida.
F) Não assiste razão ao recorrente quando alega que o conceito de informação privilegiada aludido na acusação é expressamente explicitado quanto ao seu objecto pois para assim qualificar uma informação seria necessário saber qual seria e se foi prestada, o que não resulta da acusação nem foi provado, desconhecendo-se se a informação era relacionada com o concurso 1/2002 ou sobre oportunidades de negócio geradas no âmbito da cooperação internacional do SEF, pelo que na falta de tais dados é impossível qualificar-se a informação como "privilegiada".
G) A invocação, na conclusão 38 do Recurso, de falta de ponderação por parte do Tribunal a quo da subsunção das condutas descritas a uma situação de corrupção imprópria não corresponde à verdade, pois o Tribunal aferiu a eventual subsunção dos factos a outros tipos legais, referindo no final do Despacho de Não Pronúncia que "... decide não pronunciar os arguidos pela prática dos crimes de que vêm acusados ou por qualquer outro".
H) Da imputação do tipo legal de corrupção imprópria ao ora respondente, previsto no artigo 373.° do Código Penal, resultaria sempre a prescrição do procedimento criminal em virtude da aplicação do estatuído no artigo 374.° n.° 2 e no artigo 118.° n.° 1 alínea d), todos do Código Penal porque o último acto imputado ao ora respondente é de 30 de Março de 2004 e o arguido D... só foi constituído arguido em Fevereiro de 2008.
I) Carece, também, de fundamento o alegado pelo Ministério Público nas conclusões 47 a 57 quanto à apreciação do alojamento dos arguidos, pago pela IN..., em Idanha-a-Nova, uma vez que dos autos não resulta qualquer conhecimento do ora respondente sobre tal questão, não tendo sido o arguido D... quem assinou os cheques de pagamento mas sim o Administrador JS e o controller financeiro EC, ambos arguidos não acusados pelo Ministério Público.
J) O argumento de que na contabilidade da IN... não existe vestígio do reembolso das quantias pagas falece uma vez que, como o próprio Ministério Púbico afirma, apenas se tem em conta a contabilidade apreendida nos autos e não TODA a contabilidade daquela empresa.
K) 0 douto Despacho de Não Pronúncia não merece qualquer censura quanto à decisão final de não submeter os arguidos a julgamento.



7. Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido do provimento do recurso, louvando-se, essencialmente, no teor da sua motivação.


8. Os arguidos D... e TM apresentaram resposta.


9. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.


Cumpre apreciar e decidir.


II - FUNDAMENTAÇÃO


1. Âmbito do Recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410º, nº 2, do CPP – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª Edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Edição, Editora Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/99, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. Pleno STJ nº 7/95, de 19/10/95, DR I Série –A, de 28/12/95.

No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação do recurso, as questões que se suscitam são as seguintes:

- Se existem indícios suficientes da prática pelos arguidos dos factos imputados na acusação pública.

- A existirem, se integram eles a prática pelos arguidos A… e B..., em co-autoria, de um crime de corrupção passiva para acto ilícito, p. e p. pelo artigo 372º, nº 1, do Código Penal, assim como a prática pelos arguidos C… e D…, em co-autoria, de um crime de corrupção activa, p. e p. pelo artigo 374º, nº 1, do mesmo diploma legal.


2. A Decisão Recorrida

2.1 A decisão recorrida tem o seguinte teor (transcrição):
O MP acusou A..., B..., C... e D... da prática pelos dois primeiros do crime p.p. no artigo 372º, n.º1 do CP e os outros dois da prática do crime p.p. no artigo 374º, n.º1 do CP, atentos os factos descritos no despacho de fls. 1487 e seguintes.
Nessa sequência, vieram requerer a abertura da instrução, os arguidos D... e C..., com os fundamentos que melhor constam dos seus requerimentos de fls. 1577 e 1634.
Foram realizadas diversas diligências instrutórias, designadamente a inquirição de testemunhas, e o interrogatório dos arguidos A..., C... e D..., diligências essas que se encontram gravadas.
Realizou-se, de acordo com as formalidades legais, o debate instrutório.
A instância mantém-se válida e não enferma de nulidade que a invalide.
Cumpre apreciar e decidir.
De acordo com o disposto no art. 286º/l, do Cód. Proc. Penal, a instrução tem como finalidade a comprovação judicial da decisão final proferida em sede de inquérito (acusação ou arquivamento do inquérito), em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
Tem-se em vista, nesta fase processual, a formulação de um juízo seguro sobre a suficiência dos indícios recolhidos relativos à verificação dos pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (art. 308º/1 do Cód. de Proc. Penal).
Concluindo-se pela suficiência dos indícios recolhidos haverá que proferir despacho de pronúncia, caso contrário, o despacho será de não pronúncia.
Na base da não pronúncia do arguido, para além da insuficiência de indícios necessariamente consubstanciada na inexistência de factos, na sua não punibilidade, na ausência de responsabilidade ou na insuficiência da prova para a pronúncia, poderão estar ainda motivos de ordem processual, ou seja, a inadmissibilidade legal do procedimento ou vício de acto processual.
Já no que toca ao despacho de pronúncia, a sustentação deverá buscar-se, como vimos, na suficiência de indícios, tidos estes como as causas ou consequências, morais ou materiais, recordações e sinais de um crime e/ou do seu agente que sejam captadas durante a investigação.
Não se pretende alcançar a demonstração da realidade dos factos mas apenas uma razoável probabilidade da existência de um crime praticado por determinado arguido. Mas, porque a decisão de submeter determinado arguido a julgamento se reveste de alguma gravidade para este, a nossa doutrina bem como os nossos mais altos Tribunais têm entendido que a possibilidade razoável de condenação, em sede de julgamento, deverá ser mais positiva que negativa, querendo isto significar que o arguido deverá apenas ser pronunciado quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos se forme a convicção de que é mais provável que tenha cometido o crime do que o inverso. Esta forte probabilidade de responsabilização do arguido pelos factos que lhe são imputados na acusação, deverá, ainda, brotar da matéria fáctica recolhida durante a investigação e não de meros considerandos de direito.
Fixadas as directrizes, que de acordo com a lei, nos devem orientar na prolação da decisão instrutória, de pronúncia ou não pronúncia, interessa agora, apurar, por um lado, se em face da prova recolhida até ao momento se indicia suficientemente a prática pelo arguido dos factos que lhe são imputados no requerimento de abertura de instrução e, por outro lado, concluindo-se afirmativamente, se tais factos sustentam a imputação jurídico-criminal efectuada no mesmo douto despacho.
Dispõe o artigo 372º, que o funcionário que por si, ou por interposta pessoa com o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si, ou para terceiro, sem que lhe seja devida, vantagem patrimonial ou não patrimonial, ou a sua promessa, como contrapartida de acto ou omissão contrários aos deveres do cargo, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
2 - Se o acto não for executado, o agente é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
Por outro lado, estatui o artigo 374º do CP que quem, por si, ou por interposta pessoa com o seu consentimento ou ratificação, der ou prometer a funcionário ou a terceiro com conhecimento daquele, vantagem patrimonial ou não patrimonial que ao funcionário não seja devida, com o fim indicado no artigo 372º é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos.
Muito se tem escrito sobre o bem jurídico protegido por este tipo de crime, mas, no fundo, parece-nos extremamente válida a tese preconizada por A. M. Almeida Costa, no Comentário Conimbricense ao Código Penal, onde diz que ao transaccionar com o cargo, o funcionário público corrupto coloca os poderes funcionais ao serviço dos seus interesses privados, o que equivale a dizer que, abusando da posição que ocupa, se substitui ao estado, invadindo a respectiva esfera de actividade. A corrupção traduz-se por isso numa manipulação do aparelho do Estado pelo funcionário que, assim, viola a autonomia internacional do último, ou seja, em sentido material, infringe as exigências de legalidade, objectividade e independência que, num Estado de Direito, sempre tem que presidir ao desempenho de funções públicas.
O bem jurídico da corrupção consiste na autonomia intencional do Estado.
A partir do exposto, a corrupção passiva constitui um crime de dano, já que não se limita a pôr em risco, antes importa uma efectiva violação da esfera de actividade do Estado, traduzida numa ofensa à sua autonomia intencional.
Por outro lado, o crime de corrupção é um crime específico, isto é, para o preenchimento do tipo é necessário que o agente seja funcionário.
Centrando a análise no artigo 372º a corrupção passiva, ao revestir a natureza de delito específico, apenas incide sobre funcionários, nem todos os actos praticados pelos últimos se mostram, contudo, susceptíveis de preencher o correspondente ilícito.
Por um lado, a corrupção limita-se aos casos em que a gratificação representa a contrapartida de um acto realizado no exercício do cargo, não correspondendo à respectiva fattispecie as hipóteses em que a dádiva respeita a uma actividade ou prestação não efectuada no desempenho das suas competências públicas, ainda que a conduta que, em concreto, se dirige a remuneração se apresente idêntica às que o agente executa nessa veste.
Acresce que, para além da conduta do funcionário há ainda que ter em conta os atributos da contra-prestação do corruptor.
A determinação do quantum a que tem de obedecer o suborno deve, por isso, fixar-se a partir do sentido, modelo ou imagem que a ofensa àquele bem jurídico assume no contexto ético-social em causa. O que equivale a dizer que se está perante um crime de corrupção sempre que o suborno ou gratificação não forem de considerar irrelevantes ou até consentidos pelos hábitos e praxes sociais gerais ou do sector de actividade.
A terceira e última característica que se assinala respeita ao facto de o suborno ter de revestir em concreto o significado de contrapartida por um qualquer acto de funcionário.
Quer dizer na altura em que se solicita, aceita ou promete, a peita deve ter já o significado de uma troca ou transacção com o exercício do cargo. A conduta do funcionário pode, aliás, não se encontrar pré-determinada de forma precisa, ou até ficar subordinada, quanto ao seu “se” e ao seu “como”, á discricionariedade do agente, em razão do circunstancialismo que se observe no momento de a levar a cabo.
Ao contrário do que se defendeu noutras ordens jurídicas, no direito português, exclui-se, portanto, a hipótese de punir, a título de corrupção passiva, as dádivas realizadas, não com o objectivo imediato de conseguir um acto determinado, mas tão só com a finalidade de criar um clima de permeabilidade ou de simpatia, para eventuais diligências que venham a requerer-se de futuro.
Atendendo à natureza do bem jurídico protegido e ao carácter velado e indirecto que o processo conducente à corrupção por norma reveste, não repugna, contudo, admitir excepções àquela regra. Assim deverá acontecer sempre que, à luz dos critérios da experiência comum, a simples dádiva – considerados de forma cumulativa, o seu exagerado valor e, por outro lado, as circunstâncias em que ocorreu ou a pessoa de que proveio – nãos e mostre justificável de outro modo, assumindo, inequivocamente o aludido significado de criar um clima de permeabilidade ou simpatia para posteriores diligências (ver Comentário Conimbricense ao Código Penal, tomo III, Almeida e Costa em anotação ao artigo 372º do CP).
Em termos de tipicidade subjectiva o tipo de crime em análise é um crime doloso, esgotando-se no conhecimento e vontade de obtenção de uma vantagem ilegítima como contrapartida de um comportamento violador dos deveres do cargo.
No que concerne ao crime de corrupção activa, o mesmo consuma-se com o simples oferecimento ou promessa de suborno por parte do agente, independentemente da reacção do funcionário se traduzir numa aceitação ou repúdio.
Não obstante, a corrupção activa é um crime material ou de resultado, cuja consumação depende da verificação de um evento que está para além da conduta do agente.
Feitas estas considerações sobre os tipos de crime de que os arguidos vêm acusados, passaremos à subsunção do comportamento dos mesmos aos respectivos tipos de crime.
E esta metodologia só se adopta porquanto o Tribunal entende, que, independentemente da prova produzida em sede de instrução, os factos constantes da acusação não são suficientes para se considerarem preenchidos os tipos de crime de que os arguidos vêm acusados.
Isto é, em face da factualidade descrita na acusação é possível dizer que, mesmo que se provem os factos constantes da acusação, não haverá, grande probabilidade de os arguidos virem a ser condenados pela prática dos crimes de que vêm acusados.
Por essa razão não analisaremos exaustivamente os factos que consideramos apurados em sede de instrução, embora nos vamos referir a eles, mas será, contudo, desnecessário, debruçarmo-nos de forma mais alongada sobre essa matéria.
Senão vejamos.
A acusação está dividida em diversas partes para que haja uma melhor compreensão da mesma, num primeira parte discorre-se sobre o SEF e as posições que os arguidos A... e B... desempenhavam na sua hierarquia, numa segunda parte que se refere aos arguidos D... e C... (penso que só por lapso se refere B... a fls. 1489) e às posições ocupadas na IN..., uma terceira parte relativa ao concurso n.º 1/2002, e uma quarta parte em que se relatam as relações entre os arguidos.
É só nesta quarta parte que se descrevem as condutas eventualmente integradoras dos ilícitos em apreço.
Descreve-se primeiro aquilo que os arguidos se propuseram obter e depois relatam-se as viagens realizadas pelos arguidos B... e A... e pagas pela IN..., por desígnio de C... e D....
Não existem dúvidas pelo menos relativamente às viagens a Madrid, uma feita por B... e outra por B... e A..., que tais viagens foram pagas pela IN..., a solicitação de C....
Também não existem dúvidas de que o arguido B... viajou a Cabo Verde a expensas da IN....
Independentemente, ainda, de saber quem são, dentro da IN..., os responsáveis pelo pagamento destas viagens aos arguidos, importa, desde já dizer, que, estas vantagens, pelo menos no que diz respeito a B..., são completamente injustificadas, não há efectivamente razão alguma que justifique que um funcionário público que não tinha qualquer envolvimento no júri do concurso 1/2002 fizesse viagens pagas por uma empresa que se apresentou como concorrente e que, aliás, veio a ganhar tal concurso.
Não obstante, conforme acima dissemos não são enquadráveis no crime de corrupção passiva, as dádivas realizadas, não com o objectivo imediato de conseguir um acto determinado, mas tão só com a finalidade de criar um clima de permeabilidade ou de simpatia, para eventuais diligências que venham a requerer-se de futuro.
É que, na verdade, acaba por ser precisamente essa a contrapartida que é descrita na acusação do MP.
Os únicos artigos em que se alude à contrapartida exigida aos arguidos A... e B... pelos arguidos C... e D... são os artigos 25 e 26 e depois, a propósito do elemento subjectivo nos artigos 44 e 45.
Aí se diz que: os arguidos D... e C... (…) com o fim de obter informações privilegiadas quer quanto ao decurso do procedimento concursal 1/2002, quer quanto a oportunidades de negócio geradas no âmbito da actividade de cooperação internacional do SEF (..) o pagamento de despesas pessoais dos arguidos A... e B....
Por outro lado, relativamente aos arguidos A... e B..., diz-se que: acordaram entre si (…) aproveitar-se em proveito pessoal, das suas incumbências funcionais e de informação privilegiada a que no exercício das mesmas acediam, para obter dos arguidos C... e D... o pagamento de despesas pessoais (…) em troca da disponibilização dessa informação.
A acusação, tal como está formulada, não permite, quanto a mim, que algum dia se descortine, qual foi a contrapartida dada pelos arguidos A... e B... a D... e C... pelas viagens que lhes foram pagas.
Certo é que não foi possível no decurso da investigação concluir pela existência de um nexo de causalidade entre os actos contrários ao dever do cargo praticados por A... e B... e o facto de a IN... ter ganho o concurso público 1/2002 – cfr. Relatório final da PJ a fls. 1138.
Portanto, não obstante ter sido desenvolvido esforço assinalável por parte da PJ no sentido de encontrar uma ligação entre o pagamento das viagens e a vitória no concurso 1/2002, não foi possível estabelecê-la.
Aliás, mesmo em termos bancários a investigação esforçou-se por encontrar rasto de dinheiro que pudesse ter sido pago aos funcionários e não logrou detectá-lo.
Partindo então de uma expressão encontrada nesse mesmo relatório da PJ onde se pode ler que: quando muito, nessa fase preliminar do concurso, entenda-se, antes do anúncio do mesmo e da possibilidade legal dos concorrentes adquirirem peças concursais em apreço, a IN..., por via do seu comercial no SEF, o arguido C... e das relações profissionais e, sobretudo, pessoais que este mantinha com o arguido A..., poderá ter tido conhecimento prévio da natureza do projecto que estava a ser desenvolvido pelo SEF e das especificações técnicas exigíveis e às quais a empresa deveria responder, caso viesse a concorrer, o MP faz então constar os artigos 25 e 26º da acusação.
É bem certo que a conjectura da PJ é possível e plausível, encontrando-se até algum acolhimento no e-mail de fls. 353.
No entanto, não é suficiente para fundamentar uma acusação pela prática dos crimes de corrupção activa e passiva.
A expressão utilizada na acusação é de tal modo genérica, vaga e abstracta, que impossibilita uma defesa objectiva e até o estabelecimento dos limites do caso julgado.
Para que houvesse uma probabilidade séria dos arguidos virem a ser condenados era necessário saber afinal qual a informação privilegiada a que os arguidos D... e C... acederam.
É que informação privilegiada é um conceito conclusivo.
Como é que sabemos se era privilegiada se não sabemos qual a informação prestada e conseguida.
Por outro lado, também ficamos sem saber acerca do que é que era a informação, seria sobre o concurso 1/2002? Ou, como se diz na acusação, sobre oportunidades de negócio geradas no âmbito da cooperação internacional do SEF? Que oportunidades eram essas? Concretizaram-se ou não?
O conceito de informação privilegiada é simultaneamente um conceito vago e indeterminado, mas também um conceito de direito.
De facto, no mundo em que vivemos e no mundo dos negócios, até bolsistas, o acesso à informação é precioso, mas não se pode qualificar uma informação de privilegiada se não soubermos que tipo de informação é essa.
Assim sendo, o Tribunal entende que não existe contrapartida para as viagens que foram “oferecidas” aos arguidos.
Não há nesta fase processual prova bastante que permita concluir pela existência de indícios de que essa contrapartida tenha existido, desde logo, porque após uma exaustiva investigação, em que se ouviram muitas testemunhas, se buscaram elementos bancários, se analisou o concurso 1/2002, não foi possível obter senão desconfianças de que essa contrapartida tenha existido.
Acresce que também no decurso da instrução não foi possível, atenta a prova produzida, obter indícios de que tenha existido uma contrapartida.
Sem contrapartida, como acima dissemos, não há crime de corrupção activa e passiva.
É verdade, como acima dissemos, que em certos casos pode existir uma prenda com um valor tal que leve a concluir que forçosamente terá havido contrapartida.
Não é, manifestamente, o caso, porquanto as viagens são de valor relativamente irrisório, quando comparadas com a dimensão do concurso 1/2002, sendo que, inclusivamente, são viagens de trabalho.
Entendo, pois, que, desde logo pelo teor vago e genérico da acusação, não é possível considerar que existe uma probabilidade sedimentada de os arguidos virem a ser condenados em julgamento.
Posto isto, o Tribunal decide não pronunciar os arguidos pela prática dos crimes de que vêm acusados ou por qualquer outro.
Notifique.
Sem custas.

Apreciemos.


Questão prévia da tempestividade da interposição do recurso

Sustenta o arguido C... que o recurso interposto pelo Ministério Público é intempestivo, com os seguintes fundamentos:

A decisão instrutória recorrida foi lida no dia 29 de Outubro de 2010, não tendo o Ministério Público comparecido à leitura.

A fls. 1808 consta “Em 4.1.2010 à Digna Magistrada do MP de todo o conteúdo da douta decisão instrutória”, um traço aposto sobre a mesma, a expressão “sem efeito”, bem como a assinatura da escrivã.

Esta expressão, rasura ou suposta inutilização não surge assinada nem justificada, pelo que, assim sendo, não pode ser considerada, devendo pois, processualmente, manter-se a referência sempre original da cota elaborada, ou seja, “Em 4.11.2010 à Digna Magistrada do MP de todo o conteúdo da douta decisão instrutória”.

Assim, há que considerar que a notificação da decisão instrutória ao Ministério Público foi efectivamente efectuada em 4 de Novembro de 2010.

Na folha 1809, agora com a referência 968667, também assinada por funcionário judicial, determina-se: "Em 10.11.2010 à Digna Magistrada do MP de todo o conteúdo da douta decisão instrutória".

Se efectivamente estivesse em causa a impossibilidade de se ter notificado a Magistrada do Ministério Público no dia 4 de Novembro, então decerto tal constaria dos autos e tendo o Ministério Público sido notificado em 4 de Novembro de 2010, o prazo de 20 dias para interposição de recurso terminou no dia 29 de Novembro (com três dias de multa), pelo que o recurso interposto é claramente intempestivo.

Vejamos então.

A decisão instrutória, sobre que incide o recurso interposto, foi efectivamente proferida no dia 29 de Outubro de 2010, não tendo o Ministério Público comparecido à leitura.

A fls. 1808 consta a menção “NOT. – Em 04-11-2010 à Digna Magistrada do Ministério Público, de todo o conteúdo douta decisão instrutória de fls. 1794 a1806, que antecede” uma linha a negro cujo espaço imediatamente superior se encontra em branco e na parte inferior dessa linha a menção “A Escrivã Auxiliar, R…” com uma assinatura manuscrita.
Sobre todos estas menções encontra-se um traço negro transversal com a inscrição “sem efeito”.

A fls. 1809 apresenta-se a menção “NOT. – Em 10-11-2010 ao(à) Digno(a) Magistrado(a) do Ministério Público, de todo o conteúdo da douta decisão instrutória, que antecede. - fls. 1794 a 1806”, uma linha a negro em cujo espaço imediatamente superior se encontra uma assinatura manuscrita não decifrável e na parte inferior dessa linha a menção “A Escrivã de Direito, M…” com uma assinatura manuscrita.

Lateralmente à aludida assinatura situada na parte superior da linha negra estão os dizeres manuscritos “não houve entrega de cópia da decisão ao MP”.

Foi solicitada ao Tribunal de Instrução Criminal informação sobre o motivo da desconsideração da cota de 04/11/2010, que conduziu a que “a referida notificação fosse repetida a fls. 1809, com data de 10/11/2010”, bem como a identificação do seu autor.

Informou o Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa como segue:

“Cumpre-me informar V. Exª que a notificação ao Ministério Público, da decisão proferida nos autos acima identificados, foi efectuada no dia 10-11-2010.
Por lapso, não foi efectuada cota a justificar o facto da notificação do dia 04-11-2010 ter ficado sem efeito pelo que passo a explicar.
A notificação do dia 04-11-2010 foi dada sem efeito, por mim, escrivã de direito, M….
Tal situação verificou-se em virtude de ser a Sra. Procuradora titular deste processo a Dra. S…, afecta à 9ª secção do DIAP e não a Dra. F…, afecta a este 1º Juízo do TIC.
No dia 4, o processo foi entregue no gabinete da Dra. F… juntamente com os processos do dia. No dia 10-11, a Dra. F… devolveu os autos, sem assinar a notificação, uma vez que verificou que os autos deveriam ter sido entregues à Dra. S… pelo que, foi dado sem efeito a notificação do dia 04 e foi efectuada a notificação em 10-11 e os autos entregues na 9ª secção do DIAP”.

Esta informação mostra-se assinada pela Escrivã de Direito M….

Ora, nos termos do artigo 111º, do CPP, a comunicação dos actos processuais destina-se a transmitir – entre outros – o conteúdo de acto realizado ou de despacho proferido no processo, é feita pela secretaria e é executada pelo funcionário de justiça que tiver o processo a seu cargo ou por agente policial, administrativo ou pertencentes ao serviço postal que for designado para o efeito e se encontrar devidamente credenciado.

Como resulta da informação da Sr.ª Escrivã do TIC, a menção no processo da notificação ao Ministério Público do teor da decisão instrutória com data de 04/11/2010 partiu do pressuposto de que iria ser notificada a magistrada do Ministério Público junto do 1º Juízo do TIC e para tanto o processo foi entregue no respectivo gabinete.

Contudo, esta magistrada não assinou a notificação, não tendo tomado conhecimento do teor do despacho de não pronúncia, porquanto, por razões de distribuição interna do serviço, a Exmª Procuradora titular dos autos em causa era a que exercia as suas funções na 9ª secção do DIAP e, por isso, a que devia ser notificada.

Por essa razão foi dada sem efeito a menção da notificação aos 04/11/2010, notificação que efectivamente não se verificou nesta data e efectuada a mesma aos 10/11/2010 na pessoa da referida magistrada da 9ª secção do DIAP, que assinou a nota de notificação.

É certo que a secretaria do TIC deveria ter consignado logo aos 04/11/2010 a razão de ter aposto na menção de notificação a inscrição “sem efeito”, o que obviaria a que se tivesse despoletado agora esta questão.

Contudo, ao contrário do que pretende o recorrente, não se vislumbra em que medida os seus direitos e garantias de defesa foram ou serão prejudicados pelo exercício pelo Ministério Público do seu direito de recurso.

E também se não mostram obliterados os princípios de estabilidade e caso julgado inerentes à própria ordem jurídico-penal, desde logo porque aos 04/11/2010 não foi feita ao MP notificação alguma do despacho de não pronúncia.

Tendo a notificação do despacho de não pronúncia sido efectuada ao Ministério Público aos 10/11/2010 e o recurso interposto em 2 de Dezembro de 2010, apresenta-se o mesmo tempestivo, pelo que improcede a questão prévia suscitada.


Dos indícios suficientes da prática pelos arguidos dos factos imputados na acusação pública e respectiva subsunção legal

Os arguidos C... e D... sustentam na motivação de recurso que o recorrente não pode por em causa a matéria de facto subjacente à decisão recorrida, por não ter dado cumprimento aos imperativos dos nºs 3 e 4, do artigo 412º, do CPP.

Mas, na verdade, não foi dado cumprimento a essas imposições, nem o poderia ter sido, porquanto no despacho colocado em crise não foram indicados quais os factos que indiciariamente estão provados e os que não se provaram (a existirem claro), em manifesto desrespeito pelo estabelecido no artigo 283º, nº 3, alínea b), do CPP ex vi artigo 308º, nº 2, do mesmo diploma legal.

Contudo, em nosso entender, a não narração dos factos, ainda que sintética, que constituem fundamento da decisão de não pronúncia, não acarreta a nulidade do despacho – no sentido da nulidade insanável, vd. Ac. R. de Évora de 01/03/2005, Proc. nº 1481/04, Ac. R. de Lisboa de 10/07/2007, Proc. nº 1075/07-5 e Ac. R. do Porto de 23/04/2008, Proc. nº 0810048, consultáveis em www.dgsi.pt.

Com efeito, tal vício não vem cominado na lei como nulidade insanável, não integra os elencados nas alíneas do artigo 119º, do CPP, nem é reconduzível à situação prevista no nº 2, do artigo 379º, pelo que, não tendo sido arguida perante o tribunal recorrido, como se impunha, não pode ser agora conhecida por este tribunal de recurso, tendo de se considerar sanada – assim, Ac. R. do Porto de 07/07/2010, Proc. nº 102/08.5PUPRT.P1 e Ac. R. de Coimbra de 23/02/2011, Proc. nº 258/09.0GAFZZ.C1, igualmente disponíveis no sítio mencionado.

Estabelece o artigo 308º, nº1, do CPP, que “Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia” - nº 1.

E, esclarece-se no artigo 283º, nº 2, do mesmo diploma legal, que se consideram suficientes os indícios “sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.

Está em causa a apreciação de todos os elementos de prova produzidos no inquérito e na instrução e a respectiva integração e enquadramento jurídico, em ordem a aferir da sua suficiência ou não para fundamentar a sujeição a julgamento do arguido.

Nessa aferição o tribunal aprecia a prova segundo as regras da experiência e a sua livre convicção - artigo 127º, do CPP.

Figueiredo Dias ensina que “(...) os indícios só serão suficientes, e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que a absolvição”. E acrescenta ainda: “tem pois razão Castanheira Neves quando ensina que na suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final, só que a instrução preparatória (e até a contraditória) não mobiliza os mesmos elementos probatórios que estarão ao dispor do juiz na fase do julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação” - Direito Processual Penal, 1º vol., Coimbra Editora, Reimpressão, 1984, pág. 133.

Como sustenta Carlos Adérito Teixeira, no conceito de indícios suficientes “liga-se o referente retrospectivo da prova indiciária coligida ao referente prospectivo da condenação, no ponto de convergência da “possibilidade razoável” desta, por força daqueles indícios e não de outros” - Indícios suficientes: parâmetros de racionalidade e “instância de legitimação” (…) Revista do CEJ, 2º semestre 2004, nº 1, pag. 189.

Assim, os indícios qualificam-se de suficientes quando justificam a realização de um julgamento; tal ocorre quando a possibilidade de condenação, em função dos indícios, for razoável.

No que concerne à dedução de acusação ou de pronúncia, constitui uma garantia fundamental de defesa, manifestação do princípio da presunção de inocência constitucionalmente consagrado, que ninguém seja submetido a julgamento penal senão havendo indícios suficientes de que praticou um crime. E o conteúdo normativo a conferir a esse conceito de indícios suficientes não pode ser alhear-se do mencionado princípio da presunção de inocência.

No desenvolvimento deste entendimento, o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão nº 439/2002, de 23 de Outubro, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, considerou que “(…) a interpretação normativa dos artigos citados [286º nº 1, 298º e 308º nº1, do CPP] que exclui o princípio in dubio pro reo da valoração da prova que subjaz à decisão de pronúncia reduz desproporcionada e injustificadamente as garantias de defesa, nomeadamente a presunção de inocência do arguido, previstas no art. 32º nº 2, da Constituição”.


Face ao que, o juízo sobre a suficiência dos indícios, no contexto probatório em que se afirma, deverá passar pela fasquia da probabilidade elevada ou particularmente qualificada, correspondente à formação de uma verdadeira convicção de probabilidade de condenação, que será aquela que, num juízo de prognose, manifestar a potencialidade de vir a ultrapassar a barreira do in dubio pro reo na fase do julgamento.

Em todo o caso, o referente da condenação respeita ao crime que é imputado e em relação ao qual o juízo de indiciação suficiente se reporta.

Regressando à matéria dos autos, há que questionar se, com base nos elementos de prova recolhidos no inquérito e na instrução, é de formular um juízo de probabilidade elevada de que, em julgamento, os arguidos venham a ser condenados pelos factos e incriminação legal imputados.

E, esse juízo, há-de atender para a sua formação não só à prova directa (em que o facto probatório - meio de prova - se refere imediatamente ao facto probando), como também à prova indirecta ou indiciária, que igualmente é admissível pelo nosso ordenamento jurídico – cfr. neste sentido, Acs. do STJ de 11/12/03, Proc. nº 03P3375; 07/01/04, Proc. nº 03P3213; 09/02/05, Proc. nº 04P4721; 04/12/08, Proc. nº 08P3456; 12/03/09, Proc. nº 09P0395 e de 18/06/09, Proc. nº 81/04PBBGC.S1, todos consultáveis em www.dgsi.pt. – e reporta-se a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o recurso às regras da experiência, uma ilação da qual se infere o facto a provar.


Como se afirma no Ac. do STJ de 16/01/2002, Proc. nº 3649/01 - 3ª Secção, relatado pelo Cons. Armando Leandro, “O critério da livre apreciação da prova consagrado no art. 127.º, do CPP, não significa a possibilidade de apreciação puramente subjectiva, arbitrária, baseada em meras impressões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação, antes pressupõe uma cuidada valoração objectiva e crítica e em boa medida objectivamente motivável, em harmonia com as regras da lógica, da razão, das regras da experiência e dos conhecimentos científicos; engloba porém não só os factos probandos apreensíveis por prova directa mas também os factos indiciários, no sentido de factos que, por deduções e induções objectiváveis a partir deles, tendo por base as referidas regras, conduzem à prova indirecta daqueles outros factos, que constituem o tema da prova; tudo a partir de um processo lógico-racional que envolve porém, naturalmente, também elementos subjectivos, inevitáveis no agir e pensar humano, que importa reconhecer com honestidade e maturidade para melhor impedir que possam ser fonte de arbitrariedade e permitir actuem, pelo contrário, como instrumento de perspicácia e prudência na busca da verdade processualmente possível”.


Para que o juízo de inferência resulte em verdade convincente é necessário, pois, que os factos indiciários se revelem suficientes e sólidos e que a argumentação sobre que assenta a conclusão probatória seja razoável face a critérios lógicos do discernimento humano – vd. neste sentido a jurisprudência do Tribunal Supremo de Espanha citada por Euclides Dâmaso Simões em Prova Indiciária - Contributos para o seu estudo e desenvolvimento em dez sumários e um apelo premente, Revista Julgar nº 2, pags. 207 e segs - ou seja, que o facto “consequência” resulte de forma natural e lógica dos factos-base, segundo um processo dedutivo, baseado na lógica e nas regras da experiência, sendo que estas se alicerçam na observação daquilo que acontece na maioria das situações com similitude entre si, de onde resulta um juízo hipotético ou de probabilidade de conteúdo genérico de uma idêntica actuação humana.


Mas analisemos o caso concreto.

Estabelece-se no artigo 372º, do Código Penal, na redacção da Lei nº 108/2001, de 28/11:

“1. O funcionário que por si, ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, sem que lhe seja devida, vantagem patrimonial ou não patrimonial, ou a sua promessa, para um qualquer acto ou omissão contrários ao dever do cargo, ainda que anteriores àquela solicitação ou aceitação, é punido (…)”.

Por seu turno, consagra-se no nº 1, do artigo 374º, do mesmo Código:

“Quem por si, ou por interposta pessoa com o seu consentimento ou ratificação, der ou prometer a funcionário, ou a terceiro com conhecimento daquele, vantagem patrimonial ou não patrimonial que ao funcionário não seja devida, com o fim indicado no artigo 372º, é punido (…)”.

Ora, como bem assinala o recorrente Ministério Público, a Srª Juiz a quo no seu despacho de não pronúncia não considerou a redacção de 2001 do artigo 372º, mas reportou-se à sua versão anterior – introduzida pela Reforma de 1995 – sendo certo que os factos em causa nos autos dizem respeito ao ano de 2003, o que não é irrelevante, de todo, desde logo porque aquela eliminou a referência à “contrapartida” do acto em face da vantagem solicitada ou aceite pelo funcionário e veio explicitar que também a corrupção subsequente, para além obviamente da antecedente, constitui crime.


O bem jurídico protegido no crime de corrupção é a legalidade da actuação dos agentes públicos, a quem está interdito mercadejar com o cargo - Cláudia Cruz Santos, A Corrupção de Agentes Públicos em Portugal: Reflexões a Partir da Lei, da Doutrina e da Jurisprudência, in A Corrupção, Coimbra Editora, 2009, pag.124 - ou, conforme o entendimento de Almeida Costa - Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, pag. 661 - a autonomia intencional do Estado, sendo que num Estado de Direito o desempenho de funções públicas tem de se pautar por exigências de legalidade, objectividade e independência, que o funcionário infringe ao colocar os poderes funcionais ao serviço dos seus interesses privados quando transaccionar com o cargo.

Mas, ao eliminar a menção “à contrapartida”, o legislador pretendeu afastar a indispensabilidade do sinalagma entre a conduta do funcionário e a do corruptor, pelo que se não mostra necessário que o acto seja praticado para que se verifique a consumação do crime; não se exige a proporcionalidade entre o valor do suborno e o valor ou importância do acto; como não é elemento essencial a existência de um acordo expresso para a adopção de uma conduta já perfeitamente determinada de forma precisa em todos os seus aspectos – Cláudia Santos, ob. cit., pag. 130 - até porque é também incriminada a corrupção subsequente, em que o funcionário no momento da prática do acto não perspectivava pedir ou aceitar uma vantagem, nem esta lhe tinha sido oferecida, pelo que afastada está também a concepção que reporta o suborno a critérios de causalidade adequada.

Não obstante, posto que a solicitação ou aceitação da vantagem ou da sua promessa pelo funcionário tem de ser “para um qualquer acto ou omissão contrários aos deveres do cargo”, continua o normativo sob análise a exigir a demonstração de uma qualquer relação entre o contributo do corruptor (a vantagem) e o do funcionário, a prática de um acto conexionado, implícita ou explicitamente, com as suas funções (já praticado ou a praticar).

Não importa, porém, que o acto não chegue a ser praticado ou mesmo que o funcionário nunca tivesse a intenção de o praticar – estes não são elementos essenciais deste tipo de crime, que se configura como material ou de resultado – sendo que o crime de corrupção passiva está consumado desde logo com o conhecimento pelo interlocutor ou destinatário da manifestação de vontade de aceitação da vantagem pelo funcionário.

E, do lado da corrupção activa, está consumado o crime previsto no artigo 374º, nº 1, com o conhecimento pelo funcionário destinatário da manifestação de vontade de oferta/promessa da vantagem, isto quer o funcionário aceda ou não à pretensão do corruptor.


Ora, como resulta dos autos suficientemente indiciado, os arguidos A... e B... no ano de 2003 eram funcionários do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, exercendo o primeiro as funções de Director-Central de Informática, enquanto o segundo igualmente desempenhava as suas funções de técnico de Informática na Direcção-Central de Informática, sendo hierarquicamente subordinado daquele.

Quanto ao arguido C..., exercia funções na área comercial e de gestão de projectos na IN... Sistemas, SA – Sucursal de Portugal e era o representante desta junto do SE, estando hierarquicamente subordinado ao D...

O arguido D... no biénio 2002/2003 desempenhou funções como membro do Conselho de Administração da CPC..., SA e gerente da IN... …, Sociedade Unipessoal, Lda. e também as de administrador delegado da IN... Sistemas SA - Sucursal de Portugal.

Em 23/11/2002 foi publicado o anúncio do Concurso Público Internacional nº 1/2002, que tinha por objecto a “Renovação da Parte Nacional do Sistema de Informação Shengen (NSIS) de Portugal e Renovação do Sistema Integrado de Informação do SEF com recolha e tratamento de Títulos de Residência e de Impressões Digitais, recorrendo à partilha de um sistema de armazenamento multiplataforma”, tendo sido o arguido A... designado como membro do júri enquanto vogal efectivo.

Por deliberação do Júri do Concurso o arguido A... integrou a Comissão Técnica para análise das propostas e apresentação ao mesmo de um Relatório de Avaliação das Propostas e igualmente integrou a Comissão Técnica para a avaliação do AF... (sistema de recolha de impressões digitais) cuja missão era a de proceder a visitas técnicas de sistemas AF... em funcionamento.

Ao concurso mencionado concorreram várias empresas, entre elas o agrupamento constituído pela IN... Sistemas, SA/CPC.../MI... e o arguido C... foi designado como representante da IN... no âmbito do concurso.


Resulta também suficientemente dos autos que:

A) O B... se deslocou a Madrid, no período entre 28 e 30/06/2003, sendo que as despesas com esta deslocação e estadia – no montante de 1.525,53 euros, onde está incluída, porém, também a deslocação do C... - foram pagas pela IN... Sistemas, SA – Sucursal Portugal por cheque datado de 12/08/2003, assinado pelo arguido D... – conforme se constata do documento fls. 252; documento contabilístico de fls. 320 e factura de fls. 63.

B) O arguido B... se deslocou a Cabo Verde no período entre 13 e 18/09/2003, sendo a viagem e estadia – no montante de 1.112,27 euros - pagas pela IN... CPC – Sistemas Informáticos, SA, como se alcança do cheque de 241 e factura de fls. 95.

C) O A... e o B... se deslocaram a Madrid no período entre 9 e 10/12/3003, sendo as despesas respectivas – no montante de 858,76 euros - pagas pela IN... Sistemas, SA – Sucursal de Portugal, tendo o cheque sido assinado pelo arguido D..., como ressalta de fls. 323 (cheque) e fls. 76 (factura).
D) A IN... – CPC – Sistemas Informáticos, SA., pagou as despesas de alojamento dos arguidos A... e B... entre os dias 17 e 19/08/2003 no Hotel IC..., em … – Idanha-a-Nova - no montante de 346,50, onde se inclui igualmente a estadia do C... - como se conclui da análise dos docs. de fls. 241 (cheque) e 318 (cheque).

É certo que os arguidos nas suas declarações afirmam que depois reembolsaram desta última despesa a empresa em numerário, mas não consta documento contabilístico algum da IN... relativo a esse reembolso e, na verdade, a despesa mostra-se inscrita na sua totalidade na factura de fls. 93 e documento contabilístico de fls. 304.

Ora, conforme o entendimento da Mmª Juíza de Instrução a acusação, tal como está formulada, não permite que se descortine qual foi a contrapartida dada pelos arguidos A... e B... a D... e C... pelas viagens que lhes foram pagas e “certo é que não foi possível no decurso da investigação concluir pela existência de um nexo de causalidade entre os actos contrários ao dever do cargo praticados por A... e B... e o facto de a IN... ter ganho o concurso público 1/2002”.

Mas, como ficou supra explanado, não exigia sequer a lei que regia à data da prática dos factos a demonstração desse nexo de causalidade para que estivesse verificado o crime de corrupção passiva.

Consta da acusação pública:

“25. Os arguidos D... e C..., em momento não apurado do ano de 2003, nesta cidade de Lisboa, prosseguindo interesses comerciais da IN... SISTEMAS SA, decidiram entre si aproveitar-se das relações estabelecidas com os arguidos A... e B... a fim de obter informações privilegiadas quer quanto ao decurso do procedimento concursal 1/2002, quer quanto a oportunidades de negócio geradas no âmbito da actividade de cooperação internacional do SEF, propondo, umas vezes, e aceitando, outra, em nome e por conta da IN..., o pagamento de despesas pessoais dos arguidos A... e B..., designadamente com viagens e alojamentos.

“26. Estes últimos, por seu turno, cientes dos objectivos comerciais prosseguidos pelos arguidos C... e D... acordaram entre si, no mesmo ano, aproveitar-se em proveito pessoal, das suas incumbências funcionais e de informação privilegiada a que no exercício das mesmas acediam, para obter dos arguidos C... e D... o pagamento de despesas pessoais, aceitando, umas vezes, propondo, outras, o pagamento de viagens e alojamentos em troca da disponibilização da pretendida informação”.
Mais consta que:

“27. Na execução de tal desígnio comum, o arguido A... solicitou ao arguido C... o pagamento de determinadas viagens a gozar pelo B..., não assinalando faltas ao serviço por parte deste aquando do gozo de tais deslocações, ao contrário do que lhe incumbia funcionalmente efectuar enquanto seu superior hierárquico (…)”.

Da leitura destes passos da acusação resulta que se encontra perfeitamente articulada a conexão ou relação entre os pagamentos das viagens e estadias mencionadas, que foram aceites e as “informações privilegiadas” a prestar pelos arguidos B... e A... (e atente-se que, tal como está formulada a acusação, actuaram eles em co-autoria, ou seja, em comunhão de esforços e desígnios, no desenvolvimento de um plano previamente estabelecido), não constituindo elemento essencial do tipo de crime de corrupção passiva que as informações tenham sido efectivamente prestadas ou, até, que os funcionários estivessem imbuídos do intuito de as prestar, embora, como veremos, o tivessem sido.

No despacho recorrido afirma-se que “expressão utilizada na acusação é de tal modo genérica, vaga e abstracta, que impossibilita uma defesa objectiva e até o estabelecimento dos limites do caso julgado” e “para que houvesse uma probabilidade séria dos arguidos virem a ser condenados era necessário saber afinal qual a informação privilegiada a que os arguidos D... e C... acederam”, bem como que “informação privilegiada é um conceito conclusivo”.

Mas, manifestamente, quando a acusação se reporta a “informação privilegiada” está a usar a expressão segundo o seu sentido comum de informação não acessível a todos em geral, não livremente disponível, não em sentido técnico-jurídico e qual seja concretamente essa informação está suficientemente delineado na acusação, são respeitantes “quer ao decurso do procedimento concursal 1/2002, quer quanto a oportunidades de negócio geradas no âmbito da actividade de cooperação internacional do SEF”.

Assim, a informação privilegiada, no contexto e economia da acusação, é aquela respeitante ao concurso 1/2002 e bem assim a que concerne a oportunidades de transacções comerciais envolvendo o SEF, a que os arguidos B... e A... tinham acesso por via da sua ligação funcional ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e que os cidadãos em geral (e também o C... e o D...) não possuíam.

E, na verdade, informação com essas características foi prestada pelos arguidos Machado e A..., sendo inócuo saber que segmento da mesma foi prestada por um ou por outro (e, repete-se, ainda que a informação não tivesse sido prestada, que foi, o crime estava sempre consumado com o conhecimento pelo C... e D... – que também actuaram em co-autoria – da aceitação das vantagens pelos arguidos M e A...).

Mas, vejamos.

No dia 18 de Julho de 2003, o arguido C... enviou para JR, Sub-Director Internacional da IN...- Espanha – com conhecimento, entre outros ao D..., situação que conjugada com os cheques supra mencionados por este assinados indicia fortemente que estava este concertado, actuando em comunhão de esforços e desígnios com o C..., de quem era seu imediato superior hierarquico em Portugal – um e-mail (que se encontra a fls. 353 e foi indicado como meio de prova na decisão acusatória) classificado como confidencial e de importância alta, relativo à “situação do Projecto Schengen”, de onde consta:

Reunión de la Comisión
Los distintos documentos de analisis de oferta ( AF..., Parte Aplicacional, Parte Infraestruturas, Capacidad Financiera, Capacidad Técnica, Condiciones Financieras ) han sido aprovados por la comisión de analisis de ofertas que se reuniu el pasado miercoles de las 14,30h hasta Ias 21,30.
La información que dispongo de momento és de que en la maioria de los item identificados IN... se posiciona en primero (capacidad financiera, Infraestruturas y Condiciones Financieras) , en otros se encuentra al nivel de la
competencia (Aplicacional y Técnica ) y en otros se encuentra un poco abajo (AF... , con menos 1 punto que NB y CASE).
En terminos generales/globales el posicionamento de IN... és de Iideraço.No tengo todavia más informaciones en especial de nuestra distancia en relación a la competencia.
Estoy a preparar para hoy por la tarde o manãna una visita personal a AC en el sentido de verificar se és posible • conocer más algunos detalles“.

Mencionando-se ainda:

“Cena con AC en AB... (19,30/20h) aprox. 30/40 minutos de camino”.

O relatório de Avaliação das Propostas foi elaborado pela Comissão Técnica e apresentado ao júri do Concurso em 30 de Julho de 2003. Se assim é, como é que em 18 de Julho o C... já tinha conhecimento que “en la maioria de los item identificados IN... se posiciona en primero (capacidad financiera, Infraestruturas y Condiciones Financieras), en otros se encuentra al nivel de la competencia (Aplicacional y Técnica) y en otros se encuentra un poco abajo (AF..., con menos 1 punto que NB y CASE)” ?

Manifestamente porque alguém lhe levou ao conhecimento essas informações relativas aos trabalhos que estavam a ser efectuados pela Comissão Técnica de Avaliação das Propostas e concretamente ao posicionamento do agrupamento que a IN... integrava face ao cômputo geral das propostas apresentadas, informação que nesta fase do concurso não estava acessível aos restantes concorrentes e por isso constituía “informação privilegiada”.

E quem lhe forneceu as informações resulta, inequivocamente, ter sido o arguido A....

Com efeito, o C... afirma “No tengo todavia más informaciones en especial de nuestra distancia en relación a la competencia”, mas logo acrescenta “Estoy a preparar para hoy por la tarde o manãna una visita personal a AC en el sentido de verificar se és posible conocer más algunos detalles“.

Este “AC” é o A... (que, não se olvide, era membro do júri e integrava a Comissão Técnica cuja função era de apreciar as propostas apresentadas admitidas a concurso e emitir parecer sobre a parte técnica e financeira das mesmas), como afirma o arguido C... nas declarações que prestou na fase de Instrução e se o C... se ia encontrar com o A... para saber mais detalhes, é porque fora este que lhe fornecera as outras informações.

E também se extrai da simples referência a “AC”, sendo o mail dirigido ao Jorge Rubio e com conhecimento ao D..., que estes tinham conhecimento da identidade do mesmo.Se o não tivessem, não faria sentido algum estar a mencionar que quem iria prestar a informação no encontro na “AB...” era o referido “AC”. E, por sinal, o A... até era possuidor de um imóvel na Praia da AB....

Quanto ao B..., como bem assinala o recorrente, está suficientemente indiciado que a IN... pagou a sua deslocação e estadia a Cabo Verde “a fim de que este se inteirasse de assuntos do interesse comercial da IN..., designadamente proceder à análise de custos possíveis com o Projecto de Passaportes SEF-Caboverde (…) Da prova documental carreada para os autos pelo Ministério Público, resulta igualmente que a IN... viria a desenvolver, em data ulterior, projectos comerciais em Cabo Verde, nos quais teria directo envolvimento o SEF, designadamente a adjudicação pelo SEF, em 2005, à IN... do fornecimento de impressoras para a emissão de passaportes em Cabo Verde, desenvolvimento do respectivo projecto de personalização e serviços de parametrização, instalação, configuração e realização de testes no local (…) Fazendo uso das regras da experiência comum, e partindo da indiciação de tais factos, não se revela falho de racionalidade indutiva a conclusão do facto com base na mesma extraído - e expressamente alegado na acusação - de que as viagens e alojamentos pagos pela IN... aos funcionários do SEF visavam, não apenas criar um clima de simpatia ou permeabilidade, mas compensar a “informação privilegiada” acerca da actividade do SEF, nomeadamente no âmbito de actividades concursais, e de oportunidades de negócio geradas no seio da actividade de cooperação internacional do SEF”.

Com efeito, nas declarações prestadas nos autos em fase de Inquérito – fls. 1000 – afirmou o arguido que nas reuniões entre o A..., o C... e o próprio, o C... manifestou a intenção da IN... em apresentar uma proposta de fornecimento de hardware e software para o serviço congénere do SEF em Cabo Verde, mais precisamente, de renovação do sistema de emissão de passaportes existente em Cabo Verde, tendo pedido para que numa das próximas deslocações de um dos arguidos fosse efectuado o levantamento das necessidades desse país, no que tange aos bens que se propunha fornecer. O que o B... fez nessa viagem, entregando os elementos recolhidos ao C....

E, na verdade, indiciariamente certo é também que o B... no ano de 2003 não teve deslocações ao estrangeiro em representação do SEF – cfr. documento de fls. 150 - tendo-se deslocado a Cabo Verde sem autorização ou conhecimento do Serviço – fls. 924 –iniciando em 15 de Setembro um período de três dias de férias – fls. 21.

Acresce que, em 2005, no âmbito da cooperação do SEF com Cabo Verde, surgiu efectivamente um projecto de desenvolvimento do sistema de emissão de passaportes de Cabo Verde e à IN..., em colaboração com a ICK, foi adjudicado pelo SEF o fornecimento (em Novembro desse ano) de componentes desse projecto, designadamente impressoras para a emissão de passaportes em Cabo Verde – fls. 924.


Resulta, assim, também suficientemente indiciado, que a IN... pagou a deslocação e estadia do arguido B... a Cabo Verde especificamente para que este lhe fornecesse elementos informativos recolhidos no âmbito da sua actividade funcional no SEF, sendo que ele só aos mesmos teve acesso em virtude de desde o ano de 1999 ter efectuado várias deslocações aquele País no âmbito da cooperação do SEF com os PALOP ou seja, por mor da sua ligação funcional a este Serviço.


Desta forma, estamos perante a prática de actos ilícitos, entendidos estes no contexto dos deveres funcionais dos funcionários do SEF, porquanto implicaram “violação dos deveres do cargo”, pois ocorre esta violação quando existe desvio dos poderes inerentes ao cargo ou aos “poderes de facto” de tal exercício.

E qual o dever violado?

O de sigilo imposto aos funcionários do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.

Pois, com efeito, estabelece-se no artigo 9º, da Lei Orgânica do SEF, aprovada pelo Decreto-Lei nº 252/200, de 16/10:

O pessoal do SEF é obrigado a guardar sigilo sobre todas as informações a que tiver acesso no exercício das suas funções (…)”.

Quanto ao valor das vantagens, que na decisão revidenda se considera como “relativamente irrisório, quando comparadas com a dimensão do concurso 1/2002”, como também supra já ficou manifestado, não exige a norma para incriminação pelo crime de corrupção, que o valor do suborno seja proporcional ao valor ou importância do acto a praticar pelo agente público, verificando-se “a corrupção sempre que a vantagem não for de considerar irrelevante ou, até, consentido pelos hábitos e praxes sociais gerais ou do sector de actividade”.

Ora, o valor de viagens e estadias em Madrid e Cabo Verde e bem assim do alojamento no Hotel IC..., quer computadas globalmente, quer mesmo atendendo a cada uma delas, não podem ser tidas como irrelevantes ou socialmente admissíveis.


Em síntese:

Mostra-se suficientemente indiciado que as vantagens patrimoniais, indevidas porque não correspondentes a uma prestação que lhes fosse legalmente devida - traduzidas no pagamento de despesas respeitantes a deslocações e alojamento a Madrid, Cabo Verde e no Hotel IC... - pelos arguidos A... e B... aceites (e percebidas) nos termos expostos foram disponibilizadas pelos arguidos C... e D..., que actuavam em comunhão de esforços e intenções, em prossecução de interesses comerciais da IN... como compensação do fornecimento por aqueles de informações sobre as actividades do SEF, aliás, outra justificação para tais dados objectivos não é sequer viável, possível e de concretização lógica.

E a menção a esta factualidade consta, quanto baste, do texto da decisão acusatória conjugado com os elementos probatórios na mesma indicados.

Mantendo-se a matéria indiciária produzida em sede de inquérito e em sede de instrução, verifica-se uma probabilidade elevada de que os arguidos venham a ser condenados pelo crime que a cada um deles é imputado.

Consequentemente, mal andou a Sr.ª Juíza a quo em não pronunciar os arguidos, pelo que o recurso merece provimento.


III - DISPOSITIVO


Nestes termos, acordam os Juízes da 5ª Secção desta Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso pelo Ministério Público interposto e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida de não pronúncia que deve ser substituída por outra que pronuncie os arguidos pelos factos e incriminação constantes da acusação pública.

Sem tributação

Lisboa, 15 de Novembro de 2011

(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário - artigo 94º, nº 2, do CPP).

Relator: Artur Vargues;
Adjunto: Jorge Gonçalves;