Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
495/16.0T8SCR.L1-6
Relator: ANABELA CALAFATE
Descritores: FACTOS ESSENCIAIS
MANIFESTAÇÃO DA PARTE
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/17/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE / REVOGADA
Sumário: I - O vigente Código de Processo Civil não impõe que a parte interessada manifeste vontade de se aproveitar dos factos essenciais que são complemento ou concretização dos que foram alegados e resultam da instrução e discussão da causa.

II - O que se exige é que, em obediência ao princípio do contraditório, as partes tenham tido oportunidade de se pronunciar sobre esses factos.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa


I - Relatório

JJ e RG instauraram acção declarativa comum contra Ocidental - Companhia Portuguesa de Seguros, SA, pedindo que a ré seja condenada a pagar-lhes a quantia de 7.933,67 € acrescida de juros de mora à taxa legal contados desde a citação até integral pagamento.
Alegaram, em síntese:
- são proprietários de um prédio situado no concelho de Machico;
- celebraram com a ré um contrato de seguros multirriscos com cobertura dos riscos inerentes a esse imóvel fruto de incêndios, inundações e tempestades, entre outros;
- em 22/10/2012 ocorreu um violento temporal marcado por ventos fortes e chuvas intensas e contínuas;
- com as fortes rajadas de vento e a muita chuva, a cobertura da casa de habitação dos autores e área circundante ficaram completamente inundadas, tendo a água escorrido pelos tectos e paredes, e corrido abundantemente pelo chão;
- a persistência dos fortes ventos, a pressão e a entrada das águas provocaram a deslocação de telhas da casa, a destruição da pintura de tectos e paredes, o levantamento dos pavimentos e dos rodapés e fissuras generalizadas na lage, nos tectos e paredes;
- os danos ocorridos na casa de habitação e logradouro resultaram directa e imediatamente do sinistro descrito, coberto pelo contrato de seguro;
- a reparação dos danos tem um custo total de 9.105,95 €;
- a ré só aceitou pagar a quantia de 1.172,28 €, deduzida a franquia de 124,70 €.
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A ré contestou, invocando, em resumo:
- os danos alegados não são consequência de uma intempérie que terá ocorrido em Outubro ou Novembro de 2012;
- não se verificam os factos constitutivos da cobertura de tempestades ou inundações, conforme previsto nas condições da apólice;
- a esmagadora maioria dos danos na habitação é consequência de falta de manutenção e conservação do imóvel, pelo que não configura um sinistro coberto pelo contrato;
- a título excepcional a ré aceitou indemnizar os autores no valor de 1.172,28 € que foi pago depois de deduzida a franquia;
- sem prescindir, impugna os factos referentes ao alegado sinistro.
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Os autores responderam, reiterando que os danos são consequência directa e imediata do temporal.
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Realizada a audiência final, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo a ré do pedido.
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Inconformados, apelaram os autores, terminando a alegação com as seguintes conclusões:
A) Na petição inicial os ora apelantes alegaram a ocorrência a 22 de Outubro de 2012 de um temporal na Região Autónoma da Madeira que atingiu com particular violência a zona de Machico, onde fica situado o seu prédio, marcado por ventos fortes, chuvas intensas e contínuas, ao longo de um dia e de uma noite;
B) Alegaram ainda que, com as fortes rajadas de vento e a muita chuva que caiu, a cobertura da sua casa sofreu danos, casa e área circundante ficaram completamente inundadas, tendo a água escorrido pelos tectos e paredes e corrido abundantemente pelo chão;
C) Mais alegaram que a persistência dos fortes ventos, a pressão e a entrada das águas provocaram a deslocação das telhas da casa, a destruição da pintura de tectos e paredes, o levantamento dos pavimentos e dos rodapés e fissuras generalizadas na lage, nos tectos e nas paredes;
D) Muito embora os apelantes não tenham precisado que a acumulação e a pressão das águas fez deslizar o solo e que isso, por sua vez, fez abrir as fissuras nas paredes, descreveram suficientemente o sinistro, deixando claro que foi aquela tempestade que provocou os danos;
E) O relatório pericial, não posto em causa pela ré, não deixa margem para dúvidas que o solo onde assenta a casa dos autores, ora apelantes, não deslizou por acaso, mas devido à pressão das águas - facto que foi articulado na petição inicial e que foi provado;
F) Deste modo, os autores, ora apelantes, alegaram os factos que estiveram na origem dos danos, e se da instrução da causa outros resultaram que lhes são instrumentais, os vieram concretizar ou complementar, não poderá o tribunal deixar de os ter em conta, por respeito ao disposto no artigo 5º, nº 2, als. a) e b) do C.P.C;
G) Contrariamente ao que entendeu a sentença impugnada, dissonante com os seus fundamentos, os factos articulados pelos autores são enquadráveis no previsto no artigo 6.º, pontos 2 e 3 do contrato de seguro, pois que o deslizamento das terras que provocou as fissuras no imóvel que deram entrada às águas resultou da referida tempestade;
H) Ainda que de outro modo se entenda, tendo ficado demonstrado que a presença de grande quantidade de águas pluviais, resultantes da queda de chuva intensa e continuada provocou o deslizamento das terras, sempre a ré estará obrigada a indemnizar os autores dos danos comprovados na habitação destes, por força do constante dos artigos 3º e ponto 5 do artigo 6 º, do contrato de seguro;
I) E nem se diga que quanto a tal a ré não teve oportunidade de exercer o contraditório, pois que foi notificada do relatório pericial e o não pôs em causa, assentando a sua defesa na falta de conservação e de manutenção do imóvel e no desgaste dos materiais, em momento algum pondo em causa a ocorrência do sinistro denunciado pelos autores.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, determinando-se a nulidade da sentença recorrida e ordenando-se seja proferida sentença que condene a ré a pagar aos autores o custo da reparação dos danos existentes no imóvel segurado,
Com o que V. Exas. farão a costumada justiça.
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A ré contra-alegou, defendendo a confirmação do julgado.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II - Questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação dos recorrentes, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, pelo que as questões a decidir são estas:
- se a sentença é nula
- se o tribunal deveria ter em consideração factos instrumentais, concretizadores ou complementares dos que foram alegados na petição inicial que resultaram da discussão da causa e se, em consequência disso deveria ter condenado a ré no custo da reparação dos danos no imóvel nos termos do contrato de seguro
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III - Fundamentação
A) Na sentença recorrida vem dado como provado:
1 - Os autores são donos de um prédio misto localizado no sítio da Misericórdia, freguesia e concelho de Machico, inscrito na respectiva matriz, a parte rústica sob o artigo 00, da secção “BS”, e a urbana sob o artigo 00, descrito na Conservatória do Registo Predial de Machico, sob o número 00 — cf. documentos n.ºs 1 e 2 juntos com a petição inicial, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
2 - Por força do contrato de seguro multirriscos celebrado entre as partes (apólice MR13962671), foi transferida para esta a responsabilidade pela cobertura dos riscos inerentes ao referido imóvel, fruto de incêndios, inundações e tempestades, nos moldes constantes das condições gerais e especiais de fls. 22 a 34, que aqui se dão por integralmente reproduzidas.
3 - A 21/22 de Outubro de 2012, ocorreu um temporal na Região Autónoma da Madeira que atingiu com particular violência a zona de Machico, onde fica situado o prédio dos autores, marcado por ventos fortes, chuvas intensas e contínuas, ao longo de um dia e de uma noite.
4 - Actualmente, a casa dos autores apresenta os danos descritos no artigo 10.º da petição inicial, que se têm vindo a agravar ao longo do tempo.
5 - A reparação destes danos, actualmente, é de 6.680,00 €(seis mil, seiscentos e oitenta Euros).
6 - A ré reconheceu que o vento e chuva que se fizeram sentir na casa segurada provocaram directa e necessariamente os danos descritos a fls. 36 em que figura valor diverso de € 0,00 na coluna do apurado.
7 - A reparação desses danos foi orçada em €1.172,28 (mil, cento e setenta e dois Euros e vinte e oito cêntimos).
8 - A ré entregou aos autores, por conta da reparação dos danos a que se alude em 6) e 7), o montante de €1.047,58 (mil, quarenta e sete Euros e cinquenta e oito cêntimos).
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B) E vem dado como não provado:
«(…) outros factos alegados pelas partes com interesse para a decisão da causa, designadamente os seguintes:
a) as fortes rajadas de vento e a muita chuva que caiu provocaram directa e necessariamente outros danos para além daqueles que a ré reconheceu estarem cobertos pela apólice, designadamente os descritos a fls. 36 em que figura o valor de €0,00 na coluna do apurado;
b) os danos a que se alude no artigo 10.º da petição inicial, para além dos reconhecidos pela ré como estando cobertos pela apólice na mencionada coluna a que se alude em a), sejam consequência directa e necessária das fortes rajadas de vento e a muita chuva que caiu a 21/22 de Outubro de 2012 e que se fizeram sentir na casa.».
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C) Da alegada nulidade da sentença.
Sustentam os apelantes que a sentença é nula nos termos do art. 615º nº 1 al c) do Código de Processo Civil porque em face dos factos dados como provados e que resultaram da prova existente nos autos se impunha a condenação da apelada.
A citada norma determina que a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão. Este vício não se confunde com o erro de julgamento.
O que os apelantes invocam é erro de julgamento, o qual, a existir, importará a alteração da sentença.
Improcede a arguição de nulidade.
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D) Se deveria a 1ª instância ter em conta factos instrumentais, concretizadores ou complementares dos que foram alegados na petição inicial, por respeito ao disposto no art. 5º nº 2 al a e b) desse Código.
Sustentam os apelantes no corpo da alegação, designadamente:
«- Assim, demonstrado ficou que a 21/22 de Outubro de 2012 ocorreu um temporal na Região Autónoma da Madeira que atingiu com particular violência a zona de Machico, onde fica situado o prédios dos autores, marcado por ventos fortes, chuvas intensas e contínuas, ao longo de um dia e de uma noite, que provocou danos na casa dos autores, ora apelantes;
- que actualmente, a casa dos autores apresenta os danos descritos no artigo 10º da petição inicial, que se têm vindo a agravar ao longo do tempo, cuja reparação importa actualmente em € 6.680;
- que a ré reconheceu que o vento e chuva que se fizeram sentir na casa segurada provocaram directa e necessariamente os danos descritos a fls. 36 em que figura valor diverso de € 0,00;
- que os danos alegados pelos autores não resultaram directamente das fortes rajadas de vento e da muita chuva que caiu, mas do deslocamento do solo de fundação por força da presença de saturação de água, deslocamento de terras esse que provocou fissuras/rachadelas nas paredes da casa, permitindo a entrada das águas.
(…)
Do relatório pericial, considerado pela sentença impugnada como a única prova imparcial, objectiva, sem tomar a posição de qualquer uma das partes, resulta de forma límpida que, ao contrário do pugnado pela ré na contestação, os danos existentes na casa dos apelantes não são fruto do desgaste dos materiais de construção, nem de falta de manutenção ou conservação, mas de uma ocorrência pontual, consequência do deslizamento do solo devido ao excesso de nível freático e pressão hidroestática do solo, devido a fortes precipitações.
Ou seja, devido à pressão das águas das chuvas intensas e persistentes descritas na petição inicial, o solo onde assenta a casa dos autores cedeu, abrindo grandes fissuras nas suas paredes, pelas quais as águas entraram, provocando os demais danos descritos e comprovados.
Muito embora na petição inicial os autores não tenham precisado que a acumulação e a pressão das águas fez deslizar o solo, e que isso, por sua vez, fez abrir fissuras nas paredes, descreveram objectivamente o sinistro, deixando claro que foi aquela tempestade, e nomeadamente a pressão das águas, que provocou os danos. V. art. 9º da petição inicial, já transcrito e que aqui de novo parcialmente se reproduz: “… a pressão e a entrada das +aguas provocaram” (…) “levantamento dos pavimentos e dos rodapés e fissuras generalizadas na lage, nos tetos e nas paredes”.
Os autores não têm conhecimentos de construção civil nem de engenharia que lhes permitam descrever com minúcia técnica as causas dos estragos, mas explicitaram que os mesmos foram desencadeados por aquela tempestade, da qual - veio a apurar-se - resultou o deslizamento do solo, as fissuras nas paredes e os demais danos descritos. E tanto pe bastante para sustentar a sua pretensão, mais não lhes sendo exigível, pois que os factos articulados são aptos a dar cumprimento ao princípio da substanciação acolhido pelo nosso direito adjectivo. (…)
Os autores, ora apelantes, alegaram os factos que estiveram na origem dos danos, e se da instrução da causa outros resultaram que lhes são instrumentais, os vieram concretizar ou complementar, não poderá o tribunal deixar de os ter em conta. É que, uma coisa seria os autores terem alegado, como fizeram que os danos foram provocados pelos fortes ventos, chuvas intensas e persistentes, pressão das águas e entrada destas no imóvel, e ter-se provado, como sustentou a ré, que os danos foram fruto do desgaste dos materiais, da falta de manutenção e de conservação do prédio; outra, bem diversa, é ter-se demonstrado que os danos resultaram efectivamente das abundantes águas pluviais, mas porque a pressão exercida por estas fez deslocar o solo e consequentemente abrir as fissuras.
Assim, contrariamente ao que entendeu a sentença impugnada, os factos articulados pelos autores são enquadráveis no previsto no artigo 6º, pontos 2 e 3 do contrato de seguro, pois que o deslizamento das terras provocou as fissuras no imóv4el que deram entrada às águas resultou da tempestade. O relatório pericial, não posto em causa pela ré, não deixa margem para dúvidas que o solo onde assenta a casa dos autores, ora apelantes, não deslizou por acaso, mas devido à pressão das águas - facto articulado na petição inicial.
Ainda que de outro modo se entenda, tendo ficado demonstrado que a presença de grande quantidade de águas pluviais, resultantes da queda de chuva intensa e continuada provocou o deslizamento das terras, sempre a ré estará obrigada a indemnizar os apelantes dos danos comprovados na habitação destes, por força do constante dos artigos 3º e ponto 5 do artigo 6º do contrato de seguro (…)».
Portanto, não tem razão a apelada ao dizer, na contra-alegação, que os apelantes só impugnam a sentença ao nível da decisão sobre a matéria de direito e não colocam em crise a decisão sobre a matéria de facto.
Vejamos então se estão verificados os pressupostos legais para serem dados como provados os factos que os apelantes pretendem sejam considerados.
Resulta do art. 552º nº 1 al. d) do Código de Processo Civil que na petição inicial deve o autor expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir.
E o nº 2 do art. 608º desse Código prevê: «O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.».
Por sua vez, o art. 5º determina:
«1. Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas.
2. Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:
a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;
b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar;
c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.
(…)».
O art. 264º do anterior Código de Processo Civil dispunha:
«1. Às partes cabe alegar os factos que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções.
2. O juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes, sem prejuízo do disposto nos artigos 514º e 665º e da consideração, mesmo oficiosa, dos factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa.
3 - Serão ainda considerados na decisão os factos essenciais à procedência das pretensões formuladas ou das excepções deduzidas que sejam complemento ou concretização de outros que as partes hajam oportunamente alegado e resultem da instrução e discussão da causa, desde que a parte interessada manifeste vontade de deles se aproveitar e à parte contrária tenha sido facultado o exercício do contraditório.».
Portanto, o vigente Código de Processo Civil não impõe que a parte interessada manifeste vontade de se aproveitar desses factos essenciais que resultam da instrução e discussão da causa. O que se exige é que, em obediência ao princípio do contraditório, as partes tenham tido oportunidade de se pronunciar sobre eles.
Em anotação ao art. 264º do anterior CPC escreveram José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto:
«5. De acordo com o nº 3, deverão ser ainda concretizados na decisão os factos principais que, completando ou concretizando os alegados pelas partes, se tornem patentes na instrução da causa. Trata-se de umam disposição profundamente inovatória.
(…)
Esta breve resenha dos antecedentes do preceito actual (…) não deixa lugar a dúvidas quanto, por um lado, ao carácter complementar (duma causa de pedir ou de uma excepção) que o facto novo deve revestir e, por outro, à coincidência entre o âmbito de previsão do preceito e o dos art. 508-3 508-A-1-c: trata-se sempre de casos em que a causa de pedir ou excepção está individualizada, mediante alegação fáctica para o efeito (diverso é o caso de ineptidão da petição inicial por falta total de factos que integrem a causa de pedir: art. 193-2-a), mas não completa, mediante a alegação de todos os factos necessários à integração da precisão normativa. O que o nº 3 permite é que, ainda na fase da instrução ou na da discussão de facto da causa, a parte a quem o facto em causa aproveita alegue, a convite do juiz ou não, os factos complementares que a prova produzida tenha patenteado, com consequente aditamento da base probatória e possibilidade de resposta e contraprova da parte contrária. (…)» (in Código de Processo Civil anotado, vol. 1º, 2ª ed, pág. 508/509).
Rui Pinto, analisando o art. 5º do CPC vigente, escreveu:
«2. Conceito, objecto e função da causa de pedir: conceito amplo de causa de pedir (…)
(…) nenhum facto necessário à procedência o pedido pode estar fora da causa de pedir. (…)
(…)
II. Um conceito de causa de pedir tão abrangente é o mais adequado para efeitos de cumprir um ónus de sustentação fática suficiente do impulso processual.
Essa função exprime-se no duplo ónus processual de alegação (substanciação) e de prova que autor e réu têm de cumprir. Assim, às partes cabe alegar os factos essências que constituem a causa de pedir (…) - ónus de alegação.
Portanto, o objecto do ónus da alegação coincide com o objecto do ónus da prova: nenhum facto que careça de prova pode estar fora da causa de pedir, em sentido amplo, ou, dito de outro modo, do ónus da alegação.
III. É, por isso, este conceito amplo que é o utilizado no nº 1, abarcando tanto os factos que qualificaremos como factos principais, como os complementares e excluindo os factos instrumentais.
(…)
6. Os factos instrumentais. I. Os factos instrumentais não integram a causa de pedir: são factos indiciários ou presuntivos dos factos integrantes da causa de pedir.
(…)
7. Objeto do ónus da alegação das partes: factos essenciais, enquanto factos principais e complementares.  (…)
(…)
II. O legislador parece ter querido, assim, restringir o âmbito da causa de pedir àquilo que designa por factos essenciais.
Ora, visto que sem os factos complementares não se obtém procedência do pedido (v.g. a exigibilidade nas causas de pedir complexas), então apenas duas vias de interpretação são possíveis quando ao significado de factos “essenciais”: a) a de que os factos essenciais são sinónimo de factos principais, apelando-se ao uso do atrás referido conceito restrito de causa de pedir; b) a de que a expressão “factos essenciais”, é usada em sentido amplo ou impróprio abrangendo tanto os factos principais como os complementares, porquanto essenciais à procedência da pretensão que sustentam, mantendo-se um conceito amplo de causa de pedir.
(…)
III. Assim sendo, a melhor interpretação ainda é a segunda: os factos acessórios (ou intrinsecamente complementares) ainda estão no objeto do ónus da alegação do nº 1 (e, coerentemente, do ónus da prova) sem prejuízo de surgirem ao longo da instrução da causa. Fazendo uso da anterior expressão da lei estes seriam “factos essenciais à procedência das pretensões formuladas ou das excepções deduzidas”. Também eles são factos essenciais, por isso.
(…)
8. Poderes de cognição do tribunal
(…)
III. (…)
(…) os factos complementares da alínea b) tanto podem ser intrinsecamente complementares (complementares ou acessórios), como apenas processualmente complementares (principais, mas tardiamente relevados). Tal mostra não ser exigível ao autor que conheça ao tempo da petição inicial todos os factos, sejam factos principais ou factos acessórios.
No entanto, dada a exigência da apresentação inicial de causa de pedir (cfr. artigo 186º nº 1 alínea b) e artigo 552º nº 1 alínea d)) os factos processualmente complementares tenderão a ser factos intrinsecamente, complementares ou auxiliares.
(…)» (in Notas ao Código de Processo Civil, pág. 19 a 25).
Também sobre este normativo ponderaram Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro:
«2. Poderes de cognição do tribunal (nº 2). (…)
As partes dispõem da aquisição pelo processo dos “factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas” - com as importantes ressalvas faz als. b) e c) deste número -, mas não, nem mesmo quanto a estes, da sua admissão na base factual a considerar pelo tribunal - cfr. o art. 612º. Também quanto aos factos instrumentais, as partes dispõe positivamente da sua aquisição pelo processo, mas não negativamente - isto é, a aquisição não está limitada aos factos alegados (l. a) do nº 2 -, não estando, igualmente, na sua disponibilidade a admissão daqueles (art. 574º, nº 2, segunda parte).
2.1. Factos essenciais e instrumentais (nº 2 al. a)). Factos essenciais são os previstos nas fatispécies das normas das quais pode emergir o efeito prático-jurídico pretendido pelo autor (…) sendo imprescindíveis para a procedência da acção (…). Os factos instrumentais, não preenchendo a fatispécie de qualquer norma de direito substantivo que confira um direito ou tutele o interesse das partes, permitem, mediante presunção, chegar à demonstração de factos principais - tendo, pois, uma função probatória.
2.2. Factos essenciais complementares ou concretizadores (nº 2 al. b)). No novo código, desaparece o qualificativo essencial, referido aos factos complementares ou concretizadores daqueles que as partes hajam alegado. Do confronto entre o nº 1 e a al. a) do nº 2, bem como da consideração da própria razão da existência da norma contida nesta alínea b), resulta que estes factos continuam a ser de qualificar como essenciais.
(...)
2.2.3. Factos complementares ou concretizadores (conclusão). Um facto só pode ser qualificado como complementar ou como concretizador quando se possa afirmar que pertence à relação jurídica material. Não tendo sido alegados factos essenciais idóneos a permitir a identificação desta relação e do objecto do litígio (art. 596º, nº 1), não temos uma base de referência que permita a qualificação dos factos não alegados; mas também a questão da sua qualificação não se colocará, pois a demanda terá naufragado nas suas fases iniciais por falta de indicação da causa de pedir ou por não ter sido acolhido o convite ao aperfeiçoamento do articulado (arts. 186º, nº 3, e 190º, nº 4).
A existência de uma relação jurídica material devidamente caracterizada por (outros) factos essenciais alegados é chão desta discussão. Neste pressuposto, pode concluir-se que são complementares ou concretizadores os factos essenciais não alegados pertencentes à relação jurídica material - integrando, pois, a causa de pedir deficientemente narrada na petição inicial ou na reconvenção.
Estes factos podem ser adquiridos pelo processo por duas vias (ambas assentes na atividade das partes): por meio do aperfeiçoamento do articulado (nº 1 e art. 590º, nº 4); em resultado da instrução da causa (nº 2, al. b); decorrendo esta, essencialmente, mas não exclusivamente - estamos perante uma restrição ao princípio do dispositivo, da iniciativa das partes.
(…)» (in Primeiras Notas ao Código de Processo Civil Os Artigos da Reforma, pág. 35 a 38).
Na petição inicial vem alegado, nomeadamente:
- «Por força do contrato de seguro multirriscos celebrado entre AA e R (apólice …) foi transferida para esta a responsabilidade pela cobertura dos riscos inerentes ao referido imóvel fruto de incêndios, inundações e tempestades, entre outros.» (4º);
- «A 22/10/2012 ocorreu um temporal na Região Autónoma da Madeira que atingiu com particular violência a zona de Machico, onde fica situado o prédio dos AA, marcado por ventos fortes, chuvas intensas contínuas ao longo de um dia e uma noite.» (6º);
- «Com as fortes rajadas de vento e a muita chuva que caiu, a cobertura da casa de habitação dos AA. sofreu danos, casa e área circundante ficaram completamente inundadas, tendo a água escorrido pelos tetos e paredes e corrido abundantemente pelo chão.» (7º);
- «Não obstante imediata intervenção dos AA, tentando impedir a entrada das águas por todos os meios ao seu alcance e procedendo a intensos trabalhos de limpeza, não foi possível evitar a ocorrência de inúmeros danos na habitação.» (8º);
- «A persistência dos fortes ventos, a pressão e a entrada das águas provocaram a deslocação de telhas da casa, a destruição da pintura de tetos e paredes, o levantamento de pavimentos e dos rodapés e fissuras generalizadas na lage, nos tetos e paredes.» (9º);
- «Os danos ocorridos na casa de habitação dos AA e seu logradouro resultaram de forma direta e imediata do sinistro, coberto pelo contrato de seguro multirriscos celebrado entre AA e RR.» (14º);
- «Até à ocorrência deste sinistro, a casa dos AA apresentava-se bem conservada, sem fissuras significativas nem humidades.» (15º)
Na contestação, vem alegado, nomeadamente:
«Os danos alegados na douta petição inicial não são consequência de uma intempérie que terá ocorrido cerca de 6 meses antes, ou seja, em Outubro/2012 ou Novembro/2012.» (6º);
- «E não se verificam os factos constitutivos da cobertura de tempestades ou inundações, conforme previsto nas condições da apólice que ao adiante se junta e aqui se dá por integralmente reproduzida. (…)» (7º);
- «A esmagadora maioria dos “danos” na habitação dos aqui Autores são consequência de falta de manutenção e conservação do imóvel (um contrato de seguro não tem por objecto a manutenção e/ou conservação de imóveis) (…)» (8º);
- «A habitação em causa tem fissuras generalizadas nas paredes, nas fachadas exteriores, no teto, na cobertura, na cumeeira, entre telhas e o mureto, no espigão da cobertura, no revestimento do espigão, nos cerâmicos, nos azulejos.» (9º);
- «E apresenta o normal desgaste dos materiais usados na construção.» (10º);
- «As infiltrações são consequência das fissuras existentes na habitação e que os Autores devem reparar no âmbito da normal manutenção de uma habitação.». (11º).
Em 13/01/2017 foi proferido despacho ordenando a notificação da ré para se pronunciar sobre a admissibilidade e o objecto da perícia requerida pelos autores, tendo a ré declarado não se opor e requerendo que a perícia incidisse também sobre matéria alegada na contestação.
Foi realizada perícia singular por perita nomeada pelo tribunal que apresentou o relatório de fls. 74 a 85, onde se lê, além do mais:
«(…)
Observou-se que o muro de suporte do logradouro da moradia encontra-se com graves Trincas e Aberturas, que reflecte que a moradia sofreu deslocamento de massa, conforme pode-se observar nas seguintes imagens:
(…)
Estas patologias são causadas pela movimentação de materiais/solo derivadas da saturação dos solos que provocam o deslocamento de fundação, ou pode ser consequência também da ocorrência de vibrações na área envolvente.
Uma vez que não se verifica na zona envolvente trabalhos de escavações que tenha provocado vibrações no solo, pela morfologia, orientação diagonal e dimensão das fissuras e trincas verificadas, tudo indica que estas patologias visíveis e descritas anteriormente, tenham surgido com a possível ocorrência de elevados níveis de lençóis freáticos no solo ou bolsas de água, derivados das chuvas intensas que tenha ocorrido. A gravidade destas patologias são resultado de movimentação de solo e deslizamento de massa que ocorreu nas fundações da moradia.
Os solos de fundações na área em estudo são dominados por dv - depósitos de vertentes, conforme descrito na carta geologia. Estes solos não são coesos e possui uma fraca resistência e na presença de muita água (saturação) ocorre deslizamentos.
Para a reparação destas patologias será necessário executar os seguintes trabalhos:
. Selagem e tratamento de todas as fissuras existentes no exterior e interior da moradia;
. Aplicar uma camada de impermeabilizante na parede exterior, nas paredes que possuem as fissuras;
. Tratamento das humidades nas paredes exteriores e interiores;
. Pintura nas paredes interiores e exteriores;
. Remoção dos mosaicos que possuem fissuras; e colocação de novos;~
. Remoção de parte do pavimento flutuante de madeira (zona localizada), tratamento das humidades e colocação de novo revestimento do pavimento incluindo o rodapé;
. Realizar alguns remates na cobertura da cerâmica;
. Regularização do revestimento exterior e pintura exterior e interior;
A Estimativa de Custo para a reparação dos trabalhos e patologias verificadas e reportadas neste relatório é de 6.680,00 €, conforme descrição em anexo (tabela).
Questões/Factos do Réu
Questões de facto dos artigos 6º, 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 14º da contestação da Ré.

Os danos alegados na douta petição foram na sua maioria consequência da movimentação do solo da fundação, que parte das patologias verificadas poderá ter resultado da intempérie ocorrida em Novembro de 2012.

Verifica-se que pequenas patologias e algumas microfissuras não são resultado da intempérie, trata-se da degradação natural dos materiais e da própria qualidade de construção, mas a maioria das patologias verificadas e descritas anteriormente são resultado de alguma ocorrência pontual que ocorreu na zona que resultou na (movimentação do solo) e não da falta de manutenção e conservação. Exemplo: das fissuras de grande expressão só ocorrem com a com a ocorrência de deslocamentos e assentamentos no solo.

Verifica-se fissuras e aberturas na moradia, estas são consequência do deslizamento do solo, derivado ao excesso de nível freático e pressão hidroestática do solo, derivados às fortes e sucessivas precipitações. Pois o solo de fundação na zona em estudo comporta-se muito mal na presença de níveis freáticos elevados.
10º
A maioria das patologias verificadas e as mais graves, resultara, de uma ocorrência pontual, conforme já descrito, e que como não foi tratado de imediato tem tendência a agravar-se cada vez mais, e principalmente no período de inverno.
14º
As patologias verificadas na sua maioria resultaram de uma ocorrência pontual descrita anteriormente, e não da falta de manutenção e conservação, pois as fissuras e aberturas verificadas com as dimensões e comprimento que possuem não são consequência de simples degradação de materiais, são consequência de assentamentos e ocorrência de deslocamentos do solo de fundação e como não foi tratado de imediato tem tendência a agravar-se com o passar do tempo.

Nota: O solo de fundação nesta zona em estudo conforme já referido anteriormente é dominado por depósitos de vertente e material piroclástico, possui fraca resistência. Na presença de nível freático elevado, ocorre movimento de massa, o solo aumenta de volume (solos expansivos) e estes comportamentos oscilantes resultam em deslizamentos, originando assim movimentos e assentamentos na estrutura da moradia o que dá origem às fissuras na construção e outras patologias.».
Não foram formuladas reclamações contra o relatório pericial nem foi requerida segunda perícia, mas a ré requereu a comparência da perita na audiência final para prestar esclarecimentos, o que foi indeferido porque o tribunal considerou extemporâneo esse requerimento.
Esse despacho transitou em julgado, o que significa que a ré não entendeu ter sido violado o seu direito ao contraditório consagrado nos art. 485º, 488º e 486º do CPC relativamente à prova pericial produzida.
Na sentença recorrida exarou-se:
«IV - Fundamentação de facto
(…)
Quanto à factualidade considerada como não provada a mesma resultou da total ausência de prova credível que a demonstrasse.
Isto é, nenhum adas testemunhas mostrou nessa matéria dispor de conhecimentos técnicos e ter procedido a uma avaliação aturada nessa matéria. A única prova imparcial, objectiva, sem tomar a posição de qualquer uma das partes, é a constante do mencionado relatório pericial.
Ora, neste é claro que se chegou à conclusão que os danos alegados pelos autores e que a ré não reconhece como estando cobertos pela apólice resultaram do deslocamento do solo de fundação por parte da presença de saturação de água.
Logo, não resultaram directamente das fortes rajadas de vento e da muita chuva que caiu, mas sim desse deslocamento de terras.
V- Fundamentação de Direito
(…) a causa  de pedir invocada pelos autores para alicerçar o seu pedido consistiu na acção do vento e da chuva que se fez sentir no bem segurado.
(…) os restantes danos descritos pelos autores não se logrou provar que resultassem da força desses elementos no bem segurado, mas antes, que foram o fruto directo e necessário de deslocação do solo.
Ora, compulsadas as condições gerais do seguro contratado resulta que os autores invocaram como causa de pedir a verificação de factos previstos no artigo 6º, pontos 2 e 3.
Todavia, quando muito, esses danos encontrar-se-iam englobados no artigo 6º, pontos 2 e 3.
No nosso direito adjectivo vigora o princípio do dispositivo.
(…)
Na verdade, somente assim é facultado à parte contrária, neste caso à ré, a possibilidade de se pronunciar sobre a factualidade em que o pedido se encontra alicerçado.
Daí que não caiba ao Tribunal considerar como provados outros factos que não se encontrem alegados pelas partes por não terem sido objecto de contraditório pelas partes.
Não cabendo pois, apurar-se se os danos descritos pelos autores se reconduzem ao citado artigo 6º, ponto 5 das condições gerais do contrato de seguro, sob pena de se extravasa o princípio do dispositivo e se violar a lei - nomeadamente no artigo 5º do Código de Processo Civil.
Em suma, não resultou provada a causa de pedir invocada pelos autores - que os danos ainda não ressarcidos pela ré resultem da acção do vento e da chuva na sua residência, pois não se confunde tal acção directamente na própria causa com a que se fez sentir no solo ou com aluimento que teve origem na água da chuva.».
Flui desta transcrição, que a 1ª instância integrou na fundamentação de Direito considerações sobre a prova pericial, para justificar a não inclusão na matéria de facto dada como provada, factos que afinal considerou estarem provados, mas que entendeu não poderem ser tomados em conta por extravasarem a causa de pedir e para não ser violado o princípio do contraditório.
Também nesse sentido diz-se na contra-alegação:
- «A matéria relacionada com o eventual “assentamento do terreno e da estrutura da moradia”, “por causa do nível freático” (por causa e em consequência da acumulação de água no solo) não integra a causa de pedir dos presentes autos, sendo que se tratará de matéria em relação à qual a Ré/Recorrida não exerceu o contraditório e não teve oportunidade de requerer prova/contraprova»;
- «Trata-se de uma questão nova (assentamentos de terreno e da estrutura da moradia e deslocamentos do solo, por causa do nível freático) que não integra a causa de pedir e que não consta da matéria de facto provada.»;
- «Não obstante tal matéria (i) não integrar a causa de pedir (ii), não ter sido objecto de contraditório nos presentes autos e (iii) não integrar a matéria de facto provada, importa salientar que não ocorreu qualquer fenómeno geológico (aluimento, deslizamentos, derrocadas e afundimentos) garantido pela apólice de seguro - art. 6º nº 5 das Condições Gerais».».
Na verdade, decorre do relatório pericial - cuja credibilidade não é questionada pela apelada - que na sua maioria, as patologias dadas como provadas pela 1ª instância (ponto 5 da fundamentação de facto) são consequência da movimentação/deslizamento do solo de fundação causado pelo excesso de nível freático e pressão hidroestática do solo, devido às fortes e sucessivas chuvadas. De notar que a perita explica que o solo em causa se comporta muito mal na presença de níveis freáticos elevados porque é dominado por depósitos de vertente e material piroclástico, possuindo por isso fraca resistência, e daí que, na presença de nível freático elevado, ocorra movimento de massa, o solo aumenta de volume (solos expansivos), e estes comportamentos oscilantes resultam em deslizamentos, originando assim movimentos e assentamentos na estrutura da moradia, o que dá origem às fissuras na construção e outras patologias.
Ora, o facto de as patologias serem, na maioria, resultado da movimentação do solo de fundação em consequência do excesso de nível freático e pressão hidroestática devido às chuvas, é um facto novo, sim, mas não extravasa a causa de pedir, pois complementa e concretiza os factos alegados na petição inicial, pois nesta foram invocou-se as intensas chuvas ao longo de um dia de uma noite e a pressão da água.
Portanto, as graves patologias não são consequência da falta de conservação/manutenção como alegado na contestação, mas sim, consequência da movimentação do solo de fundação devido ao seu comportamento sob a influência das fortes chuvadas mencionadas no ponto 3 dos factos dados como provados pela 1ª instância.
E, como já consignamos, a consideração dessa factualidade não viola o princípio do contraditório, porque a apelada foi notificada do relatório pericial que veio destruir a sua tese de que as patologias são fruto da incúria dos apelantes traduzida na falta de conservação e manutenção do prédio. Com efeito, poderia a apelada ter requerido segunda perícia e/ou, tempestivamente, requerer a comparência da perita na audiência final para prestar esclarecimentos ante tão flagrante divergência com a tese defendida na contestação.
De salientar ainda, que é facto notório que as seguradoras recorrem ao serviço de peritos que averiguam as causas dos sinistros, o que no caso concreto sucedeu, na sequência da participação escrita dos apelantes datada de 25/02/2013 (do. 3 de fls. 6 junto com a petição inicial), como resulta da carta da apelante de 21/08/2015 (doc. 6 de fls. 9 junto com a p.i.) e documento (doc. 4 de fls. 35 a 40 junto com a contestação).
Assim, na referida carta, enviada mais de 2 anos após a participação do sinistro, comunicou a apelada:
«Reportamo-nos à participação de sinistro que V. Exa oportunamente nos formulou, para nos dar conhecimento de que finalizámos a instrução do processo em referência.
Após a devida apreciação ao teor do relatório de peritagem constatámos que, nas diligências efectuadas pelo gabinete de peritagem nomeado para o processo foi verificada a existência de várias patologias no imóvel, decorrentes do desgaste dos materiais usados na construção da habitação (fissuras generalizadas nas fachadas exteriores, cobertura e cerâmicos).
Ora, os danos decorrentes dos vícios supra indicados, respeitam a obras de manutenção que não se encontra no âmbito da presente Apólice de Seguro.
Assim e, face ao tempo decorrido desde a ocorrência reclamada, foram apurados prejuízos indemnizáveis, a título excepcional, no valor de 1.172,28 € (conforme quadro de apuramento de prejuízos anexo), pelo que após dedução da franquia contratual de 124,70 € foi obtida a indemnização no valor de 1.047,58 € que, entretanto, foi liquidada por transferência bancária.».
Quanto ao «Relatório de Peritagem» junto com a contestação, lê-se, designadamente:
«4 - Características da Ocorrência
Origem | Causa: Entrada de águas em paredes e tectos nos quartos de dormir, em consequência da intempérie de outubro de 2012, no entanto, a intempérie foi a Nov-2013 (como noticiado nos meios de comunicação social (…)
Factos apurados: Segundo o segurado, Sr Miguel, no ano de 2012, em consequência da intempérie de Outubro no mesmo ano, efectuou uma participação ao seguro, mas até à data nunca foi contactado. Com o decorrer dos anos a situação agravou-se e este mês efectuou uma reclamação no banco relacionado com o mesmo problema, mostrando o documento entregue em 2013. As paredes e tectos de ambos os quartos apresentam-se com humidades e todos os anos desde 2013 foram limpos.
No local visualizamos fissuras nas paredes do quarto, que segundo o segurado deveu-se à intempérie de Outubro de 2013 e devido a essas fissuras também ocorrer infiltrações de água.
Temos conhecimento que a cidade de Machico no ano de 2013, nomeadamente a 29-11-2013, sofreu uma intempérie e que foi amplamente noticiada, situação que ocorreu posterior à data da participação (17-04-2013), no entanto também a 06-11-2012 ocorreu forte chuva, situação também noticiada e já anterior à data da participação do seguro.
(…)
Confirmação de Vistoria
(…)
Origem | Causa: entrada de águas em paredes e tectos nos quartos de dormir, em consequência da intempérie de outubro de 2012.
(…)».
Diversa é a questão de saber se estas causas das patologias são cobertas pelo contrato de seguro.
Por quanto se disse, e sendo certo que a força probatória das respostas dos peritos é fixada livremente pelo tribunal segundo a sua prudente convicção (art. 389º do Código Civil e art. 489º e 607º nº 5 do Código de Processo Civil) procede a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, aditando-se aos factos provados:
«5º A - Os danos mencionados em 4º e 5º são consequência da movimentação/deslizamento do solo de fundação devido ao excesso de nível freático e pressão hidroestática resultantes das chuvas referidas em 3º, em virtude de esse solo ser dominado por depósitos de vertente e material piroclástico, possuindo por isso fraca resistência, e daí que, na presença de nível freático elevado, ocorra movimento de massa, o solo aumenta de volume (solos expansivos), e estes comportamentos oscilantes resultam em deslizamentos, originando assim movimentos e assentamentos na estrutura da moradia.».
*
C) O Direito
A pretensão dos apelantes fundamenta-se em responsabilidade contratual decorrente da celebração de um contrato de seguro multirriscos.
Os contratos devem ser pontualmente cumpridos (art. 406º do Código Civil).
Nas «Condições Particulares» do contrato de seguro juntas com a contestação (fls. 20 e 21 v) consta:
«Cobertura Base
Riscos Cobertos                                                                         Capital
(…)
Tempestades                                                                    Capital seguro
Inundações                                                                       Capital seguro
Demolição e remoção e escombros                   5% do valor do edifício
Aluimentos de terras                                                    Capital seguro».
Nas «Condições Gerais» juntas com a contestação (fls. 22 a 31) consta:
«(…)
Artigo 2º
Âmbito e objecto do contrato
1. O presente contrato, nos termos das respectivas coberturas e dentro dos limites estabelecidos nas Condições Particulares, regula as Condições através das quais a Seguradora pagará, depois de deduzidas as franquias estabelecidas, as quantias indemnizatórias devidas em caso de sinistro, relativas a:
a) Danos directamente causados aos bens móveis ou imóveis designados nas Condições Particulares e destinados exclusivamente à habitação;
(…)
II Enumeração das Coberturas
Artigo 3º
Cobertura base
A Cobertura Base do presente contrato garante, nos termos da definição dada no artigo anterior, o ressarcimento dos prejuízos em consequência directa de:
(…)
- Tempestades;
- Inundações;
- Demolição e Remoção de Escombros;
- Aluimento de terras;
(…).
III Âmbito e Definição das Coberturas e Exclusões
2.
Tempestades
a) Tufões, ciclones, tornados e toda a acção directa de ventos fortes ou choques de objectos (…)
b) Alagamento pela queda de chuva, neve em granizo, desde que estes agentes atmosféricos penetrem no interior do edifício objecto do seguro em consequência de danos causados pelos riscos mencionados em a), na condição de que estes danos se verifiquem nas 48 horas seguintes ao momento da destruição parcial do edifício seguro. (…)
Exclusões
Consideram-se excluídos desta cobertura quaisquer perdas ou danos causados:
(…)
c) Em construções de reconhecida fragilidade tais como de madeira ou placas de plástico e congéneres, assim como naqueles em que os materiais de construção ditos resistentes não predominem em pelo menos 50% (…) e ainda, quando os edifícios se encontrem em estado de reconhecida degradação no momento da ocorrência;
d) (…)
3.
Inundações
- Tromba de água ou queda de chuvas torrenciais- precipitação atmosférica de intensidade superior a 10 milímetros em 10 minutos, no pluviómetro;
(…)
5.
Aluimento de Terras
Nos termos desta cláusula ficam cobertos pelo presente contrato os danos sofridos pelos bens seguros em consequência dos seguintes fenómenos geológicos: aluimentos, deslizamentos, derrocadas e afundimento de terrenos.
Exclusões
Consideram-se excluídos desta cobertura os danos e perdas que;
a) Resultem de colapso total ou parcial das estruturas seguras, não relacionados com os riscos geológicos garantidos;
b) Verificados em edifícios ou outros bens seguros, que estejam assentes sobre fundações que contrariem as normas técnicas ou as boas regras de engenharia de execução das mesmas, em função das características dos terrenos e do tipo de construção ou bens envolvidos nesta cobertura;
c) Resultantes de deficiência de construção, de projecto, de qualidade de terrenos ou outras características do risco, que fossem ou devessem ser do conhecimento do Segurado, assim como danos em bens seguros que estejam sujeitos a acção contínua da erosão e acção das águas, salvo se o Segurado fizer prova de que os danos não têm qualquer relação com aqueles fenómenos;
d) (…);
e) Verificados nos bens seguros se, no momento da ocorrência do evento, o edifício já se encontrava danificado, desmoronado ou deslocados das suas fundações, paredes, tectos, algerozes ou telhados.
(…)
Artigo 29º
Ónus da prova
Impende sobre o Segurado o ónus da prova da veracidade da reclamação (…).
(…)».
Na definição de aluimento de terras dada no contrato de seguro cabe a movimentação/deslizamento do solo de fundação da construção dos apelantes (Condições Particulares e art. 6º ponto 5 das Condições Gerais).
Importa então apreciar se ocorre causa de exclusão da cobertura, face à alínea c) da rubrica «Exclusões».
Está provado que o solo de fundação da construção dos apelantes é dominado por depósitos de vertente e material piroclástico, possuindo fraca resistência, pelo que na presença de nível freático elevado, ocorre movimento de massa, o solo aumenta de volume (solos expansivos), e estes comportamentos oscilantes resultam em deslizamentos, originando assentamentos na estrutura da moradia, o que dá origem a fissuras na construção.
Mas não está provado que tais características de risco do terreno eram conhecidas dos apelantes.
Também não decorre dos factos provados que tais características do terreno deviam ser do conhecimento dos apelantes.
Nem está provado que a movimentação/deslizamento do solo de fundação resultou de sujeição contínua à erosão e acção das águas.
Portanto, nenhuma causa de exclusão de cobertura da apólice se verifica.
Assim, sobre a apelada impende a obrigação de indemnizar os apelantes pela totalidade dos danos sofridos, sem prejuízo da franquia contratual prevista no art. 21º das Condições Gerais em conjugação com o Quadro I do Anexo, que é de 10%, num mínimo de 124,70 € - quantia esta que já foi deduzida relativamente aos danos que a apelada aceitou ressarcir - e não superior a 1.246,99 €.
Procede, pois, a apelação.
*
IV - Decisão
Pelo exposto, julga-se procedente a apelação e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida, condenando-se a apelada a pagar aos apelantes a quantia de 6.680 € à qual poderá deduzir o remanescente da franquia contratual, ou seja, 543,30 €.
Custas pela apelada.
Lisboa, 17 de Maio de 2018

Anabela Calafate

António Manuel Fernandes dos Santos       

Eduardo Petersen Silva