Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2104/09.5TBVFX-A.L1-7
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: DÍVIDA DE CÔNJUGES
DIVÓRCIO
INVENTÁRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/01/2010
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: A responsabilidade dos cônjuges perante terceiros não é afectada pelo divórcio, de modo que não existindo bens comuns a partilhar, responderão pelas dívidas os bens próprios de cada cônjuge e ainda os bens que cada um vier a adquirir posteriormente ao divórcio.
O divórcio pode ainda despoletar a invocação do direito de compensação de algum dos cônjuges cujos bens próprios tenham respondido por dívidas da responsabilidade de ambos.
Apesar da inexistência de bens comuns, o facto de existirem dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges basta para que se requeira a abertura de processo de inventário que possibilita a liquidação global das relações patrimoniais estabelecidas entre os cônjuges.
(Sumário do Relator - A.S.A.G.)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: I – V
depois do seu divórcio que foi declarado relativamente a

S

requereu processo de inventário.
No requerimento inicial declarou a inexistência de bens, referindo a existência de dívidas da responsabilidade de ambos os ex-cônjuges, o que confirmou nas declarações de cabeça de casal.

O requerimento de inventário foi indeferido com fundamento na falta de bens a partilhar e da inadequação do inventário apenas para partilhar dívidas.

O requerente apelou do despacho.

II - Elementos a ponderar:
- Por decisão judicial de 8-7-09 foi decretado o divórcio entre o requerente e a requerida que foram casados no regime de comunhão de adquiridos;
- O requerente foi designado cabeça de casal, tendo declarado que não existem bens comuns e que existem, contudo, cinco dívidas da responsabilidade de ambos os ex-cônjuges (ao M, B, C, T e P);
- Mais declarou que, em relação ao crédito de C, já amortizou a quantia de € 1.048,00 (referindo-se no doc. de fls. 24 que se encontra agendado o pagamento em prestações mensais de € 150,00) e que, em relação ao crédito de P, já foi descontado no seu subsídio de desemprego a quantia de € 720,90, encontrando-se pendente penhora sobre 1/6 do actual salário líquido no valor de € 92,92;
- O inventário foi indeferido com fundamento em que é seu pressuposto essencial a existência de bens a partilhar.

III - Decidindo:
1. Com o divórcio cessam as relações patrimoniais entre os cônjuges, nos termos do art. 1688º do CC, efeito que retroage, pelo menos, à data da instauração da acção (art. 1789º, nº 1).
Nos termos do art. 1689º do CC:
a) Com a referida cessação das relações patrimoniais cada um dos cônjuges recebe os seus bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo cada um deles o que dever a esse património;
b) Havendo passivo a liquidar, são pagas em primeiro lugar as dívidas comunicáveis até ao valor do património comum;
c) Os créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum e, se não existirem bens comuns, respondem os bens próprios do cônjuge devedor.
Por seu lado, prescreve o art. 1697º, nº 1, do CC, que quando por dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges tenham respondido bens de um só deles, este torna-se credor do outro pelo que haja satisfeito além do que lhe competia satisfazer, embora este crédito apenas seja exigível no momento da partilha dos bens do casal (sobre a matéria cfr. Cristina Araújo Dias, Do Regime da Responsabilidade por Dívidas dos Cônjuges, págs. 837 e segs.).
Estas normas regulam simplesmente as relações patrimoniais entre os cônjuges, em nada prejudicando as relações dos cônjuges perante terceiros, mantendo estes, apesar do divórcio, da partilha ou das compensações a que houver lugar, os mesmos direitos que antes detinham, podendo, de acordo com o regime das dívidas, responsabilizar ambos ou apenas algum deles, nos termos dos arts. 1691º e segs. do CC.

2. Se acaso as operações de partilha e liquidação do património comum não forem realizadas por contrato, qualquer dos cônjuges pode requerer a abertura de processo de inventário para o efeito, nos termos do art. 1404º, nº 1, do CPC.
Como é natural, o processo de inventário destina-se essencialmente a assegurar a distribuição dos resultados líquidos do património indiviso, para o que deverão ser ainda consideradas as dívidas perante terceiros.
Assim o revela o art. 1404º, nº 1, do CPC, que prevê o processo especial de inventário para “partilha de bens”, ou outras normas do processo para onde remete o nº 3, designadamente o art. 1340º, nº 3, quando se refere à relação de todos os bens que hão-de figurar no inventário, o art. 1345º, quando as dívidas são relacionadas em separado dos bens que integram o património comum e todas as normas dos arts. 1354º e segs. sobre a aprovação do passivo.
A existência desse activo parece também estar pressuposta na norma substantiva do art. 1697º, nº 1, do CC, que enuncia que a exigibilidade das compensações é diferida para o “momento da partilha dos bens”.
Todavia, importa compreender que as regras do processo de inventário para onde remete o art. 1404º do CPC se destinam primacialmente a regular a partilha de bens que integram um património hereditário. Uma vez que os herdeiros apenas respondem pelos encargos na medida dos bens inventariados (art. 2071º, nº 1, do CC), compreende-se que, inexistindo activo a partilhar, não haja lugar a inventário que, na realidade, daria resultados meramente platónicos.
Por isso mesmo Lopes Cardoso concluiu que “quando por falecimento de alguma pessoa não fiquem restando quaisquer bens” não há lugar a processo de inventário, devendo ser arquivado se porventura tiver sido requerido (Partilhas Judiciais, vol. I, págs. 119 e 120).

3. Todavia, o regime subsequente à extinção do património comum por força do divórcio não tem equivalência com a partilha de herança.
Tendo em conta a especificidade do estatuto patrimonial dos cônjuges que emerge da sociedade conjugal sob o regime de comunhão geral de bens ou de comunhão de adquiridos, a responsabilidade de cada um dos cônjuges perante terceiros não é afectada pelo divórcio. Ainda que não restem bens comuns a partilhar, responderão pelas dívidas os bens próprios de cada cônjuge que existirem na data do divórcio e ainda os bens que cada um vier a adquirir posteriormente.
Por outro lado, pode ocorrer a necessidade de serem efectuadas compensações, por forma a tutelar os interesses do cônjuge que tenha sido prejudicado por dívidas que eram da exclusiva responsabilidade do outro ou de que era co-responsável, maxime quando tenham sido executados bens próprios daquele.
Ainda que em relação às eventuais compensações Lopes Cardoso afirme (em divergência com a jurisprudência adiante enunciada) que os respectivos créditos não devem ser objecto de relacionação, sendo apenas considerados no momento da partilha para que sejam satisfeitos, nos termos do art. 1689º, nº 3, do CC (Partilhas Judiciais, vol. III, págs. 391 e 392), sempre ficam excluídas de tal afirmação as dívidas que, independentemente do património comum que pelas mesmas responde em primeiro lugar, sejam da responsabilidade de ambos os cônjuges que poderão ser chamados a responder pelas mesmas com os bens próprios actuais ou futuros.
Sendo diverso o circunstancialismo que rodeia a partilha da herança e a partilha dos activos e dos passivos patrimoniais dos cônjuges depois do seu divórcio, em lugar da aplicação directa das regras do processo de inventário, importa que sejam ponderadas as especificidades da relação conjugal, com os juízos e os ajustamentos procedimentais necessários a integrar uma realidade que não se circunscreve, como ocorre com a herança indivisa, à relacionação preferencial do activo patrimonial comum.
Sem embargo de a partilha dos activos constituir a razão que essencialmente justifica o recurso ao processo de inventário, através deste processo podem ainda regular-se, em termos definitivos, os efeitos patrimoniais do divórcio, ainda que não existam bens comuns a partilhar, desde que existam dívidas do casal ou compensações a efectuar entre eles.
É que, como se disse, em face dos terceiros credores, quando não existam bens comuns que responsam pelas dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges, respondem os bens próprios de quaisquer dos cônjuges (art. 1695º, nº 1, do CC). E em relação a eventuais compensações que devam ser efectuadas correspondentes a créditos de algum dos cônjuges sobre o outro, não havendo bens comuns, respondem os bens próprios do cônjuge devedor (art. 1689º, nº 3).

4. No caso concreto, foi declarado pelo cabeça-de-casal a inexistência de bens comuns. Desconhece-se se existem ou não bens próprios de qualquer deles, para além da situação profissional do cabeça-de-casal que lhe proporciona o salário mensal que está auferindo.
É verdade que, negado o acesso ao processo de inventário, nada obstaria a que o recorrente instaurasse acção declarativa com processo comum destinada a convencer o outro da existência de dívidas comuns e a exigir a sua responsabilidade.
Porém, tendo em conta a especificidade do casamento que terminou com o divórcio, não parece ajustado que se desconsidere a utilidade do processo de inventário para regular de forma unitária todos os efeitos patrimoniais do divórcio que envolvem os cônjuges entre si e os cônjuges e terceiros.
Para o efeito, o procedimento mais ajustado é o processo de inventário, até porque em lugar de “partes”, são convocados os “interessados”. Por outro lado, é a tramitação específica de tal processo, bem diversa da demarcação de fases e da estrutura e objectivos do processo comum de declaração, que permite a composição final dos interesses de ambos os ex-cônjuges, ainda que apenas em relação ao passivo e sua forma de pagamento.
Esta virtualidade é evidente em relação ao passivo face a terceiros, uma vez que as dívidas que forem aprovadas pelos interessados consideram-se judicialmente reconhecidas, devendo a sentença condenar no seu pagamento, nos termos do art. 1354º, nº 1, do CPC.
Mas ainda que as dívidas não sejam aprovadas pelos interessados, não está afastada a possibilidade de o tribunal reconhecer a sua existência total ou parcial, com os mesmos efeitos, nos termos dos arts. 1355º e 1356º do CPC.
Com este resultado se pode evitar a posterior demanda de algum ou de ambos os cônjuges por parte de cada um dos diversos credores.
Ademais, tanto em relação à responsabilidade perante terceiros como em relação à liquidação das responsabilidades entre os cônjuges, o inventário possibilita a sua liquidação de forma global permitindo que, extinto o casamento, cada um dos cônjuges possa ver definitivamente apurada as responsabilidades decorrentes de tal relação jurídica sem correr o risco de ser sucessivamente importunado pelo outro cônjuge com exigências cujo apuramento se possa arrastar e com as inerentes dificuldades de prova.
Ora, o processo de inventário, pela sua própria estrutura e natureza, permite que se faça o apuramento global de todas as responsabilidades, sem prejudicar o interesse nem de terceiros nem de qualquer dos interessados.

5. Como reforço da argumentação é ainda útil a invocação do que no mesmo sentido já foi decidido em caso totalmente idêntico apreciado no Ac. da Rel. de Coimbra, de 6-5-08 (www.dgsi.pt). Aqui se concluiu que “o processo de inventário não se destina apenas a dividir os bens comuns dos cônjuges, mas também a liquidar definitivamente as responsabilidades entre eles e deles para com terceiros” e que “a inexistência de bens não justifica o arquivamento do processo de inventário quando existe passivo relacionado ou a relacionar”.
O mesmo se diga do Ac. da Rel. de Coimbra, de 15-2-05 (www.dgsi.pt), onde apenas se questionou e aceitou a relacionação do crédito de compensação, sem a menor hesitação quanto aos créditos de terceiros.

6. Enfim, como argumento final de ordem pragmática, dir-se-á ainda o seguinte:
Numa matéria para a qual a lei não indica com total clareza o caminho a seguir e em que aos interessados objectivamente se oferece a possibilidade de recorrerem a um processo especial de inventário para liquidação das relações patrimoniais que cessaram com o divórcio, não parece ajustado o resultado do indeferimento, tanto mais que o mesmo foi decretado já depois de terem sido prestadas declarações pelo cabeça-de-casal.
O processo de inventário, com a sua tramitação específica, constitui o meio mais ajustado e mais expedito para se operar essa liquidação, podendo nele ser resolvidas de forma unitária, simplificada e eficaz todas as questões pendentes depois do divórcio, sem os encargos ou os riscos que importa a remessa dos interessados (e dos credores) para os meios comuns.

IV - Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas da apelação do apelante, sem embargo da sua atendibilidade a final, de acordo com a responsabilidade que vier a ser determinada.
Notifique.

Lisboa, 1 de Junho de 2010

António Santos Abrantes Geraldes
Manuel Tomé Soares Gomes
Maria do Rosário Oliveira Morgado – Vencida, conforme declaração anexa

Declaração de voto.
Conforme se estipula no art.º 1404, n.,º1, do CPC, o inventário instaurado na sequência da separação judicial de pessoas e bens ou divórcio destina-se unicamente a partilhar os bens comuns ( e só estes, naturalmente) Segue aliás, os termos prescritos para o inventário destinado a pôr termo à comunhão hereditária (n.º 3, do artigo citado.
Ora o processo de inventário estás, todo ele estruturado, na perspectiva no apuramento do activo líquido (cf. P. ex. os art.º 1345.º, 1346º, 1353º e 1357º, do CPC) assumindo particular importância o disposto no art.º 1361, que regula os termos a seguir quando se verifique uma situação de insolvência.
Sendo assim, como é, não me parece que possa requerer-se inventário apenas para “partilha” de dívidas dos ex-cônjuges, ainda que sejam da responsabilidade de ambos.
Confirmaria, por isso, a decisão recorrida.