Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7940/20.9T9LSB-A.L1-5
Relator: CID GERALDO
Descritores: VIOLAÇÃO DO SEGREDO DE JUSTIÇA
INTERESSE JURÍDICO PROTEGIDO
CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/21/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: - Em investigação por crime de violação de segredo de justiça – cujo bem jurídico protegido é o interesse do Estado na realização da Justiça - o interesse particular do ofendido prende-se com o facto de a protecção da sua dignidade e protecção da intimidade da sua vida privada estarem a ser postos em causa, trazendo-lhe, todo aquele cenário de inquietação e intranquilidade, vendo publicamente postos em causa o bom nome, a honra e a reputação com a violação do segredo de justiça.
- Tratando-se de danos individuais do ofendido e que afectam a reserva da sua vida privada, interesses individuais tutelados, relacionados com o direito de defesa, da presunção de inocência, bom nome e privacidade de quem é visado num determinado procedimento criminal, todos eles direitos fundamentais com reconhecido assento constitucional nos arts. 20.°, 26.° e 32º todos da CRP , o ofendido tem legitimidade para ser admitido na qualidade de assistente, nos termos e para os efeitos previsto no artigo 68.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal, estando em causa a eventual prática de um crime de violação do segredo de justiça (no caso, instrumental ao crime de difamação).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.

1. No âmbito do processo n° 7940/20.9T9LSB, Inquérito (Atos Jurisdicionais) do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Juízo de Instrução Criminal de Lisboa - Juiz 5, a denunciante IS interpôs recurso do despacho de fls.106 e 107, proferida a 15.01.2021 o qual não admitiu a constituição da recorrente como assistente no que diz respeito à denunciada prática do crime de violação de segredo de justiça (considerando que a recorrente carece de legitimidade por não ser titular do interesse que a lei visa proteger uma vez que o bem jurídico protegido é o interesse do Estado na realização da Justiça).
Para tanto, formula as conclusões que se transcrevem: 
A. O presente recurso tem por objecto a decisão que resulta conjugadamente dos despachos proferidos em 15.01.2021 (refª 402091863) e 09.02.2021 (refº 402718056), a qual não admite a constituição da aqui Recorrente como assistente no que diz respeito à denunciada prática do crime de violação de segredo de Justiça (considerando que a Recorrente carece de legitimidade por não ser titular do Interesse que a lei visa proteger uma vez que o bem jurídico protegido é o Interesse do Estado na realização da Justiça).
B. Por via de tal decisão, contrária à pretensão da Recorrente, encontra-se vedado o exercício dos direitos inerentes àquele estatuto no que ao crime de violação de segredo de justiça diz respeito (efeito útil esta que que confere à Recorrente interesse em agir não obstante ter já sido admitida a Intervir nos autos enquanto Assistente no que ao crime de difamação diz respeito) divergentemente do que se decidiu quanto à legitimidade da Recorrente se constituir Assistente quanto à eventual prática do crime de difamação.
C. A incriminação do art. 371.° do CP visa tutelar o funcionamento da Justiça (cfr. PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE e A. MEDINA DE SEIÇA) - o que não se coloca aqui em causa. Com o que Já não se concorda, e está subjacente à decisão recorrida, é que se entenda que aquela incriminação não protege Imediata e simultaneamente quaisquer outros interesses individuais através de uma mera reprodução (tautológica) da epígrafe do capítulo III do título V do Livro II (mas ignorando que alguns dos demais crimes ali previstos e que partilham o bem jurídico com o art. 371,° admitem a constituição de Assistentes dos visados/prejudicados com a conduta em investigação...).
D. Impõe-se compreender na incriminação do art. 371.° do CP a existência de um bem Jurídico complexo que tutela a par do Interesse do Estado na realização da Justiça, também, dlrecta e imediatamente, os interesses privados dos cidadãos que sendo visados naqueles inquéritos (tramitados em segredo de Justiça), como no caso sub judice sucede com a aqui Recorrente, gozam da presunção de inocência e do direito de não verem publicamente reveladas partes do teor de actos processuais que atestam uma visão não contraditória e enviesada do objecto do processo, pois como evidenciam MANUEL SIMAS SANTOS e MANUEL LEAL – HENRIQUES, a criminallzação da violação do segredo de justiça visa proteger "o interesse do Estado" do mesmo modo que visa também proteger o interesse do próprio arguido em não ver publicamente revelados os factos que podem vir a não ser provados" (corporizando o regime adjectivo do segredo de justiça previsto no art. 86.° n.° 2 do CPP a integração destes interesses individuais no campo de protecção abrangido pela incriminação na medida em que admite a sua determinação no interesse, e a pedido, intervenientes processuais),
E. Os interesses individuais ali tutelados (e que configuram interesses específicos e próprios dos cidadãos) são os relacionados com o direito de defesa, da presunção de inocência, bom nome e privacidade de quem é visado num determinado procedimento criminal (todos eles com assento na lei fundamental).
F. Concreta e especlflcamente, no caso sub Judíce resultava da própria denúncia, e dos seus aditamentos, que a conduta denunciada e que se mostra subsumível ao tipo do crime de violação do segredo de Justiça serve um propósito instrumental daqueloutra conduta também denunciada e que se crê subsumível ao crime de difamação (v,g. arts, 4.° a 21º do aditamento à denúncia remetido aos autos em 23.12.2020). Como a Recorrente alega no aditamento à denúncia, os (falsos) factos ofensivos da sua honra e consideração são divulgados a pretexto e a par da divulgação do teor de actos processuais sujeitos a segredo (como se deles fizessem parte integrante), para criar a (falsa) convicção na opinião pública da respectiva veracidade.
G. Aliás, quanto aos dois tipos de crimes denunciados (e consequentemente, quanto à similitude das interesses tutelados e de que a Assistente á portadora quanto aos dois tipos de crimes) daquela factualldade parece resultar evidente a interconexão entre os agentes, circunstâncias, modos, motivações e lugares do respectivo cometimento dos factos típicos ilícitos de tal modo que o pleno exercício das atribuições [da Assistente] que relativa à factualldade de um dos crimes em questão necessariamente contenderá com a demais factualldade subsumível ao outro crime.
H. Assim que, atendendo precisamente a essa conformação fáctica que resulta da conduta denunciada nos autos, não se vislumbra qualquer razão na lei que justifique que a Recorrente veja limitados os seus deveres/poderes de colaboração processual no que concerne à conduta visada nos autos, na parte em que da mesma resulta o preenchimento do tipo criminal (nos termos denunciados) de violação do segredo de justiça (a intervenção da Recorrente enquanto Assistente foi circunscrita ao denunciado crime de difamação com publicidade apenas), estando desse modo vedado à Recorrente por ex. o direito a deduzir acusação, requerer abertura de instrução relatlvamente à matéria que integra o crime de violação de segredo de justiça.
I. Tal entendimento subjacente ao despacho recorrido coarcta injustlflcadamente a colaboração e participação dos cidadãos visados e interessados na decisão e resultado do processo, não se justificando que num tipo de crime tendencialmente restrito quanto ao núcleo de possíveis agentes fiquem os cidadãos visados com o crime arredados de participar e controlar o processo (a latere não se deixará de recordar que a legitimação da justiça advirá ainda precisamente da possibilidade de participação e controlo pelos cidadãos); com efeito;
a. As notícias/artigos de jornal imputam falsos factos e formulam falsos juízos sobre a Recorrente Invocando a realização de actos processuais e transcrevendo partes segmentadas e truncadas de actos processuais!
b. Mas as notícias/artigos de jornal que divulgam os actos processuais sujeitos a segredo de justiça já não referem que algum operador Judiciário violou o segredo de justiça ou que tais segmentos truncados não foram sujeitos a qualquer processo contraditório - e estes sim, seriam por exemplo os Interesses do Estado na realização da Justiça!
J. Atendendo que a Intervenção do Assistente em processo penal constitui uma mais valia contrlbutiva para justa decisão e descoberta da verdade, nenhum sentido faz que a visada pela conduta denunciada (violação de segredo com exclusivo propósito de criar convecção de veracidade das falas imputações e juízos dirigidos à Recorrente), e simultaneamente, pessoa directamente interessada na função de administração de Justiça, esteja impedida de colaborar com o Ministério Público? A não ser que a realização de Justiça e a boa administração desta se considere feita com a impossibilidade dos visados pelo crime de violação de segredo de justiça participarem ou por ex. de reagirem contra decisões de arquivamento contrárias aos seus interesses!
K. Face ao exposto, entende-se que a decisão recorrida viola os arts. 68º do CPP e 371,° do CP. Mais ainda, a al. a) do n.° 1 do art. 68,° do CPP conjugadamente com o artigo 371.° do CP, quando interpretada por forma a não permitir que um cidadão visado em processo de Inquérito, em que se indicia ter sido violado o segredo de justiça, se constitua como assistente nos autos que têm por objecto a apreciação dessa conduta enquanto conduta instrumental de um crime de difamação (com publicidade) levado a cabo mediante sucessivas violações de segredo de justiça, é desconforme a lei fundamental, nomeadamente, com os artigos e princípios constantes dos arts. l.°, 2.°, 18.° n,° 3, 20.°. 26.°, 32.°, todos da CRP (isolada ou conjugadamente aplicados), razões estas pelas quais deve decisão ser revogada (e ser prolatada outra distinta no seu lugar).
Nestes termos, e nos mals de Direito que V.as, Exas. Venerandos Senhores Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa mui doutamente suprirão, requer-se seja o presente recurso julgado totalmente procedente, por provado e legalmente fundamentado, revogando-se em consequência a decisão recorrida e prolatando-se outra no seu lugar em sentido distinto (que admita a constituição da Recorrente como Assistente também quanto ao crime de violação de segredo).
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A Digna Magistrada do MºPº respondeu ao recurso entendendo que:
1) O despacho sob censura não violou os preceitos invocados pela recorrente, nem quaisquer outros, fazendo justa, adequada e criteriosa aplicação da lei.
2) De acordo com o art.68.°, n.°1, al.a), do CPP, podem constituir-se como assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem as leis especiais conferirem esse direito, os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.
3) E, conforme o entendimento da mais recente jurisprudência, a legitimidade do ofendido para se constituir assistente, deve ser aferida em relação ao crime específico que estiver em causa. 
4) Para que se possa ser considerado ofendido, para efeitos de constituição como assistente (al.a) do n.°1, do art.68.°, do CPP), não basta uma ofensa indirecta a um determinado interesse, não beneficiando daquela qualidade os titulares de interesses cuja protecção é puramente mediata ou indirecta.
5) O crime de violação de segredo de justiça (art.371.°, n.°1, do Cód. Penal) protege primariamente as exigências de funcionalidade da administração da justiça, particularmente perante o risco de perturbação das diligências probatórias e de investigação, bem jurídico da titularidade do Estado, encontrando-se arredada a possibilidade de um particular se constituir como assistente.
6) Assim, ao não admitir a ora Recorrente como assistente quanto ao crime de violação do segredo de justiça, bem andou o Mm° Juiz de instrução, devendo o despacho recorrido ser mantido, nos seus precisos termos, pois que nenhum preceito foi violado.
Pelas razões que se aduziram não deve o recurso merecer provimento, e, em consequência, deve ser mantida a decisão proferida afls. 106 e 107.
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Nesta Relação, a Digna Procuradora-geral Adjunta, sufragou os argumentos constantes da resposta ao recurso apresentada pelo Ministério Público na primeira instância, emitindo parecer no sentido de que será de improceder o recurso em análise, mantendo-se a decisão recorrida.
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Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
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2. De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.
A questão suscitada nas motivações de recurso pela recorrente prende-se com a legitimidade da queixosa para se constituir como assistente quanto ao crime de violação de segredo de justiça.
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Dos autos, com interesse para a decisão, constam os seguintes elementos:
Por requerimento datado de 28.12.2020, a queixosa alega que da denúncia e dos três aditamentos considera estar indiciada a prática de factos suscetíveis de integrar, em abstrato, os crimes de difamação, p. e p. pelo artigos 180.°, n°1 e 183.°, do Código Penal, e de um crime de violação de segredo de justiça, p. e p. pelo artigo 371°, do Código Penal.
No mesmo requerimento solicita a sua admissão como assistente, por considerar ter legitimidade para tal, encontrar-se representada e ter pago a taxa de justiça.
No despacho a remeter os autos ao TIC o Ministério Público pronunciou-se quanto à legitimidade da requerente para a constituição como assistente quanto ao crime de violação de segredo de justiça, pugnando pelo seu indeferimento alegando, em síntese que:
“Tem sido entendimento da Jurisprudência, vide Acórdão do Tribunal Constitucional, Processo 543/2000, Relator Bravo Serra, in www.dasi.pt: Acórdão da Relação de Lisboa, Processo 11332/10.0TDLSB, Relator João Carrola, in www.dgsi.pt, que:
 I. A legitimidade do ofendido para se constituir assistente, deve ser aferida em relação ao crime específico que estiver em causa, sendo certo que o facto do tipo legal proteger um interesse de ordem pública não afasta sem mais, a possibilidade de, ao mesmo tempo, ser também imediatamente protegido um interesse susceptível de ser corporizado num concreto portador.
II- Para que possa ser considerado ofendido, para efeitos de constituição como assistente (alínea a), do n.°1, do artigo 68°, do CPP), não basta uma ofensa indirecta a um determinado interesse, não beneficiando daquela qualidade os titulares de interesses cuja protecção é puramente mediata ou indirecta, ou vítimas de ataques que põem em causa uma generalidade de interesse e não os seus próprios e específicos.
III - O crime de violação de segredo de justiça (artigo 371°, n.° 2, alínea b), do Código Penal), protege primariamente as exigências de funcionalidade da administração da justiça, particularmente perante risco de perturbação das diligências probatórias e de investigação, bem jurídico da titularidade do Estado, encontrando-se arredada a possibilidade de um particular se constituir assistente”.
Também a Jurisprudência se tem pronunciado no sentido de que, quando estamos perante este crime de Violação de Segredo de Justiça, o interesse a proteger com o tipo legal de crime, é o interesse do Estado na realização da justiça, pelo que, os particulares não têm legitimidade para se constituírem assistentes. Neste sentido, Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado, 1999, Almedina, Coimbra, 10a Edição, pág. 207 "É ainda uma mera aplicação do principio geral referido a conclusão de que crimes públicos existem relativamente aos quais ninguém se poderá constituir assistente, uma vez que o interesse protegido pela incriminação é, a qualquer luz, exclusivamente público como sucede com os crimes contra o Estado”. Também A. Medina de Seiça, in Comentário Conimbrincense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, pág. 646, Coimbra Editora, 2001, menciona que “...embora se aceite que a tutela do segredo de justiça se prende, nalguns aspectos do regime, com a protecção da vida privada e até da honra das partes envolvidas, a verdade é que essa tutela não participa dos fundamentos justificadores da sua existência nem com eles se confunde (...) Em nosso entender, a existência do segredo de justiça decore primariamente de exigências de funcionalidade da administração da justiça, particularmente perante o risco de perturbação das diligências probatórias e de investigação.
Apresentados os autos ao Mm° Juiz de Instrução Criminal de Lisboa, foi a 15.01.2021 proferida decisão quanto à requerida constituição como assistente e se considerou que a requerente não tinha legitimidade para a constituição como assistente, nos termos do art.68.°, n.°1, al.a), do CPP, porquanto estando em causa a eventual prática de crime de violação de segredo de justiça, o bem protegido é o interesse do Estado na realização da justiça, com o seguinte teor:
I. Constituição de assistente requerida por IS :
IS veio requer a sua constituição como assistente.
A legitimidade para a constituição de Assistente afere-se pelo estatuído no art. 68°, n° 1, als. a) e b) do CPP, donde resulta que têm legitimidade para assumir aquele estatuto o ofendido e a pessoa de cuja queixa ou acusação particular dependa o procedimento.
Veja-se que nos presentes autos não está em causa qualquer das situações a que alude a alínea e) do mesmo preceito legal.
Para se aferir da legitimidade de alguém para se constituir Assistente importa ter presente que o art. 68°, n° 1, al. a) do CPP define o conceito de ofendido, para efeitos processuais penais, como sendo “(...) o titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação (...)”, explicitando, na al. b) que, naquele âmbito, com a faculdade de se constituir assistente, se inscrevem, também, as pessoas de cuja queixa ou acusação particular dependa o procedimento criminal, assim se fazendo uma directa ligação ao preceituado no art. 113° do CP, que recorta, logo no seu n° 1, o âmbito do titular do direito de queixa, circunscrevendo-o, no que aqui interessa, ao ofendido, tal qual ele é definido nos expostos termos do art. 68° do CPP. 
Ora, afigura-se-nos que, estando em causa a eventual prática de crime de violação de segredo de justiça, o bem jurídico protegido é o interesse do Estado na realização da Justiça.
A requerente não é, pois, de acordo com o critério legal, titular de interesse que a lei vise proteger.
É, pois nosso entendimento que a requerente carece de legitimidade para se constituir assistente.
Assim, por falta de legitimidade para se constituir como assistente, indefiro o pedido apresentado por IS .
Notifique.
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É deste despacho que vem interposto o presente recurso, considerando a recorrente que na incriminação do art. 371.° do Código Penal se verifica a existência de um bem jurídico complexo que tutela a par do interesse do Estado na realização da Justiça, também, os interesses privados dos cidadãos que sendo visados naqueles inquéritos, gozam da presunção de inocência, ou seja, a criminalização da violação do segredo de justiça visa proteger o interesse do Estado do mesmo modo que visa também proteger o interesse do sujeitos processuais. Interesses que estão relacionados com o direito de defesa, de presunção de inocência, bom nome e privacidade do visado num procedimento criminal, todos com assento na lei fundamental, todos eles direitos fundamentais com reconhecido assento constitucional nos arts. 20.°, 26.° e 32.° todos da CRP.
Posteriormente a queixosa apresentou novo requerimento solicitando que fosse apreciada a constituição como assistente quanto ao crime de difamação, tendo a Mmª Juiz de Instrução proferida decisão, datada de 09.02.2021, na qual foi admitida a intervir nos presentes autos como assistente a queixosa/requerente.
Vejamos.
Dispõe o art. 68º, nº 1, al. a), do CPP, que “…podem constituir-se assistentes em processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito: a) os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de dezasseis anos….”.
Ora e conforme refere o Prof. Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, Vol 1, pag 512-513, a nossa lei parte do conceito estrito de ofendido na determinação do círculo de pessoas que têm legitimidade para intervirem como assistentes em processo penal. (jurisprudência corrente, vide Ac. do S.T.J. de 20.1.98. Colectânea de Jurisprudência, Supremo Tribunal de Justiça, Ano VI, Tomo I, p.163.)
Assim sendo não é ofendido, para este efeito, qualquer pessoa prejudicada com a prática do crime, mas somente o titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato do crime. O objecto jurídico mediato é sempre de natureza pública; o imediato, (…) pode ter por titular um particular.
Ou seja, nem todos os crimes têm ofendido particular, mas só o têm aqueles cujo objecto imediato da tutela jurídica é um interesse ou um direito de que é titular um particular, questão esta que por vezes se mostra melindrosa, mas necessária porque só com ela é que é possível averiguar da viabilidade daquela constituição de assistente (vide Maia Gonçalves in Código Processo Penal Anotado, 17ª ed. pág. 210).
Do exposto resulta, pois, que nos casos de crimes públicos em que o interesse tutelado é exclusivamente público a regra é de que ninguém poderá constituir-se assistente (Figueiredo Dias ob. cit. pág. 513).
Neste último caso o direito de constituição de assistente só existirá se for conferido por lei especial, conforme expressamente dispõe o art.º 68º n.º 1 do Código Processo Penal.
No que se refere ao crime de violação de segredo de justiça p. e p. pelo art. 371.° do Código Penal, tal ilícito protege primariamente as exigências de funcionalidade da administração da justiça, particularmente perante risco de perturbação das diligências probatórias e de investigação, bem jurídico da titularidade do Estado.
De acordo com A. Medina de Seiça, in Comentário Conimbrincense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, pág. 646, Coimbra Editora, 2001 “...embora se aceite que a tutela do segredo de justiça se prende, nalguns aspectos do regime, com a protecção da vida privada e até da honra das partes envolvidas, a verdade é que essa tutela não participa dos fundamentos justificadores da sua existência nem com eles se confunde (...) Em nosso entender, a existência do segredo de justiça decore primariamente de exigências de funcionalidade da administração da justiça, particularmente perante o risco de perturbação das diligências probatórias e de investigação (...) o crime de violação de segredo de justiça configura um crime de perigo abstracto para o bem Jurídico da máquina judiciária nas fases preliminares do processo".
Do mesmo modo, Paulo Pinto de Albuquerque, quando refere que "o bem jurídico protegido pela Incriminação é a funcionalidade da justiça criminal (...)" -  Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ª Ed., actualizada, UCP, páginas 966-967 (comentário ao art. 371do CP).
No mesmo sentido tem entendido a jurisprudência, ao referir que a legitimidade para a constituição como assistente não é suficiente a ofensa indirecta a um determinado interesse, afirmando a inadmissibilidade dos particulares se constituírem assistentes à luz da defendida conceção restritiva do conceito de ofendido que se entende estar prevista no art. 68.° n.° 1 al, a) do CPP – neste sentido, cfr. Acs. do TRL de 25.05.2017,  do TRG de 17.06.2013  ("Para a legitimidade para a constituição como assistente não é suficiente a ofensa indirecta a um determinado interesse") do TRP de 12.01.2011  ("No caso de crime público em que o interesse tutelado seja exclusivamente público, a regra é de que ninguém poderá constituir-se assistente").
Merece, no entanto, particular destaque na abordagem desta questão, o Acórdão do STJ de 29.3.2000, in CJ, S, I, 234, ainda que a propósito do crime de denúncia caluniosa.
Aqui se terá começado a inflectir o caminho que vinha sendo seguido, assumindo-se o entendimento de que os tipos legais de crime podem especialmente prosseguir a protecção de mais do que um interesse, de mais do que um bem jurídico, “sendo o objecto mediato da tutela jurídico-penal sempre de natureza pública - sem o que não seria justificada a incriminação - o imediato poderá também ter essa natureza ou significar, isolada ou simultaneamente com aquele, o fim de tutela de um interesse ou direito da titularidade de um particular”.
O que nos remete, quer para os contornos do caso concreto, quer, para o recorte do tipo legal em causa e, essencialmente, nos leva a ter presente, quer o objectivo, quer a natureza que presidiram à incriminação.
Assim, admitiu-se a constituição como assistente do ofendido, por se entender que, além do interesse na boa administração da justiça como interesse imediato que a lei quer especialmente proteger com a incriminação - quando os factos objecto da falsa imputação são lesivos do bom nome e honra do visado - está também em causa a tutela de direitos fundamentais da pessoa, que não deverão deixar de considerar-se como também queridos especialmente proteger com a incriminação daquele artigo (conclusão a que se chegou a partir da análise da globalidade e da regulamentação específica do tipo do crime de denúncia caluniosa - designadamente à circunstância de os n.ºs 4 e 5 do artigo 365º C Penal, se reportarem expressamente ao “ofendido”, óbvia referência à pessoa concretamente atingida).
Pela similitude de situações e proximidade de argumentação, que com a destes autos apresentam, devemos, ainda, referir que o STJ decidiu entretanto fixar jurisprudência, em matéria de legitimidade para o ofendido se constituir assistente, nas seguintes situações:
- através do Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ, nº 1/2003, publicado no D.R., I Série A, de 27.2.2003, no sentido de admitir como assistente, em relação ao crime de falsificação, a pessoa cujo prejuízo seja visado pelo agente.
- através do Acórdão 8/2006 de 12OUT, no sentido de que, “no crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo artigo 365º C Penal, o caluniado tem legitimidade para se constituir assistente no procedimento criminal instaurado contra o caluniador”;
- finalmente, através do Acórdão 10/2010 de 17NOV, no sentido de que “em processo por crime de desobediência qualificada decorrente de violação de providência cautelar, p. e p. pelos artigos 391º C P Civil e 348º/2 C Penal o requerente da providência tem legitimidade para se constituir assistente”.
O raciocínio expendido pelo STJ a propósito, especialmente, do crime de denúncia caluniosa, cabe igualmente no crime de violação do segredo de Justiça.
Não pode, também aqui dizer-se que, com o tipo legal em causa, só se quis proteger o bem jurídico público acima referido.
Que também, nesta sede, se deve ter em conta a importância da existência de um prejuízo a outra pessoa, bem como, do grau desse prejuízo.
Com efeito, a simples circunstância de o bem jurídico em causa quanto a tais crimes ser reconhecidamente a "realização da justiça" não impede, automaticamente e sem mais, que os particulares possam ser simultaneamente portadores de interesses consagrados por qualquer uma daquelas incriminações inviabilizando que pretendam obter o estatuto de Assistente.
Donde, não pode avaliar-se a admissibilidade ou não, da constituição de assistente somente a partir da natureza do crime, devendo-se atender ao conjunto do tipo, pois que, a incriminação do art. 371.° do CP para além do interesse do Estado na Realização da Justiça tutela ainda, directa e imediatamente, interesses privados dos visados (no caso, a aqui Recorrente) naqueles inquéritos no âmbito dos quais foi decretado o segredo de justiça.
É legitimo interesse do arguido e/ou visado em determinado(s) inquérito(s) gozar da presunção da própria inocência e de não ver publicamente reveladas partes (ainda que truncadas) do teor dos actos processuais - cobertos por segredo de justiça - e praticados em inquéritos criminais que a visam.
A criminalização da violação do segredo de Justiça visa proteger "o interesse do Estado" do mesmo modo que visa também proteger o interesse do próprio arguido em não ver pubicamente revelados os factos que podem vir a não ser provados”, como ensinam MANUEL SIMAS SANTOS e MANUEL LEAL-HENRIQUES apud Mº Pº Coimbra in Código Penal Anotado, vol. IV (arts. 236.° a 399.°), 4ª Edição, comentário ao art. 371.°, página 782.
Como bem salienta a recorrente, perscrutando o regime actual do segredo de justiça ao redor do qual é recortada a acção tipo alvo da incriminação do art. 371.° do CPP, constatamos no domínio do CPP, nomeadamente no seu artigo 86.° n.° 2 do CPP que prevê que "o juiz de instrução pode mediante requerimento do arguido (...) determinar, por despacho irrecorrível, a sujeição do processo (...) a segredo de justiça, quando entenda que a publicidade prejudica os direitos daqueles sujeitos ou participantes processuais".
A referida previsão corporiza precisamente a integração dos interesses individuais no campo de protecção abrangido pela previsão do segredo de justiça, diferentemente do que sucedia até à Lei nº 48/2007 de 29.08, sendo os interesses individuais ali tutelados, os relacionados com o direito de defesa, da presunção de inocência, bom nome e privacidade de quem é visado num determinado procedimento criminal, todos eles direitos fundamentais com reconhecido assento constitucional nos arts. 20.°, 26.° e 32.° todos da CRP .
Assim, não obstante as situações não serem rigorosamente iguais, tendo presente o caso concreto, cremos que nada justifica se não acolha e para esta sede se transporte a argumentação e a posição sustentadas no Acórdão STJ de 12.7.2005.
Ou no dizer das palavras do Ac. RL de 18.7.2007, “(…) nos casos em que o legislador direcciona a tutela penal directamente para um bem jurídico de natureza pública, mas se verifica que os comportamentos proibidos pela norma incriminadora se repercutem directamente nas esferas jurídicas individuais, não se vê qualquer razão para impedir a intervenção dos particulares atingidos por esses comportamentos como assistentes em processo penal”.
No caso presente, sobre a factualidade denunciada nestes autos, afirmava a recorrente no seu aditamento remetido aos autos em 23.12.2020, que "[art. 4.°] Como todos os demais artigos/notícias que têm sido trazidos a estes autos, a(o) referida(o) notícia/artigo jornalístico revela que a estratégia da investigação e o respectivo teor dos actos processuais, foram (e continuam a ser, como resulta do 2.° aditamento apresentado nos presentes autos) intensionalmente vazados (para a, e) na comunicação social (...) [art. 7.°] Também neste caso, este constante vazamento para a comunicação social, e consequente divulgação por esses meios, levados a cabo em processos sujeitos a segredo de justiça afectam o bom funcionamento da máquina judiciária. Mas não só [art 8º] Afectam, também, o bom nome e a honra da ora Queixosa que, recorrentemente, se depara com notícias/artigos jornalísticos - como é o caso do presente - que a coberto da divulgação de actos e diligências processuais de inquérito supostamente cobertos peio segredo de justiça, imputa factos e/ou formula juízos, ofensivos da hora e consideração da Queixosa, [art, 9,°] Tendo por pressuposto que a ora Requerente se presume inocente (atento o princípio da presunção de inocência que caracteriza o processo penal português), a divulgação/publicação de noticias/artigos jornalísticos de actos e diligências processuais levadas a cabo que se afirmam relativos a queixas, quando associada à alegação de factos falsos e/ou à formulação de juízos falsos (suscetíveis de ofender a honra e consideração da Queixosa) afecta quer o funcionamento da máquina judicial quer e igualmente o bom nome e consideração da queixosa, [art. 10,°] Concretamente na peça jornalística na qual foram identificados e relatados actos e diligências processuais com patente conhecimento directo e de facto dos elementos constantes dos autos a que respeitam, afirmam- se/formulam-se três pretensas realidades/juízos que, para além de serem totalmente falsas, ofendem a aqui Requerente na sua honra e considerações pessoais e profissionais. (...) [18] A referida publicação periódica (CM) tem vindo a publicar diversas notícias relativas aos processos de inquérito que visam a aqui Requerente ou que com ela estão directamente relacionados, nomeadamente (...) [19.] Todos eles atentam contra a honra e consideração pessoais da Requerente, sendo que relativamente a um deles, o mesmo já havia sido objecto de aditamento à denúncia primitiva, apresentado em 10.08.2020. [20.] Publicações essas redigidas (e admitidas publicas) por quem, colaborando e/ou tendo vínculo laboral na publicação periódica CM, conscientemente pretende divulgar o seu respectivo teor (várias vezes violador do segredo de justiça e da honra e consideração pessoais da Requerente), conhecendo o alcance e as consequências de tal opção (e sabendo que a sua conduta é punida por lei). [21 ] Factualidade esta (da denúncia dos dois primeiros aditamentos e do presente terceiro aditamento) que permite se dê por noticiada a continuação da prática do crime de violação de segredo de justiça (...) como também a prática de um crime de difamação (...)".
Tal factualidade permite concluir por exemplo que a conduta denunciada e que se mostra subsumível ao tipo do crime de violação do segredo de Justiça, serve um propósito instrumental daqueloutra conduta também denunciada e que se crê subsumível ao crime de difamação.
Como alega a recorrente no aditamento à denúncia, os factos ofensivos da sua honra e consideração são divulgados a pretexto e a par da divulgação do teor de actos processuais sujeitos a segredo (como se deles fizessem parte integrante), para criar a convicção na opinião pública da respectiva veracidade, resultando evidente a interconexão entre os agentes, circunstâncias, modos, motivações e lugares do respectivo cometimento dos factos típicos ilícitos, quanto aos dois tipos de crimes denunciados (e consequentemente, quanto à similitude das interesses tutelados e de que a Assistente é portadora quanto aos dois tipos de crimes), de tal modo que o pleno exercício das atribuições [da Assistente] relativa à factualidade de um dos crimes em questão necessariamente contenderá com a demais factualidade subsumível ao outro crime, não se vislumbrando, assim, qualquer razão na lei que justifique que a recorrente veja limitados os seus deveres/poderes de colaboração processual no que concerne à conduta visada nos autos, na parte em que da mesma resulta o preenchimento do tipo criminal (nos termos denunciados) de violação do segredo de justiça, pois que a realização da justiça visa precisamente possibilitar que as pessoas visadas pela conduta possam colaborar com o MP, participando e controlando os trâmites processuais em conformidade com o correspondente estatuto processual.
Os interesses privados dos cidadãos visados em inquéritos (tramitados em segredo de Justiça), como no caso sub judice, gozam da presunção de inocência e do direito de não verem publicamente reveladas partes do teor de actos processuais que atestam uma visão não contraditória e enviesada do objecto do processo, pois como evidenciam MANUEL SIMAS SANTOS e MANUEL LEAL – HENRIQUES – e acima foi já referido – a criminalização da violação do segredo de justiça visa proteger "o interesse do Estado" do mesmo modo que visa também proteger o interesse do próprio arguido em não ver publicamente revelados os factos que podem vir a não ser provados" (Código Penal Anotado, vol. IV (arts. 236.° a 399.°), 4.a Edição, comentário ao art. 371.°, página 782).
Defende o Digno Magistrado do MºPº, na resposta ao recurso interposto, que o direito ao bom nome e presunção de inocência não constituem objeto jurídico imediato da infração, nem esta interpretação viola as normas constitucionais, invocando o Acórdão do Tribunal Constitucional n.°579/2001 (DR 2ª série, de 15.02.2000), que refere: (...) "Mesmo que seja certo que os direitos à privacidade, bom nome e reputação e o direito a não serem coartados os direitos de defesa e de presunção de inocência que os arguidos reclamam, em nome da respectiva defesa, a consagração da previsão de ilícitos respeitantes às condutas que os ofendem - pois só pela incriminação, que não seria então postergada pelo princípio da necessidade das respectivas penas, se atingiria uma sua eficaz protecção -, então, o que se não pode passar em claro é que, na legislação ordinária, como sabido é, tais incriminações se encontram consagradas. (...)
Não se vê, deste modo, como é que uma solução como a decorrente da interpretação normativa levada a efeito pelo aresto sub iudicio poderia conduzir à postergação dos direitos de defesa do arguido no processo em que se indicia a prática, por outrem, de comportamentos subsumíveis à violação do segredo de justiça -ou a uma restrição desnecessária ou desproporcionada dos respectivos direitos, liberdades e garantias (viu-se já que se trata de uma compatibilização ou harmonização de interesses e não uma restrição) que, de todo, não são «tocados» na sua extensão e conteúdo essencial, designadamente não sendo coartado o direito de acesso aos tribunais, aqui se incluindo o denominado «direito de acção judicial» (como se expôs acima, o ofendido continua a terão seu dispor, para além de algumas formas de intervenção no processo instaurado pelo crime de violação do segredo de justiça, meios para desencadear «acção criminal» com vista à defesa dos seus direitos ao bom nome, reputação, privacidade e lesão do princípio de presunção de inocência).”.
Porém, não podemos deixar de sublinhar a Declaração de voto do Senhor Conselheiro Guilherme da Fonseca, que seguimos de perto:
«(…) no quadro legal da noção de "titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação", que deflui do artigo 68.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, e fundando o direito do denunciante a constituir-se assistente no processo criminal, pode perfeitamente caber o direito de um arguido intervir como assistente nos autos em que se averigua o crime de violação do segredo de justiça, por ele denunciado.
Não se questionam os poderes do órgão legislativo a que se refere o acórdão quanto à regulação dos "modos e formas como o ofendido tem o direito de intervir no processo" e quanto a "estabelecer para as condutas que devem ser tidas como constitutivas de um ilícito criminal", domínio em que, talqualmente se diz no acórdão "o legislador ordinário dispõe de uma ampla margem de liberdade conformativa".
E também não se vai ao ponto, talqualmente regista o acórdão, de defender "uma tese da qual decorresse que o diploma básico impunha a obrigatoriedade da constituição como assistente em todos os processo criminais em que se averigúem ilícitos criminais nos quais, indirecta, mediata ou reflexamente, podem ser atingidos bens, direitos ou interesses pessoais (não sendo estes, porém, aqueles que, primordialmente, foram os tidos em conta para a tipificação incriminadora)".
2 - Mas já se pode duvidar seriamente do acerto constitucional de uma interpretação da questionada alínea a) do n.º 1 do artigo 68.º, "de harmonia com a qual somente é consentido aos titulares dos interesses imediata ou directamente protegidos pela incriminação constituírem-se como assistentes", excluindo-se do círculo desses titulares os arguidos atingidos nos seus interesses pela violação do segredo de justiça.
Muito embora o acórdão se esforce por afirmar, no quadro de um "direito de acção judicial", que "os interesses de "ordem pessoal" do ofendido encontram tutela, quer através de incriminação das condutas que os lesem quer através da instituição de mecanismos de ordem processual que não afastam a intervenção desse ofendido", a verdade é que acaba por secundarizar tais interesses, perfilhando a dita interpretação.
"Ao estabelecimento do segredo de justiça, em processo penal, preside fundamentalmente uma ordem tríplice de razões. Em primeiro lugar, o interesse no bom êxito da investigação que estiver em curso. É realista pensar-se que, ao suspeito ou arguido que tenha sido autor de um crime, não interessa, em regra, a descoberta da verdade. Interessar-lhe-á, sim, o maior benefício pessoal possível, o que pode passar pela destruição de provas ou por dificultar o acesso às mesmas. A justiça penal exigirá portanto a criação de condições para que a investigação seja eficaz. Ao denunciado, ao suspeito ou ao arguido pode interessar que certos factos que lhe imputam, ou em que se encontre mesmo envolvido, não sejam do conhecimento público, porque podem não vir a provar-se. E esta pretensão é tanto mais de atender quanto mais frágil for a base em que assenta a convicção da autoridade judiciária. O mesmo é dizer quanto menos avançado estiver o processo. A garantia de presunção de inocência tem aliás esta incidência extraprocessual: possibilitar que o arguido seja tratado, no seu relacionamento social, o mais possível da forma que seria tratado se não fosse parte num processo crime ("Comunicação social e segredo de justiça hoje", intervenção do Procurador-Geral da República na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra em 12 de Outubro de 2001).
Ora, essa ideia de tratar o arguido, "no seu relacionamento social, o mais possível da forma que seria tratado se não fosse parte num processo crime" é suficientemente forte e densificada para concluir que ele, como cidadão que é, tem direito à protecção da sua dignidade e à protecção da intimidade da sua vida privada (é o direito à protecção em geral da privacidade das pessoas, que podem ser inocentes). O arguido, vendo publicamente postos em causa o bom nome, a honra e a reputação com a violação do segredo de justiça, é também titular dos interesses protegidos - interesses de "ordem pessoal" - pela incriminação dessa violação, e não haveria que distinguir de entre esses os interesses imediatos ou directos e os mediatos ou indirectos (a norma, aliás, não parece consentir tal distinção, mas é nela que se baseia o acórdão).
Fica, pois, a dúvida, e não queria de modo algum que ficasse silenciada para que se continue a reflectir sobre tudo isto».
Na realidade, o interesse particular do ofendido prende-se, pois, com o facto de a protecção da sua dignidade e protecção da intimidade da sua vida privada estarem a ser postos em causa, trazendo-lhe, todo aquele cenário de inquietação e intranquilidade, vendo publicamente postos em causa o bom nome, a honra e a reputação com a violação do segredo de justiça.
Tratando-se de danos individuais do ofendido e que afectam a reserva da sua vida privada, interesses individuais tutelados, relacionados com o direito de defesa, da presunção de inocência, bom nome e privacidade de quem é visado num determinado procedimento criminal, todos eles direitos fundamentais com reconhecido assento constitucional nos arts. 20.°, 26.° e 32º todos da CRP , o ofendido tem legitimidade para ser admitido na qualidade de assistente, nos termos e para os efeitos previsto no artigo 68.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal, estando em causa a eventual prática de um crime de violação do segredo de justiça (no caso, instrumental ao crime de difamação).
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3. Nestes termos e com os fundamentos expostos, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção Criminal deste Tribunal, em conceder provimento ao recurso e, consequentemente, revogar o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que admita o pedido de constituição como assistente da denunciante IS , quanto à eventual prática de um crime de violação do segredo de justiça.  

Lisboa, 21 de Setembro de 2021
Cid Geraldo
Ana Sebastião