Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
33951/15.8T8LSB.L1-4
Relator: SÉRGIO ALMEIDA
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO LABORAL
DECISÃO ADMINISTRATIVA
NULIDADE
APRECIAÇÃO CRÍTICA DAS PROVAS
ELEMENTO SUBJECTIVO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/30/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA A SENTENÇA
Sumário: I.O art.º 25.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, Regime Processual das Contra-Ordenações Laborais e de Segurança Social, enuncia os elementos que a decisão da autoridade administrativa há de conter, não incluindo o exame crítico da prova.
II.A decisão administrativa não é equiparável a uma sentença e não tem de conter os requisitos que a lei, nomeadamente processual penal, impõe para esta; corresponde, sim, impugnada judicialmente e apresentada em juízo pelo Ministério Publico, nos termos do art.º 37 da Lei n.º 107/2009 (e do art.º 62 do RGCO, Regime Geral das Contra-Ordenações, aprovado pelo DL n.º 433/82, de 27 de Outubro, com as alterações sucessivas designadamente a introduzida pelo DL n.º 244/95, de 14/09) a uma acusação.
III.Não padece de nulidade a decisão administrativa que descrimina os factos provados e enuncia os fundamentos da decisão de facto, ainda que não refira os factos oferecidos pela arguida nem diga porque não teve por relevante a prova, designadamente testemunhal, desta.
IV.Não é omissa quanto ao elemento subjetivo do tipo a decisão administrativa que descreve com alguma minúcia factos que mostram a forma consciente e voluntária com que, no seu entender, a arguida agiu.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial: Acordam os Juízes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


I–RELATÓRIO:


Recorrente: Ministério Publico, em representação da ACT, Autoridade para as Condições do trabalho.

Objeto: decisão da área laboral do Tribunal da Instância Central da Comarca de Lisboa que, em sede de recurso de impugnação judicial da decisão administrativa de condenação na coima de € 12.648,00, 124 UCs, pela prática de factos suscetíveis de integrar a contra-ordenação p. e p. pelos artigos 29º, nº 1 e 4, e 554º, nº 4, al. c), ambos do Código do Trabalho, a declarou nula, revogou e determinou a remessa dos autos à ACT para os fins tidos por convenientes, designadamente sanar a dita nulidade.
*

Não se conformando com esta decisão o MºPº recorreu para esta Relação de Lisboa, concluindo afinal:     
(…)

Remata pedindo se revogue a sentença recorrida, substituindo-se a mesma por outra que determine o prosseguimento dos autos.
*

A arguida respondeu pedindo a improcedência do recurso e concluindo:
(…)

R) Não merecendo, portanto, qualquer censura a decisão recorrida quando concluiu pela nulidade de tal decisão e determinou a remessa dos autos à ACT para os fins tidos por convenientes, nomeadamente, para sanar a nulidade detetada, devendo a mesma ser mantida integralmente.
*

O Sr. Procurador Geral Adjunto colocado neste Tribunal da Relação de Lisboa defendeu a procedência do recurso.
A arguida respondeu.
*

Para melhor entendimento transcreve-se parte da decisão administrativa, recurso da arguida para o Tribunal a quo e sentença recorrida.

Decisão administrativa.

Ponderados numa análise critica e conjugada a factualidade descrita no auto de notícia e documentos anexos e na resposta escrita, conjugada com os depoimentos das testemunhas que compareceram e foram ouvidas, em dia e hora designados para o efeito, neste Centro Local de Lisboa Oriental, verificamos estarem demonstrados e provados os seguintes factos com relevância para a decisão da causa
1-A Arguida é uma pessoa coletiva, titular do NIPC (…), com sede na (…), e local de trabalho, sito na …), tendo por objeto social, a atividade de aluguer de veículos automóveis ligeiros ((…);
2-Em 08.04.2014, foi realizada uma visita inspetiva à empresa da Arguida supra indicada, tendo esta sido já notificada para apresentação de documentos considerados relevantes para a análise da situação labora) da trabalhadora, AA, que lá exercia a sua atividade;
3-Da visita inspetiva e da análise conjunta da documentação apresentada, apurou o Inspetor do Trabalho autuante que, a trabalhadora, AA, foi admitida na empresa arguida, em 19.05.2006, através de contrato de trabalho a termo certo, com a categoria profissional de "Escriturária de 2" (cfr. fls. 1 dos autos),

4-A trabalhadora tem as suas funções de "escriturária de 2" definidas no Contrato Coletivo de Trabalho aplicável ao sector de Rent-a-Car, exercendo ainda, conforme consta da sentença proferida pelo Tribunal de Trabalho acima referida, outras funções, nomeadamente:
A)Para a BB: "...Processamento e envio aos clientes de documentação relativa às viaturas alugadas ( ... ); Conferência diária do dinheiro em caixa e/ou dos cheques do balcão de Lisboa; Contacto telefónico com os clientes por forma a cobrar valores em atraso e, posteriormente, ao depósito diário no Banco; Conferência do protocolo (documentação Faro-Lisboa-Faro) Processamento das folhas das despesas dos funcionários; Responsável pelo envio diário à Administração (na ausência do Sr. CC), dos relatórios da situação de frota; dinamização do "site" da BB (reservas e facturas; alterações das fotos da frota, correção de preços; tradução da página para Inglês);
B)Para o Administrador da BB, Sr. DD: Esporadicamente, efetuava depósitos bancários nas contas pessoais do mesmo; marcação de viagens de avião para o mesmo Administrador ou para quem este indicasse;
C)Para EE, SA (Outra Empresa do grupo): Recebia mensalmente rendas do prédio pertença daquela, sito na Rua (…) e efetuava o depósito das mesmas em banco. "

5-A Entidade Empregadora comunicou à trabalhadora em causa a caducidade do seu contrato de trabalho com produção de efeitos a 18.11.2007;
6-Em consequência, a trabalhadora interpôs ação declarativa em processo comum contra a Arguida, pedindo, que fosse declarado, que o seu contrato de trabalho se convertesse ab initio em contrato sem termo, por deficiência da justificação do termo e/ou falsidade dos motivos invocados e a consequente ilicitude do despedimento (caducidade), (cfr. fls.1 dos autos);
7-Foi proferida sentença, no âmbito do Processo n.° (…), que correu os seus termos na (…), do Tribunal do trabalho de Lisboa, a qual declarou a ilicitude do despedimento da trabalhadora AA e, consequentemente, condenou a Arguida, a pagar à trabalhadora remunerações que esta deixou de auferir desde 23.04.2008 até à data do trânsito em julgado da decisão, e proceder à reintegração da trabalhadora nas mesmas funções que exercia à data do despedimento, reintegração esta que produziu efeitos a 09.03.2011, apesar da trabalhadora à data se encontrar de baixa médica;
8-Na visita inspetiva realizada ao local de trabalho da arguida, verificou o inspetor autuante, de forma direta e imediata, que a trabalhadora, AA, tinha o seu posto de trabalho (secretária e computador) localizado na cave das instalações da Arguida, sendo que os restantes trabalhadores do setor administrativo tinham os seus postos de trabalho no rés-do-chão, piso térreo (conforme anexo 1, a fls. 4 dos autos);
9-A cave, para além de ser o local de trabalho da requerente, é também o local de arrumação do diverso material (de caraterísticas familiares), encontrando-se a trabalhadora isolada dos restantes colegas,
10-O inspetor autuante no decurso da visita inspetiva apurou ainda, que a trabalhadora, se encontrava sem qualquer trabalho, tendo apenas como funções atribuídas o arquivo dos contratos (quando existem) e um relatório diário para a administração que a ocupava em média, cerca de 30 minutos por dia, e, ainda que a trabalhadora estava proibida de fazer chamadas para o exterior;
11-O inspetor autuante mais apurou que a Arguida admitiu a 28.06.2012, FF, por contrato de trabalho sem termo, para exercer funções de "escriturária de 2a", cujo conteúdo funcional se encontra definido no Contrato Coletivo de Trabalho aplicável ao setor de Rent-a-Car, bem como outras funções que lhe sejam afins ou funcionalmente ligadas, funções estas que são as mesmas que constam no contrato de trabalho  celebrado entre a trabalhadora, AA e a Arguida, encontrando-se mesmo, à data da visita inspetiva aquela trabalhadora a ocupar o posto de trabalho que inicialmente estava atribuído e ocupado pela trabalhadora AA, no Rés-do-Chão,
12-A trabalhadora, AA, encontra-se a desempenhar funções separada dos restantes colegas administrativos, isolada na cave, não tem funções atribuídas, (não obstante o conteúdo funcional, resultante do Contrato Coletivo de Trabalho incluir a realização de um leque variado de funções, entre outras, conforme supra exposto), o seu posto de trabalho foi ocupado por FF, contratada posteriormente, e por tempo indeterminado e colocada naquele que era o seu posto de trabalho, e ainda se confronta com constrangimentos nas condições de trabalho, já que tem o telefone barrado, de forma a não puder efetuar chamadas para o exterior.
13-Em face da conduta da arguida, a trabalhadora sentiu-se vexada e envergonhada, o que tem afetado psicologicamente a trabalhadora, com repercussões na sua vida privada.

Factos considerados como não provados:

A-O facto de que à data da reintegração da trabalhadora AA não existiam na estrutura da Empresa, as funções de "escriturária de 2a", tal como se verificavam à data da sua contratação, devido a razões de crise de mercado e empresariais;
B-O facto de que a Arguida teve que transferir grande parte do trabalho administrativo para a sede da Empresa em Faro, durante o período que a trabalhadora esteve ausente, motivada pela diminuta atividade da Empresa,
C-O facto de que, à data da visita inspetiva (08.04.2014) estavam atribuídas à trabalhadora AA funções no âmbito da sua categoria profissional, nomeadamente elaboração de relatórios de frota, overdue e upgrades, deslocação aos correios, gestão documental dos diversos departamentos, (vide auto de notícia, a fls. 2 e documentos anexos, a fls. 5 dos autos);
D-O facto da trabalhadora, após a sua reintegração na Empresa Arguida, ter sido colocada a desempenhar "funções" na cave e sozinha, sem a presença dos colegas, praticamente sem funções atribuídas, apenas se deveu à circunstância de quando regressou ao trabalho, não existia nenhum lugar disponível no piso térreo;
E-O facto de que na cave a trabalhadora tinha todos os instrumentos de trabalho necessários, para o exercício da sua atividade;
F-O facto da trabalhadora, FF não se encontrar a ocupar o posto de trabalho anteriormente atribuído à trabalhadora AA.

Motivação da Decisão de Facto:

Para a consideração como factos assentes e factos não provados, a nossa convicção, como autoridade administrativa competente, assentou, para além do especial valor probatório do auto de notícia e documentos anexos, cujo teor material e presencial da factualidade neles descrita se reputam de isenção e veracidade de conteúdo e fazem prova nos termos do n.° 3, do art.º 131 do RPCLSS, na decisão/sentença proferida no âmbito do Proc. n.° (…), que correu termos na (…), do Tribunal do Trabalho de Lisboa, conforme fls. 1 e 2 dos autos, a qual declarou a ilicitude do despedimento da trabalhadora AA, e consequentemente, condenou a Arguida, ao pagamento das remunerações que esta deixou de auferir desde 23.04.2008 até à data do trânsito em julgado da sentença condenatória e na reintegração da trabalhadora nas mesmas funções que exercia à data do despedimento, a qual produziu efeitos a partir de 09.03.2011 e na sua força de caso julgado, conforme resulta dos Autos, a fls.2.

Nestes termos, consideramos provados os factos que constam do auto de notícia e das provas documentais anexas, relevantes para a decisão do presente processo de contraordenação laboral.

IV.Fundamentação de Direito
(…)
*

Conclusões do recurso da arguida para o Tribunal a quo:

Nestes termos, requer-se a V.Ex.ª se digne:
a)Julgar a presente impugnação totalmente procedente, por provada, arquivando o presente processo e absolvendo a Impugnante do pagamento de qualquer coima.
Caso assim não se entenda, o que não se admite,
b)Nos termos do disposto no art.9 48.9 da Lei n.2 107/2009, revogar a coima aplicada e proferir uma mera admoestação. Caso assim também não se entenda, o que não se admite,
c)Requer-se a redução da coima para metade do valor mínimo legalmente previsto na coima a aplicar à Impugnante, (i) dada a pouca gravidade da infracção e (ii) o facto de a conduta ser imputada a título de negligência, ou, se assim também não se entender,
d)Requer-se a aplicação da coima mínima legalmente prevista a título de negligência, tendo em conta a situação económico-financeira da Impugnante.
Requer-se ainda a V. Exa., se digne ordenar o efeito suspensivo do presente processo, na medida em que, nos termos do disposto no art.º 35, n.º 2, da Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro, a Impugnante procedeu à prestação de caução correspondente ao valor das custas e da coima.
*

Da sentença recorrida:

A decisão de aplicação de uma coima é um acto administrativo na medida em que se consubstancia numa decisão tomada por órgãos da administração pública que, ao abrigo de normas de direito público, visa produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta.
A fundamentação dos actos administrativos decorre da própria Constituição da República Portuguesa. – cfr. art.º 268º, n.º 3 – e do Código de Procedimento Administrativo – cfr. art.º 124º, n.º 1, alínea a).
No caso concreto a obrigatoriedade de descrição dos factos e fundamentação das decisões decorre do art.º 25º, n.º 1, da Lei n.º 107/2009.
A exigência de uma cabal descrição dos factos, incluindo os provados e não provados, e da respectiva fundamentação tem por finalidade assegurar uma efectiva garantia dos particulares contra a arbitrariedade das decisões administrativas, permitindo, assim, a estes o exercício conveniente do seu direito de defesa contra decisões que os afectem. Na verdade, só conhecendo as razões e premissas da decisão é possível ao particular reagir contra a mesma, contrapondo factos e argumentos ou pôr em causa as razões de facto e de direito que levaram a uma determinada decisão.
Como se explica de modo claro no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28/04/2004, in www.dgsi.pt, relator CLEMENTE LIMA, «Pretende-se, fundamentalmente, por um lado, conferir força pública inequívoca (autoridade e convencimento) aos referidos actos e, por outro lado, facultar a sua fundada impugnação, tudo no sentido de que a fundamentação da sentença há-de permitir a transparência da decisão.»

A violação do dever de fundamentação impede o intérprete de comprovar se na decisão se seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova, de modo a aferir se se trata de uma decisão ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras de experiência comum e fazer um juízo de oportunidade sobre a conveniência da impugnação judicial. Já nesta sede, permitirá ao tribunal conhecer o processo lógico de formação da decisão administrativa (neste sentido, ANTÓNIO DE OLIVEIRA MENDES E JOSÉ DOS SANTOS CABRAL, Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, Almedina, 2ª Edição, pág. 159).

Em face de todo o supra exposto, é de concluir que a decisão impugnada padece da falta de elementos essenciais, maxime, de descrição cabal dos factos/fundamentação da decisão, elementos estes de verificação obrigatória em face do disposto no art.º 25º da Lei n.º 107/2009.

Designadamente, a decisão administrativa não contém na sua fundamentação as razões pelas quais não deu provimento à defesa apresentada, ocorrendo violação do direito de defesa da arguida pelos motivos acima explanados. Mais acresce que a decisão administrativa omite a descrição de factos provados que integram o tipo subjectivo da infracção.
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Tendo os autos ido aos vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II–FUNDAMENTAÇÃO.

É pelas conclusões do recurso que se delimita o seu âmbito de cognição, nos termos do disposto nos artigos 60º do Regime Processual das Contra-Ordenações Laborais e de Segurança Social (Lei n.º 107/2009, de 14/09) e 412.º do Código de Processo Penal. Neste caso, porém, cumpre previamente apurar se a decisão administrativa é nula (art.º 379, nº1, alínea c) do CPP), nos termos descritos na sentença e quais as consequências.
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A–Factos provados: foram dados como assentes os descritos supra na decisão administrativa.
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B–De Direito
Dispõe o art.º 25 da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro:


Artigo 25.º
Decisão condenatória.
1—A decisão que aplica a coima e ou as sanções acessórias contém:
a)A identificação dos sujeitos responsáveis pela infracção;
b)A descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas;
c)A indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão;
d)A coima e as sanções acessórias.
2 — Da decisão consta também a informação de que:
a) A condenação se torna definitiva e exequível se não for judicialmente impugnada nos termos dos artigos 32.º a 35.º;
b) Em caso de impugnação judicial, o tribunal pode decidir mediante audiência ou, caso os sujeitos responsáveis pela infracção, o Ministério Público e o assistente, quando exista, não se oponham, mediante simples despacho.
3—A decisão contém ainda a ordem de pagamento da coima no prazo máximo de 10 dias após o carácter definitivo ou o trânsito em julgado da decisão.
4—Não tendo o arguido exercido o direito de defesa nos termos do n.º 2 do artigo 17.º e do n.º 1 do artigo 18.º, a descrição dos factos imputados, das provas, e das circunstâncias relevantes para a decisão é feita por simples remissão para o auto de notícia, para a participação ou para o auto de infracção.
5—A fundamentação da decisão pode consistir em mera declaração de concordância com fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas de decisão elaborados no âmbito do respectivo processo de contra-ordenação.

Este artigo, cujos n.º 1 a 3 seguem praticamente os termos do art.º 58 do Regime Geral das Contra-Ordenações, aprovado pelo DL n.º 433/82, de 27 de Outubro, com as alterações sucessivas, designadamente a introduzida pelo DL n.º 244/95, de 14/09, rege o que concerne aos termos da decisão administrativa.

Ora, mirando o teor das al. b) e c) do n.º 1, verificamos que a lei exige que a decisão administrativa contenha (b) a descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas; (c) a fundamentação da decisão.

E destes preceitos em lado nenhum encontramos seja a necessidade de uma apreciação crítica das provas, seja a de uma fundamentação extensiva da decisão. Citando o acórdão da Relação de Guimarães de 24.09.2007, "I – Na decisão administrativa em recurso, no que concerne à materialidade dos factos que são imputados à arguida, não foi feito o exame crítico da prova a que alude o nº 2 do artigo 374° do Código de Processo Penal. II – Simplesmente, não se vislumbra a necessidade de tal exame: - Primeiro porque o citado artigo 58° o não exige expressamente, limitando-se a exigir a indicação das provas (no sentido de que a fundamentação das decisões administrativas se basta com a indicação das provas, não sendo exigível o seu exame crítico, contrariamente ao que ocorre com as decisões judiciais, cfr. Ac. da Rel. de Guimarães de 10-7-2003, procº nº 903/03, rel. Maria Augusta). - Depois, porque a decisão administrativa que aplica uma coima não é uma sentença nem se lhe pode equiparar pelo que não há que chamar à colação o artigo 374° do Código de Processo Penal (cfr. v.g. os Acs da Rel. de Coimbra de 13-1-1999, recº nº 955/98, de 17-3-1999, recº nº 11/99, ambos in www.trc.pt). - Finalmente, porque os requisitos consignados no citado artigo 58° visam claramente assegurar ao arguido a possibilidade de exercício efectivo dos seus direitos de defesa, que só poderá existir com um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram e condições em que pode impugnar judicialmente aquela decisão. III – Por isso, sublinham os Consº Simas Santos e Lopes de Sousa, as exigências feitas no citado artigo 58° “devem considerar-se satisfeitas quando as indicações contidas na decisão sejam suficientes para permitir ao arguido o exercido desses direitos”(Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral, 3° ed., Lisboa, 2006, pág. 387) IV – Mesmo aqueles para quem o incumprimento do dever de fundamentação da decisão administrativa constitui nulidade nos termos do artigo 379° do Código de Processo Penal, são forçados a admitir que “uma vez que tal decisão é proferida no domínio de uma fase administrativa sujeita às características da celeridade e simplicidade aquele dever de fundamentação deve assumir uma dimensão menos intensa em relação a uma sentença.  V – 0 que deverá ser patente para o arguido são as razões de facto e de direito que levaram à sua condenação, possibilitando-lhe um juízo de oportunidade sobre a conveniência da impugnação judicial e, simultaneamente, já em sede de impugnação judicial ao tribunal conhecer o processo lógico da formação da decisão administrativa” (Ac. da Rel. de Coimbra de 4-6-2003, CoI. de Jur. Ano XXVIII, tomo 3, pág 40; no mesmo sentido sublinhando que os preceitos do processo penal deverão ser devidamente adaptados cfr. Ac. da Rel. de Coimbra de 23-4-2000, procº nº 1223/03, in www.trc.pt)". De resto, o n.º 4 até se contenta, verificados os respetivos pressupostos, com uma mera remissão para os autos de noticia ou de infração ou para a participação, o que mostra que a lei optou decididamente por simplificar, até onde é possível, a decisão administrativa.

Não se ignora que a questão do exame crítico da prova tem sido discutida (por todos cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações, Univ. Cat. Editora, 238, nota 4 (5), nem sempre com respostas unívocas.

Mas não pode ignorar-se, por um lado, que este artigo (citado art.º 25) rege o conteúdo da decisão administrativa de forma suficiente, não carecendo de ser integrado por outros diplomas; por outro, que há uma enorme diferença entre esta decisão e uma sentença judicial, não valendo aquela mais, no fundo, do que uma simples acusação, como resulta do disposto no art.º 37 da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro ("O Ministério Público torna sempre presentes os autos ao juiz, com indicação dos respectivos elementos de prova, valendo este acto como acusação"), aliás como também dispõe o art.º 62 do RGCO. E pretender que uma acusação há de estar sujeita aos requisitos de uma sentença judicial, salvo o devido respeito, não tem sentido. Neste sentido cfr. o acórdão da Relação de Évora de 11-10-2011:
"I-A decisão administrativa, em todo o caso, até está fundamentada de facto.
II-Sem prejuízo de o artigo 50.º do Regime Geral das Contra-Ordenações dever ser analisado à luz dos princípios do artigo 32.º da Constituição, não deverá ignorar-se, tão-pouco, que a imputação ao arguido pela autoridade administrativa de uma contra-ordenação e subsequente estabelecimento do contraditório nos termos previstos no artigo 50.º do Regime Geral das Contra-Ordenações não traduz ainda uma acusação pública, surgindo esta apenas com a apresentação ao juiz dos autos remetidos pelo Ministério Público na sequência da apresentação de impugnação judicial da decisão administrativa nos termos do artigo 62.º do mesmo diploma legal.
III-O respeito pelos direitos de defesa e contraditório bem como o princípio da presunção de inocência não impõem a observância no procedimento e decisão administrativa do mesmo grau de exigências formais impostas a uma decisão judicial produzida no termo de um processo moldado por compreensível maior rigidez reivindicada pela condição e natureza de instrumento último de tutela dos direitos fundamentais".

De resto, a decisão administrativa até contém fundamentação de facto, logo após a menção dos factos provados e não provados. Pode ser boa ou má, completa ou parcial, mas existe (a talho de foice dir-se-á que a regra da invalidade por falta de fundamentação da sentença paradigmática, que é a da área cível, é que existe nulidade apenas quando "há falta absoluta de motivação, excluindo-se da sua previsão todos os outros casos em que a fundamentação é deficiente, extremamente concisa mas, ainda assim, bastante à compreensão da decisão” – cfr. por todos o Ac. do STJ de 10-10-2013, de onde se extraiu este excerto, apud. www.dgsi.pt). Seria, naturalmente, motivo de perplexidade se uma vulgar decisão administrativa (sem prejuízo de existirem decisões invulgares, pelo alcance e questões em discussão) houvesse de satisfazer requisitos mais pesados do que sentenças judiciais cíveis.
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Refere a sentença sub júdice que a decisão omite o tipo subjetivo.

Também aqui não a acompanhamos.

Afirma-se na decisão administrativa que "a lei impõe ao empregador a obrigatoriedade, nomeadamente, de respeitar e tratar com urbanidade e probidade os seus trabalhadores, proporcionando-lhes boas condições de trabalho do ponto de vista físico e moral (Art.° 29°, n.° 1 do CT), agindo contrária ao disposto na norma infringida, incorreu na infração citada. (...)  A arguida, após a reintegração da  trabalhadora na Empresa, desproviu-a de funções, uma vez que a trabalhadora foi contratada para exercer as funções correspondentes à categoria de "escriturária de 2ª tendo um conteúdo funcional bastante vasto, conforme decorre do CCT aplicável à atividade de rent-a-car e após o seu regresso à Empresa, foi confrontada com a quase inexistência de funções atribuídas, reconduzindo-a, a realizar, apenas, o arquivo dos Processos (quando existam) e a elaboração de um relatório diário para a Administração, que a ocupa em média, apenas 30 minutos, colocou outra trabalhadora, FF, naquele que era o seu posto de trabalho, no piso térreo, atribuindo-lhe as funções que lhe estavam destinadas antes do seu despedimento, reafectou a trabalhadora para a cave, sozinha, isolada, à margem dos demais colegas administrativos, (conforme auto de notícia a fls. 2 e 3 e respetivos anexos, nomeadamente fotos ilustrativas do respetivo local de trabalho (cave), constantes de fls. 5 a 8 dos autos), sendo este um local de arrumação de material de caraterísticas domésticas, (cfr. fls. 7 e 8 dos autos) e, impedia-a de realizar chamadas telefónicas para o exterior, medidas essas dirigidas apenas à trabalhadora. (...) A conduta da Arguida é violadora do dever de atribuir ao trabalhador as funções compatíveis e inerentes à sua categoria profissional, do dever de ocupação efetiva e do dever de respeito pela integridade moral da trabalhadora, dos quais tinha consciência e demonstrou vontade de realizar, quanto mais não seja, representou como consequência possível da sua conduta e conformou-se com a eventualidade da sua realização. Nestes termos, considera-se preenchida a tipicidade subjetiva da infração imputada à arguida a título de doloso".

Descreve-se aqui, ainda que de forma porventura rudimentar, os elementos volitivos e inteletivos com que agiu.

Se tudo isto procede, afinal, é, efetivamente, coisa diversa. Mas eles existem suficientemente em sede acusatória.
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Isto acarreta a procedência do recurso.

Sempre se dirá, em todo o caso, que não cremos avisada a solução encontrada no final, a saber, a remessa dos autos para a autoridade administrativa.

Desde logo, dada a separação de poderes, mal se compreende que um processo judicial seja tramitado por um ente administrativo, nem como poderia este dispor dele, decidindo-o em definitivo (imagine-se, vg, arquivando-o). Com propriedade poder-se-ia extrair certidão dos autos e enviá-lo à ACT; mas não os próprios autos.

Esta é, porém, questão que está ultrapassada, visto que os autos deverão prosseguir onde se encontram.
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III–DECISÃO.

Pelo exposto o Tribunal julga procedente o recurso, revoga a sentença recorrida e determina a prossecução dos autos.
Não são devidas custas.



Lisboa, 30 de novembro de 2016  

   
Sérgio Almeida
Celina Nóbrega


Decisão Texto Integral: