Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
147/08.5TCLRS.L1-8
Relator: SILVA SANTOS
Descritores: TRABALHO TEMPORÁRIO
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
COMPENSAÇÃO
CLÁUSULA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/26/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I - Num contrato de cedência temporária a utilizadores de actividade de trabalhadores ou de locação de mão-de-obra é válida a clausula na qual se pretenda que …««Será da responsabilidade da lª Outorgante o ressarcimento de eventuais danos causados em equipamentos da 2ª Outorgante por negligência dos trabalhadores cedidos ao abrigo do presente contrato».
II - Os créditos a compensar podem ter origem em fonte de obrigação diferente, isto é, nada obsta a que o crédito invocado para efeitos de compensação tenha a sua fonte ou origem numa relação jurídica totalmente distinta e autónoma daquela que fundamentava o pedido do autor.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA – SECÇÃO CÍVEL:

I.
A…......... – Empresa de Trabalho Temporário, Lda instaurou a presente acção declarativa de condenação com processo ordinário contra B…, S.A., pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de 48.137,04€, acrescida de juros comerciais vencidos até 03.01.2008, no montante de 2.469,64€, e vincendos até efectivo e integral pagamento.

Alega, para o efeito e em resumo, que no exercício da sua actividade comercial, celebrou, com a Ré, como utilizadora, em 21 de Agosto de 2006, um "contrato de utilização de trabalho temporário", for força do qual prestou a esta diversos serviços que foram facturados pelo valor global de 48.137,04€, facturas que se venceram no dia 10 do mês seguinte ao da sua emissão que a Ré não pagou.

A Ré contestou por excepção, invocando a compensação de créditos, argumentando, em substância, que um dos trabalhadores temporários cedidos pela Autora (AG) provocou um acidente com uma máquina da Ré, cuja reparação foi por si custeada e ascendeu a 47.651,45€, sendo que ao abrigo do disposto na cláusula IP do contrato celebrado entre a Autora e a Ré cabe à primeira o ressarcimento de eventuais danos causados em equipamentos.

Houve réplica e tréplica, posteriormente rejeitada.

Após saneamento processual efectuou-se o julgamento.

II.
Consideraram-se assentes os seguintes factos:

1. A Autora é uma empresa que se dedica à cedência temporária a utilizadores da actividade de trabalhadores que, para esse efeito, admite e retribui, encontrando-se licenciada pela Licença n.° 404/2002, de 30 de Dezembro de 2002.
2. No âmbito da sua actividade, a Autora (la Outorgante), celebrou em 21 de Agosto de 2006, com a Ré (2a Outorgante), como utilizadora, o acordo denominado "contrato de utilização de trabalho temporário" junto por cópia de fls. 6 a 9, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
3. Por força de tal acordo, a Autora colocou à disposição da Ré um conjunto de trabalhadores para prestarem a sua actividade na obra da Ré, designada "obra 2402 – construção do sublanço Marinha Grande (A8) / Monte Redondo da A17 – Auto Estrada Marinha Grande / Mira" .
4. O referido acordo foi celebrado pelo prazo de 12 meses (D/FA).
5. No âmbito do sobredito acordo, os trabalhadores colocados pela Autora à disposição da Ré prestaram a esta os trabalhos discriminados nas facturas sob documentos n.°s 2, 3, 4 e 5 da petição inicial cujo teor se dá por integralmente reproduzido, a saber:
N. FACTURA DATA DE EMISSÃO VALOR
377/2007 25/05/2007 6.682,83€
378/2007 25/05/2005 26.224,69€
384/2007 25/06/2007 13.158,60€
385/2007 25/06/2007 2.070,92€
6. Um dos trabalhadores cedidos pela Autora à Ré foi A...G....
7. Na Cláusula 11ª do acordo mencionado em B) ficou consignado:
«Será da responsabilidade da lª Outorgante o ressarcimento de eventuais danos causados em equipamentos da 2ª Outorgante por negligência dos trabalhadores cedidos ao abrigo do presente contrato».
8. A Ré mostrou à Autora facturas relativas à reparação do veículo Dumper Bell B35D N/N° … (H/FA).
9. A Autora recebeu da Ré a quantia de 12.508,76€ (UFA).
10. As facturas discriminadas em 5. deveriam ter sido pagas pela Ré no dia 10 do mês seguinte à sua emissão.
11. No dia 07/09/2006, pelas 05h20m, no decurso da realização do trabalho nocturno, o trabalhador temporário AG… conduzia o camião Dumper Bell B35D N/n.° … .
12. Na ocasião, o camião Dumper Bell circulava com a caixa de carga (báscula) parcialmente levantada e embateu com a mesma no tabuleiro da Passagem Superior 3 — PS3.
13. Se aquele camião circulasse com a caixa de carga (báscula) recolhida teria passado por debaixo da referida Passagem Superior sem que nela tivesse embatido .
14. Em consequência directa daquele embate, o camião Dumper Bell B35D N/n.° … sofreu estragos que obstavam à sua circulação.
15. Os trabalhos de reparação do camião Dumper Bell realizados no «Entreposto Máquinas» (Grupo Entreposto) custaram à Ré um total de 45.317,13€, assim discriminado:
a) Reparação da suspensão: 11.472,57€;
b) Reparação de articulação central: 6.167,27€;
c) Reparação de caixa de carga e macaco: 12.952,34€;
d) Reparação de estruturas exteriores: 6.356,21€; e
e) Reparação de cabine: 8.368,74€ (8°/BI).
16. Parte da reparação do camião Dumper Bell (trabalhos de serralharia), com custo não apurado, foi executada nas oficinas da Ré.
17. Após diversos contactos mantidos com a Autora sobre este assunto, a Ré procedeu á compensação do montante das reparações com a Factura n.° 371/2007, de 26/04/2007, no valor de 12.023,17€, e com as Facturas discriminadas em 5.
18. Só após a referida compensação, a Ré pagou à Autora, por conta de todas aquelas facturas o montante de 12 .508,76 a que se alude em 5.
19. A Ré emitiu a factura e recibos juntos por cópia como documentos 7 a 9 da contestação e a Autora teve conhecimento de tais documentos.
20. No momento do acidente era de noite.

III.
Perante tais factos, decidiu-se:
«a) Julgar a acção procedente, por provada, e em consequência condenar a Ré a pagar à Autora a quantia de 50.606,68€, acrescida de juros comerciais, contados à taxa legal supletiva sobre 48.137,04€, desde 04.01.2008 até efectivo e integral pagamento.
b) Julgar a reconvenção improcedente, por não provada, e absolver a Autora do pedido reconvencional».

IV.
Desta decisão recorre agora a Ré, pretendendo a sua revogação, porquanto:

1. Estando provado que;
2. A Autora e a Ré celebraram um contrato de utilização de trabalho temporário,
3. 0 Tribunal de 1a Instância considerou nula a 11a cláusula do referido contrato, onde se definia a responsabilidade da Empresa de Trabalho Temporário pelos danos causados por negligência do trabalhador cedido.
4. A 11 a cláusula não padece da nulidade invocada, por não consubstanciar mais do que o que se considera apropriado à natureza do próprio contrato, e se enquadrar legitimamente dentro da autonomia contratual permitida às partes pelo disposto no artigo 405° do Código Civil,
5. O trabalhador cedido temporariamente ao abrigo desse contrato, originou através da sua conduta e durante a prestação do seu trabalho, um acidente com o camião Dumper Bell 1335D Nin°…,
6. Que esse acidente se deveu ao facto de o camião em causa circular com a caixa de carga (báscula) levantada,
7. Que o acidente em causa gerou prejuízos graves à Ré,
8. Que se o trabalhador comandasse normalmente o camião, o acidente não se teria verificado,
9. A conclusão que se retira destes factos, e com base no alegado, demonstra que,
10. A conduta revelada na prestação do trabalho pelo trabalhador cedido demonstra per se negligencia e falta de zelo,
11. Que essa negligência gera obrigação de indemnizar pelos danos sofridos, ao abrigo da cláusula 11° do contratado entre a Autora e a Ré, e que,
12. Nestes termos, e face ao acima exposto, deveria ter sido permitida a compensação de créditos invocada pela ora Recorrente.
13. Pela que, necessariamente temos de concluir pela improcedência do pedido formulado pela Autora, ora Recorrida,
14. Pelo contrário, é a Ré, ora Recorrente, quem incorreu em prejuízos com o comportamento de um trabalhador cedido pela Autora.
15. Prejuízos que foram pedidos através do pedido Reconvencional e que deve ser dado como provado.

Termos em que, nos melhores de direito e sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, concedendo-se provimento ao presente recurso, deve a decisão do Tribunal a quo ora recorrida ser revogada decidindo-se conforme a Contestação pela absolvição da Ré e pela condenação da Autora no pedido Reconvencional.

A recorrida não contra alegou.

V.
É sabido e tem sido jurisprudência uniforme a conclusão de que o objecto do recurso se limita em face das conclusões insertas nas alegações do recorrente, pelo que, em princípio, só abrange as questões aí contidas, como resultado aliás do disposto nos artigos 684. 3 e 690.1 do CPC.

Assim, é possível fixar o objecto do recurso:

· A cláusula nº 11ª do contrato em questão nos autos é nula?
· A reconvenção deve proceder e consequentemente a acção improceder?

VI.
O tribunal considerou nula a cláusula em questão, … “por limitar em termos desproporcionados e insuportáveis a esfera jurídica e económica da Autora e contrariar normas de ordem pública que visam os superiores interesses da comunidade como as definidoras da responsabilidade civil por actos ilícitos (artigo 280° do Código Civil)”.

A recorrente entende que não é nula… “ por não consubstanciar mais do que o que se considera apropriado à natureza do próprio contrato, e se enquadrar legitimamente dentro da autonomia contratual permitida às partes pelo disposto no artigo 405° do Código Civil”

Ora,
O regime geral dos contratos e a sua força vinculativa encontra-se consignada genericamente no art. 405 do C.C.: “dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver”.

Dentro da sua esfera de actuação de direito privado os particulares agem de acordo com a sua própria vontade

Por conseguinte, os contraentes são inteiramente livres tanto para contratar ou não contratar, fixando livremente o conteúdo das relações contratuais que estabeleçam, desde que não haja lei imperativa, ditame de ordem pública ou bons costumes que a tal se oponham.

A liberdade das partes ao estipularem cláusulas diferentes das legalmente previstas apenas tem como o limite o artº 280º, do C.C.

Na Cláusula 11ª do acordo mencionado em B) ficou consignado:
«Será da responsabilidade da lª Outorgante o ressarcimento de eventuais danos causados em equipamentos da 2ª Outorgante por negligência dos trabalhadores cedidos ao abrigo do presente contrato» (cfr. nº 7 dos factos provados).

O contrato é de … cedência temporária a utilizadores de actividade de trabalhadores ou de locação de mão-de-obra cujo regime jurídico emerge, fundamentalmente, do D.L. Nº 358-89 de 17 de Junho, considerando-se a data em que tais factos ocorreram.

O trabalho temporário é uma especialidade no ramo do direito de trabalho já que se apresenta como um contrato de trabalho “triangular” em que a posição contratual da entidade empregadora é desdobrada entre a empresa de trabalho temporário – que contrata, remunera e exerce poder disciplinar – e o utilizador que recebe nas suas instalações um trabalhador que não integra nos seus quadros e exerce, em relação a ele, por delegação da empresa de trabalho temporário, os poderes de autoridade e de direcção próprios da entidade empregadora. (cfr. preâmbulo).

Por conseguinte, conservando a empresa de trabalho temporário a quase totalidade dos poderes de direcção, de responsabilidade e de disciplina do trabalhador em causa, nada obsta a que se permita, de acordo comum, a fixação ou transferência de responsabilidade civil para outrem ou para si próprios.

Constata-se que,
o conteúdo da cláusula em causa não é física ou legalmente impossível;
não é contrário à lei ou sequer indeterminável;
não é contrário à ordem pública e muito menos ofensivos dos “bons costumes”.

Assim, concluir-se-á que nenhuma nulidade encerra que determine a sua invalidade.

Daí que deva considerar-se válida tal cláusula.

Procedem nessa medida as conclusões da recorrente nºs 3 e 4 das conclusões.

VII.
E quanto à procedência da acção?

Na contestação a recorrente havia excepcionado a compensação, uma vez que alegara o pagamento à A. da quantia de €12.508,76 resultante da diferença entre € 60.160,21 e dos custos de reparação de €47.651,45.

Provou-se que:

No dia 07/09/2006, pelas 05h20m, no decurso da realização do trabalho nocturno, o trabalhador temporário A...G... conduzia o camião Dumper Bell B35D N/n.° … (2°/BI).
Na ocasião, o camião Dumper Bell circulava com a caixa de carga (báscula) parcialmente levantada e embateu com a mesma no tabuleiro da Passagem Superior 3 — PS3 (3° e 4°/BI).
Se aquele camião circulasse com a caixa de carga (báscula) recolhida teria passado por debaixo da referida Passagem Superior sem que nela tivesse embatido 6°/BI).
Em consequência directa daquele embate, o camião Dumper Bell B35D N/n.° … sofreu estragos que obstavam à sua circulação (7°/BI).
Os trabalhos de reparação do camião Dumper Bell realizados no «Entreposto Máquinas» (Grupo Entreposto) custaram à Ré um total de 45.317,13€, assim discriminado:
a) Reparação da suspensão: 11.472,57€;
b) Reparação de articulação central: 6.167,27€;
c) Reparação de caixa de carga e macaco: 12.952,34€;
d) Reparação de estruturas exteriores: 6.356,21€; e
e) Reparação de cabine: 8.368,74€ (8°/BI).

Tais factos consubstanciam-se no âmbito da falada compensação.

Estabelece o art . 847 do C.C que,

“quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor, qualquer delas pode livrar-se da sua obrigação por meio de compensação com a obrigação do seu credor, verificados os seguintes requisitos:
a) Ser o seu crédito exigível judicialmente e não proceder contra ele excepção, peremptória ou dilatória, de direito material;
b) Terem as duas obrigações por objecto coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade”.
Se as duas dívidas não forem de igual montante, pode dar-se a compensação na parte correspondente – cfr. nº 2 da citada disposição legal – sendo que a iliquidez da dívida não impede a compensação – cfr. nº 3.

Dispõe, por outro lado, o art. 848º nº 1 que a compensação torna-se efectiva mediante declaração de uma das partes à outra, sendo indiscutível que tal declaração – destinada a tornar efectiva a compensação – pode ser efectuada em acção judicial por via de excepção, como aconteceu no caso “sub-judice”.

A compensação pressupõe, em primeiro lugar, a reciprocidade de créditos.

Porém, os créditos a compensar podem ter origem em fonte de obrigação diferente, isto é, nada obsta a que o crédito invocado para efeitos de compensação tenha a sua fonte ou origem numa relação jurídica totalmente distinta e autónoma daquela que fundamentava o pedido do autor.

É precisamente o caso.

Verificam-se todos os requisitos para que a compensação actue.

Os factos anteriormente referidos incluem-se numa situação negligente por parte do trabalhador “cedido” temporariamente.

Os danos daí acontecidos incluem-se totalmente na cláusula 11ª do contrato que ambos aceitaram.

A compensação é de aceitar, já que os montantes se equivalem no sentido de que não remanesce valor superior para a recorrente. Antes pelo contrário.

De resto, a própria A. havia aceite tal compensação (cfr. nºs 16, 17 e 18).

Procedem, assim, as demais conclusões das alegações, o que conduz à procedência do recurso.


VIII.
Deste modo, pelo exposto, julga-se procedente o recurso, revoga-se a decisão impugnada e absolve-se a Ré do pedido.

Custas pela A.

Registe e notifique.

Lisboa, 26 de Maio de 2011

Fernando da Silva Santos
Bruto da Costa
Catarina Manso