Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
674/08.4IDLSB-A.L1-3
Relator: MARIA JOSÉ COSTA PINTO
Descritores: ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
CONSTITUIÇÃO DE ARGUIDO
TERMO DE IDENTIDADE E RESIDÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/12/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I – O administrador da insolvência não deve representar no processo penal a sociedade insolvente arguida.
II – O termo de identidade e residência não é compatível com a posição do administrador de órgão auxiliar da justiça e com o estatuto deste que emerge da Lei n.º 32/2004, de 22-07.
III – Quem representa a sociedade insolvente no processo penal são os representantes legais da mesma à data da declaração de insolvência, mantendo-se os mesmos em funções após aquela declaração nos termos prescritos no art. 82.º, n.º 1 do CIRE, em tudo o que seja alheio à administração e disposição da massa insolvente ou que não implique a representação do devedor para os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório

1.1. Nos autos de inquérito com o n.º …, a sociedade anónima “S… SA”, foi em 30-07-2010 constituída arguida, na pessoa de J… que é o seu Administrador de Insolvência, conforme anúncio publicado no Diário da República, II Série, em … 2009.
Este mesmo J… requereu em 22-02-2011 ao Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa que proferisse despacho de acordo com o qual deixasse de estar investido na qualidade de representante da sociedade arguida e serem os gerentes da sociedade (no ano de 2007 e 2008), altura a que remonta a prática dos factos vertidos na acusação, os representantes legais da sociedade para efeitos penais.
Sobre este requerimento recaiu o despacho ora sob recurso, proferido em 18 de Março de 2011 pelo Mmo. Juiz do 3.º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, que decidiu nos seguintes termos:
«Nos presentes autos veio J… requerer que na qualidade de administrador de Insolvência da sociedade Arguida deixe de estar investido na qualidade de legal representante da Sociedade Arguida, e, em consequência, passarem a ser os gerentes da Sociedade, em exercício no ano a que respeitam os factos, a representá-la para efeitos penais.
O Ministério Público deduziu oposição.
O ora requerido pelo Administrador da Sociedade Arguida colide frontalmente com o disposto no artigo 81/nº4 do CIRE, que estabelece que o administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência e ainda com o disposto no artigo 55º, nº1 alíneas a) e b), e nº2, que, por seu turno, estatui que o administrador da insolvência exerce pessoalmente as competências do seu cargo, não podendo substabelecê-las em ninguém, sem prejuízo dos casos de recurso obrigatório ao patrocínio judiciário ou de necessidade de prévia concordância da comissão de credores, não se vislumbra como possa, não se entendendo pois que fundamento legal possa ser invocado para sustentar o requerido, que deverá assim ser indeferido.
Contudo, sempre se dirá que salvo o devido respeito por opinião diversa, existe alguma confusão na constituição da Sociedade como Arguida e na sua sujeição a Termo de Identidade e Residência, sendo legalmente representada pelo Requerente e a constituição deste, a título pessoal como Arguido, que obviamente não se verifica nos autos, sendo ambas as situações inconfundíveis, conforme resulta cristalinamente da leitura dos autos a fls. 99 a 100.
Em face do exposto, indefiro o requerido.»
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1.2. Inconformado com este despacho, veio J… interpor o presente recurso, tendo formulado, a terminar a respectiva motivação, as seguintes conclusões:
“1) Em 02 de Julho de 2009 foi proferida sentença de declaração de insolvência da sociedade anónima "S... SA"— conforme anúncio publicado no Diário da República... de 2009, cuja cópia se juntou como doc.1. do requerimento expedido a 18-02-2011.
2) Em 30-07-2010, a sociedade acima mencionada foi constituída arguida na pessoa do ora recorrente pelo simples motivo que é o seu administrador de insolvência.
3) Contra a referida pessoa colectiva foi deduzida acusação em 2010, pela alegada prática de factos criminosos referente a Dezembro de 2007, Agosto de 2008 e Novembro de 2008 (caso do IVA) e Setembro de 2008 (caso do IRS).
4) Observando as mencionadas datas, resulta claro que os factos que motivaram a dedução da acusação remontam ao período que mediou entre Dezembro de 2007 e Novembro de 2008, enquanto a nomeação do ora recorrente como Administrador de Insolvência da sociedade arguida se deu somente em 02-07-2009.
5) Sendo a qualidade de Administrador de Insolvência adquirida por nomeação judicial com o intuito de dispor e administrar os bens da sociedade, isto é, disposição de carácter patrimonial, entende o ora Recorrente não ter legitimidade para representar a sociedade arguida na medida em que essa representação é de natureza pessoal e não estritamente patrimonial.
6) O recorrente discorda da sua constituição como representante da sociedade arguida, visto a única ligação entre este e a referida sociedade por quotas residir no facto de o mesmo se encontrar investido na qualidade de Administrador de Insolvência da mesma.
7) Resulta expressamente dos n.°s 1 e 4 do art. 81° e do n.° 1 do art. 82° do C.I.R.E. que a dissolução da sociedade apenas transfere para o liquidatário (administrador de insolvência) os poderes de administração e disposição de bens e isto não passa por constituir este como representante da sociedade arguida.
8) Embora tenha sido a sociedade "S... SA" a ser constituída arguida, e o ora recorrente seu representante legal, a verdade é que, materialmente, esta representação imputa na esfera jurídica do representante todos os direitos e deveres do arguido.
9) Sendo a prática dos alegados factos anterior à sua nomeação como administrador de insolvência e se este em nada participou nem teve qualquer intervenção, não pode trazer qualquer esclarecimento para o processo nem tão-pouco contribuir para uma efectiva defesa da sociedade arguida.
10) Não sendo o recorrente formalmente arguido, a verdade é que a partir do momento em que prestou TIR, enquanto legal representante da sociedade, é a ele que cabe representá-la em todos os actos em que esta tem de comparecer enquanto arguida.
11) A função primordial do administrador de insolvência é a liquidação do património do devedor, se outra não for a intenção dos credores manifestada num plano de insolvência (art.192° CIRE).
12) Nos termos do art. 81° do CIRE, a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente dos poderes de administração e disposição dos bens integrantes da massa insolvente passando estes a competir ao administrador de insolvência.
13) O administrador assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência.
14) Podemos então concluir que o administrador de insolvência passa a ser legal representante da sociedade para todos os efeitos de carácter patrimonial, não cuidando a lei de lhe impor também a representação da sociedade para efeitos de natureza pessoal, como seja a sua representação como arguida em processo penal.
15) Já existe, inclusivamente, jurisprudência sustentando a impossibilidade de o Administrador de Insolvência prestar TIR em lugar da sociedade arguida, mesmo quando o M.P. e o próprio tribunal entendem que, para todos os efeitos, é o seu representante legal (cf. Despacho proferido no âmbito do processo n° 114/05.0IPLSB, que corre termos na 1.ª secção do 5.° juízo do Tribunal Criminal de Lisboa – e que se acha já parcialmente transcrito no corpo do presente recurso).
16) Se é verdade que, em abstracto, o presente processo criminal, por ser a arguida uma pessoa colectiva, apenas importará consequências patrimoniais, em concreto, quanto ao seu representante legal, aqui recorrente, o mesmo não pode ser dito.
17) Com efeito, existem efectivamente efeitos pessoais (para o recorrente), como p. ex: a obrigação de sujeição a termo de identidade e residência implica, nos termos da alínea b) do n°3 do art. 196° do Código de Processo Penal que o ora recorrente – na sua condição de, para efeitos do processo criminal em apreço, representante legal da arguida – não possa mudar de residência ou dela se ausentar por mais de 5 dias, sem que comunique a nova residência ou lugar onde possa ser encontrado.
18) Acresce que, como é sabido, e está plasmado no n°3 do art. 61° do C:P:P:, enquanto legal representante da arguida, o ora recorrente encontra-se sujeito a uma série de deveres.
19) Ainda que não constituído formalmente, tem o recorrente na prática o estatuto de arguido estando por isso sujeito ao regime vertido no art. 61° do C.P.P.
20) A título meramente exemplificativo, tem, nos termos da alínea f) do n° 1 do art. 61 do C.P.P, direito a constituir advogado.
21) Além do mais o recorrente, enquanto representante da sociedade arguida, tem o dever de comparecer perante o Juiz, M.P. ou órgãos de polícia criminal, sempre que a lei o exigir e para tal tiver sido devidamente convocado – alínea a) do n°3 do art. 61° do C.P.P.
22) É ainda de ter em conta todos os incómodos e óbvios prejuízos para o exercício da sua actividade profissional, até porque o objectivo de tais deveres tem o propósito de esclarecer as autoridades dos factos em apreço e sendo a prática dos mesmos anterior à sua nomeação como administrador de insolvência, é natural que o recorrente nada possa esclarecer.
23) Não é admissível, tratando-se a arguida de uma pessoa colectiva, que se reflicta no administrador de insolvência todos os direitos e deveres de arguido e respectiva medida de coacção de TIR, pois não obstante formalmente assim não se possa considerar, materialmente e na prática assim sucede, o que não deixa de ser uma forte e incompreensível limitação à actividade desempenhada pelo recorrente, a qual tem inegável interesse público.
24) E se é verdade que a decisão judicial que venha a ser tomada, no âmbito dos presentes autos, será sempre exclusiva á sociedade "S... SA"– (arguida), como supra se deixou já bem claro, em concreto o ora recorrente, enquanto legal representante daquela, vê-se onerado com as obrigações decorrentes da qualidade de arguida que aquela detém.
25) Por definição, toda e qualquer medida de coacção, só pode ser sofrida por aquele que for constituído arguido em processo penal, ora sendo a pessoa colectiva é uma ficção jurídica, qual ser etéreo, quem tem como resultado prático o facto das obrigações impostas pelo TIR, bem como dos deveres constantes do estatuto de arguida serem sofridos pelo seu representante legal, que, inegavelmente, são limitadores da sua liberdade.
26) Por outro lado, ainda no âmbito da presente problemática, deve ser respigado o modelo da responsabilidade penal das pessoas colectivas constantes do art°. 11° do Código Penal e que foi também ignorado pelo despacho recorrido.
27) Segundo Germano Marques da Silva "o art. 11° do Código Penal parece assentar a responsabilidade da pessoa colectiva na acção e culpa das pessoas físicas que, ocupando uma posição de liderança, agem em nome dela, partindo da ideia de que essas pessoas físicas não são distintas da sociedade peio que ao agirem é a própria pessoa colectiva que age. Ora, a partir do pressuposto que as infracções são cometidas pelas pessoas que na pessoa colectiva ocupem uma posição de liderança, parece ser condição necessária da responsabilidade das pessoas colectivas que os titulares dos seus órgãos, os seus representantes ou outras pessoas que nela tiverem autoridade para exercer o controlo da sua actividade tenham praticado um crime. Não parece exigir que essas pessoas físicas sejam efectivamente condenados, mas, numa interpretação literal do texto, é necessário que pelo menos seja apurada a culpa dessas pessoas físicas que actuam em nome e no interesse da pessoa colectiva".
28) Por outro lado, e agora de uma perspectiva constitucional, nem a lei, nem o Julgador podem emitir ou interpretar normas incompatíveis com os direitos fundamentais, por violação de liberdades e garantias constitucionais sob pena da sua inconstitucionalidade.
29) Se é certo que o direito à liberdade não é um direito absoluto, admitindo restrições, estas estão previstas e justificadas constitucionalmente, não podendo a lei criar outras (art°. 27° n° 2 e 3 da Constituição da República Portuguesa).
30) Quaisquer restrições ao direito à liberdade, enquanto direito fundamental, integra também a categoria dos "direitos, liberdades e garantias" previstos no no art°. 18°n° 2 e 3 da C.R.P.
31) A liberdade tal como se encontra constitucionalmente consagrada naquele preceito reveste diversos graus de intensidade de confinamento, que só podem ser restringidas nos casos previstos no n° 1 e 2 do art. 27° da C.R.P.
32) Esse carácter mais abrangente do direito à liberdade previsto constitucionalmente assegura que ninguém pode ser limitado na sua liberdade injustificadamente, sendo certo que qualquer medida de coação é uma limitação à liberdade individual, pelo que não podemos deixar de daí retirar consequências para o caso em apreço.
33) Com efeito a limitação de movimentos imposta ao recorrente como consequência de, por seu intermédio, ter sido aplicada a medida de coacção de TIR à arguida, apresenta-se-nos como manifestamente violadora dos referidos n°s 1 e 2 do art. 27° da C.R.P., sendo ainda violador dos mais elementares direitos, liberdade e garantias ínsitos nos art°. 18° n° 1 e 2 da C.R.P.
34) Ora, a interpretação que o tribunal recorrido faz do n° 4 do art. 81° e 55° n° 1 al. a), ambos do C.I.R.E. segundo a qual a o administrador de insolvência assume não só a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessam á insolvência, mas também assume a representação da pessoa colectiva para efeitos de natureza pessoal, designadamente, representação em processo crime, sujeitando-se às obrigações adstritas à qualidade de arguida da sociedade insolvente, é inconstitucional por violação dos art°. 18° n° 1 e 2 e 27° n°s 1 e 2 da C.R.P – inconstitucionalidade que, para os devidos efeitos, desde já se invoca.
35) Assim, considera o recorrente que a interpretação conjuqada dos art°s. 81° n° 4 e 55° n° 1 al. a) e b) do CIRE apenas atribuem efeitos de disposição de natureza patrimonial ao administrador de insolvência e não também efeitos de natureza pessoal (nos quais se insere a representação para efeitos penais).
Termos em que, Deve ser o presente recurso julgado procedente e, em consequência, ser o despacho recorrido revogado e substituído por um outro que determine que o recorrente deixe de estar investido na qualidade de representante da sociedade arguida para efeitos penais no âmbito dos presentes autos.”
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1.3. Respondeu o Ministério Público, pugnando pela improcedência do recurso e manutenção do despacho recorrido.
1.4. O recurso foi admitido por despacho certificado a fls. 48.
1.5. Uma vez remetido o mesmo a este Tribunal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto Parecer no sentido de que o representante da sociedade insolvente para efeitos criminais continuará a ser o seu representante legal constante do pacto social, estatuto ou lei, e não o liquidatário, cuja representação se restringe aos interesses patrimoniais da insolvente, pelo que o recurso merece provimento.
1.6. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta a este Parecer.
1.7. Foi proferido despacho preliminar.
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Colhidos os “vistos” e realizada a Conferência, cumpre decidir.
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2. Objecto do recurso
Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões da motivação que o recorrente produziu para fundamentar a sua impugnação, onde sintetiza as razões da discordância do decidido e resume as razões do pedido – arts. 403.º e 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal -, a única questão que se coloca à apreciação deste Tribunal consiste em saber se o administrador da insolvência deve ser constituído arguido, em representação da sociedade insolvente que seja arguida em processo criminal.
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3. Fundamentação
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3.1. Resulta dos autos, com interesse para a decisão do recurso, que:
a) Em 02-07-2009 foi proferida sentença de declaração de insolvência da sociedade anónima "S… SA" (anúncio publicado no Diário da República, II Série, de… 2009, documentado a fls. 39)
b) O recorrente foi nesse acto nomeado o Administrador de Insolvência da mencionada sociedade, nos termos do preceituado na alínea d) do art. 36° do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas (anúncio publicado no Diário da República, II Série, de … 2009, documentado a fls. 39).
c) Em 30-07-2010, a sociedade acima mencionada foi constituída arguida, na pessoa do recorrente (vide a certidão antecedente).
d) O ora recorrente não chegou a prestar Termo de Identidade e Residência nestes autos (vide a certidão antecedente).
e) O processo criminal em que foi interposto o presente recurso respeita à prática, pela referida sociedade, de factos integrantes do crime previsto no art. 105.º do RGIT, praticados em Dezembro de 2007, Agosto de 2008 e Novembro de 2008 (factos relacionados com o IVA) e Setembro de 2008 (factos relacionados com o IRS).
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3.2. Nos termos do preceituado no n.º 1 do artigo 81.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) [Aprovado pelo DL n.º 200/2004, de 18-08 e alterado pelo DL n.º 76-A/2006, de 29-03, pelo DL n.º 282/2007, de 07-08, pelo DL n.º 116/2008, de 04-07 e pelo DL n.º 185/2009, de 12-08], a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência.
Está este preceito em consonância com o artigo 55.°, n.º 1, do CIRE, que rege sobre as funções e exercício do administrador da insolvência dispondo que:
«Além das demais tarefas que lhe são cometidas, cabe ao administrador da insolvência, com a cooperação e sob a fiscalização da comissão de credores, se existir:
a) Preparar o pagamento das dívidas do insolvente à custa das quantias em dinheiro existentes na massa insolvente, designadamente das que constituem produto da alienação, que lhe incumbe promover, dos bens que a integram;
b) Prover, no entretanto, à conservação e frutificação dos direitos do insolvente e à continuação da exploração da empresa, se for o caso, evitando quanto possível o agravamento da sua situação económica.»
Por seu turno o n.º 4 do citado artigo 81.º estabelece que:
«O administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência.» (sublinhado nosso).
Deste regime legal extrai-se, por um lado, que as funções do administrador da insolvência se direccionam, essencialmente, para a liquidação da massa insolvente, e, por outro, que os seus poderes de representação se restringem aos efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência. No fundo, o âmbito funcional do administrador da insolvência é recortado pela limitação do insolvente inerente à declaração de falência.
Finalmente, deve ter-se presente que a função do administrador da insolvência traduz o cumprimento de um dever legal de interesse público [É a este propósito esclarecedor o próprio recorte da figura do administrador da insolvência que se extrai da Lei n.º 32/2004, de 22-07 (que aprova o Estatuto do Administrador da Insolvência), sendo de sublinhar não só os apertados requisitos para o seu processo de inscrição nas listas oficiais e subsequente nomeação (arts. 2.º e ss.), como ainda a sua sujeição aos impedimentos e suspeições aplicáveis aos juízes (art. 8.º). Apelidando o administrador da Insolvência como “um servidor da justiça e do direito” vide o Acórdão da Relação do Porto de 2009.12.16, in www.dgsi.pt.].
Apesar das sucessivas alterações legislativas, o desenho legal da posição do devedor insolvente e das funções de quem fica publicamente incumbido da liquidação da massa insolvente manteve-se, na sua essência, o mesmo.
Já no âmbito do Estatuto Judiciário [Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 44278, de 14-04-1962.], o então denominado administrador de falências era fundamentalmente o liquidatário do acervo de bens e direitos que constituem o activo do falido ou insolvente [Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 44278, de 14-04-1962.]. Aí também lhe competia representar a massa em juízo, activa e passivamente [artigo 75.º, alínea i) do Estatuto], mas já então a doutrina entendia, ponderando entre as teorias da representação” e “do ofício ou função judiciária”, que o administrador “é um órgão auxiliar da justiça, subordinado ao interesse público”, agindo “por direito próprio e em seu nome, no cumprimento dos deveres que a lei lhe impõe [Vide Pedro de Sousa Macedo in "Manual de Direito das Falências", Lisboa, 1964, pp. 507-508. Também a jurisprudência perspectivava o administrador da falência como um órgão auxiliar da justiça, subordinado ao interesse público, agindo por direito próprio e em seu nome, no cumprimento dos deveres que a lei lhe impõe, mais do que como um representante – vide o Acórdão da Relação do Porto de 1983.02.17, in BMJ 324/621 e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1983.05.05, in BMJ 327/601.]. O artigo 1189º do Código de Processo Civil de 1967 veio estabelecer que o administrador da falênciafica a representar o falido para todos os efeitos, salvo quanto ao exercício dos seus direitos exclusivamente pessoais ou estranhos à falência”.
Também no domínio do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência aprovado pelo DL n.º 132/93, de 23/04, o nele expressivamente denominado “liquidatário judicial”, tinha como competência, além de outras, a de representar a massa em juízo, activa e passivamente” [art. 134.º, n.º 4, alínea a) do CPEREF], assumindo igualmente “a representação do falido para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à falência[art. 147.º, n.º 2, do CPEREF, cujo regime foi acolhido, com meras adaptações, pelo artigo 81.º, n.º 4 do CIRE actualmente em vigor].
Reflectindo sobre o nº 2 do artigo 147º do CPEREF de 1993 - representação do falido em juízo -, Carvalho Fernandes e João Labareda opinam que o mesmo também não estabelece regime diferente do anterior nº 3 do artigo 1189º do Código de Processo Civil de 1967, pois que, ao estatuir que o liquidatário judicial assume a representação (sic) do falido para os efeitos patrimoniais relativos à falência, mais não significa que a inibição do falido se revela inoperante relativamente às matérias de natureza pessoal em geral, e outrossim, quanto às patrimoniais estranhas à falência”. [In "Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência", Anotado, 3ª edição, p. 392. Este entendimento foi acolhido pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2003-07-10 (Processo n.º 04B591, in www.dgsi.pt).].
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3.3. Perante este enquadramento normativo e doutrinário das funções do administrador da insolvência, não podemos acompanhar a tese do despacho recorrido no sentido de que o recorrente deve continuar a representar a sociedade arguida para efeitos penais pelo mero facto de ter a qualidade de administrador da insolvência e a inerente posição legal.
Com efeito, como resulta claramente daquele enquadramento, a lei não cuida de impor ao administrador da insolvência, também, a representação da sociedade insolvente para efeitos de natureza pessoal.
Ora, a prática de um crime resulta de um comportamento humano. Mesmo quando a responsabilidade penal é imputada a uma pessoa colectiva, o certo é que ela não actua por si só mas sempre por intermédio dos seus órgãos ou representantes, formados por pessoas que actuam em nome da pessoa colectiva e é o comportamento humano destas que vai responsabilizar aquela. A responsabilidade penal da pessoa colectiva pressupõe, sempre, que outrem actuou por ela com culpa, pois a culpa da pessoa colectiva comunga da culpa daquele que age como seu órgão ou representante [Vide Germano Marques da Silva in "Direito Penal Português", I, p. 286.].
Apesar de constituir uma verdadeira responsabilidade autónoma e distinta da responsabilidade das concretas pessoas singulares que compõem o ente colectivo, sendo a categoria da culpa aqui aplicável por analogia, a autonomia do acto da pessoa colectiva objecto de censura penal decorre sempre da conjugação de vontades de mais do que uma pessoa[Vide Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, Lisboa 2008, p. 81.]. Enquanto realização do homem livre, a pessoa colectiva pode ser destinatária da norma penal e constituir um centro ético-social de imputação jurídico-penal [Vide Figueiredo Dias, in “Direito Penal, Parte Geral - Questões Fundamentais, A doutrina Geral do Crime”, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra, 2007, pp. 298 e 299, referindo-se ao modelo da culpa analógica.
No seu estudo intitulado “Incidências processuais da punibilidade dos entes colectivos”, in Revista do Ministério Público, n.º 105, Janeiro-Março de 2006, pp. 93-94. Segundo aí diz, no limite poderá justificar-se a comunicação ao administrador de certos actos do processo penal que possam interessar à insolvência, prefigurando como mais provável a sua intervenção no processo como testemunha por ter privilegiado conhecimento de situações relevantes da matéria ilícita a apurar.].
Trata-se, de todo o modo, e sempre, de uma responsabilidade pessoal, resultante da adopção de um comportamento ético-juridicamente censurável do ente colectivo que desencadeia o poder punitivo do Estado.
Quando assume as vestes de arguida num processo penal, a pessoa colectiva declarada insolvente de modo algum está a desenvolver actos atribuídos por lei ao seu administrador da insolvência – relacionados com a liquidação do seu património, ou com carácter patrimonial que interessem à insolvência –, mas a ocupar uma posição de cariz estritamente pessoal, relativamente à qual a declaração de insolvência não tem quaisquer efeitos.
É o que resulta claramente, não só do tipo de responsabilidade que sobre si impende nos termos do art. 11.º do Código Penal, mas também dos arts. 57.º a 60.º do Código de Processo Penal que regem sobre o arguido em processo criminal e, particularmente, do elenco de direitos e deveres processuais, todos eles de natureza pessoal, que inerem aquela posição processual e estão enunciados no subsequente artigo 61.º deste diploma adjectivo.
O mesmo sucede com a panóplia de obrigações associadas à prestação de termo de identidade e residência previsto no art. 196.º do Código de Processo Penal, todas elas de natureza evidentemente pessoal e limitadoras ou restritivas da sua liberdade (v.g. de movimentos).
Por isso se acompanha Jorge dos Reis Bravo, quando este autor afirma que a intervenção do administrador da insolvência como representante do devedor no processo criminal nunca será adequada e idónea”, propendendo para a sua inadmissibilidade [No seu estudo intitulado “Incidências processuais da punibilidade dos entes colectivos”, in Revista do Ministério Público, n.º 105, Janeiro-Março de 2006, pp. 93-94. Segundo aí diz, no limite poderá justificar-se a comunicação ao administrador de certos actos do processo penal que possam interessar à insolvência, prefigurando como mais provável a sua intervenção no processo como testemunha por ter privilegiado conhecimento de situações relevantes da matéria ilícita a apurar.].
E também se acompanha o Acórdão da Relação do Porto de 2011.01.26 (processo n.º 559/07.1TALSD.P1, in www.dgsi.pt), quando neste se escreve que o representante da sociedade insolvente, para efeitos criminais, continuará a ser o gerente – e não o administrador da insolvência, que apenas é competente em sede patrimonial, quanto à representação da massa «falida»”.E o Acórdão desta Relação de Lisboa de 2011.06.30 (Processo n°. 178/10.5IDLSB-A.LI) quando neste se decide que não pode o administrador da insolvência ser constituído arguido e consequentemente ser sujeito a uma medida de coacção, nomeadamente de TIR (art°. 196 do C.P.P.), enquanto representante da sociedade insolvente”.
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3.4. Invoca o recorrente que prestou termo de identidade e residência enquanto legal representante da sociedade e que a limitação de movimentos que lhe foi imposta como consequência de lhe ter sido aplicada esta medida de coacção se mostra violadora dos seus direitos constitucionais (arts. 27.º e 18.º da Constituição da República Portuguesa) – vide as conclusões 10.ª e 33.ª.
Como resulta da certidão antecedente, o ora recorrente não chegou a ser submetido a esta medida de coacção no âmbito dos presentes autos.
Mas, como pela mera constituição como arguido, se mostra obrigado à prestação de TIR por força do que estabelece o n.º 1 do art. 196.º do Código de Processo Penal, debruçar-nos-emos sobre a argumentação recursória a este propósito desenvolvida.
E podemos adiantar que a sujeição do ora recorrente a esta medida de coacção prevista no art. 196.º do Código de Processo Penal – ainda que tendo-se presente que o mesmo não é arguido a título pessoal mas apenas representa a sociedade arguida, como nota o despacho recorrido – se mostra absolutamente incompatível com a posição do administrador da insolvência de órgão auxiliar da justiça e com o estatuto deste que emerge da Lei n.º 32/2004, de 22-07.
Além disso, como bem refere o recorrente, lesa claramente o seu direito à liberdade garantido no art. 27.º da Constituição da República Portuguesa, o qual abrange o direito à liberdade física e de movimentos, abarcando, quer o direito de não ser detido, aprisionado, ou de qualquer modo fisicamente confinado a um determinado espaço, quer o direito a não ser impedido de se movimentar livremente.
Com efeito, qualquer medida de coação, incluindo o termo de identidade e residência previsto no art. 196.º do Código de Processo Penal, traduz uma limitação à liberdade individual.
Tal como se encontra constitucionalmente consagrada no art. 27.º da Lei Fundamental, a liberdade reveste diversos graus de intensidade, e só pode ser restringida, total ou parcialmente, nos casos previstos nos n.ºs 1 e 2 do preceito, estando assegurado que ninguém pode ser injustificadamente limitado na sua liberdade (vide ainda os artigos 18.º, n.ºs 2 e 3 da Constituição).
A limitação de movimentos imposta ao recorrente como consequência de, por seu intermédio, ser aplicada aquela medida de coacção à arguida, apresenta-se como manifestamente violadora dos referidos nºs 1 e 2 do art. 27.º e dos n.ºs 1 e 2 do art. 18.º, da C.R.P.
Contudo, na medida em que, como resulta do já exposto, a imposição de tal medida ao recorrente não tem, sequer, respaldo legal – por não cometer a lei ao administrador da insolvência o encargo de assumir a representação da pessoa colectiva insolvente para efeitos de natureza pessoal, designadamente a sua representação em processo crime – esta questão de constitucionalidade não chega a assumir relevância autónoma na tramitação deste recurso, mostrando-se ultrapassada.
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3.5. Cabe, ainda, deixar uma nota final.
Embora no recurso o recorrente se limite a pedir que deixe de estar investido na qualidade de representante da sociedade arguida para efeitos penais no âmbito dos presentes autos”, no decurso da motivação não deixa de sustentar que devem ser os gerentes da sociedade na altura a que remonta a prática dos factos que se encontram vertidos na acusação os representantes legais da sociedade arguida para efeitos penais.
Ora, quanto a este aspecto, há que atentar em que, nos termos prescritos no art. 82.º, n.º 1 do CIRE, os órgãos sociais do devedor se mantêm em funcionamento após a declaração de insolvência, embora obviamente com as restrições decorrentes da declaração de insolvência – que acarreta a imediata privação do insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente (art. 81.º, n.º 1), e que coloca a cargo do administrador da insolvência os poderes de administração, disposição e representação enunciados na lei –, o que é fundamental para responder à questão de saber quem representa a sociedade insolvente no processo criminal.
Por força deste preceito, e dos demais que desenham os poderes e atribuições do administrador da insolvência, o insolvente pode continuar a agir por intermédio dos seus representantes legais ou estatutários no que respeita a actos que sejam alheios à administração e disposição da massa insolvente ou que não impliquem a representação do devedor para efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência.
Como se refere no Acórdão da Relação de Lisboa de 06-03-2008 (Processo n.º 1610/2008-8, in www.dgsi.pt), o devedor tem legitimidade substantiva para praticar actos que não sejam daqueles que, respeitantes à massa insolvente, de natureza patrimonial, têm a representação cometida ao administrador da insolvência.
Os poderes de representação dos órgãos sociais da sociedade insolvente subsistem, pois, relativamente a todos os actos que sejam estranhos à massa insolvente e são-no, manifestamente, os actos em que se exercem direitos e deveres alheios à administração e disposição da massa ou que não estejam cometidos ao administrador da insolvência, tal como o de representar a sociedade num processo criminal em que a mesma seja arguida.
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3.6. Concluímos, assim, que:
· a representação da sociedade insolvente, arguida em processo penal, não se inclui nos poderes de representação da sociedade insolvente que a lei comete ao administrador de insolvência nos termos do art. 81.º, n.º 4 do CIRE,
· é aos representantes legais de tal sociedade à data da declaração de insolvência que incumbe a sua representação no processo criminal, mantendo-se os mesmos em funções após aquela declaração nos termos prescritos no art. 82.º, n.º 1 do CIRE, em tudo o que seja alheio à administração e disposição da massa insolvente ou que não implique a representação do devedor para efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência[Como escreve Paulo Pinto de Albuquerque (in Comentário do Código de Processo Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3.ª edição actualizada, Lisboa 2009, p. 167), reportando-se genericamente às pessoas colectivas, a representação destas no processo penal não é assegurada por quem na data do facto ilícito tinha o encargo legal ou estatutário da representação, mas antes por quem na data do acto processual tem esse encargo (art. 21.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, ex vi do art. 4.º do Código de Processo Penal). Assim, independentemente de haver, ou não, responsabilidade pessoal dos gerentes e administradores que praticaram as condutas ilícitas descritas na acusação, a representação processual da pessoa colectiva em juízo deve fazer-se por quem a representa no momento em que a mesma é chamada responder no processo criminal. Caso se trate de pessoa colectiva insolvente, será pelos órgãos sociais com poderes de representação referidos no art. 82.º, n.º 1 do CIRE.].

3.7. Uma vez que o recorrente obteve vencimento no recurso, não é responsável pelo pagamento de taxa de justiça [art. 513.º do CPP].
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4. Decisão
Nesta conformidade, decide-se julgar procedente o recurso e, em conformidade:
4.1. Revoga-se o despacho recorrido;
4.2. Defere-se a pretensão do recorrente J…, determinando-se que o mesmo deixa de estar investido na qualidade de representante da sociedade arguida “S…SA”, para efeitos penais no âmbito dos presentes autos.
Sem custas.
D.N., dando ainda conhecimento ao recorrente do teor do despacho liminar.
(Documento elaborado pela relatora e integralmente revisto por quem o subscreve – artigo 94.º, n.º 2 do CPP)

Lisboa, 12 de Outubro de 2011

(Maria José Costa Pinto)

(Paulo Fernandes da Silva)