Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
193/21.3PGCSC.L1-9
Relator: MARIA DO ROSÁRIO SILVA MARTINS
Descritores: COMPETÊNCIAS DA POLÍCIA MUNICIPAL
CRIME DE CONDUÇÃO DE VEÍCULO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
RECOLHA DE MEIOS DE PROVA-TESTE QUANTITATIVO
PROVA PROIBIDA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/07/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: IPor referência ao exarado na Lei n.º 53/2008, de 29 de Agosto, com as devidas actualizações legais, a POLMUN ( policia Municipal) não integra as forças nem os serviços de segurança (vide art. 25.º do diploma) não sendo, por isso, passível de considerar-se que as medidas gerais e especiais de polícia (art. 28.º e seg.) integradas nesta Lei de Segurança Interna constituam, no que à POLMUN diz respeito, normas atributivas de competências;

IIMesmo sendo atribuídas funções de fiscalização do trânsito rodoviário às POLMUN, nunca se poderá entender que estas são “autoridades” para os efeitos do disposto no CE, no entanto, o limite da sua actuação terá de estabelecer-se, precisamente, quando no decorrer de tal fiscalização se verifique a prática de crime;

IVTal entendimento estriba-se na Lei n.º 19/2004, a qual impõe a insusceptibilidade dos agentes da POLMUN praticarem actos próprios dos OPC (designadamente recolha e produção de prova), conferindo-lhes somente, e face à verificação do flagrante delito, a detenção com entrega imediata (leia-se, no mais curto espaço de tempo possível) às forças de segurança ou ao órgão judicial competente (para a instauração de inquérito crime).

V Só é legalmente permitido que a POLMUN acautele no local do facto típico as medidas cautelares necessárias e adequadas, mas a lei, em lugar algum permite que a POLMUN detenha (ou retenha, de qualquer forma suprimindo claramente a liberdade nas suas múltiplas e constitucionais vertentes), suspeitos identificados e proceda ao teste quantitativo e só depois entregue o/a arguido/a à PSP ou a qualquer outra entidade policial;

VINão tendo sido tal “iter” legal cumprido pela policia municipal, tendo esta se substituído à entidade policial competente (efetuando o teste quantitativo nas suas instalações) a arguida terá de ser absolvida, pois na verdade, o teste quantitativo realizado pela Polícia Municipal, constitui uma prova proibida em processo penal (art. 161.º, n.º 1 e 2 al. a), d), f), g) e l) e 162.º, n.º 1 do CPA e art. 126.º, n.º 1, 2 al. b) e c) do CPP.


Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordaram, em conferência, os Juízes Desembargadores da 9ª secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:


I–RELATÓRIO


1.1–Por sentença proferida em 05.05.2021 foi a arguida AA absolvida da prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º, nº1 do Código Penal.

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1.2– Recurso da decisão

O Ministério Público interpôs recurso da decisão, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):
1.-A sentença recorrida absolveu a arguida da prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo art. 292.º, n.º1 do Código Penal, de que estava acusado.
2.-O Tribunal a quo absolveu a arguida porquanto considerou que o teste quantitativo realizado pela Polícia Municipal, constitui uma prova proibida em processo penal (art. 161.º, n.º 1 e 2 al. a), d), f), g) e l) e 162.º, n.º 1 do CPA e art. 126.º, n.º 1, 2 al. b) e c) do CPP).
3.-Efectivamente, na sentença posta em crise, a Mmª Juiz a quo considerou que a Polícia Municipal, que “não é força de segurança e muito menos órgão de polícia criminal”, ao ter realizado o teste quantitativo, ao abrigo da manutenção de uma detenção ilegal, agiu fora do âmbito das suas competências, regulamentadas na Lei nº 19/2004, de 20 de Maio.
4.-A detenção por parte das Polícias Municipais tem sempre como pressuposto  a ocorrência de um crime público ou semi-público, punível com pena de prisão e em situação de flagrante delito.
5.-No caso dos autos, Agentes da Polícia Municipal presenciaram, no exercício das suas funções, a arguida a conduzir um veículo automóvel numa via pública e solicitaram-lhe que realizasse o teste qualitativo de álcool no sangue.
6.-A arguida acusou, então, uma TAS superior à legalmente permitida, o que integra uma situação de flagrante delito, ou, pelo menos, de uma forte suspeita da prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, crime este que, em abstracto, é punível com pena de prisão e que se enquadra, enquanto crime rodoviário, nas funções de fiscalização da circulação rodoviária, o que legitima os Agentes da Polícia Municipal a efectuarem detenções, a coberto das disposições legais acima invocadas.
7.-Nesta situação, qual a actuação seguinte que deveria tomar a Polícia Municipal? Conduzir o condutor às Instalações da PM e realizar o necessário teste quantitativo do álcool. Só depois deste teste quantitativo, é que obtém prova segura de que o visado conduz com uma taxa de álcool superior à legalmente admitida - e qual a concreta taxa -, pelo que só neste momento é que o Agente da Polícia Municipal pode elaborar o competente auto de notícia e deter o infractor em flagrante delito. Este é o entendimento perfilhado pelo Ministério Público da Comarca de Cascais,
Ou,
8.-Conduzir, no imediato, o condutor ao Posto da GNR ou à Esquadra da PSP com jurisdição na área de detecção do ilícito ou, em alternativa, contactar aquela força de segurança para que pudesse entregá-lo no imediato, dando conta, da verificação de flagrante delito da prática de condução em estado de embriaguez. Este é o entendimento perfilhado pelo Tribunal a quo.
9.-A situação em apreço foi já analisada detalhadamente pelo Tribunal da Relação de Lisboa no douto Acórdão de 29 de Julho de 2020, proferido no processo n.º 34/20.9PBCSC.L1, do Juízo de Pequena Criminalidade de Cascais.
10.- Do mesmo modo, foi analisada, mais recentemente, pelo Tribunal da Relação de Lisboa no douto Acórdão de 5 de Maio de 2021, proferido no processo n.º 395/20.5PDCSC.L1, do Juízo de Pequena Criminalidade de Cascais.
11.-Diga-se que não desconhecemos que o mesmo Tribunal da Relação de Lisboa, no seu douto Acórdão de 8 de Julho de 2020, proferido no processo n.º 86/20.1PBCSC-L1, do Juízo de Pequena Criminalidade de Cascais e, bem assim, no douto Acórdão de 24 de Março de 2021, proferido no processo nº 244/20.9PCCSC, pugnou pelo entendimento seguido na sentença recorrida, embora, neste último, com voto vencido.
12.-Contudo, aderimos aos fundamentos explanados no douto Acórdão de 29 de Julho de 2020, proferido no processo n.º 34/20.9PBCSC.L1, do Juízo de Pequena Criminalidade de Cascais, que, desde já, citamos: “o artigo 4º nº 1 alínea e) da Lei n.º 19/2004, incluí entre as competências próprias da polícia municipal, a detenção e entrega imediata, a autoridade judiciária ou a entidade policial, de suspeitos de crime punível com pena de prisão, em caso de flagrante delito, nos termos da lei processual penal. Pese embora não deva usar do prazo de 48 horas previsto no art. 254º nº 1 al. a) do CPP, a alusão a entrega imediata reforça a necessidade de o detido ser entregue com urgência, no mais curto espaço de tempo possível, mas é compatível com a elaboração do auto de notícia pela polícia municipal, o qual não prescinde da realização prévia do teste quantitativo do álcool e, uma vez realizado este e obtida uma TAS superior a 1,20 gr/litro está perfeitamente consolidado o flagrante delito”.
13.- Assim sendo, o Ministério Público considera que a Polícia Municipal tem competência para a realização do teste quantitativo, não podendo este ser considerada prova proibida, nos termos do art.126º do C.P.P.
14.- Pelo exposto, a sentença recorrida deve ser substituída por outra que condene o arguido pela prática do crime de que vinha acusado.”

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1.3–Resposta da Arguida
A arguida na resposta ao recurso, pugnou pela improcedência do recurso, concluindo que “a Policia Municipal não possui legitimidade para recolher prova e contraprova (teste quantitativo), podem apenas realizar teste de despiste (qualitativo) e, considerando que a prova foi recolhida durante uma detenção ilegal, (…), a prova é nula de pleno direito. Não é possível aceitar prova recolhida de forma ilegítima e ilegal, quando inexistia urgência e era possível ter sido recolhida por OPC. Nestes termos, por motivos de ordem legal e constitucional, a prova (teste quantitativo) é nulo, devendo ser desconsiderado”.

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1.4–Parecer do Ministério Público
Nesta Relação o Ministério Público emitiu parecer favorável ao provimento do recurso, aderindo aos fundamentos elencados no recurso do Ministério junto do tribunal recorrido.

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1.5.–Resposta da Recorrente
Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, n.º 2 do CPP, tendo sido apresentada resposta ao parecer do Ministério Público que pugnou pela sua improcedência.

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1.6–Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.

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II–FUNDAMENTAÇÃO

1-Questão a decidir
Conforme jurisprudência constante e assente, é pelas conclusões apresentadas pelo recorrente que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior (cfr. Acórdão do STJ, de 15/04/2010, in http://www.dgsi.pt: “Como decorre do artigo 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões(…)”, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95).
Assim, face às conclusões extraídas pelo recorrente a única questão a apreciar e decidir é a de saber se é válida a prova produzida e recolhida pela Policia Municipal no que respeita ao teste quantitativo de pesquisa de álcool no sangue e, consequentemente, se o tribunal a quo deveria ter dado como provados os factos que forma dados como não provados.

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2– Sentença Recorrida (transcrição dos segmentos com interesse para a apreciação do recurso)
Considerando a questão a decidir infra identificada para conhecimento do objecto do recurso há que atender aos factos provados e aos factos não provados da decisão recorrida, bem como a respectiva fundamentação:

“Factos Provados
Da produção de prova e discussão da causa, resultaram provados os seguintes factos:
1.-No dia 01.05.2021, pelas 23h10 horas, na Rua …………, em Cascais, a arguida conduzia o automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula ……………….
2.-Interceptada pela Polícia Municipal de Cascais foi determinado à arguida a realização de teste de álcool através do analisador do ar expirado (de despiste qualitativo), tendo o mesmo dado o resultado aproximado de 1,20 g/l de sangue;
3.-Acto contínuo, os Agentes da Polícia Municipal determinaram à arguida que os acompanhasse no “carro de patrulha” da Polícia Municipal de Cascais;
4.-Dirigiram-se com ela até ao Departamento de Polícia onde foi realizado o teste de pesquisa de álcool no sangue através do analisador do ar expirado (aparelho quantitativo).
5.-Consta junto aos autos, Auto denominado “de notícia por detenção”, exarado no Departamento de Polícia Municipal e Fiscalização, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos.
6.-Consta também, e igualmente da lavra do Departamento de Polícia Municipal e Fiscalização, “notificação”, a fls. 16 dos autos, da qual resulta, entre os mais, a indicação de que a cidadã foi notificada e de realizou a “contra-prova” relativamente ao exame quantitativo realizado.
7.-O aludido escrito está subscrito pela aqui arguida e pelo agente da Polícia Municipal.
8.-Consta dos autos, “auto de notícia por detenção”, a fls. 4 e seg., desta feita emergente da PSP na Divisão Policial de Cascais/Esquadra de Intervenção e Fiscalização: “Data/hora: 02.05.2021; 2h14 (…)
Na data e hora mencionadas, quando me encontrava (…) de graduado de serviço, compareceu nesta esquadra o Agente BB (…) da Polícia Municipal, (…) os quais efectuaram a entrega sob detenção de AA (…) a qual segundo os mesmos exercia a condução (…) sob o efeito de álcool, a fim de ser submetida a Constituição de arguido e TIR, conforme auto de notícia elaborado pelos agentes da Polícia Municipal de Cascais, que se anexa.
9.-Nada consta averbado no certificado de registo criminal da arguida.
10.-A arguida encontra-se desempregada e aufere cerca de € 600,00, mensalmente, a título de prestação de desemprego.
11.-Encontra-se a terminar formação profissional em osteopatia.
12.-Reside com o namorado.

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Factos Não Provados
a)-No circunstancialismo descrito em 1., a arguida apresentava uma taxa de álcool no sangue de 1,35 g/l, correspondente a 1,24 g/l, deduzido o erro máximo admissível.
b)-A arguida sabia que a qualidade e a quantidade de bebidas alcoólicas que ingeriu até momentos antes de iniciar a dita condução lhe determinariam necessariamente uma TAS superior ao limite legal permitido e, não obstante, não se absteve de conduzir o seu veículo na via pública, o que quis.
c)-Agiu de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

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Motivação da matéria de Facto
Para decidir da factualidade tal como acima consta fixada, baseou-se o Tribunal na prova testemunhal produzida, de acordo com o prescrito nos art. 128.º a 130.º e 348.º do CPP e ainda na prova documental junta aos autos, ao abrigo do art. 340.º e por referência aos art. 164.º e 165.º do CPP, tudo, como se verá adiante, através da análise crítica e conjugada dos meios de prova ao alcance do Tribunal, com vista à descoberta da verdade material e em abono da livre apreciação daquela, mediante parâmetros objectiváveis e motiváveis (art. 127.º do CPP) e fazendo jus aos princípios constitucionais e às regras processuais que norteiam a produção e valoração de prova em direito processual penal.
Observemos em pormenor.
A arguida, querendo, contou ao Tribunal que tinha estado a beber num jantar em que se celebrava o seu aniversário. No circunstancialismo de tempo e lugar mencionado em 1 foi abordada pelos agentes da Polícia Municipal, que argumentaram que a mesma havia indicado sinal luminoso de mudança de direcção para um lado e havia virado para o outro. Abordaram-na. Determinaram-lhe então a realização do teste de despiste de álcool no sangue e como acusou resultado de 1,20 g/l, seguidamente, impuseram-lhe que os acompanhasse às instalações policiais, ao que a mesma anuiu na convicção de ter de cumprir tal ordem, porquanto a informaram desde logo que havia acusado “taxa crime” e ainda porque a colocaram de imediato no interior da viatura policial.
A mesma acompanhou-os sem qualquer resistência, denotou que não lhe deram qualquer alternativa e como se tratava de uma autoridade acatou todas as ordens que lhe deram.
Já no Departamento Municipal a arguida aguardou alguns minutos e realizou o teste quantitativo. Entendeu dever realizar contra-prova por lhe ter parecido exagerado o quantitativo acusado. Efectuou o segundo exame. Ali esperou que elaborassem todo o expediente e por lhe terem dito que teria de esperar, ficou.
Tornou a acompanhar os agentes até à Divisão da PSP de Cascais.
Na realidade, estes factos, assim redigidos, decorreram não só do exposto pela arguida como pela sua concatenação com os elementos documentais juntos aos autos.
Mostrou-se arrependida da sua conduta.
Deu ainda conhecimento ao Tribunal das suas condições socio-económicas.

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Referencia-se desde já e rigorosamente que o tipo de ilícito de que o arguido se encontra acusado (crime de mera actividade) se consuma no momento da constatação da condução sob efeito de taxa de alcoolemia proibida (indiciada directa e imediatamente no local da alegada infracção, pelo resultado do teste de despiste de álcool no sangue) e não quando o arguido realiza o teste quantitativo, cujo fundamento e finalidade é precisamente o de obter, através de exame pericial, prova judiciariamente vinculada e subtraída à cognição do Tribunal.
Na realidade, o teste de despiste, não acusa tão-só “positivo” ou “negativo”, indicia justamente uma taxa concreta, e é precisamente por isso que legitima (ou não) a realização de ulterior recolha de prova da infracção nos termos legalmente exigíveis (por órgão competente) para o efeito, tal como subsequentemente apreciaremos.

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A (in)existência de antecedentes criminais está provada atento o teor do certificado de registo criminal da arguida.

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Tal como adiantado na análise dos pressupostos de regularidade da instância, afigura-se-nos necessária uma consideração relativa à (forma de) actuação da Polícia Municipal de Cascais na fiscalização perpectrada.
A pronúncia em causa pode sumariar-se da seguinte forma:
a)-Das medidas de Polícia e da sua conformação constitucional;
b)-Dos procedimentos de fiscalização da Polícia Municipal (POLMUN),
c)-Da fiscalização da condução sob o efeito de álcool pela POLMUN, em especial;
d)-Da detenção em flagrante delito e das obrigações imediatas e inerentes à mesma por banda da polícia administrativa;
e)-Das medidas cautelares ou da recolha de meios de prova; e finalmente,
f)-Das consequências legais da actuação da POLMUN.

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a)-Das medidas de Polícia e da sua conformação constitucional.
Prescreve a Constituição da República, para o que releva:
Artigo 237.º
(Descentralização administrativa)
1.- As atribuições e a organização das autarquias locais, bem como a competência dos seus órgãos, serão reguladas por lei, de harmonia com o princípio da descentralização administrativa.
(…)
3.-As polícias municipais cooperam na manutenção da tranquilidade pública e na protecção das comunidades locais.
(…)
Artigo 266.º
(Princípios fundamentais)
1.-A Administração Pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
2.-Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé.
Artigo 272.º
(Polícia)
1.-A polícia tem por funções defender a legalidade democrática e garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos.
2.-As medidas de polícia são as previstas na lei, não devendo ser utilizadas para além do estritamente necessário.
3.-A prevenção dos crimes, incluindo a dos crimes contra a segurança do Estado, só pode fazer-se com observância das regras gerais sobre polícia e com respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
4.-A lei fixa o regime das forças de segurança, sendo a organização de cada uma delas única para todo o território nacional. [sublinhados nossos]

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Considerando o teor dos preceitos constitucionais citados e acompanhando a doutrina pacífica na matéria, o conceito de polícia, tal qual fixado por Marcello Caetano surge como o modo de actuar da autoridade administrativa que consiste em intervir no exercício das actividades individuais susceptíveis de fazer perigar interesses gerais, tendo por objecto evitar que se produzam, ampliem ou generalizem os danos sociais que as leis procuram prevenir (Manual de Direito Administrativo, Tomo I, 10.ª Ed., reimpressão, Almedina, Coimbra, 1980, p. 1150).
Paradigmaticamente, tendem a distinguir-se, em sentido funcional (aquele que realmente importa ao caso), entre polícia administrativa e polícia judiciária.
À última cabe essencialmente a investigação dos delitos, a reunião das provas e a entrega dos suspeitos aos tribunais encarregados de os punir e à polícia administrativa incumbe a manutenção habitual da ordem pública em toda a parte e em todos os sectores da administração geral. (Sérvulo Correia (1994) Polícia, Dicionário Jurídico da Administração Pública, Vol. VI, Lisboa, p. 405)
Por sua vez, e em razão do conjunto de autoridades desta índole, a “polícia administrativa” subdivide-se entre polícia administrativa geral e polícia administrativa especial.
Por norma, a polícia administrativa geral destina-se a garantir a ordem pública, e, por sua vez, a polícia administrativa especial tem por objecto a prevenção num determinado sector da vida social - do sanitário ao ambiental.
A doutrina administrativa portuguesa considera que a polícia administrativa visa predominantemente fins de segurança genérica, pelo que associa o conceito de polícia administrativa geral com a noção de polícia de segurança. Nessa ordem de ideias, a actividade administrativa de polícia geral está “associada entre nós à polícia de segurança” (Paulo Daniel Peres Cavaco (2003) A Polícia no Direito Português, Hoje, Estudos de Direito de Polícia, 1.º Vol., Seminário de Direito Administrativo de 2001/2002, Reg. Jorge Miranda, AAFDL, Lisboa, p. 84)

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No seguimento do pensamento dos autores já citados, que acompanhamos de perto, enquanto a polícia administrativa especial se baseia no exercício de competências especializadas em razão da matéria, em que o estado intervém nos diversos domínios (municipal, fiscal, de estrangeiros e fronteiras, florestal, ambiente, segurança alimentar, etc.) a polícia administrativa geral prossegue, predominantemente, os fins de segurança pública, fins esses de carácter geral, e que, ao visá-los, pretende proteger a ordem, a segurança e a tranquilidade públicas (assim, Sérvulo Correia (1994) Medidas de Polícia e Legalidade Administrativa, Polícia Portuguesa, Ano LVIII, n.º 87, Maio/Junho, p. 2).
Posto o primeiro enquadramento podemos desde já concluir que a POLMUN consubstancia corpo de polícia administrativa especial, limitada geograficamente à área do município e materialmente à cooperação na manutenção da tranquilidade pública e na protecção das comunidades locais, cuja actuação dos respectivos agentes está subordinada à constituição e pela lei, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos. (cfr. art. 237.º, n.º 3 e 266.º da CRP)
Assim, operacionalizando-o, o supra citado art. 272.º, n.º 2 da CRP, estabelece prontamente que as medidas de polícia estão sujeitas ao princípio da tipicidade e da proibição do excesso, remetendo-nos para o conceito de proporcionalidade estrita ou da justa medida da actuação:
O princípio da proibição do excesso significa que as medidas de polícia devem obedecer aos requisitos da necessidade, exigibilidade e proporcionalidade. Trata-se de reafirmar, de forma enfática, o princípio constitucional fundamental em matéria de actos públicos potencialmente lesivos de direitos fundamentais e que consiste em que eles só devem ir até onde seja imprescindível para assegurar o interesse público em causa, sacrificando no mínimo os direitos dos cidadãos (Gomes Canotilho e Vital Moreira (1993) Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed. Coimbra Editora, Vol. II, p. 955).
Consequentemente, inexiste legitimidade, em nosso entendimento, para que a polícia (leia-se, qualquer corpo ou departamento de polícia) restrinja, por sua emanação própria (seja corporizado em eventual regulamento, norma de execução permanente, orientação procedimental, diretriz ou até num mero acto policial), direitos fundamentais, tais como a liberdade de decisão ou de determinação ou quaisquer outros direitos pessoais, sob pena de violação do princípio da legalidade da sua actuação e da tipicidade nas medidas de que pode(m) lançar mão:
A expressa tipicidade legal das medidas de polícia significa que as entidades com poderes de polícia estão proibidas, sem consentimento legal, de conformar e concretizar os direitos liberdades e garantias, especificando limites implícitos a esses direitos, sem consentimento da lei, mesmo executando directamente a Constituição. (Pedro Lomba (2003) Sobre a Teoria das Medidas de Polícia Administrativa, Estudos de Direito de Polícia (coord. Jorge Miranda) AAFDL, Vol. I, p. 198)
No fundo, o legislador constitucional reconheceu, geneticamente, a necessidade de impor limites próprios ao exercício de poderes de polícia, que por natureza e finalidade são aptos à possibilidade de se manifestar sob a forma de coacção directa (física ou persuasiva).
Tais limites, transpostos para o caso que apreciamos, podem sumariar-se, consoante se verá adiante, numa vinculação quanto à competência cometida a cada órgão de polícia (administrativa ou judiciária), aos fins (de cooperação na manutenção da tranquilidade pública ou de garantia da segurança interna), e aos modos de actuar (consoante as medidas atributivas de cada polícia, administrativa ou judiciária), e sumariar-se na convicção de que vivemos num Estado de Direito e não num Estado de Polícia.

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É precisamente atenta a aptidão originária e finalística das medidas de polícia para brigarem com direitos, liberdades e garantias (designadamente, a liberdade nas suas múltiplas vertentes) ou outros direitos constitucionais análogos (como o direito a uma polícia que actue de acordo com padrões de legalidade constitucional na salvaguarda dos direitos dos cidadãos) que se defende:
Uma actividade que se traduz eminentemente na susceptibilidade de recurso à força física deve encontrar desde logo o seu fundamento na Constituição (artigo 272.º, n.º 2, 1.ª parte). Num Estado que erige como princípio fundamental a dignidade da pessoa humana (artigo 1.º Constituição), que no catálogo de direitos fundamentais constitucionalmente consagrados contempla os direitos à vida, à integridade física e psíquica (artigo 25.º, n.º 1 e 2 da Constituição), à liberdade e à segurança (artigo 27.º, n.º 1 da Constituição), que impõe a reserva de lei restritiva, o carácter restritivo das restrições (artigo 18.º, n.º 2 da Constituição) e o respeito pelo conteúdo essencial dos direitos, liberdades e garantias (artigo 18.º, n.º 3) da Constituição), a utilização da violência física sobre os cidadãos deve ser objecto de autorização legal formal expressa, não valendo qualquer presunção de protecção da ordem e segurança públicas. A vinculação à lei visa garantir que a polícia seja um elemento de preservação da liberdade, e não uma fonte de opressão. (Carla Amado Gomes (1999) Contributo Para o Estudo das operações materiais da administração pública e do seu controlo jurisdicional, Coimbra Ed., p. 164 a 166)
Em consonância, o direito a uma polícia que actue num quadro de legalidade estrita consubstancia, pois, um direito fundamental, análogo aos direitos, liberdades e garantias e, por isso, sujeito a tal regime jurídico, prescrito e directamente aplicável, nos termos conjugados do disposto nos art. 266.º, 272.º, 17.º e 18.º da CRP, cuja violação importa a radicalidade da nulidade absoluta de qualquer actuação a desrespeito do prescrito no Tit. II da parte (I) relativa aos Direitos e Deveres Fundamentais na Constituição da República:
A relevância dos direitos fundamentais para a actividade de polícia manifesta-se, desde logo, na aplicabilidade directa e na vinculação de todas as entidades públicas aos direitos liberdades e garantias (artigo 18.º da Constituição), bem como na consagração ampla do direito de resistência contra quaisquer actos de poderes públicos que afrontem ilegitimamente os direitos individuais (artigo 21.º da Constituição). Tal adstrição atinge não só o legislador a quem cabe elaborar as normas de polícia mas também a própria actividade de polícia administrativa (Pedro Lomba (2003) Sobre a Teoria das Medidas de Polícia Administrativa, Estudos de Direito de Polícia (coord. Jorge Miranda) AAFDL, Vol. I, p. 197).
A circunstância tem incidência óbvia na concretização prática das garantias do arguido em processo penal (desde a sua instauração, note-se), e por referência ao preceituado especificamente no n.º 8 do art. 32.º da CRP de cuja doutrina que adoptamos partilhamos desde já:
[Embora o art. 32.º da CRP constitua] um preceito introdutório serve também de cláusula geral englobadora de todas as garantias que, embora não explícitas nos números, hajam de decorrer do princípio da protecção global e completa dos direitos do arguido em processo criminal. Em “todas as garantias de defesa” engloba-se indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação (…) Este preceito pode, portanto, se fonte autónoma de garantias de defesa. Em suma, a “orientação para a defesa” do processo penal revela que ele não pode ser neutro em relação aos direitos fundamentais (um processo em si, alheio aos direitos do arguido), antes tem neles um limite infrangível (J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª Ed., Almedina, Coimbra, 2003, p. 516)
Releve-se, pois, que não são apenas as pessoas, os indivíduos, cidadãos comuns que por via constitucional, sofrem limitações na sua liberdade. Também o próprio Estado, e por inerência os seus órgãos, são limitados pelas normas constitucionais. E as grandes limitações à actuação da máquina do Estado, são precisamente, os direitos, liberdades e garantias de que são tributários os seu cidadãos, todos os cidadãos, desde o recém-nascido ao idoso, da vítima ao suspeito da prática de crime.

Observemos então, neste enquadramento constitucional, a sua concretização legal:

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b)-Procedimentos de fiscalização da Polícia Municipal (POLMUN)
A actuação daquela polícia administrativa é a regulada diante da Lei n.º 19/2004, de 20 de Maio, com as alterações decorrentes da lei n.º 50/2019, de 24 de Julho.
Para o que releva, ali se dispõe:
Artigo 3.º Funções de Polícia
1-As polícias municipais exercem funções de polícia administrativa dos respectivos municípios, prioritariamente nos seguintes domínios:
a)- Fiscalização do cumprimento das normas regulamentares municipais;
b)- Fiscalização do cumprimento das normas de âmbito nacional ou regional cuja competência de aplicação ou de fiscalização caiba ao município; (…)
2- As polícias municipais exercem, ainda, funções nos seguintes domínios: (…)
e) Regulação e fiscalização do trânsito rodoviário e pedonal na área de jurisdição municipal.
3- Para os efeitos referidos no n.º 1, os órgãos de polícia municipal têm competência para o levantamento de auto ou o desenvolvimento de inquérito por ilícito de mera ordenação social, de transgressão ou criminal por factos estritamente conexos com violação de lei ou recusa da prática de acto legalmente devido no âmbito das relações administrativas.
4- Quando, por efeito do exercício dos poderes de autoridade previstos nos n.º 1 e 2, os órgãos de polícia municipal directamente verifiquem o cometimento de qualquer crime podem proceder à identificação e revista dos suspeitos no local do cometimento do ilícito, bem como à sua imediata condução à autoridade judiciária ou ao órgão de polícia criminal competente.
5- Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, é vedado às polícias municipais o exercício de competências próprias dos órgãos de polícia criminal.
(sublinhados nossos)

Acrescenta ainda o art. 4.º, sob epígrafe Competências:
1- As polícias municipais, na prossecução das suas atribuições próprias, são competentes em matéria de: (…)
b)- Fiscalização do cumprimento das normas de estacionamento de veículos e de circulação rodoviária, incluindo a participação de acidentes de viação que não envolvam procedimento criminal;
e)- Detenção e entrega imediata, a autoridade judiciária ou a entidade policial, de suspeitos de crime punível com pena de prisão, em caso de flagrante delito, nos termos da lei processual penal;
f)-Denúncia dos crimes de que tiverem conhecimento no exercício das suas funções, e por causa delas, e competente levantamento de auto, bem como a prática dos actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova, nos termos da lei processual penal, até à chegada do órgão de polícia criminal competente;
g)- Elaboração dos autos de notícia, autos de contra-ordenação ou transgressão por infracções às normas referidas no artigo 3.º;
(sublinhados nossos)

Finalmente e no que concerne a Poderes de Autoridade, disciplina o art. 14.º:
1- Quem faltar à obediência devida a ordem ou mandado legítimos que tenham sido regularmente comunicados e emanados do agente de polícia municipal será punido com a pena prevista para o crime de desobediência.
2-Quando necessário ao exercício das suas funções de fiscalização ou para a elaboração de autos para que são competentes, os agentes de polícia municipal podem identificar os infractores, bem como solicitar a apresentação de documentos de identificação necessários à acção de fiscalização, nos termos da lei.

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Em suma, a regulação vigente que enquadra a actuação, funções, competências e poderes das Polícias Municipais (POLMUN) distingue de forma cristalina (no art. 3.º do dispositivo normativo acima indicado) entre competências próprias e competências complementares com as forças de segurança nacionais (entre as quais GNR e PSP).
Cabe desde já recordar que a lei empreende um claro esforço na distinção entre a Polícia Municipal e as forças de segurança, sendo um desses exemplos o disposto no artigo 7.º quanto ao modelo de uniforme. Assim, segundo o n.º 1, o uniforme do pessoal das polícias municipais é único para todo o território nacional, devendo ser concebido de forma a não só permitir a sua identificação enquanto tal, mas também a distingui-los dos agentes das forças de segurança. O mesmo quanto aos distintivos heráldicos e gráficos (cf. Artigo 7.º, n.º 2).
Este mesmo intuito de clara distinção entre Polícia Municipal e as forças de segurança está ainda expresso no artigo 19.º da mesma lei onde se estatui que as denominações das categorias que integrarem a carreira dos agentes da polícia municipal não podem, em caso algum, ser iguais ou semelhantes às adoptadas pelas forças de segurança.
Resulta, assim, evidente que o legislador não quis que as Polícias Municipais fossem equiparadas às forças de segurança, querendo manifestamente restringir a sua actuação em situações muito específicas, visando afastar expressamente a actuação da mesma nas vestes de polícia de segurança ou judiciária.
Por fim, refira-se o disposto no artigo 16.º da Lei n.º 19/2004, de 20/05, onde se determina que os agentes de polícia municipal só podem usar os meios coercivos previstos na lei que tenham sido superiormente colocados à sua disposição, na estrita medida das necessidades decorrentes do exercício das suas funções, da sua legítima defesa ou de terceiros.
E ainda, quando o interesse público determinar a indispensabilidade do uso de meios coercivos não autorizados ou não disponíveis para a polícia municipal, os agentes devem solicitar a intervenção das forças de segurança territorialmente competentes.
Adiante-se pelo exposto que, por referência ao prescrito na Lei n.º 53/2008, de 29 de Agosto, com as devidas actualizações legais, a POLMUN não integra as forças nem os serviços de segurança (vide art. 25.º do diploma) não sendo, por isso, passível de considerar-se que as medidas gerais e especiais de polícia (art. 28.º e seg.) integradas nesta Lei de Segurança Interna constituam, no que à POLMUN diz respeito, normas atributivas de competências.
(No mesmo sentido e com análoga conclusão Catarina Sarmento e Castro (2003) A questão das Polícias Municipais, Coimbra Ed., p. 334)
Estabelece (a Lei n.º 19/2004, de 20 de Maio), no que concerne à aplicação, execução e fiscalização de normas municipais ou cuja fiscalização de cumprimento está deferida aos municípios um conjunto de poderes, abrangentes e adequados a permitir, num quadro amplo e proporcionado, que a polícia administrativa em causa exerça as funções que lhe estão cometidas por lei (art. 3.º, n.º 1 al. a) e n.º 3).
Trata-se fundamentalmente de matérias de ambiente, urbanismo, tratamento de resíduos, etc.
Neste quadro legal, permite-se que a POLMUN elabore autos, instrua procedimentos administrativos, exija o cumprimento de posturas e decisões municipais e, se necessário, imponha a identificação coerciva dos agentes das infracções (de natureza administrativa), sendo com a inerente cominação de que o incumprimento das suas determinações pode implicar a prática de crime de desobediência (art. 14.º).
A polícia municipal consiste num serviço municipal de polícia e nunca num serviço desconcentrado da Administração Pública Central (…)
Por imperativo constitucional, a promoção da segurança interna incumbe tão-somente às forças e serviços de Segurança, cujo universo não inclui os serviços municipais de polícia; certamente, “as polícias municipais não são forças de segurança.”
De facto, a prossecução das atribuições dos municípios em matéria de polícia administrativa faz-se sem prejuízo do previsto na Lei de Segurança Interna e nos estatutos das forças de segurança. (…)
(Pedro Clemente (2010) Polícia e Segurança – Breves Notas, Lusíada Rev. Política Internacional e Segurança, n.º 4, Lisboa, p. 159-160)
Já no domínio da cooperação com as forças de segurança, na manutenção da tranquilidade pública e na protecção das comunidades locais desenvolvem as acções taxativamente elencadas no art. 3.º, n.º 2 da Lei n.º 19/2004, numa densificação do previsto no art. 237.º, n.º 3 da CRP.
Em consonância, e como medidas de polícia que lhes estão cometidas, podem identificar e revistar suspeitos, adoptar medidas cautelares de polícia (no local do cometimento do ilícito) e proceder à detenção em flagrante delito por crime a que corresponda a aplicação de pena de prisão, devendo entregar no imediato o cidadão dedito ao OPC (órgão de polícia criminal) competente.
Aliás, o exercício das funções neste âmbito surge clara e expressamente limitado pelo preceito correspondente que dispõe:
Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, isto é, da identificação e da revista (de segurança), é vedado às polícias municipais o exercício de competências próprias dos órgãos de polícia criminal.
Mais se acrescentando mesmo que não podem as POLMUN tomar conta de acidentes de viação que envolvam eventual procedimento criminal.
A matéria encontra-se cabalmente analisada no Parecer da PGR, n.º convencional 2971, homologado em 23.06.2008.
De onde citamos apenas que as polícias municipais são, de acordo com o disposto no artigo 1.º, n.º 1, da Lei n.º 19/2004, de 20 de Maio, serviços municipais especialmente vocacionados para o exercício de funções de polícia administrativa no espaço territorial correspondente ao do respectivo município (…)
As polícias municipais não constituem forças de segurança, estando-lhes vedado o exercício de competências próprias de órgãos de polícia criminal, excepto nas situações referidas no artigo 3.º, n.os 3 e 4, da Lei n.º 19/2004 (…)
De acordo com o disposto no artigo 4.º, n.º 1, alínea f), da Lei n.º 19/2004, e do artigo 249.º, n.os 1 e 2, alínea c), do CPP, os órgãos de polícia municipal devem, perante os crimes de que tiverem conhecimento no exercício das suas funções, praticar os actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova, até à chegada do órgão de polícia criminal competente, competindo-lhes, nomeadamente, proceder à apreensão dos objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir a prática de um crime (…)
(sublinhados nossos)

Esclarecendo situação paralela à que aqui se trata, pronunciou-se igualmente o Venerando TRC, em acórdão de 28.05.2008, relatado por Fernando Ventura em doutrina que subscrevemos:
I.- O dever de identificação do responsável da infracção estradal decorrente do artº 151º do Código da Estrada tem como pressuposto a verificação imediata pelo funcionário autuante de quem foi o autor da conduta ilícita.
II.- Iniciado o procedimento contra-ordenacional através da elaboração de auto e aposição do respectivo duplicado no veículo, esgotou-se esse dever funcional.
III.- Os agentes das polícias municipais não integram as forças ou serviços de segurança.
IV.-Excede os respectivos poderes, constituindo ordem ilegítima, a conduta de agente de polícia municipal que ordena a cidadão a entrega dos documentos de identificação e documentos de veículo, sem ligação funcional à elaboração de auto ou acção de fiscalização e, subsequentemente, profere voz de detenção quando tal não acontece.

Acrescenta-se, pois, também aqui a nova doutrina extraída do Ac. TRL, de 23.03.2021, proc. n.º 244/20.9PCCSC.L1-5, disponível em www.dgsi.pt) cujo sumário é claríssimo a respeito:
- Como resulta do artigo 4º, alínea b), da aludida Lei nº 19/2004, a Polícia Municipal tem competência para a fiscalização do cumprimento das normas de estacionamento de veículos e de circulação rodoviária, mas está excluída a participação de acidentes de viação que envolvam procedimento criminal.
- Porque assim é, estando vedado às polícias municipais o exercício de competências próprias dos órgãos de polícia criminal, não podemos deixar de concluir que lhe faltava competência para determinar ao arguido a realização do exame para quantificação da taxa de álcool no sangue através do ar expirado, que se traduz numa recolha de prova em ordem à sua apresentação a julgamento pela prática de crime de condução de veículo em estado de embriaguez, com observância das formalidades previstas no artigo 153º, do Código da Estrada e que nestas se incluem, manifestamente.
- Se aos agentes da Polícia Municipal faltava competência para intimar ao arguido a ordem para se submeter ao exame para quantificação da taxa de álcool no sangue através do ar expirado, a recusa do mesmo não se enquadra no crime de desobediência, por falta daquele pressuposto objectivo do tipo de ilícito – legitimidade da ordem.

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Daqui retiramos várias ilacções que importa caracterizar em ordem à sua operacionalização para o estudo da questão vertente:
- A POLMUN não é um OPC. Constitui serviço municipal de polícia administrativa.
- Estão-lhe cometidas funções prioritárias atinentes à aplicação das posturas municipais e às regras jurídicas cuja lei defira ao município respectivo executar e fiscalizar.
- Podem ainda, em cooperação com as forças de segurança, que não integram, e finalisticamente orientadas à manutenção da tranquilidade pública e protecção das comunidades locais, guardar espaços municipais, promover a segurança nas escolas, disciplinar o trânsito, fiscalizando o estacionamento de viaturas e o trânsito rodoviário e pedonal.
- No desenvolvimento da sua missão, a lei confere-lhes os poderes que o e legislador considerou suficientes e adequados ao eficiente desempenho da actividade da POLMUN, onde se integra a possibilidade de elaborar aos de notícia por contra-ordenação (por violação das relações administrativas – art. 3.º, n.º 3, ultima parte da Lei n.º 19/2004);
- Ordenar a identificação de suspeitos, executar medidas cautelares de polícia, no local do facto típico, empreender detenções em flagrante delito e entregar no imediato o suspeito ao OPC competente;
(observe-se lateralmente que no caso concreto, consoante se apurou, a cidadã foi interceptada cerca das 23h10 (mas só entregue a um OPC a partir do Departamento Municipal, cerca de três horas depois (fazendo fé no auto de notícia por detenção da PSP), a arguida foi deslocada do local de cometimento do ilícito, fixado no momento de realização de teste de despistagem em que acusa taxa compatível com a prática de crime de condução de veículo em estado de embriaguez, para o Departamento Municipal de Polícia, onde foi sujeita a prova pericial a contra-prova, após o que a entregaram detida na Esquadra de Intervenção da PSP de Cascais);
- O incumprimento das suas determinações (desde que legítimas) pode implicar a prática de crime de desobediência:
De acordo com legislador constitucional, “as polícias municipais cooperam na manutenção da tranquilidade pública e na protecção das comunidades locais.” Conquanto não concorram para a consecução dos fins inerentes à política de segurança interna, as polícias municipais participam na co-produção da segurança local: “les polices municipales doivent être un complément de la police nationale” [citação de Jean-Jacques Gleizal, La Police en France, Presses Universitaires de France, Paris, 1993, p. 43]
Enfim, a polícia municipal cinge-se a uma polícia administrativa local, sem competências de órgão de polícia criminal, não obstante a lei autorizar tanto a identificação e a revista de suspeito da prática de crime – um acto processual judiciário em sede do direito penal adjectivo –, como a realização de inquéritos criminais, por factos conectados com a violação da legalidade, no âmbito das relações administrativas.
(Pedro Clemente, Op. cit., p. 160).

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Oferece-nos acrescentar, ainda que colateralmente relacionada com a questão fulcral que se aborda que a “limitação de competências de âmbito de polícia criminal”, por referência à teleologia da Lei n.º 19/2004, de 20 de Maio, se justifica igualmente pelo facto de que, ao contrário das forças de segurança que são OPC, os agentes da POLMUN não estão adstritos ao estatuto profissional inerente ao regulamento profissional e de avaliação, quer da PSP quer da GNR, nem ao seu código deontológico, nem tão pouco as seus agentes estão vinculados a comandos policiais, seja do Director Nacional da PSP ou do Comandante-geral da GNR, mas apenas à dependência hierárquica do Presidente de Câmara respectivo, o que não é, de todo em todo, identitário, por motivos óbvios de se tratar de um comando meramente político e administrativo (e não policial).
Ademais, recorde-se que, ao contrário do que sucede (a título exemplificativo) com a POLMUN de Lisboa, cuja actuação está também disciplinada por Regulamento próprio (publicitado em DR através do Aviso n.º 11359/2018 de 16.08.2018) onde se estabelece o recrutamento de agentes na PSP e que estes, no desempenho de funções se mantêm vinculados ao Estatuto Profissional de origem, seja quanto a direitos, deveres ou de avaliação, ou até ao seu código deontológico (art. 7.º do respectivo regulamento) inexiste normativo análogo, quer em termos de exigência quer quanto a procedimentos de conduta, pelo menos no que à POLMUN de Cascais diz respeito, até em virtude da forma de recrutamento e formação conferida aos agentes. (sendo certo que os Agentes da POLMUN de Lisboa, no exercício de funções, não fiscalizam a condução sob o efeito de álcool ou substâncias psicotrópicas por se considerar que, enquanto no exercício de tais funções de polícia municipal, tal missão não lhes está cometida).
Ora, esta diferenciação entre o regime a que estão vinculadas as forças de segurança e as exigências da sua actuação, simbioticamente relacionadas com as funções que legalmente lhes estão cometidas, e cuja diferença relativamente à POLMUN é marcante, deve também ser considerada no modo como se interpreta a lei habilitante, tal como na (im)possibilidade de interpretar extensivamente e até analogicamente (por referência aos poderes funcionais conferidos aos OPC) os poderes de autoridade de que a POLMUN se arroga:
Na verdade, adianta-se desde já, numa interpretação de tal modo desligada da lei habilitante que permita que se desloque um cidadão em viatura da polícia administrativa para onde o entendam levá-lo, mas não para o OPC competente, que instruam autos de detenção, de recolha de prova pericial e de contra-prova relativos à prática de crime, que notifiquem o sujeito disso mesmo e, após, toda a instrução processual preponderante para o julgamento do tipo de crime de delito comum (desde logo indiciado claramente por um teste de despiste com 1,2 g de álcool por litro de sangue) já está terminada, então o levam à PSP onde lhe é feita a constituição de arguido, tomado o TIR e notificado para comparecer no dia subsequente em Tribunal.
Aliás, observe-se a análise constitucional acima empreendida, para que se remete por desnecessidade de duplicação de explanação, da qual decorre inequivocamente a impossibilidade de interpretação extensiva ou de aplicação analógica das medidas de polícia permitidas às forças de segurança e aquelas que por lei expressa (na concretização do princípio da tipicidade) são atribuídas ao desempenho de funções da POLMUN).
Em suma, parece-nos que devem entender-se como tal tão-só e estritamente aquelas medidas de polícia prescritas na Lei n.º 19/2004, de 20 de Maio, e não a extensão e conteúdo daquelas cujo exercício está permitido às forças de segurança.
No seguimento de análise e em razão da matéria vertente releva uma cuidada abordagem às normas que disciplinam a fiscalização de condutores no âmbito do despiste da condução em estado de embriaguez.

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b)-Da fiscalização da condução sob o efeito de álcool pela POLMUN, em especial.
Disciplina, em termos gerais e para o que releva, o Código da Estrada (art. 152.º):
1- Devem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas:
a) Os condutores; (…)
3- As pessoas referidas nas alíneas a) e b) do n.º 1 que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas são punidas por crime de desobediência.
As formalidades de Fiscalização da condução sob influência de álcool (art. 153.º do Código da Estrada, doravante abreviadamente designado CE) impõem:
1- O exame de pesquisa de álcool no ar expirado é realizado por autoridade ou agente de autoridade mediante a utilização de aparelho aprovado para o efeito.
2- Se o resultado do exame previsto no número anterior for positivo, a autoridade ou o agente de autoridade deve notificar o examinando, por escrito ou, se tal não for possível, verbalmente:
a) Do resultado do exame;
b) Das sanções legais decorrentes do resultado do exame;
c)De que pode, de imediato, requerer a realização de contraprova e que o resultado desta prevalece sobre o do exame inicial; e
(…)
3- A contraprova referida no número anterior deve ser realizada por um dos seguintes meios, de acordo com a vontade do examinando (…)

Em termos gerais, poderia admitir-se que, a partir do momento em que a lei (n.º 19/2004, na redacção actual) admite a regulação e fiscalização do trânsito rodoviário pela POLMUN, está a permitir que, no âmbito dessa mesma fiscalização, a POLMUN possa empreender os exames de pesquisa de álcool no sangue.
Sucede, porém, que não se concebe tal interpretação, já por não ter a mais pequena ancoragem constitucional, já porquanto importa a aplicação analógica para um serviço municipalizado de um poder funcional manifestamente concorrente com o das forças de segurança e inerente à execução de acções de fiscalização dos condutores (e não estritamente do trânsito rodoviário, do que não é sinonímia, e neste âmbito de direito sancionatório é primordial que sejamos rigorosos na interpretação, literal, mas também consoante acima se adiantou, teleológica e sistemática dos preceitos legais) e cujo conteúdo e finalidades vai muito para além das acções administrativas (funções de fiscalização e elaboração de autos) para que são competentes, enquadrando-se claramente no quadro de funções de repressão policial, as quais, devidamente analisado o diploma atributivo de competências às POLMUN apenas podem exercer em cooperação (e jamais em concorrência) com as forças de segurança nacionais (adoptando apenas medidas cautelares, no local de cometimento do ilícito e destinadas à preservar a prova, por isso, sujeitas a princípios de urgência e necessidade).
Mais, não nos parece que possa entender-se aqui a POLMUN como autoridade ou agente de autoridade para estes efeitos (veja-se que, na citada Lei de Segurança Interna, as POLMUN não são tidas como autoridades de polícia – art. 25.º e 26.º da Lei 53/2008, de 29 de Agosto para exercício de funções e adopção de medidas de polícia ali precritas).
Ora da conjugação dos respectivos preceitos legais, princípios constitucionais e análise doutrinárias se conclui que, fora do âmbito das atribuições administrativas especificamente acometidas à Polícia Municipal, esta só pode, perante crimes de delito comum, ou de crimes que caem fora do âmbito administrativo que lhes pertence, e desde que sejam de natureza pública ou semi-pública, e puníveis com pena de prisão, identificar sujeitos, detê-los e proceder à obtenção e preservação cautelar de vestígios de prova se:
- o crime for detectado em flagrante delito;
- a detenção, identificação e preservação da prova também se faça em sede de flagrante delito (…)
Ora o Digno recorrente assenta o seu entendimento no facto de no nº 2 do citado artº 2º se fazer referência apenas a “entidade fiscalizadora” pelo que a Polícia Municipal seria tida, para efeitos deste diploma, como entidade fiscalizadora.
Em nosso ver tal subsunção não é possível atento o quadro legal em que a Polícia Municipal se move, em especial o disposto no artº 3º nºs 4 e 5 da Lei nº 19/2004 de 20-05.
Repare-se que a Polícia Municipal, no caso em apreço, não age como entidade fiscalizadora, isto é, não tem legitimidade para de forma aleatória proceder a fiscalizações – vulgarmente conhecidos por “operação stop” – tendo a sua intervenção no caso em apreço se constrangido ao facto de se ter apercebido de que um crime poderia estar a ser cometido, daí a sua intervenção ser considerada no âmbito de um flagrante delito.
Por outro lado, a recolha de prova indiciária no caso em apreço surge como forma de confirmar o possível ilícito penal, e assim, justificar a intervenção da Polícia Municipal numa situação em que a mesma não estaria legitimada a actuar, e não no âmbito de uma simples fiscalização aleatória, própria das polícias de segurança pública.
A Lei nº 18/2007 de 17-05 não tem a virtualidade de atribuir funções à Polícia Municipal que esta não tenha por força do regime legal que a rege em especial.
Assim, porque a Polícia Municipal apenas podia deter o arguido em flagrante delito e constatando a indiciação da prática de crime, entregá-lo de imediato à PSP a quem competira efectuar a restante recolha de prova, nunca podia tal Polícia Municipal “acompanhar” o detido – como sem o manter detido? – a local onde o segundo teste pudesse ser efectuado.

(Ac. TRL de 8 de Julho de 2020, relatado por Filomena Sebastião e Silva, no proc. n.º 86/20.1PBCSC, em recurso de sentença deste Juízo Local de Pequena Criminalidadesublinhados nossos).

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Mas, ainda que a título de mera hipótese académica concebamos que, a partir do momento em que são atribuídas funções de fiscalização do trânsito rodoviário às POLMUN, se possa entender que estas são “autoridades” para os efeitos do disposto no CE, no entanto, o limite da sua actuação terá de estabelecer-se, precisamente, quando no decorrer de tal fiscalização se verifique a prática de crime.
Aliás, este entendimento sustenta-se na clareza meridiana com que a Lei n.º 19/2004 impõe a insusceptibilidade dos agentes da POLMUN praticarem actos próprios dos OPC (designadamente recolha e produção de prova), conferindo-lhes somente, e face à verificação do flagrante delito, a detenção com entrega imediata (leia-se, no mais curto espaço de tempo possível – cerca de uma hora, num trajecto que demora menos de cinco minutos a empreender, somos de questionar) às forças de segurança ou ao órgão judicial competente (para a instauração de inquérito crime, acrescentamos nós).
Permite-se, é certo, que a POLMUN acautele no local do facto típico as medidas cautelares necessárias e adequadas, mas a lei em lugar algum permite que a POLMUN detenha (ou retenha, de qualquer forma suprimindo claramente a liberdade nas suas múltiplas e constitucionais vertentes), suspeitos identificados e;
Em detrimento de os conduzir ao OPC competente;
Decida levá-los para o próprio Departamento de Polícia, proceda às diligências de (recolha de) prova que tem por necessárias à instrução do caso;
Elabore todo o expediente substancial processual penal atinente e, terminado este, então;
Contacte o OPC - já não o competente em razão do lugar que reputam da prática do facto (onde interceptaram o cidadão (?) ou onde realizaram o teste qualitativo de alcoolemia (?) em cuja área de jurisdição se integra o Departamento de Polícia e Fiscalização Municipal) – com vista a que, posteriormente a este transporte do cidadão daqui para acolá e vice-versa; os agentes da força de segurança elaborem o expediente meramente formal que está vedado ao órgão administrativo (já que a factualidade substantiva foi previamente recolhida e em auto transcrita pela POLMUN, conforme se evidencia da factualidade acima fixada).
(diga-se, a latere, numa óbvia instrumentalização das funções do OPC face à actuação do agente administrativo, conferindo-lhe a aparência da tutela da legalidade, quando, na verdade, o cidadão foi detido noutro local, cuja jurisdição pode (ou não) estar cometida àquela força policial onde é entregue ulteriormente, mas que, em todo o caso, nada apurou nem participou na recolha de prova (nomeadamente pericial), nem fiscalizou do cumprimento dos direitos básicos do cidadão diante de uma actuação de polícia judiciária (atribuição excluída às POLMUN), penalmente absolutamente relevante, como se opinará adiante).
Observe-se que no caso de acidente de viação se discrimina que, podendo tomar conta das ocorrências, se se estiver diante de acidente com relevância jurídico penal, não pode a POLMUN intervir (art. 4.º, n.º 1 al. b) da Lei n.º 19/2004, na redacção vigente).
Ora, se a lei habilitante da actuação da POLMUN não lhe permite acudir a qualquer circunstância que possa ter inerente a prática de crime, poderá aquela entidade administrativa (fora dos casos em que a lei expressamente o permite, como no âmbito das funções desenvolvidas e prescritas no art. 3.º, n.º 1 do diploma mencionado) diante da verificação do flagrante delito de crime de condução em estado de embriaguez, deter o agente e continuar activamente a recolha de prova e a instrução do caso e apenas contactar a Força de Segurança quando todo o expediente necessário à sua apresentação judicial já estiver completo?
(com excepção dos autos de constituição formal de arguido e de tomada de TIR)
Não nos parece que no âmbito do CE (ou no Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas – Lei n.º 18/20017 de 17 de Maio) se pretenda conferir uma maior amplitude de funções à POLMUN do que aquelas que lhe estão constitucionalmente cometidas e concretizadas pela lei própria habilitante.
Nem tão pouco se julga legítimo que se considere que, neste enquadramento do CE, que o mesmo se operacionaliza atribuindo mais poderes à POLMUN do que aqueles que lhe são deferidos em estatuto próprio e que a distingue claramente dos OPC.
A interpretação nesse sentido, que é empreendida pela forma como estão redigidos os preceitos do CE (porque ali apenas se refere autoridade ou agente de autoridade) poderia levar ao absurdo de, em certos casos, termos de considerar, a ASAE, a AT ou outra qualquer “autoridade” administrativa legítimas para estes efeitos (por serem autoridades e agentes de autoridade administrativa e, nestes casos, até OPC) a fiscalizar a condução sob o efeito do álcool, ou melhor esclarecendo, a prática de crime de condução de veículo em estado de embriaguez, já que naquele diploma (Lei n.º 18/2007, de 17 de Maio) efectivamente, não distingue qualquer entidade competente para a fiscalização de condução sob o efeito de álcool ou substâncias psicotrópicas, apenas referenciando a “entidade fiscalizadora”.
Somos, pois, de crer que, embora a POLMUN detenha expressamente competência para a fiscalização do trânsito rodoviário e pedonal, quando os condutores (ou os peões) possam com a sua conduta perpectrar crimes (que os agentes presenciem em flagrante delito) as suas competências cingem-se ao previsto na Lei .º 19/2004, não abrangendo quaisquer outras e não sendo, por isso, passível a interpretação extensiva (ou mesmo analógica) do CE, em moldes que importem o conferir à POLMUN competências que, por natureza e finalidades, são exclusivas de forças de segurança pública/OPC (vide o citado acórdão do TRL de 23.03.2021)

Na realidade, não existe qualquer conformação constitucional nesta matéria nem a previsão de tais medidas de polícia como estando atribuídas à POLMUN e, nessa circunstância:
A discricionariedade pode, nomeadamente, respeitar à escolha do procedimento, dos meios a utilizar, do momento de actuar; mas, não tolera, nunca, comportamentos ilegais ou desviantes face aos interesses públicos que a polícia visa prosseguir, do mesmo modo que não coloca na disponibilidade desta a escolha entre o exercício dos seus poderes ou a renúncia a tal exercício (João Raposo Autoridade e Discricionaridade a Conciliação Impossível? Lição Inaugural do Ano Lectivo 2005/2006, Publicações do Instituto de Ciências Policiais e Segurança Interna, p. 2 e 3)
Sublinhe-se que não choca que a POLMUN possa empreender a fiscalização dos condutores, podendo mesmo lavrar os competentes autos, através da identificação do sujeito e de cominação respectiva, mas tal não pode, em caso algum, implicar a detenção ou a deslocação do agente para onde a POLMUN pretenda levá-lo (sob pena de actuação abusiva e ilegítima, quiçá usurpando funções das forças de segurança, ou pelo menos exercendo-a em concorrência e não em cooperação – vide Ac. TRC de 28.05.2008, já citado).
(impõe-se considerar, nos termos do art. 1.º do regulamento supra citado (lei n.º 18/2007) que o teste de álcool se empreende necessariamente a dois tempos – um primeiro teste indiciário, qualitativo – e, sendo o caso, de no mesmo resultar taxa superior ao permitido legalmente, passa ulteriormente à realização do teste quantitativo, cujo resultado consubstancia exame pericial).
Em bom rigor, observe-se que o regulamento citado afirma ipsis verbis que o agente da entidade fiscalizadora acompanha o examinando ao local em que o teste possa ser efectuado, assegurando o seu transporte, e em lugar algum prescreve que tal importa a retenção ou detenção de cidadãos para realização de tal teste, ou sequer prevê a cominação de crime de desobediência se o cidadão se recusar a acompanhar a “entidade fiscalizadora” para realização de tal teste quantitativo noutro local.
Parece-nos, pois, que inexiste no âmbito contra-ordenacional a injunção (em sentido próprio) de ser transportado para outro local para realização do teste quantitativo.
Se o cidadão, porventura, preferir deslocar-se de mottu proprio ao local em causa para realização do teste quantitativo, se entender que não deve deslocar-se voluntariamente na viatura da entidade fiscalizadora, a conduta em causa, de per se, não configura (em nosso entendimento) a prática de crime de desobediência, porquanto, refere precisamente o CE que somente a recusa em realizar o teste quantitativo é que consubstancia a prático do ilícito típico criminal (na prática, e neste caso, terá o referido teste de ser disponibilizado no local da intercepção), sob pena de estarmos a impor, ainda que de forma indirecta, uma deslocação de um cidadão, em privação de liberdade, e a coberto de eventual prática de infracção administrativa (ou de nada e) muito dificilmente compatível com o preceituado no art. 27.º da CRP (Direito à Liberdade e à Segurança e respectivas restrições, n.º 3, todas do âmbito criminal ou de saúde mental).
Clarifique-se que a tónica, da nossa perspectiva, se acentua no exercício do “poder de retenção e deslocação (contra vontade) do suspeito”, seja para recolha de prova pericial, ou para elaboração de expediente ou para qualquer outra finalidade, que não está tutelada legalmente, e que, somos de parecer, por brigar com a liberdade do cidadão e com o direito a que os agentes administrativos exerçam tão-só as funções para que são competentes, não poder suscitar-se no caso de contraordenação e que, em caso de notícia de crime, tem de orientar-se e cingir-se ao legalmente prescrito: para condução ao OPC ou à autoridade judicial.
Tudo quanto não esteja a coberto desta finalidade imediata será ilegítimo e contra-legem, ultrapassando as funções conferidas a tal polícia administrativa, legalmente.
E não se diga que a arguida, por ter colaborado com os agentes policiais e que não ofereceu qualquer resistência e cumpriu todas as suas determinações, de livre vontade o tenha feito propriamente ciente de que estava no seu direito resistir a uma actuação desconforme com os seus direitos, liberdades e garantias, pelo contrário, dizem-nos claramente as regras da experiência comum, máximas do quotidiano num padrão de normalidade e na esfera paralela do leigo, cidadã medianamente informad que:
Ao ser confrontada com uma fiscalização rodoviária;
Determinando-se-lhe a realização de um teste (qualitativo, de despistagem) de álcool;
Acusando naquele “taxa crime”;
Quando lhe é determinado que acompanhe os agentes devidamente uniformizados, armados, transportados num veículo com os dizeres “Polícia Municipal de Cascais”;
A cidadã “obedece, sujeita-se, crê” (e deve crer fundadamente) que os agentes públicos, que se apresentam como tal, estão a agir no quadro de competências constitucionais e legalmente atribuídas, no uso do monopólio da força pública, cometida precisamente às polícias;
Convicta de que a falta de anuência e obediência há-de trazer-lhe consequências nefastas, precisamente por corporizar, na prática “uma desobediência ao poder público”, na verdade, consoante espontaneamente referenciou o arguido, na convicção de que ia detido, até em virtude do aparato policial e medidas de marcha de urgência adoptadas aquando de tal transporte até ao Departamento Camarário.
Ou alguém crê verdadeiramente que se um qualquer cidadão comum abordasse outro e lhe pedisse os documentos pessoais e os da viatura, no seguimento lhe apontasse a realização do teste de despiste de álcool através do ar expirado, acto contínuo referenciasse a necessidade de o acompanhar no veículo do terceiro, alguém acredita que este acompanharia aquele “de livre vontade”? – obviamos a resposta, já porque a arguida a deu claramente quando questionada para o efeito, já por nos parecer evidente.

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Estas considerações levam-nos, pois, à temática subsequente, relevantíssima pelo cariz potencialmente danoso da limitação (efectiva) de liberdade na esfera jurídica do cidadão, à ordem “e responsabilidade” deste órgão municipal administrativo que, em detrimento de conduzir a suspeita ao OPC competente, decide deslocá-la, impondo-lhe o transporte para área territorial que pode (ou não) ser da competência do OPC originariamente competente (em razão do local de verificação do ilícito) para “tomar nota da ocorrência” e empreender as mais diversas actividades de recolha de prova e instrução processual.
Sublinhe-se uma vez mais a sensibilidade muito especial com que devem abordar-se situações iminentemente relacionadas com o coarctar da liberdade (e segurança) dos cidadãos considerando tratar-se de um direito fundamental ou de civilidade, sujeito ao regime especialmente protegido dos direitos, liberdades e garantias (art. 37.º conjugado com o art. 18.º, n.º 1 e 2 da CRP) e ainda que se trate de situação de detenção em flagrante delito (o que coloca, evidentemente o cidadão numa especial posição de debilidade face ao agente da autoridade, e em razão da circunstância de ser no imediato detido e sujeito a medidas policiais).
A tudo isto acresce que, não só inexiste no enquadramento constitucional qualquer cláusula geral para a ordem e segurança pública (muito menos cometida aos serviços municipais de polícia) como a adopção de “medidas de polícia fora do catálogo” estrito atribuído à competência das POLMUN coloca necessariamente questões de conformação da actuação policial ao respeito pelos direitos fundamentais análogos e interesses legalmente tutelados dos cidadãos, desviando-se pelo menos, ou ultrapassando ademais, barreiras inultrapassáveis que subjazem à actuação administrativa, sujeita a princípios de legalidade e na estrita medida da necessidade e da urgência que o caso suscite.
Mas vejamos em particular.

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d)-Da detenção em flagrante delito e as obrigações imediatas e inerentes à mesma por banda da POLMUN
No quadro vigente a detenção tem de subsumir-se no disposto no art. 254.º e seg. do CPP.
Ali se dispõe, para o que releva:
Artigo 254.º
Finalidades
1- A detenção a que se referem os artigos seguintes é efectuada:
a) Para, no prazo máximo de quarenta e oito horas, o detido ser apresentado a julgamento sob forma sumária ou ser presente ao juiz competente para primeiro interrogatório judicial ou para aplicação ou execução de uma medida de coacção (…)
Artigo 255.º
Detenção em flagrante delito
1- Em caso de flagrante delito, por crime punível com pena de prisão:
a)- Qualquer autoridade judiciária ou entidade policial procede à detenção;
b)- Qualquer pessoa pode proceder à detenção, se uma das entidades referidas na alínea anterior não estiver presente nem puder ser chamada em tempo útil.
2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, a pessoa que tiver procedido à detenção entrega imediatamente o detido a uma das entidades referidas na alínea a), a qual redige auto sumário da entrega e procede de acordo com o estabelecido no artigo 259.º(…)
Artigo 256.º
Flagrante delito
1- É flagrante delito todo o crime que se está cometendo ou se acabou de cometer.
2- Reputa-se também flagrante delito o caso em que o agente for, logo após o crime, perseguido por qualquer pessoa ou encontrado com objectos ou sinais que mostrem claramente que acabou de o cometer ou nele participar. (…)

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Conjugam-se aqui, como aliás no edifício erigido constitucionalmente para salvaguarda máxima dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, dois conceitos égide da nossa comunidade jurídica: o flagrante delito da prática de crime e a detenção, sendo aquele que legitima esta, no intuito da investigação futura da acção criminosa, com vista a levar os seus agentes à justiça.
No caso da detenção empreendida pela POLMUN impõe-se que se trate de flagrante delito de crime punível com pena de prisão e que, imediatamente após a detenção a pessoa suspeita, seja conduzida a OPC (art. 3.º, n.º 4 e 5 e 4.º al. e) e f) da Lei n.º 19/2004, de 20 de Maio).
A detenção consubstancia, pois, um ato de imposição a alguém, suspeito da prática de crime, de um estado de privação provisória da liberdade, com o fim de o submeter a decisão de uma autoridade judiciária” (LOBO, Fernando Gama (2015) Código de Processo Penal Anotado, Almedina, Coimbra, p. 470), nas palavras de Germano Marques da Silva (2008, Curso de Processo Penal II, 4ª edição, Verbo, Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, p. 262) a detenção é sempre precária, pelo menos nos casos, como o presente, que originada pelo flagrante delito da prática de crime e em ordem a submeter o detido a julgamento num processo em forma sumária, ou ser submetido ao primeiro interrogatório judicial, ou a ser aplicada ou executada uma medida de coação
Em rigor, conjugando o disposto no CPP com a lei habilitante da actuação da POLMUN, não podemos deixar de concluir que a acção desta se aproxima do caso prescrito na al. b), do n.º 1 do art. 255.º, aliás, aquele normativo parafraseia parcialmente a expressão utilizada no CPP quando ali se refere a sua imediata condução/entrega à autoridade judiciária ou ao órgão de polícia criminal competente estabelecendo tão-só a nuance da possibilidade da identificação e revista (de segurança) dos suspeitos no local do cometimento do ilícito, bem como da adopção das medidas cautelares necessárias e urgentes para assegurar os meios de prova.
A Polícia Municipal, a nosso ver, e contrariamente ao propugnado no Parecer do Conselho Consultivo da PGR de 26-02-2008, a Polícia Municipal age no âmbito da al. b) do nº 1 do artº 255º do Código Penal, pois que se se enquadrasse na al. a) do nº 1 de tal preceito não faria qualquer sentido o disposto no nº 4 do artº 3º da Lei nº 19/2004 de 20-05.
Como não faria sentido o que também se diz no referido Parecer (e que, a nosso ver revela uma contradição interna do mesmo) que “o preceito estabelece que a entrega à autoridade judiciária ou à autoridade policial da pessoa detida seja «imediata». No domínio da detenção em flagrante delito, no condicionalismo legal, os órgãos de polícia municipal não podem prevalecer-se do prazo de 48 horas previsto no artigo 254.º, n.º 1, alínea a), do CPP. (Ac. TRL, proc. 86/20.0PDCSC, já citado).

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Esclarecidos os conceitos básicos atinentes, importa que se proceda à sua subsunção ao caso em apreço, respondendo-se claramente às questões que passam a elencar-se:
1.- Episódio do flagrante delito (?)
2.- Momento da detenção (?)
3.- O que deve fazer a POLMUN ao detido, após ser detido (?)
(1)Temos para nós, do que foi possível apurar-se na audiência pública de julgamento, que o flagrante delito se evidenciou quando, interceptada a cidadã condutora e empreendido o teste de despiste de álcool no sangue, aquela apresentou uma taxa de alcoolemia superior a 1,2 g/l de sangue.
Neste circunstancialismo, conclui (e bem) a POLMUN que está diante de sujeito em flagrante delito da prática de crime de condução de veículo em estado de embriaguez.
É precisamente esta verificação, por natureza imediata, evidente e ostensiva (em face do resultado do primeiro exame de despiste de álcool pelo ar expirado) que consubstancia o flagrante delito (expressado na condução contemporânea, acto em que a cidadã foi abordada pela polícia administrativa, e com uma taxa indiciária da prática de crime).
É a abordagem, aquando da condução de veículo pela cidadã, da sua intercepção pela POLMUN, da submissão ao teste de despiste de álcool (admitindo-o como lícito, mas que ao caso não releva mais extensa análise) e do resultado imediato que legitima e tutela, acto contínuo, a detenção desta suspeita pela POLMUN, na referência de que abandone a sua viatura e os acompanhe no carro policial está, em nosso entendimento, e salvo o devido respeito por opinião diversa, acertado e parametrizado com o prescrito legalmente.
(referencie-se colateralmente que não se concebe que a detenção apenas ocorra aquando da sua formalização em auto, ou consignação no mesmo de que tão-só apenas ocorreu após a realização do teste pericial – aliás, até lá, e desde pelo menos a deslocação da pessoa na viatura policial ao Departamento Municipal, já a pessoa vai toldada da sua liberdade de decisão, determinação e movimentos – a detenção configura, em nosso entendimento (vide art. 255.º, n.º 1 al. a) e b) do CPP), um acto material consequente e entendível como tal pelo cidadão comum na esfera paralela do leigo não jurista, não se exigindo a “voz de detenção” que é circunstância não prevista legalmente, e não se confunde com a formalização da mesma que se transpõe para um determinado auto que a narra de forma mais ou menos especificada, bastando-se o acto concludente que faça entender à aludida suspeita que a partir daquele momento já não está livre de fazer o que entender, devendo, pelo contrário, submeter-se e sujeitar-se ao que lhe for determinado pela autoridade.
(2) A cidadã, tendo por referência o que se logrou provar, ao entrar no carro patrulha da POLMUN por ordem dos agentes e dirigindo-se para onde entenderam levá-la consubstancia um transporte de detido, por estar já coarctada a sua liberdade de decisão e movimentos.
Referir-se artificialmente que a detenção apenas ocorre após a realização (cerca de uma hora mais tarde) do teste de álcool no alcoolímetro quantitativo e no Departamento de POLMUN e fiscalização da Câmara Municipal de Cascais só pode configurar uma ficção de Direito (relativamente à actualidade/ contemporaneidade da acção e ao local da ocorrência) até por referência óbvia, que não podemos perder, ao desenho do tipo de ilícito sub judice.

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Trata-se, da nossa perspectiva de uma confusão na aplicação dos conceitos jurídicos, pretendendo estender elasticamente o conceito (até) de quase flagrante delito e desligar o acto formal de detenção, exteriorizado pelo comando emitido pelos agentes da POLMUN (logo após o teste de despiste de álcool) da materialidade subjacente claramente provada nos autos.
Posto isto, importa então responder à última das questões (3), nos termos da lei aplicável e de acordo com sobejamente explanado acima, a POLMUN ao deter a cidadã em flagrante delito da prática de crime de condução de veículo em estado de embriaguez deveria tê-la conduzido, no imediato, ao Posto da GNR ou à Esquadra da PSP com jurisdição na área de detecção do ilícito ou, em alternativa, contactar aquela força de segurança para que pudesse entregá-la no imediato, dando conta, precisamente, da verificação de flagrante delito da prática de condução em estado de embriaguez.
Na verdade, o flagrante delito constitui precisamente uma situação em que, por natureza e de forma evidente, directamente (de acordo com o vocábulo utilizado no art. 3.º, n.º 4 da Lei n.º 19/2004) se observa a existência de crime, não carecendo da prova científica/pericial para o efeito (sob pena de perder a sua actualidade, a menos que esta esteja ali mesmo, pronta a realizar-se no local da intercepção), nem sequer da instrução de qualquer acto, maxime, que implique o abandono do local de verificação do crime para produção de outra prova, contra-prova, notificações conformes e venha mais o que o órgão administrativo entender por estar na disponibilidade da suspeita, ali literalmente tratada como o “objecto da situação criminal” pela POLMUN.
Sublinhe-se uma vez mais o preceituado no art. 3.º, n.º 4 da Lei n.º 19/2004: Sem prejuízo do disposto nos n.º anteriores (identificação e revista) é vedado às polícias municipais o exercício de competências próprias dos órgãos de polícia criminal.

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Assim, salvo devido respeito por entendimento diverso, que é muito, levar um cidadão detido ao Departamento da POLMUN e, posteriormente, após toda a instrução (afinal processual, pois foi com base nela que se procedeu a este julgamento), contactar a Divisão da PSP para tornar com ele (em bolandas de cá para lá e de lá para cá), apenas para aí se preencher o expediente administrativo e libertá-la, parece-nos claramente ultrapassar, e em muito, as competências conferidas à POLMUN neste âmbito.
(no fundo, quem procede à detenção, empreende a diligência de prova pericial, comina a e realiza a contra-prova, é a POLMUN (a substituir-se ao OPC) e, cerca de duas horas depois da intercepção e verificação do flagrante delito, contacta uma força de segurança, apenas para que sejam apresentados à detida os documentos formais do que anteriormente já executou (veja-se a tautologia da existência de dois autos de detenção) e aquele OPC a liberte).
Aliás, na cooperação esperada com as forças de segurança (e legalmente determinada no n.º 2 do art. 3.º do diploma citado) no exercício destas funções de “regulação e fiscalização do trânsito” havia uma alternativa clara e que permitiria a custódia da prova, sem perigar a liberdade e os direitos fundamentais do suspeito, que configuraria o contacto com o Posto da GNR ou a Esquadra da PSP do local de verificação do ilícito, isto é, da intercepção e, se necessário, a condução da suspeita, aqui arguida, ao local onde, no município, a PSP/GNR empreende o teste de álcool (quantitativo) por recurso ao ar expirado (precisamente em Cascais e em localização “paredes meias” com o Departamento Municipal de Polícia e fiscalização). As instalações são literalmente uma defronte da outra.
Não demoraria mais tempo (do que o utilizado) e não implicaria a execução de funções de investigação criminal, ultrapassando os limites do poder que é legalmente conferido à POLMUN e em substituição clara do OPC competente.

No mais, é também a este propósito que se discutem as chamadas “medidas de dupla função”, cuja doutrina, por obviamente aplicável, aqui elencamos:
Uma medida policial diz-se de dupla função quando através dela a polícia prossegue simultaneamente uma função de prevenção do perigo e uma função de perseguição criminal (…)Por exemplo uma medida que começou por ser de prevenção do perigo pode, de um momento para o outro transformar-se numa medida de perseguição penal, ou adquirir simultaneamente essa finalidade (…)
(António Francisco de Sousa, Prevenção e Repressão como função da polícia e do Ministério Púbico, Revista do Ministério Público, n.º 94, Lisboa, Abril-Junho 2003), p.67).
O critério que tem sido avançado no sentido de sujeição ao regime jurídico preponderante de tais medidas policiais de dupla função tem sido o do fim da/s mesma/s medida/s, cuja determinação, de per se, coloca por vezes questões complexas, mas que neste caso concreto não se nos afigura de difícil destrinça: faz-se através do elemento determinante, o critério finalístico objectivo.
Parafraseando o autor citado quem aprecia deverá colocar-se na posição objectiva do agente policial antes do início da conduta, diante da situação concreta deverá indagar-se como apreciará a medida um cidadão médio na situação do atingido.
No caso presente, talvez não no momento da intercepção, mas certamente após a realização do teste qualitativo, será proporcionado e adequado concluir-se, como cidadão médio colocado na posição do agente administrativo, que se está diante de um flagrante delito de prática de crime de condução de veículo em estado de embriaguez.
Se tal se concretiza ou não na efectiva conclusão pela prática do ilícito é questão diversa, como o é sempre que ulteriormente a investigação criminal concluir pela (in)existência de indícios bastantes para submissão do cidadão a inquérito e julgamento criminal, mas tal já não é, de todo em todo, função cometida a este serviço municipal de polícia.

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A centralidade coloca-se na exigência de uma polícia que actue de acordo com a parametrização constitucional a que está vinculada, cujo substracto é um direito fundamental de civilidade, análogo aos direitos, liberdades e garantias e, por isso, sujeito ao mesmo e preciso regime jurídico e respectiva concretização na lei ordinária (e que, aqui, consoante podemos já avançar, foi ultrapassada no exercício de funções que (não) estão atribuídas às POLMUN).
Lateralmente refira-se apenas que os direitos, liberdades e garantias constitucionais, cujo regime de restrição de exercício se encontra taxativa e minuciosamente regulado na Constituição da República (art. 18.º e 19.º do CRP) e onde se inclui o Direito à liberdade e à segurança (art. 27.º da CRP) impõe que toda a pessoa privada da liberdade deve ser informada imediatamente e de forma compreensível das razões da sua prisão ou detenção e dos seus direitos, acrescentando nós, previamente à execução de qualquer acto de recolha de prova, designadamente pericial.
É que tais direitos e garantias constitucionais não podem servir apenas para a sua declaração formal e solene, devendo ser operacionalizadas através da actuação de todos os órgãos públicos, sejam administrativos ou de segurança, e são susceptíveis de fiscalização e controlo formal, designadamente judicial, revelando aqui uma actualidade e acuidade bastantes para que nos refiramos à sua disciplina em razão do caso concreto, e mais deles não nos possamos desligar aquando do julgamento dos factos acima arrolados. (ademais quando as POLMUN (que não as de Lisboa e Porto) dependem apenas do Presidente da Câmara, não estando, sequer sujeitas à IGAI – vide art. 2.º, n.º 1 do DL n.º 58/2012).
Mas vejamos, ainda e em concreto, que funções estão cometidas à POLMUN no quadro da recolha e preservação de prova, para que dúvidas se não suscitem quanto ao feito.

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e)-Das medidas cautelares e dos meios de (obtenção da) prova
A iniciativa própria dos órgãos de polícia criminal define-se pela atuação em substituição precária da autoridade judiciária, baseada nos pressupostos de necessidade e de urgência, perante circunstâncias que exigem uma resposta pronta da entidade policial, pautada pelo princípio de eficácia, balizada por pressupostos legais, vinculada ao dever de ser transmitida imediata notícia à autoridade judiciária. (Mesquita, Paulo Dá (2003) Direcção do Inquérito e Garantia Judiciária, Coimbra Ed., 2003, pp. 120-143)
Trata-se da caracterização e exigências a que se sujeitam as medidas de polícia de índole judiciária.
Previstas no artigo 249.º do CPP, que as elenca de forma exemplificativa, no que concerne à preservação (mormente), e recolha (mais limitada legalmente) dos meios de prova.
Da competência da POLMUN, a Lei n.º 19/2004 enumera a identificação de suspeitos, a revista aos mesmos e nos casos em que a fiscalização lhes está directamente cometida (para instrução de processos administrativos de natureza contraordenacional), a apreensão de objectos que serviram ou estivessem destinados a servir à prática da infracção.
Releva perguntar se a submissão ao teste do alcoolímetro quantitativo se insere ainda no âmbito das medidas cautelares urgentes e necessárias para preservação ou obtenção da prova, no caso concreto que aqui apreciamos.
Não podemos desligar a resposta do entendimento pacífico da jurisprudência dos tribunais superiores que vêem entendendo que os exames de pesquisa de álcool no sangue, realizados no mesmo analisador quantitativo, ordenados (…), constituem prova pericial pré-constituída, por irrepetível em julgamento. (Ac. STJ, de 11.07.2017, proc. n.º 3397/14.1T8LLE.E1.S1).
E mais, do cotejo dos artigos 153.º e 156.º do Código da Estrada com a Lei nº 18/2007 resulta que a taxa de alcoolemia se pode demonstrar por teste ao ar expirado (em equipamento qualitativo, a despistagem, e em equipamento quantitativo, a prova ou a contraprova), por análise ao sangue (a prova ou contraprova) e por exame médico (a prova ou contraprova), e que existe uma obrigatoriedade de notificação do condutor após teste de alcoolemia, por escrito ou verbalmente, do resultado, das sanções legalmente decorrentes daquele resultado e de que pode, de imediato, requerer contraprova e que, caso positivo, deve suportar todas as despesas originadas por essa contraprova. Acordão do TRE de 05.07.2016 (Processo n.º 265/15.3PAVRS.E1)
Será possível entender que o iter de procedimentos que envolve a recolha de prova (pericial) bastante para submissão de arguida a julgamento pela prática de crime de condução de veículo em estado de embriaguez, e que implica a advertência da possibilidade de se sujeitar a contraprova (bem como a sua realização) e a explicação das finalidades e consequências inerentes aos resultados apurados não importa o exercício de funções de polícia criminal, ou pelo menos de força de segurança pública, questionamos.
É que, não sendo a POLMUN um OPC nem sequer uma força de segurança que legitimidade tem para os empreender? (tal qual, surgem espelhados nos autos da POLMUN aludidos na factualidade).
A nosso ver, nenhuma, legalmente, tudo salvo melhor entendimento.
Haveria aqui necessidade efectiva e urgência ponderosa que pudesse justificar a actuação da POLMUN tal qual apurada?
Numa circunstância em que, verificado o flagrante delito pela submissão do arguido ao teste qualitativo, havia a possibilidade prática e efectiva de cumprir a lei e conduzi-lo ao OPC competente, onde poderia igualmente sujeitar-se a tal exame (quantitativo), num tempo razoavelmente idêntico?
A conclusão é óbvia: ao deslocar a arguida, detida, para o Departamento Municipal, sujeitá-la a recolha de prova pericial, não contactar imediatamente o OPC competente no local da prática dos factos, agiu a POLMUN num desvio ao quadro constitucional e legal a que está vinculada, transbordando da autoridade conferida para fiscalizar o trânsito e ultrapassando as competências que lhe estão deferidas por lei, substituindo-se ao OPC competente na instrução material do processado.
Senão vejamos em lugar comum: a lei limita expressa e claramente a sua competência no âmbito da investigação criminal – seja excluindo-a tout cour no caso de acidentes de viação, seja atribuindo-a limitadamente para identificação de suspeitos e revistas de suspeitos no local do cometimento do ilícito – equaciona-se porventura que a permitisse neste caso concreto?
Fará sentido conceder que não tenham competência para intervir numa situação clara de acidente de viação (que implique procedimento criminal) mas, em alternativa, permitir a sua instrução quanto à realização e obtenção de meios de obtenção de prova? (necessariamente enquadrados também eles num procedimento criminal)
Estamos em crer pela resposta negativa, até pela sensibilidade e necessário cuidado com a limitação de liberdade e actuação no quadro de uma fiscalização que, após sujeição a exame qualitativo de despiste de álcool no sangue com resultado positivo, igual ou superior a 1,2 g/l, se impõe, necessariamente, ulterior investigação criminal.
E não se diga que estas são práticas policiais consolidadas no município há vários anos que [por isso] não violam a constituição ou a lei.
Na verdade, somos do entendimento que o costume não é fonte de direito penal, substantivo ou processual, do mesmo modo que (felizmente, consideramos nós), os preceitos legais e as práticas policial e judiciária se vêem aperfeiçoando na devida conformação constitucional, que aqui não se nos afigura de tal modo estratosférica ou inexequível que uma efectiva cooperação da polícia municipal de Cascais com as forças de segurança do concelho (em detrimento da concorrência com as mesmas) não possa, com alguma lisura, operacionalizar-se, até em razão da localização dos aparelhos quantitativos de verificação de álcool no sangue por recurso ao ar expirado daqueles OPC.

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e)-Das consequências legais da actuação da POLMUN.
Tudo compulsado, importa, pois, que se analisem das consequências jurídicas da forma como foi instruído o processo, recolhida a prova pericial e em que moldes, com efeitos óbvios para o julgamento subjacente.
Melhor concretizando: que efeitos se extraem dos exames periciais de alcoolemia na sequência de uma detenção ilegal (em razão das finalidades da mesma), e empreendida por órgão incompetente para instruir a prova nos moldes em que a mesma foi obtida?
Citamos, por todos, o aresto subsequente, que nos parece lapidar e relativo a matéria coincidente com o que aqui tratamos:
Com efeito, o art. 126º do Código de Processo Penal disciplina nos nºs 1 e 2 as provas absolutamente proibidas e no nº 3 as provas relativamente proibidas. As primeiras não podem ser utilizadas nunca, as segundas podem ser utilizadas nos casos previstos na lei, ou seja, desde que respeitadas as regras estabelecidas na lei para a intromissão nos direitos tutelados.
As proibições de prova estabelecem limites à actividade de investigação e constituem fundamentalmente um meio ou instrumento de tutela dos direitos individuais dos cidadãos que visam impedir ou dissuadir intromissões abusivas e desnecessárias das autoridades judiciais e policiais. Sendo este um campo onde se afirma com particular relevo o princípio da ponderação de interesses, impõe-se estabelecer níveis de concordância prática entre os direitos individuais que poderão ser atingidos ou sacrificados e a prevenção e repressão da criminalidade: “entre o interesse público na perseguição penal e o interesse público também da tutela de determinados interesses, a ordem jurídica opta por uns ou outros, conforme considere que devem predominar. Com efeito, a perseguição penal não é, necessariamente, o interesse preponderante da vida em sociedade.
Por isso, os meios utilizados em ordem à repressão penal têm de acomodar-se aos princípios jurídicos que predominam num dado momento e aos valores fundamentais da nossa civilização” (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Verbo, II, 1993, pag. 103). (…)
Nestes termos, a utilização, seja por mero lapso ou não, de uma notificação meramente verbal ao condutor examinando sobre a possibilidade de realização da contraprova, numa situação em que seria possível a realização dessa mesma notificação por escrito, constitui a infracção de uma regra de procedimento, desde que, como no caso destes autos aconteceu, essa notificação, ainda assim, tenha permitido o exercício de modo eficaz desse meio de defesa. (Ac. TRG proc. n.º 2541/14.3PBBRG.G1 – sublinhados nossos)
Observe-se que o caso em apreço, a conclusão terá se distinguir-se nitidamente do preceituado na Veneranda decisão citada.
O dever de identificação do responsável da infracção estradal (…) tem como pressuposto a verificação imediata pelo funcionário autuante de quem foi o autor da conduta ilícita.
Iniciado o procedimento (…) esgotou-se esse dever funcional.
Os agentes das polícias municipais não integram as forças ou serviços de segurança.
Estamos em crer que, ilegítima que foi a manutenção da detenção, nos termos em que aquela se manteve (durante o transporte para e todas as diligências no Departamento Municipal de Polícia e Fiscalização – por órgão administrativo incompetente) e que só por via da sua manutenção se produziu a prova pericial em causa (que poderia e devia ter sido empreendida peplo OPC) e em que funda fulcralmente o presente processo, obtida mediante constrangimento físico (limitação da liberdade e perturbação da vontade e decisão) com o recurso à força (não propriamente física, mas inerente à autoridade ostentada enquanto órgão de polícia devidamente uniformizado e armado), como o próprio auto já citado explicita, tudo nitidamente fora do que a lei permite à POLMUN e em ultrapassagem dos limites claros e acima melhor densificados, terá de ter uma consequência jurídica compatível com a Constituição da República e a Lei.

Já referenciava Vieira de Andrade (Os Direitos Fundamentais na Consitituição Portuguesa de 1976 (2001) Almedina, Coimbra, p. 337-348):
O princípio da legalidade significa desde logo, que a actividade administrativa, seja de autoridade, seja de execução de prestações (…) seja concreta, seja normativa, não pode ser ilegal, não vale contra a lei – Princípio do “primado da lei” ou da “preferência da lei”.
No nosso sistema porém, este princípio aparece complementado pelo princípio da constitucionalidade: em primeiro lugar, admite-se a fiscalização dos actos normativos da Administração (regulamentos) quando violem directamente a Constituição, em especial, os preceitos relativos a direitos, liberdades e garantias sendo, enão, nulo, por inconstitucionalidade; em segundo lugar, a aplicabilidade imediata dos preceitos relativos a direitos, liberdades e garantias pode levar em alguns casos, à desaplicação, pelos órgãos administrativos, das normas legais anticonstitucionais. (…)
Isso significa, em primeiro lugar, que toda a intervenção administrativa no campo dos direitos, liberdades e garantias tem de ser a actuação de uma vontade (anterior) da lei, que constitui, deste modo “prius normativo” em relação a ela (…).
Em segundo lugar, a conformidade à lei implica que ao legislador não é permitido deixar à discricionariedade administrativa a determinação do conteúdo e dos limites dos direitos, liberdades e garantias nos casos concretos. (…)
Ainda que não exista um regime especial de direito substantivo e procedimental aplicável aos actos administrativos em matéria de direitos, liberdades e garantias, o Código do Procedimento Administrativo declara nulos, e não meramente anuláveis, os actos administrativos que “ofendam o conteúdo essencial de um direto fundamental. (…) [actual art. 161.º, n.º 1 e 2 conjugado com o art. 162.º do CPA)

Concretizando em aplicação aos casos penais:
I- Em matéria de invalidade da prova há que distinguir entre regras de produção de prova, proibição de produção de prova e proibição de valoração de prova.
II- A prova obtida através de método proibido é insusceptível de valoração pelo tribunal.
III- A prova obtida contra legem, mas através de método não proibido, pode ser valorada sempre que susceptível de se obter através de meio ou procedimento conforme à lei, suposto, evidentemente, que a irregularidade do acto de produção de prova não haja sido arguida. (Ac. TRC de 19.12.2001 proc. n.º 2721/2001 – sublinhados nossos)
O CPP consagra agora a possibilidade de medidas cautelares visando a obtenção de prova que, de outra forma, poderia perder-se, provocando danos irreparáveis nas finalidades do processo. É exactamente esse o campo de aplicação do art. 249.º do CPP ao atribuir aos órgãos de policia criminal, mesmo antes de receberem ordem da autoridade judiciária competente para procederem a investigações, competência para praticar os actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova. (…)
Por outro lado, sendo estas medidas actos de iniciativa própria dos órgãos de polícia criminal (…) aqueles actos perdem qualquer significado autónomo, na medida em que, integrando-se na posterior tramitação processual concreta, serão, por isso, sujeitos a uma avaliação ex post dos titulares das competências, e, por outro, serão também pressupostos das decisões finais a tomar pelos órgãos coadjuvados.
Sendo actos de iniciativa própria dos órgãos de polícia criminal, são ainda praticados na dependência funcional das autoridades judiciárias. Isto é, falte embora um comando das autoridades judiciárias, ainda assim os órgãos de polícia criminal devem actuar com a específica intencionalidade que os torna órgãos auxiliares da administração de justiça (…)
São pressuposto de aplicação do art. 249.º do CPP a necessidade e a urgência, o que se reconduz à possibilidade de contaminação da prova ou de deterioração do meio de prova, bem como à impossibilidade da sua reprodução noutro momento que não aquele em que efectivamente é produzida.
É inequívoca a conclusão de que o conteúdo normativo do direito fundamental previsto no art. 32.º, n.º 8, da CRP inclui no seu âmbito o efeito remoto da utilização de métodos proibidos de prova. (…)
Nada obsta a que as provas mediatas possam ser valoradas quando provenham de um processo de conhecimento independente e efectivo, uma vez que não há nestas situações qualquer relação de causalidade entre o comportamento ilícito inicial e a prova mediatamente obtida. Pode afirmar-se que o efeito metastizante da violação das regras de proibição de prova apenas tem razão de ser em relação à prova que se situa numa relação de conexão de ilicitude. (…)
Para que seja possível a condenação não basta a probabilidade de que o arguido seja autor do crime nem a convicção moral de que o foi. É imprescindível que, por procedimentos legítimos, se alcance a certeza jurídica, que não é desde logo a certeza absoluta, mas que, sendo uma convicção com génese em material probatório, é suficiente para, numa perspectiva processual penal e constitucional, legitimar uma sentença condenatória. Significa o exposto que não basta a certeza moral mas é necessária a certeza fundada numa sólida produção de prova. (…)
O efeito à distância da prova proibida como um factor que reforça a ideia da autonomia total entre o instituto das nulidades processuais e o das proibições de prova e, ainda, que tal efeito tem génese na própria norma. (…)
É inequívoca a conclusão de que o conteúdo normativo do direito fundamental previsto no artigo 32.º nº 8 da Constituição da República Portuguesa inclui no seu âmbito o efeito remoto da utilização de métodos proibidos de prova.
Um primeiro argumento que se pode invocar neste sentido encontra-se no teor literal da própria norma constitucional citada, uma vez que esta declara nulas "todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações", sem introduzir qualquer diferenciação ao nível do grau imediato ou mediato da sua obtenção. Para além deste argumento literal, é ainda possível encontrar um argumento, retirado da hermenêutica jurídico-constitucional proveniente da teoria da interpretação das normas constitucionais que aponta também para a ideia de que o efeito á distância das proibições de prova se encontra dentro do âmbito normativo do artigo 32.º n.º 8 da Constituição.
Desde logo, (…) tal conclusão é, também, imposta pelo principio de interpretação constitucional que se consubstancia no princípio da máxima efectividade ou seja quando o teor de uma norma da Lei Fundamental possibilitar mais do que uma interpretação, o intérprete deve considerar as consequências a que conduz cada interpretação e escolher aquela que melhor realize os fins que a Constituição tem em vista ao prever tal norma.
Considerando por tal forma é liminar a conclusão de que a interpretação que assume um papel mais abrangente na finalidade protectora dos direitos elencados no artigo 32.º n.º 8 da Constituição é aquela que não conduz à destrinça entre prova directa e indirectamente obtida através de métodos proibidos, uma vez que quanto menor for a possibilidade de aproveitamento do material probatório obtido na sequência de um meio ilícito, maior será, inequivocamente, a eficácia dissuasora da norma relativamente a comportamentos contrários à sua lógica de protecção.
Conclui-se pois, (…) que o efeito-à-distância se encontra abrangido pela esfera normativa do artigo 32.º/8 da Constituição.
(Ac. STJ de 12.03.2009, proc. 09P0395)
Os sublinhados são nossos e serve a longa citação (e do nosso ponto de vista inteiramente impressiva) por propugnar, de um lado, a boa doutrina que acolhemos, no sentido da autonomia perfeita das proibições de prova relativamente ao regime das nulidades em processo penal (sujeitas por sua vez a critérios de taxatividade e de efeito em cascata), o que impõe uma consideração diversa do regime de estatuição (efeito à distância) aquando da verificação de uma proibição de prova e por outro lado, que, como tão bem se explana do Acordão do Colendo STJ possui desde logo um verdadeiro cariz dissuasor (da actuação dos OPC, aqui órgão administrativo) aquando da produção de prova e impositivo aquando da sua (não) valoração judicial.

*

Ora, no caso presente, outra forma não há de obter/repetir aquela prova pericial extraída no Departamento Municipal, já que a POLMUN, em detrimento da legalmente estabelecida coordenação com a GNR e a PSP em ordem a proceder à entrega imediata do cidadão detido ao OPC, permitindo que esta/s força/s de segurança, como é da sua competência, instruísse/m o processo, decidiu antes deslocar a cidadã para as instalações camarárias, para recolher a prova pericial, tornou a deslocá-la posteriormente para a Divisão Policial de Cascais, já com a tramitação processual substancial organizada e, então, entregou-a para que, cerca de três horas após a intercepção, finalmente, uma força de segurança assumisse apenas o expediente administrativo (ou seja, já depois de recolhida a prova pericial e depois de feita (?) a advertência e realizada a contra-prova) então a PSP lhe explicasse devidamente o sucedido (?), a constituísse arguida e a sujeitasse à prestação de TIR.
Pelo que, não estando a actuação da POLMUN a coberto da competência constitucional e legal que lhe é conferida nem sujeita a sua actuação a princípios de urgência e necessidade (poderia sem perigar a custódia da prova ter sido o arguido apresentado desde logo ao OPC onde, no mesmíssimo tempo, realizaria o exame, extraído por órgão competente) e sem violação dos seu direitos pessoais e da sua liberdade (ou sendo-o no quadro da limitações possíveis se e através da actuação do OPC competente), pelo que se configura tal situação uma proibição de (valoração da prova) assim obtida, uma vez que esta não é susceptível de se desligar dos moldes em que foi produzida.
Em suma, integra o disposto conjugadamente no art. 126.º, n.º 1 e 2 al. a) e c) do CPP, o que impõe ao Tribunal um óbice à consideração dessa mesma prova, em abono na doutrina perfilhada do(s) Fernwirkung des Beweisverbots (fruto da árvore envenenada) uma vez que consideração diversa imporia sacrificar o princípio da liberdade e segurança do cidadão (constitucionalmente consagrado e ampla e legalmente densificado, nos termos acima desenvolvidos) e o direito constitucional análogo a uma polícia que actue no quadro constitucional e legal vigentes, com o argumento, tantas vezes vilipendiado, da constatação da verdade material (de outra forma não realizável no processo), e em nosso entendimento não justificável na ponderação dos interesses no caso concreto, neste processo em contraposição.

*
(…)

Parece-nos sobejamente clara a asserção:
Impõe-se, pois, ao juiz que tome posição no sentido de apurar, nesta justaposição de interesses, o equilíbrio sempre precário e o valor que deva prevalecer em concreto, face à verificação simples e literal da verdade material ou à sua compaginação com a forma como, violando direitos fundamentais ou de civilidade análogos a direitos, liberdades e garantias, com o é o de uma polícia administrativa que actue subordinando-se à Constituição e à Lei, ultrapassando as medidas de polícia que lhe estão atribuídas e restringido a liberdade de movimentos, a decisão e a formação da vontade do cidadão, aqui arguido, em (ab)uso da autoridade (para além do permitido legalmente e, desta forma, em detrimento de se acautelar a custódia da prova, se atropela/m garantias consititucionais, protegidas e densificadas na Lei Habilitante).
Recordamos que uma actuação fora do catálogo de medidas de polícia atribuídas, sujeitas constitucionalmente a um princípio de tipicidade e de poibição do excesso não faz presumir a existência de urgência e necessidade de actuação, quando a adopção e cumprimento dos ditames legais permitiria a recolha análoga de prova, pelo OPC competente, e no mesmíssimo período de tempo, em nada perigando a custódia da prova.
A uma actuação inconstitucional importará o remédio radical da sua intolerabilidade na ordem jurídica, arredando-o de qualquer valoração porquanto obtida em violação do regime directamente aplicável dos Direitos, Liberdades e Garantias Constitucionais, cominando-lhe, de um lado, o regime da nulidade do acto material e, do outro, o regime das proibições de prova em matéria de processo penal.
Somos, pois, de acolher o entendimento da insusceptibilidade de valoração de uma prova obtida nestes termos, ademais, quando, repetimos e sublinhamos, havia forma de, em tempo e regularmente, aquela ter sido produzida no respeito por tais direitos civilizacionais.
A acção da POLMUN não pode, pois, merecer a tutela do Direito, num circunstancialismo em que se impunha, até por configurar legalmente uma autoridade administrativa, que esta polícia, em detrimento de tal atropelo, agisse em cooperação com as forças de segurança.
Assim julgamos no caso concreto, em abono da reintegração do direito a uma polícia que actue no quadro constitucional e legal vigentes, e no respeito pela liberdade e segurança de todos os cidadãos, impondo a adopção de mecanismos aqui materializados na pessoa da arguida, tendentes ao respeito pela vinculação funcional (art. 237.º, n.º 3 e 272.º, n.º 2, 32.º, n.º 1 e 8 da CRP) que simultaneamente comporta o princípio da tipicidade das medidas de polícia e, por outro, proíbe o excesso, aqui verificado e, através do qual foi obtida prova ilícita que, por motivos de ordem e aplicação do regime constitucional do Estado de Direito e das proibições de prova em processo penal, tem de ser desconsiderada, e não podendo ser utilizada (art. 161.º, n.º 1 e 2 al. d) do CPA e art. 126.º, n.º 1 e 2 do CPP).

(…)”.
*

3-Apreciação do recurso

No caso em concreto, a arguida foi absolvida do crime de condução de veiculo em estado de embriaguez p. e p. pelo artigo 292º, nº1 do Código Penal por não se ter valorado o teste (quantitativo) de pesquisa de álcool no sangue realizado pela policia municipal por ter sido considerado prova nula por ter sido realizado após uma detenção ilegal.
Da factualidade apurada no tribunal a quo acima transcrita resulta que a arguida foi interceptada pela policia municipal cerca das 23h10 e, após ter realizado teste de álcool (despiste qualitativo) que apresentou o resultado de 1,20 g/l sangue, os agentes da policial municipal determinaram à arguida que a acompanhasse no carro patrulha da Policia Municipal de Cascais até ao Departamento de Policial Municipal, onde aí foi realizado o teste (quantitativo) de pesquisa de álcool no sangue e, após, os agentes de policia municipal entregaram pelas 2h14 a arguida detida na Esquadra de Intervenção da PSP de Cascais para ser constituída arguida e prestar TIR.
Atenta a questão suscitada pelo recorrente importa antes de mais fazer uma breve exposição sobre as normas jurídicas que regulam a natureza, as atribuições e as competências da Policia Municipal.
A Lei 19/2004, de 20.05 (com as alterações introduzidas pela Lei 50/2019, de 24.07) define o regime e a forma de criação das policias municipais.

Atento o objecto do recurso há que transcrever alguns dos seus preceitos legais:
Artigo 1.º
Natureza e âmbito
1- As polícias municipais são serviços municipais especialmente vocacionados para o exercício de funções de polícia administrativa, com as competências, poderes de autoridade e inserção hierárquica definidos na presente lei.
2- As polícias municipais têm âmbito municipal e não são susceptíveis de gestão associada ou federada.”
Artigo 2.º
Atribuições
1- No exercício de funções de polícia administrativa, é atribuição prioritária dos municípios fiscalizar, na área da sua jurisdição, o cumprimento das leis e regulamentos que disciplinem matérias relativas às atribuições das autarquias e à competência dos seus órgãos.
2- As polícias municipais cooperam com as forças de segurança na manutenção da tranquilidade pública e na protecção das comunidades locais.
3- A cooperação referida no número anterior exerce-se no respeito recíproco pelas esferas de actuação próprias, nomeadamente através da partilha da informação relevante e necessária para a prossecução das respectivas atribuições e na satisfação de pedidos de colaboração que legitimamente forem solicitados.
4- As atribuições dos municípios previstas na presente lei são prosseguidas sem prejuízo do disposto na legislação sobre segurança interna e nas leis orgânicas das forças de segurança.”
Artigo 3.º
Funções de polícia
1-As polícias municipais exercem funções de polícia administrativa dos respectivos municípios, prioritariamente nos seguintes domínios:
a)- Fiscalização do cumprimento das normas regulamentares municipais;
b)- Fiscalização do cumprimento das normas de âmbito nacional ou regional cuja competência de aplicação ou de fiscalização caiba ao município;
c)- Aplicação efectiva das decisões das autoridades municipais.
2- As polícias municipais exercem, ainda, funções nos seguintes domínios:
a)- Vigilância de espaços públicos ou abertos ao público, designadamente de áreas circundantes de escolas, em coordenação com as forças de segurança;
b)- Vigilância nos transportes urbanos locais, em coordenação com as forças de segurança;
c)- Intervenção em programas destinados à acção das polícias junto das escolas ou de grupos específicos de cidadãos;
d)- Guarda de edifícios e equipamentos públicos municipais, ou outros temporariamente à sua responsabilidade;
e)- Regulação e fiscalização do trânsito rodoviário e pedonal na área de jurisdição municipal.
3- Para os efeitos referidos no n.º 1, os órgãos de polícia municipal têm competência para o levantamento de auto ou o desenvolvimento de inquérito por ilícito de mera ordenação social, de transgressão ou criminal por factos estritamente conexos com violação de lei ou recusa da prática de acto legalmente devido no âmbito das relações administrativas.
4- Quando, por efeito do exercício dos poderes de autoridade previstos nos n.os 1 e 2, os órgãos de polícia municipal directamente verifiquem o cometimento de qualquer crime podem proceder à identificação e revista dos suspeitos no local do cometimento do ilícito, bem como à sua imediata condução à autoridade judiciária ou ao órgão de polícia criminal competente.
5 - Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, é vedado às polícias municipais o exercício de competências próprias dos órgãos de polícia criminal.”
Artigo 4.º
Competências
1- As polícias municipais, na prossecução das suas atribuições próprias, são competentes em matéria de:
a)- Fiscalização do cumprimento dos regulamentos municipais e da aplicação das normas legais, designadamente nos domínios do urbanismo, da construção, da defesa e protecção da natureza e do ambiente, do património cultural e dos recursos cinegéticos;
b)- Fiscalização do cumprimento das normas de estacionamento de veículos e de circulação rodoviária, incluindo a participação de acidentes de viação que não envolvam procedimento criminal;
c)-Execução coerciva, nos termos da lei, dos actos administrativos das autoridades municipais;
d)- Adopção das providências organizativas apropriadas aquando da realização de eventos na via pública que impliquem restrições à circulação, em coordenação com as forças de segurança competentes, quando necessário;
e)- Detenção e entrega imediata, a autoridade judiciária ou a entidade policial, de suspeitos de crime punível com pena de prisão, em caso de flagrante delito, nos termos da lei processual penal;
f)-Denúncia dos crimes de que tiverem conhecimento no exercício das suas funções, e por causa delas, e competente levantamento de auto, bem como a prática dos actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova, nos termos da lei processual penal, até à chegada do órgão de polícia criminal competente;
g)- Elaboração dos autos de notícia, autos de contra-ordenação ou transgressão por infracções às normas referidas no artigo 3.º;
h)- Elaboração dos autos de notícia, com remessa à autoridade competente, por infracções cuja fiscalização não seja da competência do município, nos casos em que a lei o imponha ou permita;
i)-Instrução dos processos de contra-ordenação e de transgressão da respectiva competência;
j)- Acções de polícia ambiental;
l)- Acções de polícia mortuária;
m)-Garantia do cumprimento das leis e regulamentos que envolvam competências municipais de fiscalização.
2- As polícias municipais, por determinação da câmara municipal, promovem, por si ou em colaboração com outras entidades, acções de sensibilização e divulgação de matérias de relevante interesse social no concelho, em especial nos domínios da protecção do ambiente e da utilização dos espaços públicos, e cooperam com outras entidades, nomeadamente as forças de segurança, na prevenção e segurança rodoviária.
3- As polícias municipais procedem ainda à execução de comunicações, notificações e pedidos de averiguações por ordem das autoridades judiciárias e de outras tarefas locais de natureza administrativa, mediante protocolo do Governo com o município.
4- As polícias municipais integram, em situação de crise ou de calamidade pública, os serviços municipais de protecção civil.”

(…)

Artigo 6.º
Dependência orgânica e coordenação
1- A polícia municipal actua no quadro definido pelos órgãos representativos do município e é organizada na dependência hierárquica do presidente da câmara.
2- A coordenação entre a acção da polícia municipal e as forças de segurança é assegurada, em articulação, pelo presidente da câmara e pelos comandantes das forças de segurança com jurisdição na área do município.
3- A aplicação da presente lei não prejudica o exercício de quaisquer competências das forças de segurança.”

Das normas jurídicas ora transcritas conclui-se de forma inequívoca que as Policias Municipais são serviços municipais especialmente vocacionados para o exercício de funções de polícia administrativa, sendo vedado às polícias municipais o exercício de competências próprias dos órgãos de polícia criminal (cfr. artigo 3º, da Lei 21/200, de 10.08 que define quais são os órgãos de polícia criminal, não estando aí contempladas as policias municipais).
Tal conclusão emana igualmente do Parecer do Conselho Consultivo da PGR de 26.02.2008 (referenciado e transcrito parcialmente na sentença recorrida).
Entendimento idêntico – os agentes das policias municipais não integram as forças ou serviços de segurança, estando-lhes vedado o exercício de competências próprias dos órgãos de policia criminal – foi perfilhado no Ac. do TRC de 28.05.2008, acessível in www.dgsi.pt, no Ac. do TRL de 08.07.2020 da 3ª Secção criminal, Processo n.º 86/20.1PBCSC.L1 e no Ac. do TRL de 23.03.2021, acessível in www.dgsi.pt).
Refira-se ainda que as polícias municipais estão constitucionalmente previstas no titulo VIII intitulado “Poder Local” (cfr. artigo 273º, n.º 3 do C.R.P.), estando subordinadas à Constituição e à Lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé (cfr. artigo 266º, n.º 2 do CRP).
Assim, considerando os preceitos legais acima transcritos e os referidos princípios constitucionais e no seguimento do entendimento defendido no referido Ac. do TRL de 08.07.2020 (cujos fundamentos aderimos), temos que concluir que: “fora do âmbito das atribuições administrativas especificadamente acometidas à Policial Municipal, esta só pode, perante crime de delito comum, ou de crimes que caem fora do âmbito administrativo que lhes pertence, e desde que sejam de natureza pública ou semi-pública, e puníveis com pena de prisão, identificar suspeitos, detê-los e proceder à obtenção e preservação cautelar de vestígios de prova se: - o crime for detectado em flagrante delito; a detenção, identificação e preservação da prova também se faça em sede de flagrante delito.”.
Refira-se que tal entendimento também se encontra plasmado no Ac. do TRL de 29.07.2020 (acessível in www.dgsi.pt) onde se pode ler: ”Os agentes das policias municipais somente podem deter suspeitos no caso de crime público ou semi-público punível com pena de prisão, em flagrante delito, cabendo-lhes proceder à elaboração do respectivo auto de noticias e detenção e à entrega do detido, de imediato, à autoridade judiciária ou ao órgão de policia criminal”.
Ora, o conceito de flagrante delito “é um conceito que tem a ver com a actualidade da infracção, isto é, com a captura no decurso da execução da infracção. Não é um conceito que se ligue à prova, pois, como dizem os doutrinadores, não é legítima a captura por prática de crime que tenha sido presenciado, se a captura só se vier a concretizar mais tarde” (Gil Moreira dos Santos, in Noções de Processo Penal, pág. 266).
Cavaleiro Ferreira, assentando o flagrante delito na actualidade da infracção, escreve que “é uma característica temporal do crime, embora não uma qualidade ou requisito constitutivo do próprio crime” (in Curso de Processo Penal, Vol. II, pág, 130).
Na noção legal de flagrante delito “valoriza-se a circunstância de o agente ser surpreendido na prática do crime ou com sinais que evidenciam a sua participação nele (Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. II, pág. 236).

O artigo 256º do C.P.P. define um conjunto de situações configuradas como flagrante delito:
1- É flagrante delito todo o crime que se está cometendo ou se acabou de cometer.
2- Reputa-se também flagrante delito o caso em que o agente for, logo após o crime, perseguido por qualquer pessoa ou encontrado com objectos ou sinais que mostrem claramente que acabou de o cometer ou de nele participar.
3- Em caso de crime permanente, o estado de flagrante delito só persiste enquanto se mantiverem sinais que mostrem claramente que o crime está a ser cometido e o agente está nele a participar.”
Muito embora o artigo 27º da Constituição expressamente consagre e salvaguarde o direito de todos os cidadãos à liberdade e à segurança, não deixa de contemplar , no seu n.º 3, algumas restrições a esse principio fundamental.

Uma delas é precisamente a da detenção em flagrante delito contemplada no Artigo 255º do C.P.P.:
1.- Em caso de flagrante delito, por crime punível com pena de prisão:
a)- Qualquer autoridade judiciária ou entidade policial procede à detenção;
b)- Qualquer pessoa pode proceder à detenção, se uma das entidades referidas na alínea anterior não estiver presente nem puder ser chamada em tempo útil.
2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, a pessoa que tiver procedido à detenção entrega imediatamente o detido a uma das entidades referidas na alínea a), a qual redige auto sumário da entrega e procede de acordo com o estabelecido no artigo 259.º”.
Atento o disposto na parte final do n.º 4 do artigo 3º da citada Lei 19/2004 e as considerações acima explanadas, a Policia Municipal ao deter uma pessoa em flagrante delito perante crime de natureza pública ou semi-pública e punível com pena de prisão fá-lo ao abrigo do disposto na al. b), do n.º 1 do citado artigo 255º do C.P.P.
Atento o objecto do recurso importa de seguida ter presente o regime legal previsto no Código da Estrada para a fiscalização da condução sob o efeito de álcool.

Assim, o artigo 152º preceitua que:
1- Devem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas:
aa) Os condutores;
(…)
3- As pessoas referidas nas alíneas a) e b) do n.º 1 que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas são punidas por crime de desobediência.”.

Por sua vez, o artigo 153º estabelece que:
1- O exame de pesquisa de álcool no ar expirado é realizado por autoridade ou agente de autoridade mediante a utilização de aparelho aprovado para o efeito.
2- Se o resultado do exame previsto no número anterior for positivo, a autoridade ou o agente de autoridade deve notificar o examinando, por escrito ou, se tal não for possível, verbalmente:
aa)-Do resultado do exame;
bb)-Das sanções legais decorrentes do resultado do exame;
cc)-De que pode, de imediato, requerer a realização de contraprova e que o resultado desta prevalece sobre o do exame inicial;
dd)-De que deve suportar todas as despesas originadas pela contraprova, no caso de resultado positivo.
3- A contraprova referida no número anterior deve ser realizada por um dos seguintes meios, de acordo com a vontade do examinando:
aa)- Novo exame, a efetuar através de aparelho aprovado;
bb)- Análise de sangue.”

Por seu turno, a Lei 18/2007, de 17.05, que aprovou o Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas dispõe no seu artigo 1º:
1- A presença de álcool no sangue é indiciada por meio de teste no ar expirado, efectuado em analisador qualitativo.
2- A quantificação da taxa de álcool no sangue é feita por teste no ar expirado, efectuado em analisador quantitativo, ou por análise de sangue.
3- A análise de sangue é efectuada quando não for possível realizar o teste em analisador quantitativo.”

E o seu artigo 2º estatui que:
1- Quando o teste realizado em analisador qualitativo indicie a presença de álcool no sangue, o examinando é submetido a novo teste, a realizar em analisador quantitativo, devendo, sempre que possível, o intervalo entre os dois testes não ser superior a trinta minutos.
2- Para efeitos do disposto no número anterior, o agente da entidade fiscalizadora acompanha o examinando ao local em que o teste possa ser efectuado, assegurando o seu transporte, quando necessário.
3- Sempre que para o transporte referido no número anterior não seja possível utilizar o veículo da entidade fiscalizadora, esta solicita a colaboração de entidade transportadora licenciada ou autorizada para o efeito.
4- O pagamento do transporte referido no número anterior é da responsabilidade da entidade fiscalizadora, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 158.º do Código da Estrada.”

Perante tal quadro legal podemos concluir que o teste de despiste do álcool implica duas fases distintas:
1ª: através de um teste qualitativo que apenas serve para verificar se existe ou não álcool no sangue e daí concluir-se pela eventual prática de um crime ou de uma contra ordenação, ou nenhuma das duas (o chamado teste de despistagem);
2ª: através de um teste quantitativo cuja finalidade já é a de determinar ao certo a TAS (teste que servirá de prova pericial para comprovar o valor da respectiva taxa e acusar o condutor de álcool no sangue).
A este propósito, no Ac. do TRL de 23.03.2021 (acessível no www.dgsi.pt) pode ler-se: “Resulta, assim, que o analisador qualitativo visa uma primeira despistagem da presença de álcool no sangue em ordem à selecção dos visados a submeter ao exame por analisador quantitativo. Este, sim, que determina a concreta taxa de alcoolemia de que é portador quem a ele se submete. (…) realça-se, após a realização do teste qualitativo, se este registar positivo, o agente da entidade fiscalizadora acompanha o examinando ao local em que o teste (ou exame) quantitativo possa ser efectuado” (veja-se ainda o Ac. do TRG de 11.02.2019, acessível in www. dgsi.pt).
Daqui resulta que os dois testes - qualitativo e quantitativo - têm, pois, natureza distinta: o primeiro serve apenas para despistagem da pesquisa de álcool no sangue e o segundo é o único que serve de prova para demonstrar em sede de julgamento criminal a taxa de álcool no sangue.

Quanto ao valor probatório do teste quantitativo, pode ler-se no Ac do TRL de 29.07.2020 (acessível in www. dgsi.pt) que: “observado que seja todo este procedimento legal para a obtenção de uma medição juridicamente válida da TAS, o resultado deste exame, expresso no talão do alcoolímetro de modelo aprovado e com verificação válida, deve ser considerado prova vinculado, preconstituida (o que implica que não pode ser repetida), dotada de especial valor probatório estabelecido para a prova pericial, no artigo 163º do CPP, como também resulta do preceituado nos artigos 6º e 7º da Lei 18/2007, de 17. De Maio” (entendimento também perfilhado por Benjamim Rodrigues, Da prova penal, Tomo I, Coimbra 2008, pág. 117).
Isto significa que o segundo teste (quantitativo), dotado de especial valor probatório estabelecido para a prova pericial, só deve ser realizado se o primeiro teste indiciar uma taxa superior ao legalmente permitido por lei e só pode ser realizado por quem tem competências próprias dos órgãos de policia criminal.
Assim, atenta a distinta natureza probatória dos testes qualitativo e quantitativo acima explanado e as competências adstritas à Policia Municipal esta pode realizar ambos os testes?
A nossa resposta tem que ser negativa.
A este respeito, o referido Ac. do TRL de 23.03.2021 é elucidativo sobre a falta de competência da policia municipal para realizar o teste quantitativo: “Ora, se a Lei não permite que a Policia Municipal participa acidentes de viação que envolvam procedimento criminal (por manifestamente tal competência ser das forças de segurança com que estão em coordenação), como é que podemos sustentar que admite recolha de prova em ordem à perseguição criminal de pessoa que exerce a condução influenciado pelo álcool?
Porque assim é, estando vedado às polícias municipais o exercício de competências próprias dos órgãos de policia criminal, não podemos deixar de concluir que lhe faltava competência para determinar à arguida a realização do exame para quantificação da taxa de álcool no sangue através do ar expirado, que se traduz numa recolha de prova em ordem à sua apresentação a julgamento pela prática de crime de condução de veiculo em estado de embriaguez, com observância das formalidades previstas no artigo 153º do Código da estrada e q nestas se incluem, manifestamente.” (no mesmo sentido - a Policia Municipal não tem legitimidade legal nem competências para efectuar o teste quantitativo - veja-se o Ac. do TRL de 08.07.2020, da 3ª secção criminal do TRL, Proc. n.º 86/20.1PBCSC.L1).
Perante tais considerações, com as quais concordamos, entendemos que a Policia Municipal de facto não tem competências para determinar ao arguido a realização do exame para a quantificação da taxa de álcool no sangue através do ar expirado (divergindo assim do entendimento seguido pelo referido Ac. do TRL de 29.07.2020).
O recorrente na sua motivação alega que as polícias municipais são entidades fiscalizadoras para efeitos do disposto no artigo 153º do Código da Estrada, podendo por isso usar todas as formas de realização de exame de pesquisa de álcool no sangue (qualitativo e quantitativo).
Ora, não concordamos com tal entendimento, porquanto, atentas as atribuições e competências da policia municipal acima elencadas e previstas no citado diploma legal 19/2004, no âmbito das funções de fiscalização do trânsito rodoviário previstas no artigo 3º, n.º 2 da citada lei 19/2004 não estão englobadas as fiscalizações com vista à deteção de álcool no sangue por parte dos condutores, já que tais funções enquadram-se no âmbito das funções próprias dos órgãos de policia criminal que, como vimos, os policiais municipais estão vedados de exercerem, excepto em regime de cooperação expressamente previsto no citado diploma legal 19/2004.

A este propósito, no citado Ac. do TRL de 08.07.2020 (cujo entendimento aderimos) pode ler-se: “ Ora o Digno recorrente assenta o seu entendimento no facto de no nº 2 do citado artº 2º se fazer referência apenas a “entidade fiscalizadora” pelo que a Polícia Municipal seria tida, para efeitos deste diploma, como entidade fiscalizadora.
Em nosso ver tal subsunção não é possível atento o quadro legal em que a Polícia
Municipal se move, em especial o disposto no artº 3º nos 4 e 5 da Lei no 19/2004 de 20-05.
Repare-se que a Polícia Municipal, no caso em apreço, não age como entidade fiscalizadora, isto é, não tem legitimidade para de forma aleatória proceder a fiscalizações – vulgarmente conhecidos por “operação stop” – tendo a sua intervenção no caso em apreço se constrangido ao facto de se ter apercebido de que um crime poderia estar a ser cometido, daí a sua intervenção ser considerada no âmbito de um flagrante delito.
Por outro lado, a recolha de prova indiciária no caso em apreço surge como forma de confirmar o possível ilícito penal, e assim, justificar a intervenção da Polícia Municipal numa situação em que a mesma não estaria legitimada a actuar, e não no âmbito de uma simples fiscalização aleatória, própria das polícias de segurança pública.
A Lei no 18/2007 de 17-05 não tem a virtualidade de atribuir funções à Polícia Municipal que esta não tenha por força do regime legal que a rege em especial.
Assim, porque a Polícia Municipal apenas podia deter o arguido em flagrante delito e constatando a indiciação da prática de crime, entregá-lo de imediato à PSP a quem competira efectuar a restante recolha de prova, nunca podia tal Polícia Municipal “acompanhar” o detido – como sem o manter detido? – a local onde o segundo teste pudesse ser efectuado.”

O recorrente alega ainda que a detenção por parte da Policia Municipal tem sempre como pressuposto a ocorrência de um crime público ou semi-publico, punível com pena de prisão e em situação de flagrante delito e só com a realização do teste quantitativo se podia saber se estaria perante uma infração criminal.
De facto, conforme acima referimos, a detenção por parte da Policia Municipal tem sempre como pressuposto a ocorrência de um crime público ou semi-publico, punível com pena de prisão e em situação de flagrante delito. Porém, não concordamos com o argumento que só com a realização do teste quantitativo se podia saber se estaria perante uma infração criminal, porquanto, no caso em apreço, após a realização do teste qualitativo por parte da policia municipal esta foi confrontada com indícios suficientes para ficar convencida de que a arguida apresentava uma TAS (mesmo que indiciária) que integrava a prática do crime previsto no artigo 292º do C.P. e, por via disso, podia proceder à detenção da arguida (como fez) em flagrante delito.

A este propósito pode ler-se no citado Ac. do TRL de 08.07.2020: “Não colhe a tese do Digno recorrente de que só com o teste quantitativo é que a Policia Municipal podia saber que estava perante um crime, porquanto a detenção em flagrante delito não exige a certeza da prática do crime, apenas de indícios, ficando a certeza para processo próprio a ser tratado por autoridade judiciária”.

O recorrente alega também que a Policia Municipal tem competência para lavrar auto de noticia e a sua elaboração necessitava de realização prévia de teste quantitativo.
De facto, a Policia Municipal tem competências para lavrar auto de noticia (cfr. artigo 4º da referida Lei 19/2004).
Ora, o auto de noticia visa mencionar os factos presenciados pela autoridade, neste caso, o agente policia municipal que constituem crime.
E, conforme decorre do acima explanado, para a detenção da arguida e consequente elaboração do auto bastava os indícios recolhidos com a realização do teste qualitativo, já que a situação de flagrante delito ocorreu desde logo com a constatação da TAS de álcool no sangue apresentada com o teste qualitativo.
Daqui resulta que (ao contrário do entendimento seguido no referido Ac. do TRL de 29.07.2020) a elaboração de auto de noticia por parte da Policia Municipal não necessitava da realização prévia do teste quantitativo de pesquisa de álcool no sangue.
O recorrente afirmou ainda que o teste quantitativo deve se realizado, sempre que possível, num intervalo não superior a 30 minutos entre os dois testes, devendo a polícia municipal assegurar os meios de prova até à chegada do órgão de policia criminal competente.

A este respeito importa relembrar o que o artigo 4º da citada Lei 19/2004 preceitua:
1- As polícias municipais, na prossecução das suas atribuições próprias, são competentes em matéria de:
(…)
e)Detenção e entrega imediata, a autoridade judiciária ou a entidade policial, de suspeitos de crime punível com pena de prisão, em caso de flagrante delito, nos termos da lei processual penal;
f)Denúncia dos crimes de que tiverem conhecimento no exercício das suas funções, e por causa delas, e competente levantamento de auto, bem como a prática dos actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova, nos termos da lei processual penal, até à chegada do órgão de polícia criminal competente;(…).”

No caso vertente, não resulta da factualidade apurada acima transcrita uma efectiva necessidade e uma urgência na realização do teste quantitativo por parte da Policia Municipal com vista a acautelar e assegurar os meios de prova até à chegada da policia criminal competente.
De facto, da matéria de facto apurada resulta que a Policia Municipal interceptou a arguida pelas 23h10m e submeteu-a (e bem) à realização do teste qualitativo de análise de álcool no sangue.
E, após o resultado desse teste, conforme resulta da norma acima transcrita, a Policia Municipal devia ter de imediato contactado a polícia criminal competente para se deslocar ao local da verificação da infracção e, caso fosse necessário acautelar os meios de prova, devia ter de imediato acompanhado a arguida ao posto da policia criminal competente (cujas instalações se situam defronte do Departamento da Policia Municipal de Cascais conforme realçado na sentença recorrida).
Sucede que, em vez disso, a Policia Municipal deslocou a arguida, detida, para o Departamento Municipal (que, reitera-se, se situa defronte das instalações da policia criminal competente) e sujeitou-a a recolha de prova pericial, entregando-a na Divisão da PSP de Cascais apenas pelas 2h14.
Perante todo o exposto, consideramos que a primeira actuação da Policia municipal – sujeição da arguida ao teste de ar expirado qualitativo – deve entender-se (como o fez a sentença recorrida) como tendo sido uma actuação legal e justificada.
Quanto à actuação subsequente da Policia Municipal entendemos que deve considerar-se desconforme às competências que lhe estão adstritas.
Efectivamente, a Policia municipal após ter constatado a indiciação da prática de crime (com a taxa indiciária do teste qualificativo a que submeteu a arguida) deveria, como decorre das competências que estão legalmente previstas na referida Lei 19/2004 e atenta a distinta natureza do teste quantitativo, chamar de imediato a PSP ao local ou entregar (detendo-a) a arguida de imediato à PSP mais próxima, a quem competiria efectuar a restante recolha da prova, devendo assim a detenção cessar o mais depressa possível (neste sentido, veja-se os referidos Acs. do TRC de 28.05.2008, do TRL de 08.07.2020 e do TRL de 23.03.2021).
Porém, no caso presente, a policia municipal deteve a arguida e levou-a indevidamente ao seu departamento onde aí a sujeitou a teste de pesquisa de álcool quantitativo e, só posteriormente, entregou a arguida na esquadra da PSP. Note-se que, tendo ficado demonstrado que os agentes da policia municipal determinaram que a arguida os acompanhasse no carro patrulha até ao Departamento da Policia Municipal com o objectivo de aí se realizar o teste quantitativo para deteção da taxa concreta de de álcool no sangue, tal situação só pode configurar uma detenção da arguida por parte da Policia Municipal com vista à realização do teste quantitativo.
Deste modo, atenta a finalidade da detenção da arguida – realização do teste quantitativo para deteção da taxa concreta de de álcool no sangue – e a falta de legitimidade legal e de competências da Policia Municipal para realizar o teste quantitativo, a detenção da arguida nas circunstâncias apuradas no caso vertente tem que ser considerada ilegal.
Nestes termos, concorda-se inteiramente com o enquadramento jurídico que o Tribunal a quo faz, quer das competências da Policia Municipal, quer da ilegalidade da sua actuação, a partir do momento em que a arguida realizou o teste qualitativo por força do disposto nos citados artigos 2º a 4º da lei 19/2004, de 20.05 (veja-se o referido Ac. do TRL de 23.03.2021).
Resta-nos agora extrair a consequência da actuação (ilegal) da policia Municipal – saber qual a validade a atribuir ao teste quantitativo realizado pela policia municipal na arguida detida ilegalmente.
O artigo 32º, n.º 6 da CRP dispõe que “são nulas todas as provas obtidas mediante tortura, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicilio, na correspondência e nas telecomunicações”.

Por sua vez, o artigo 126º do C.P.P. estabelece:
1- São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas.
2- São ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com consentimento delas, mediante:
a)- Perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos;
b)- Perturbação, por qualquer meio, da capacidade de memória ou de avaliação;
c)- Utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos pela lei;
d)- Ameaça com medida legalmente inadmissível e, bem assim, com denegação ou condicionamento da obtenção de benefício legalmente previsto;
e)- Promessa de vantagem legalmente inadmissível.”

A sentença recorrida considerou nula a prova (no caso o teste quantitativo) com base nas considerações que passamos a transcrever:
que efeitos se extraem dos exames periciais de alcoolemia na sequência de uma detenção ilegal (em razão das finalidades da mesma), e empreendida por órgão incompetente para instruir a prova nos moldes em que a mesma foi obtida?
Citamos, por todos, o aresto subsequente, que nos parece lapidar e relativo a matéria coincidente com o que aqui tratamos:
Com efeito, o art. 126º do Código de Processo Penal disciplina nos nºs 1 e 2 as provas absolutamente proibidas e no nº 3 as provas relativamente proibidas. As primeiras não podem ser utilizadas nunca, as segundas podem ser utilizadas nos casos previstos na lei, ou seja, desde que respeitadas as regras estabelecidas na lei para a intromissão nos direitos tutelados.
As proibições de prova estabelecem limites à actividade de investigação e constituem fundamentalmente um meio ou instrumento de tutela dos direitos individuais dos cidadãos que visam impedir ou dissuadir intromissões abusivas e desnecessárias das autoridades judiciais e policiais. Sendo este um campo onde se afirma com particular relevo o princípio da ponderação de interesses, impõe-se estabelecer níveis de concordância prática entre os direitos individuais que poderão ser atingidos ou sacrificados e a prevenção e repressão da criminalidade: “entre o interesse público na perseguição penal e o interesse público também da tutela de determinados interesses, a ordem jurídica opta por uns ou outros, conforme considere que devem predominar. Com efeito, a perseguição penal não é, necessariamente, o interesse preponderante da vida em sociedade.
Por isso, os meios utilizados em ordem à repressão penal têm de acomodar-se aos princípios jurídicos que predominam num dado momento e aos valores fundamentais da nossa civilização” (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Verbo, II, 1993, pág. 103). (…)
Nestes termos, a utilização, seja por mero lapso ou não, de uma notificação meramente verbal ao condutor examinando sobre a possibilidade de realização da contraprova, numa situação em que seria possível a realização dessa mesma notificação por escrito, constitui a infracção de uma regra de procedimento, desde que, como no caso destes autos aconteceu, essa notificação, ainda assim, tenha permitido o exercício de modo eficaz desse meio de defesa. (Ac. TRG proc. n.º 2541/14.3PBBRG.G1 – sublinhados nossos)
Observe-se que o caso em apreço, a conclusão terá de distinguir-se nitidamente do preceituado na Veneranda decisão citada.
Aqui não se tratou de obviar a forma regulamentar devida de um acto processual, mas antes de restringir a liberdade pessoal de uma cidadã, através de uma detenção que se revelou ilegal (porque orientada não propriamente à entrega imediata ao OPC competente, consoante a lei impunha, mas antes à instrução processual de cariz manifestamente criminal, para o que o órgão detentor é incompetente) e retomando o raciocínio do Ac. TRC de 28.05.2008, já citado:
O dever de identificação do responsável da infracção estradal (…) tem como pressuposto a verificação imediata pelo funcionário autuante de quem foi o autor da conduta ilícita.
Iniciado o procedimento (…) esgotou-se esse dever funcional.
Os agentes das polícias municipais não integram as forças ou serviços de segurança.
Estamos em crer que, ilegítima que foi a manutenção da detenção, nos termos em que aquela se manteve (durante o transporte para e todas as diligências no Departamento Municipal de Polícia e Fiscalização – por órgão administrativo incompetente) e que só por via da sua manutenção se produziu a prova pericial em causa (que poderia e devia ter sido empreendida pelo OPC) e em que funda fulcralmente o presente processo, obtida mediante constrangimento físico (limitação da liberdade e perturbação da vontade e decisão) com o recurso à força (não propriamente física, mas inerente à autoridade ostentada enquanto órgão de polícia devidamente uniformizado e armado), como o próprio auto já citado explicita, tudo nitidamente fora do que a lei permite à POLMUN e em ultrapassagem dos limites claros e acima melhor densificados, terá de ter uma consequência jurídica compatível com a Constituição da República e a Lei.
Já referenciava Vieira de Andrade (Os Direitos Fundamentais na Consitituição Portuguesa de 1976 (2001) Almedina, Coimbra, p. 337-348):
O princípio da legalidade significa desde logo, que a actividade administrativa, seja de autoridade, seja de execução de prestações (…) seja concreta, seja normativa, não pode ser ilegal, não vale contra a lei – Princípio do “primado da lei” ou da “preferência da lei”.
No nosso sistema porém, este princípio aparece complementado pelo princípio da constitucionalidade: em primeiro lugar, admite-se a fiscalização dos actos normativos da Administração (regulamentos) quando violem directamente a Constituição, em especial, os preceitos relativos a direitos, liberdades e garantias sendo, e não, nulo, por inconstitucionalidade; em segundo lugar, a aplicabilidade imediata dos preceitos relativos a direitos, liberdades e garantias pode levar em alguns casos, à desaplicação, pelos órgãos administrativos, das normas legais anticonstitucionais. (…)
Isso significa, em primeiro lugar, que toda a intervenção administrativa no campo dos direitos, liberdades e garantias tem de ser a actuação de uma vontade (anterior) da lei, que constitui, deste modo “prius normativo” em relação a ela (…).
Em segundo lugar, a conformidade à lei implica que ao legislador não é permitido deixar à discricionariedade administrativa a determinação do conteúdo e dos limites dos direitos, liberdades e garantias nos casos concretos. (…)
Ainda que não exista um regime especial de direito substantivo e procedimental aplicável aos actos administrativos em matéria de direitos, liberdades e garantias, o Código do Procedimento Administrativo declara nulos, e não meramente anuláveis, os actos administrativos que “ofendam o conteúdo essencial de um direto fundamental. (…) [actual art. 161.º, n.º 1 e 2 conjugado com o art. 162.º do CPA)

Concretizando em aplicação aos casos penais:
I- Em matéria de invalidade da prova há que distinguir entre regras de produção de prova, proibição de produção de prova e proibição de valoração de prova.
II- A prova obtida através de método proibido é insusceptível de valoração pelo tribunal.
III- A prova obtida contra legem, mas através de método não proibido, pode ser valorada sempre que susceptível de se obter através de meio ou procedimento conforme à lei, suposto, evidentemente, que a irregularidade do acto de produção de prova não haja sido arguida. (Ac. TRC de 19.12.2001 proc. n.º 2721/2001 – sublinhados nossos)
O CPP consagra agora a possibilidade de medidas cautelares visando a obtenção de prova que, de outra forma, poderia perder-se, provocando danos irreparáveis nas finalidades do processo. É exactamente esse o campo de aplicação do art. 249.º do CPP ao atribuir aos órgãos de policia criminal, mesmo antes de receberem ordem da autoridade judiciária competente para procederem a investigações, competência para praticar os actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova. (…)
Por outro lado, sendo estas medidas actos de iniciativa própria dos órgãos de polícia criminal (…) aqueles actos perdem qualquer significado autónomo, na medida em que, integrando-se na posterior tramitação processual concreta, serão, por isso, sujeitos a uma avaliação ex post dos titulares das competências, e, por outro, serão também pressupostos das decisões finais a tomar pelos órgãos coadjuvados.
Sendo actos de iniciativa própria dos órgãos de polícia criminal, são ainda praticados na dependência funcional das autoridades judiciárias. Isto é, falte embora um comando das autoridades judiciárias, ainda assim os órgãos de polícia criminal devem actuar com a específica intencionalidade que os torna órgãos auxiliares da administração de justiça (…)
São pressuposto de aplicação do art. 249.º do CPP a necessidade e a urgência, o que se reconduz à possibilidade de contaminação da prova ou de deterioração do meio de prova, bem como à impossibilidade da sua reprodução noutro momento que não aquele em que efectivamente é produzida.
É inequívoca a conclusão de que o conteúdo normativo do direito fundamental previsto no art. 32.º, n.º 8, da CRP inclui no seu âmbito o efeito remoto da utilização de métodos proibidos de prova. (…)
Nada obsta a que as provas mediatas possam ser valoradas quando provenham de um processo de conhecimento independente e efectivo, uma vez que não há nestas situações qualquer relação de causalidade entre o comportamento ilícito inicial e a prova mediatamente obtida. Pode afirmar-se que o efeito metastizante da violação das regras de proibição de prova apenas tem razão de ser em relação à prova que se situa numa relação de conexão de ilicitude. (…)
Para que seja possível a condenação não basta a probabilidade de que o arguido seja autor do crime nem a convicção moral de que o foi. É imprescindível que, por procedimentos legítimos, se alcance a certeza jurídica, que não é desde logo a certeza absoluta, mas que, sendo uma convicção com génese em material probatório, é suficiente para, numa perspectiva processual penal e constitucional, legitimar uma sentença condenatória. Significa o exposto que não basta a certeza moral mas é necessária a certeza fundada numa sólida produção de prova. (…)
O efeito à distância da prova proibida como um factor que reforça a ideia da autonomia total entre o instituto das nulidades processuais e o das proibições de prova e, ainda, que tal efeito tem génese na própria norma. (…)
É inequívoca a conclusão de que o conteúdo normativo do direito fundamental previsto no artigo 32.º nº 8 da Constituição da República Portuguesa inclui no seu âmbito o efeito remoto da utilização de métodos proibidos de prova.
Um primeiro argumento que se pode invocar neste sentido encontra-se no teor literal da própria norma constitucional citada, uma vez que esta declara nulas "todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações", sem introduzir qualquer diferenciação ao nível do grau imediato ou mediato da sua obtenção. Para além deste argumento literal, é ainda possível encontrar um argumento, retirado da hermenêutica jurídico-constitucional proveniente da teoria da interpretação das normas constitucionais que aponta também para a ideia de que o efeito á distância das proibições de prova se encontra dentro do âmbito normativo do artigo 32.º n.º 8 da Constituição.
Desde logo, (…) tal conclusão é, também, imposta pelo principio de interpretação constitucional que se consubstancia no princípio da máxima efectividade ou seja quando o teor de uma norma da Lei Fundamental possibilitar mais do que uma interpretação, o intérprete deve considerar as consequências a que conduz cada interpretação e escolher aquela que melhor realize os fins que a Constituição tem em vista ao prever tal norma.
Considerando por tal forma é liminar a conclusão de que a interpretação que assume um papel mais abrangente na finalidade protectora dos direitos elencados no artigo 32.º n.º 8 da Constituição é aquela que não conduz à destrinça entre prova directa e indirectamente obtida através de métodos proibidos, uma vez que quanto menor for a possibilidade de aproveitamento do material probatório obtido na sequência de um meio ilícito, maior será, inequivocamente, a eficácia dissuasora da norma relativamente a comportamentos contrários à sua lógica de protecção.
Conclui-se pois, (…) que o efeito-à-distância se encontra abrangido pela esfera normativa do artigo 32.º/8 da Constituição.
(Ac. STJ de 12.03.2009, proc. 09P0395)
(…) serve a longa citação (e do nosso ponto de vista inteiramente impressiva) por propugnar, de um lado, a boa doutrina que acolhemos, no sentido da autonomia perfeita das proibições de prova relativamente ao regime das nulidades em processo penal (sujeitas por sua vez a critérios de taxatividade e de efeito em cascata), o que impõe uma consideração diversa do regime de estatuição (efeito à distância) aquando da verificação de uma proibição de prova e por outro lado, que, como tão bem se explana do Acordão do Colendo STJ possui desde logo um verdadeiro cariz dissuasor (da actuação dos OPC, aqui órgão administrativo) aquando da produção de prova e impositivo aquando da sua (não) valoração judicial.
Ora, no caso presente, outra forma não há de obter/repetir aquela prova pericial extraída no Departamento Municipal, já que a POLMUN, em detrimento da legalmente estabelecida coordenação com a GNR e a PSP em ordem a proceder à entrega imediata do cidadão detido ao OPC, permitindo que esta/s força/s de segurança, como é da sua competência, instruísse/m o processo, decidiu antes deslocar a cidadã para as instalações camarárias, para recolher a prova pericial, tornou a deslocá-la posteriormente para a Divisão Policial de Cascais, já com a tramitação processual substancial organizada e, então, entregou-a para que, cerca de três horas após a intercepção, finalmente, uma força de segurança assumisse apenas o expediente administrativo (ou seja, já depois de recolhida a prova pericial e depois de feita (?) a advertência e realizada a contra-prova) então a PSP lhe explicasse devidamente o sucedido (?), a constituísse arguida e a sujeitasse à prestação de TIR.
Pelo que, não estando a actuação da POLMUN a coberto da competência constitucional e legal que lhe é conferida nem sujeita a sua actuação a princípios de urgência e necessidade (poderia sem perigar a custódia da prova ter sido o arguido apresentado desde logo ao OPC onde, no mesmíssimo tempo, realizaria o exame, extraído por órgão competente) e sem violação dos seu direitos pessoais e da sua liberdade (ou sendo-o no quadro da limitações possíveis se e através da actuação do OPC competente), pelo que se configura tal situação uma proibição de (valoração da prova) assim obtida, uma vez que esta não é susceptível de se desligar dos moldes em que foi produzida.
Em suma, integra o disposto conjugadamente no art. 126.º, n.º 1 e 2 al. a) e c) do CPP, o que impõe ao Tribunal um óbice à consideração dessa mesma prova, em abono na doutrina perfilhada do(s) Fernwirkung des Beweisverbots (fruto da árvore envenenada) uma vez que consideração diversa imporia sacrificar o princípio da liberdade e segurança do cidadão (constitucionalmente consagrado e ampla e legalmente densificado, nos termos acima desenvolvidos) e o direito constitucional análogo a uma polícia que actue no quadro constitucional e legal vigentes, com o argumento, tantas vezes vilipendiado, da constatação da verdade material (de outra forma não realizável no processo), e em nosso entendimento não justificável na ponderação dos interesses no caso concreto, neste processo em contraposição.
(…)
Impõe-se, pois, ao juiz que tome posição no sentido de apurar, nesta justaposição de interesses, o equilíbrio sempre precário e o valor que deva prevalecer em concreto, face à verificação simples e literal da verdade material ou à sua compaginação com a forma como, violando direitos fundamentais ou de civilidade análogos a direitos, liberdades e garantias, com o é o de uma polícia administrativa que actue subordinando-se à Constituição e à Lei, ultrapassando as medidas de polícia que lhe estão atribuídas e restringido a liberdade de movimentos, a decisão e a formação da vontade do cidadão, aqui arguido, em (ab)uso da autoridade (para além do permitido legalmente e, desta forma, em detrimento de se acautelar a custódia da prova, se atropela/m garantias consititucionais, protegidas e densificadas na Lei Habilitante).
Recordamos que uma actuação fora do catálogo de medidas de polícia atribuídas, sujeitas constitucionalmente a um princípio de tipicidade e de poibição do excesso não faz presumir a existência de urgência e necessidade de actuação, quando a adopção e cumprimento dos ditames legais permitiria a recolha análoga de prova, pelo OPC competente, e no mesmíssimo período de tempo, em nada perigando a custódia da prova.
A uma actuação inconstitucional importará o remédio radical da sua intolerabilidade na ordem jurídica, arredando-o de qualquer valoração porquanto obtida em violação do regime directamente aplicável dos Direitos, Liberdades e Garantias Constitucionais, cominando-lhe, de um lado, o regime da nulidade do acto material e, do outro, o regime das proibições de prova em matéria de processo penal.
Somos, pois, de acolher o entendimento da insusceptibilidade de valoração de uma prova obtida nestes termos, ademais, quando, repetimos e sublinhamos, havia forma de, em tempo e regularmente, aquela ter sido produzida no respeito por tais direitos civilizacionais.
A acção da POLMUN não pode, pois, merecer a tutela do Direito, num circunstancialismo em que se impunha, até por configurar legalmente uma autoridade administrativa, que esta polícia, em detrimento de tal atropelo, agisse em cooperação com as forças de segurança.
Assim julgamos no caso concreto, em abono da reintegração do direito a uma polícia que actue no quadro constitucional e legal vigentes, e no respeito pela liberdade e segurança de todos os cidadãos, impondo a adopção de mecanismos aqui materializados na pessoa da arguida, tendentes ao respeito pela vinculação funcional (art. 237.º, n.º 3 e 272.º, n.º 2, 32.º, n.º 1 e 8 da CRP) que simultaneamente comporta o princípio da tipicidade das medidas de polícia e, por outro, proíbe o excesso, aqui verificado e, através do qual foi obtida prova ilícita que, por motivos de ordem e aplicação do regime constitucional do Estado de Direito e das proibições de prova em processo penal, tem de ser desconsiderada, e não podendo ser utilizada (art. 161.º, n.º 1 e 2 al. d) do CPA e art. 126.º, n.º 1 e 2 do CPP).”.

Concorda-se com o tribunal a quo na apreciação que efectuou e nas conclusões que retirou quanto à invalidade do teste qualitativo e da sua subsequente não valoração como prova.

Conforme expendido no referido Ac. do TRL de 08.07.2020 “o teste quantitativo faz prova plena em Tribunal, pelo que a sua recolha deve respeitar os direitos do arguido.”

No caso presente, a Policia Municipal manteve (ilegalmente) a detenção da arguida para a submeter ao teste quantitativo e, ao fazê-lo, restringiu indevidamente a liberdade constitucionalmente consagrada da arguida, pelo que, o resultado do teste quantitativo é nulo nos termos do artigo 126º, nºs 1 e 2, als. a) e c) do CPP por ter sido proveniente de uma detenção ilegal (no mesmo sentido o referido Ac. do TRL de 08.07.2020).

Assim, entendemos que a detenção ilegal da arguida (atenta a sua finalidade) contamina de forma irremediável a validade do teste quantitativo do álcool (ao contrário do defendido no referido Ac. do TRL de 29.07.2020).

A este respeito, importa ainda referir que sendo certo que no nosso ordenamento jurídico o artigo 32º, n.º 8 da CRP não destrinçou se a prova é adquirida num grau imediato ou mediato, na nossa jurisprudência não vingam posições extremadas de aceitação plena do efeito à distância das proibições de prova sem qualquer tipo de ponderação (veja-se Acs. do T.C. 213/94 e 198/2004), impondo-lhe variados limites (cfr., entre outros, Ac. Rel. Lisboa de 23.06.2004, Acs. de STJ de 06.04.2004, 25.01.2005, 07.06.2006, 20.02.2008, 12.03.2009 e 1604.2009, acessiveis in internet www.dgsi.pt).

Assim, a nossa jurisprudência tem adoptado uma série de excepções como forma de atenuar o efeito à distância das proibições de prova de molde a validar as provas secundárias. Entre essas excepções contam-se aquelas que são originariamente provenientes do ordenamento jurídico norte-americano e que têm sido adaptadas no nosso sistema:
a)-A chamada fonte independente segundo a qual é de admitir a valoração da prova secundária quando, ao lado do caminho proibido, exista um caminho autónomo, independente, de onde o material probatório possa ser retirado;
b)-A chamada mácula dissipada que se verifica sempre que entre a prova violadora de uma proibição de prova e a prova secundária que dela decorreu, se verifique uma longa distância, de tal forma que se pode afirmar que nenhum nexo causal subsiste entre tal prova e a violação inicial;
c)-A chamada descoberta inevitável que aceita a valoração da prova secundária sempre que possa concluir-se, com elevado grau de probabilidade, que a prova secundária poderia ter sido igualmente descoberta através de uma investigação diferente, conforme aos ditames legais (cfr. ”Nuno Miguel Melo, “Dos limites do efeito à distância nas proibições de prova” e Cláudio Lima Rodrigues, “Proibição de Prova no âmbito do direito processo penal: escutas telefónicas e da valoração da prova proibida pro reo”).

No caso vertente, a Policia Municipal manteve ilegalmente a detenção da arguida para a realização do teste quantitativo e, durante essa detenção ilegal, submeteu-a a esse mesmo teste, sendo esse o único meio de prova obtido para demonstração da taxa concreta de álcool no sangue.

Isto significa que estamos perante um nexo causal entre a detenção ilegal da arguida por parte da Policia Municipal e a obtenção do resultado do exame pericial (único meio de prova obtido para comprovar a taxa de álcool no sangue), não estando tal situação abrangida por nenhuma das excepções acima elencadas.

Por último, importa referir que a concreta taxa de álcool no sangue não pode ser provada por meio de confissão do agente, faltando-lhe para o efeito razão de ciência, só podendo essa prova ser feita através de teste no ar expirado ou por meio de análise (neste sentido, entre outros, veja-se Ac. TRP de 20.01.2010 acessivel in www.dgsi.pt).

Assim, no caso, apesar da confissão do consumo de bebidas alcoólicas por parte da arguida, tal confissão não permite apurar qual a efectiva taxa de álcool no sangue que a mesma teria aquando da sua condução.

Assim, sendo nulo o teste quantitativo, não estão preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal que a arguida vinha acusada, pelo que, não há qualquer censura a fazer à sentença recorrida.

Improcede, por isso, o recurso interposto pelo Ministério Público.
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III- DECISÃO
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Sem tributação

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Lisboa, 07.10.2021

(Maria do Rosário Silva Martins)
(Lígia Maria da Nova Araújo Sá Trovão)