Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9933/2003-7
Relator: PIMENTEL MARCOS
Descritores: INTERDIÇÃO POR ANOMALIA PSÍQUICA
COMPETÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/16/2003
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Sumário: Compete às varas cíveis a preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de valor superior à alçada do tribunal da relação em que a lei preveja a intervenção do tribunal colectivo, pelo que para o efeito é necessária a verificação cumulativa destes dois requisitos: a acção declarativa ter valor superior à alçada da relação e a lei prever a possibilidade de intervenção do tribunal colectivo.
Numa acção especial de interdição por anomalia psíquica, tendo em consideração que se trata de uma acção declarativa cível de valor superior à alçada do Tribunal da Relação e em que se prevê a intervenção do colectivo, os são competentes para a preparação e julgamento as varas cíveis, ainda que, por virtude de o réu não oferecer a sua defesa, não haja efectivamente lugar à intervenção daquele tribunal.
Decisão Texto Integral: O Ministério Público propôs acção com processo especial de interdição relativamente a “A”, ao abrigo do disposto nos artigos 138º, nº 1 e 141º, nº 1 do CC e 944º e seguintes do CPC, a qual foi distribuída à 17ª Vara Cível da comarca de Lisboa.

Nesta foi proferido em 26.09.03. o seguinte despacho.
«....Nos termos do art. 97º nº 1 a) da L.O.T.J. aprovada pela Lei nº 03/99 de 13.01 compete às varas cíveis a preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de valor superior à alçada do Tribunal da Relação em que a lei preveja a intervenção do tribunal colectivo.
E nos termos do art. 99º do mesmo diploma legal compete aos juízos cíveis preparar e julgar os processos de natureza cível que não sejam da competência das varas cíveis e dos juízos de pequena instância cível.
Como nos autos em apreço a lei não prevê, pelo menos por ora, a intervenção do colectivo (art. 952º nº 2 e 646º nº 1 do C.P.C.) não é este Tribunal competente para tramitar os mesmos, mas antes os Juízos Cíveis desta comarca.
Pelo exposto, declaro este Tribunal incompetente e declaro competente os Juizes Cíveis desta comarca.....»
Decidiu-se, pois, neste douto despacho que os tribunais competentes para a preparação e julgamento de uma acção de interdição por anomalia psíquica são (em Lisboa) os juízos cíveis e não as varas cíveis.

Deste despacho agravou o MP, formulando as seguintes conclusões:
1 - As Varas Cíveis são tribunais de competência especifica, às quais compete, no que agora nos interessa, a preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de valor superior à alçada do Tribunal da Relação em que a lei preveja a intervenção do Tribunal Colectivo (arts. 96º e 97º, nº 1, ai. a), da Lei nº 3/99, de 13/1).
2 - Não se exige, pois, a efectiva intervenção do Tribunal Colectivo, sendo suficiente a mera previsibilidade, possibilidade ou probabilidade desse tribunal ser chamado a intervir.
3 - Importa também referir o artº 22º, nº 1, da Lei nº 3/99, que, a propósito da lei reguladora da competência dos Tribunais, esclarece que a competência se fixa no momento da propositura da acção e são sempre irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente.
4 . Aferindo-se ainda, tal competência, pelo pedido e pela causa de pedir apresentados pelo autor.
5 - Tendo a acção de interdição valor processual superior ao da alçada do Tribunal da Relação e admitindo a intervenção do Tribunal Colectivo, prevalece tal competência ainda que, por virtude de o Réu não oferecer a sua defesa, não haja efectivamente lugar à intervenção daquele tribunal.
6 - Assim, as acções especiais de interdição são, originariamente e na sua fonte, da competência das Varas Cíveis, embora tal competência resulte da mera virtualidade de intervenção do Tribunal Colectivo.
7 - Ao indeferir liminarmente a petição inicial, com fundamento na incompetência material das Varas Cíveis, o douto despacho recorrido ofendeu as normas contidas nos arts. 22º nºs 1 e 2, 97º, nº 1, a) e 99º da Lei n.º3/99, de 13 de Janeiro e 956º,  nº  2 do CPC.
8 - Deve, assim, ser revogado e substituído por outro que considere competentes as Varas Cíveis para conhecer da presente acção especial de interdição, in casu, a 17ª Vara Cível à qual foi distribuído.
 
O M.º juiz sustentou tabelarmente o despacho recorrido.

Foram dispensados os vistos.

Perante os factos referidos cumpre apreciar e decidir.

A única questão que se coloca consiste em saber se para a preparação e julgamento de uma acção especial de interdição por anomalia psíquica são competentes (na comarca de Lisboa) os juízos cíveis ou as varas cíveis.
Vejamos.
I
Nos termos do artigo 17º da LOFTJ (da qual serão todos os que forem citados sem indicação doutra origem), na ordem jurídica interna, a competência reparte-se pelos tribunais judiciais segundo a matéria, a hierarquia, o valor e o território.
“A lei de processo determina o tribunal em que a acção deve ser instaurada em face do valor da causa” (artº 20º).
No entanto, estabelece o nº 1 do artigo 62º do CPC que a competência dos tribunais judiciais, no âmbito da jurisdição civil, é regulada conjuntamente pelo estabelecido nas leis de organização e pelas disposições deste código.
Remete-se, assim, para as leis da organização judiciária como fonte reguladora da competência dos tribunais judiciais, a par do CPC.
Todavia, o seu nº 2 determina que na ordem interna, a jurisdição reparte-se pelos diferentes tribunais segundo a matéria, a hierarquia judiciária, o valor da causa, a forma de processo aplicável e o território.
Assim, há que concluir que, no âmbito da actual lei orgânica, a competência em função da forma de processo não é um critério determinativo da competência jurisdicional.

Por outro lado, estabelece o artigo 68º do CPC que as leis de organização judiciária determinam quais as causas que, pelo valor ou pela forma de processo aplicável, se inserem na competência dos tribunais singulares e dos tribunais colectivos, estabelecendo este código os casos em que às partes é lícito prescindir da intervenção do colectivo.
«Dado que, nos termos do artigo 68º do CPC, a lei processual não define, em função do valor da causa, qualquer tribunal onde ela deva ser instaurada, há que concluir que a remissão realizada pelo artigo 20º da LOFTJ para aquela lei não tem sentido. Há que efectuar, por isso, uma interpretação ab-rogatória do artigo 20º da LOFTJ e concluir que o critério do valor da causa não se destina a aferir a competência jurisdicional»[1].
Ora, como determina o nº 1 artigo 64º, pode haver tribunais de 1ª instância de competência especializada e de competência específica.
“Os tribunais de competência específica conhecem de matérias determinadas em função da forma de processo aplicável...”(64º, nº 2).
Os tribunais de 1ª instância funcionam, consoante os casos, para julgamento da matéria de facto, como tribunal singular, como tribunal colectivo ou como tribunal de júri.
Aos juízos de competência especializada cível compete a preparação e o julgamento dos processos de natureza cível não atribuídos a outros tribunais.
E como determina o artigo 99º compete aos juízos cíveis preparar e julgar os processos de natureza cível que não seja de competência das varas e dos juízos de pequena instância cível.
Trata-se, portanto, de competência específica residual.

Daí que seja necessário averiguar se a competência em causa cabe às varas. Se assim não for, a competência será dos juízos.
II
Dispõe o artigo 97º da LOTJ que compete às Varas Cíveis:
1.
a) a preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de valor superior à alçada do tribunal da Relação em que a lei preveja a intervenção do tribunal colectivo;
b) .....
c) ....
d) Exercer as demais competências conferidas por lei.
2 ...
3. São remetidos às varas cíveis os processos pendentes nos juízos cíveis em que se verifique alteração do valor susceptível de determinar a sua competência.
4. São ainda remetidos às varas cíveis, para julgamento e ulterior devolução, os processos que não sejam originariamente da sua competência, ou certidão das necessárias peças processuais, nos casos em que a lei preveja, em determinada fase da sua tramitação, a intervenção do tribunal colectivo.
5....
Compete, pois, às varas cíveis, nomeadamente,  a preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de valor superior à alçada do tribunal da relação em que a lei preveja a intervenção do tribunal colectivo. É, pois, necessária a verificação cumulativa destes dois requisitos: a acção declarativa ter valor superior à alçada da relação e a lei prever a possibilidade de intervenção do tribunal colectivo.
E  são remetidos às varas cíveis os processos pendentes nos juízos cíveis em que se verifique alteração do valor susceptível de determinar a sua competência. Portanto, se num processo da competência dos juízos em razão do valor este for alterado para a competência da varas, para aí será remetido o processo.
E são ainda remetidos às varas cíveis, para julgamento e ulterior devolução, os processos que não sejam originariamente da sua competência, ou certidão das necessárias peças processuais, nos casos em que a lei preveja, em determinada fase da sua tramitação, a intervenção do tribunal colectivo.
Como é sabido, o julgamento das acções em processo ordinário com a intervenção do colectivo tem sofrido várias alterações (artº 646º do CPC): desde uma fase em que a regra era a intervenção do colectivo ate ao sistema actual em que este apenas intervém quando for requerido pelas partes (DL nº 182/00, de 10.08).
Estabelece agora o nº 1 do artigo 646º que a discussão e julgamento da causa são feitos com intervenção do tribunal colectivo, se ambas as partes assim o tiverem requerido.
In casu trata-se de uma acção que segue a forma de processo especial (artigos 944 a 958º do CPC).
Nos termos do artigo 463º do CPC “o processo sumário e os processos especiais regulam-se pelas disposições que lhes são próprias e pelas disposições gerias e comuns; em tudo quanto não estiver prevenido numas e noutras, observar-se-á o que se acha estabelecido para o processo ordinário”.
Em relação ao processo ordinário verificam-se algumas alterações significativas nas acções de interdição.
Todavia, na parte que agora interessa, estabelece o artigo 952º:
1. Se o interrogatório e o exame do requerido fornecerem elementos suficientes e a acção não tiver sido contestada, pode o juiz decretar imediatamente a interdição ou inabilitação.
2. Nos  restantes casos, seguir-se-ão os termos do processo ordinário, posteriores aos articulados...

Portanto, findos os articulados e o exame, se a acção tiver sido contestada, ou o processo não oferecer elementos suficientes, a acção prosseguirá segundo as regras do processo ordinário.
Como é obvio, até esta fase não intervém o tribunal colectivo. Mas o mesmo sucede nas acções ordinárias até à fase de julgamento. E nestas poderá nem haver intervenção do colectivo. Só haverá se ambas as partes o requererem. E há mesmo casos em que não é admissível a intervenção do colectivo (artº 646º, nº 2). E nem por isso se põe em causa a competência da varas para a sua preparação e julgamento
E tendo em consideração que se trata de uma acção declarativa cível de valor superior à alçada do tribunal da Relação e em que se prevê a intervenção do colectivo, os tribunais competentes para a preparação e julgamento são as varas cíveis, ainda que, por virtude de o réu não oferecer a sua defesa, não haja efectivamente lugar à intervenção daquele tribunal.
É que não nos parece estarmos perante um caso em que seja aplicável o nº 4 do artigo 97º, ou seja: são remetidos às varas cíveis, para julgamento e ulterior devolução, os processos que não sejam originariamente da sua competência.
A competência originárias é das varas e não dos juízos. Com efeito, salvo melhor opinião (tratando-se, como se trata, de uma acção cível de valor superior à alçada do tribunal da relação) não se exige a efectiva intervenção do tribunal colectivo, sendo suficiente a mera previsibilidade, possibilidade ou probabilidade desse tribunal ser chamado a intervir. E não nos parece que se justifique que a acção seja proposta nos juízos cíveis, sendo depois remetida para as varas nos casos em que houver lugar a julgamento, quando é certo que, em teoria, este sempre poderá ter lugar. Para tanto basta que a acção seja contestada ou o interrogatório e o exame não forneçam os elementos necessários para que a interdição ou a inabilitação sejam desde logo decretadas.
Concluímos, assim, no sentido de que os tribunais competentes para conhecer dos processos especiais de interdição são, em Lisboa, as varas cíveis.

Por todo o exposto acorda-se em conceder provimento ao agravo, revogando-se o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro, que considere competentes as Varas Cíveis para conhecer da presente acção especial de interdição, in casu, a 17ª Vara Cível à qual foi distribuída.
Sem custas.
Lisboa, 16.12.2003.

Pimentel Marcos
Jorge Santos
Vaz das Neves
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[1] Miguel  Teixeira de Sousa, in “A Nova Competência dos Tribunais Civis”, pags. 29 e 30.