Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
14539/15.0T8LSB-B.L1-2
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: PLANO DE RECUPERAÇÃO DA EMPRESA
CRÉDITOS LABORAIS
IGUALDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/09/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. Dando embora primazia aos credores na definição e aprovação do plano de recuperação, a lei não deixou também de estabelecer certos princípios a observar neste domínio, de modo a obter-se um plano justo e equitativo, que permita a recuperação económica do devedor e a defesa equilibrada dos interesses dos credores, com obediência expressa ao princípio da igualdade dos credores.
II. O princípio da igualdade, nesta matéria, corresponde a uma trave mestre basilar e estruturante do plano de insolvência ou de recuperação, a tal ponto que a sua infração equivale a uma violação grave.
III. A diferenciação permitida entre credores tem de ser determinada por razões meramente objetivas e, por isso, de fácil e generalizada compreensão.
IV. O plano de recuperação, contendo uma discriminação profundamente injusta dos trabalhadores em relação a outros credores, consubstancia uma violação grave, nomeadamente do princípio da igualdade, não negligenciável
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:



I – RELATÓRIO:


No âmbito do processo especial de revitalização, requerido por ..., Lda., na Instância Central, Secção do Comércio da Comarca de Lisboa, foi proferida, em 9 de fevereiro de 2015, sentença de recusa de homologação do plano de recuperação, tendo a Requerente apelado e formulado, essencialmente, as seguintes conclusões:

a) A sentença fez uma interpretação literal e restritiva do art. 194.º do CIRE, por confronto com a filosofia subjacente ao PER, que dá primazia ao interesse público de preservação do tecido empresarial, da economia nacional, permitindo a diferenciação no tratamento de credores e até da mesma categoria, justificada por razões objetivas.
b) A Recorrente só pode confecionar e comercializar os seus produtos, se tiver a confiança dos seus fornecedores, para que continuem a fornecer as matérias- primas necessárias.
c) Razões objetivas radicam também no próprio regime legal de pagamento das dívidas à Segurança Social e à Autoridade Tributária.
d) Não foi demonstrado que os trabalhadores ficam em situação mais favorável, na ausência do aprovado plano de revitalização, numa graduação de créditos, em sede insolvência.
e) A viabilização do plano de revitalização permitirá o regular funcionamento da Recorrente, criando postos de trabalho e gerando riqueza.
f) O plano de revitalização não viola o princípio da igualdade dos credores.
g) Esse princípio não implica um tratamento absolutamente igual, antes impõe que situações diferentes sejam tratadas de modo diferente.
h) A primazia legal da revitalização, consagrada no PER, confere aos credores larga autonomia para decidir a forma de recuperar os seus créditos.
i) A derrogação do princípio da igualdade dos credores não deixaria de ser legítima perante a ponderação entre o interesse individual em contraposição ao interesse coletivo.
j) O direito de crédito salarial pode sofrer afrouxamento ou restrição.

Pretende a Apelante, com o provimento do recurso, a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra, de homologação do plano de recuperação aprovado.

Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.

Corridos os vistos legais, cumpre então apreciar e decidir.

No recurso, está essencialmente em discussão a homologação do plano de recuperação, aprovado pela maioria dos credores, por tratamento diferenciado de credores e até da mesma categoria, justificado por razões objetivas.

II – FUNDAMENTAÇÃO:

2.1. Para além da dinâmica processual descrita, estão ainda provados os seguintes factos:

1. O plano de recuperação foi votado e aprovado por 76,79 % de votos favoráveis.

2. O Credor Tiago …, trabalhador da Requerente, com o crédito de € 3 886,91, votou contra.

3. A Credora Maria …, trabalhadora da Requerente, com o crédito de € 5 858,00, votou contra.

4. Por sentença de 9 de fevereiro de 2015, foi recusada a homologação do plano de recuperação, por se mostrar violado, de forma não negligenciável, o princípio da igualdade previsto no art. 194.º do CIRE, nomeadamente quanto aos créditos dos trabalhadores.

5. O plano de recuperação, no respeitante ao pagamento dos credores, previa: - créditos subordinados, perdão total dos créditos reconhecidos, bem como dos juros; Autoridade Tributária, pagamento de 100 % de todos os créditos, ainda que não reclamados, mas já existentes, até 18 prestações mensais iguais e sucessivas, a primeira com vencimento no mês seguinte ao termo do prazo previsto no art. 17-D, n.º 5, do CIRE, e perdão de 80 % dos juros moratórios; Segurança Social, pagamento da totalidade da dívida reclamada e reconhecida (capital e juros) em 120 prestações mensais, iguais e sucessivas, vencendo-se a primeira no mês seguinte ao trânsito em julgado da sentença de homologação do plano; Banco Popular e Banif, pagamento de 100 % do capital, em vinte anos, em 240 prestações, com a taxa de juro indexada à Euribor a seis meses e um spread de 2,75 %, após um período de carência de capital nos dois primeiros anos após a data do trânsito em julgado da sentença de homologação, com capitalização dos juros vencidos a essa data; Millennium BCP, pagamento de 100 % do capital, em 12 prestações, com a taxa de juro indexada à Euribor a seis meses (com spread discriminado), após um período de carência de capital nos dois primeiros anos, após a data do trânsito em julgado da sentença de homologação e capitalização dos juros vencidos nessa data; Fornecedores e outros Credores, pagamento de 100 % do capital, em seis anos, em 72 prestações mensais, após período de dois anos de carência de capital, a contar do trânsito em julgado da sentença de homologação, e perdão de juros vencidos e vincendos; Trabalhadores, pagamento de 50 % do capital, em seis anos, em 72 prestações mensais, após o período de um ano de carência de capital a contar do trânsito em julgado da sentença de homologação e perdão de juros vencidos e vincendos.

***

2.2. Descrita a dinâmica processual e os factos provados, importa conhecer do objeto do recurso, delimitado pelas suas conclusões, e cuja questão jurídica emergente foi antes especificada.

O processo especial de revitalização destina-se a permitir ao devedor em situação económica difícil ou de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja suscetível de recuperação, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes um acordo conducente à sua revitalização.

A aprovação do plano de recuperação depende da vontade maioritária dos credores e da sua homologação pelo juiz, sendo aplicáveis, com as necessárias adaptações, as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência, como decorre, expressamente, do disposto no art. 17.º-F, n.º 5, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), que, através da alteração introduzida pela Lei n.º 16/2012, de 20 de abril, instituiu o processo especial de revitalização.

Dando embora primazia aos credores na definição e aprovação do plano de recuperação, a lei não deixou também de estabelecer certos princípios a observar neste domínio, de modo a obter-se um plano justo e equitativo, que permita a recuperação económica do devedor e a defesa equilibrada dos interesses dos credores, com obediência expressa ao princípio da igualdade dos credores, ainda que admitindo diferenciações justificadas por razões objetivas (art. 194.º, n.º 1, do CIRE).

O tratamento mais desfavorável relativamente a outros credores em idêntica situação depende, contudo, do consentimento do credor afetado e considera-se tacitamente prestado no caso de voto favorável (art. 194.º, n.º 2, do CIRE).

Desta forma, adapta-se a esta matéria específica o princípio geral da igualdade, consagrado no art. 13.º da Constituição da República Portuguesa, prevenindo e excluindo discriminações injustas, rejeitadas pelo Estado de Direito, igualmente assumido pela Constituição. Atende-se, assim, à necessidade de tratar igualmente o que é semelhante e de distinguir o que é distinto, sem prejuízo do acordo dos credores atingido, em contrário (CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2.ª edição, 2013, pág. 753).

No desenho normativo, o princípio da igualdade corresponde, nesta matéria específica, a uma trave mestre basilar e estruturante do plano de insolvência ou de recuperação, a tal ponto que a sua infração equivale a uma violação grave, não negligenciável, das regras aplicáveis (CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, Ibidem, pág. 754).

As diferenciações permitidas entre credores têm de ser determinadas por razões meramente objetivas e, por isso, de fácil e generalizada compreensão, nomeadamente perante as circunstâncias concretas do devedor.

No caso vertente, a recusa da homologação do plano de recuperação foi fundamentada na existência de uma violação do princípio da igualdade dos credores, ao prever-se um regime de regularização dos créditos privilegiados dos trabalhadores mais desfavorável do que o previsto para os restantes credores, designadamente dos “fornecedores e outros credores”, que nem sequer se mostra justificado.

Na realidade, não obstante o privilégio creditório dos créditos laborais, o plano de recuperação previu, para tais créditos, um regime mais desfavorável confrontado com o regime aplicável a outros credores, nomeadamente os designados “fornecedores e outros credores”. Assim, o pagamento do capital destes corresponde a 100 %, enquanto o pagamento do capital aos trabalhadores se limita a 50 %. É certo que o período de carência, quanto aos trabalhadores, é de um ano, ao passo que o dos “fornecedores e outros credores” é de dois anos. Apesar desta circunstância diferenciadora, os trabalhadores ficam ainda mais desfavorecidos, pois apenas é contemplado metade do seu capital.
Trata-se, com efeito, de uma discriminação profundamente injusta dos trabalhadores em relação aos outros credores, e cujo plano prevê o pagamento em 100 %.

Na verdade, não se pode olvidar a importância que o salário representa para os trabalhadores, muitas vezes, a sua única fonte de rendimento e do seu agregado familiar. O pagamento do salário é visto até como algo de sagrado, cuja obrigação deve ser cumprida religiosamente pelas entidades empregadoras. Por outro lado, a importância dos salários está também considerada nos privilégios creditórios que a lei lhes reconhece expressamente.

É certo que, nos tempos que têm vindo a correr, especialmente depois da crise económica de 2008, se assiste a um evidente e expressivo desprezo do fator trabalho, nomeadamente ao arrepio do sentido normativo vigente, onde sobressai a proteção especial concedida ao trabalhador, considerado a parte economicamente mais fraco.
  
Esta desproteção está, claramente, patenteada no plano de recuperação aprovado, que nem sequer cuidou de justificar a diferenciação de tratamento entre credores, como se impunha, quer por respeito a tais credores quer ainda por obediência à lei, de modo a poder ser ajuizada a objetividade das razões da diferenciação de tratamento entre os credores da devedora.

Neste contexto, não é possível ponderar das razões objetivas da diferenciação dos trabalhadores com outros credores, os quais, aparentemente, não dispõem sequer de quaisquer privilégios creditórios.

Para não falar já de outros credores, designadamente as instituições financeiras, com pagamento de créditos a 100 %, a violação do princípio da igualdade, no plano de recuperação aprovado pela maioria dos credores, é manifesta.

Para além do interesse coletivo que deve ser privilegiado na recuperação da empresa, é também do interesse público o cumprimento do princípio da igualdade dos credores do devedor, de modo a impedir, na ausência de acordo dos lesados, a aplicação injustificada de regimes diferentes a credores em circunstâncias idênticas.

Aliás, não se mostrando significativos os créditos salariais, aferição feita a partir dos valores dos créditos dos dois trabalhadores que votaram contra o plano de recuperação, é, de algum modo, incompreensível como a situação dos créditos salariais não foi devidamente acautelada no plano de recuperação, para projetar, com mais eficácia, a recuperação da devedora, ancorada na alegada marca comercial notória que ostenta.

Com a elevada taxa de desemprego que flagela o País, admite-se que sejam os trabalhadores dos primeiros a estar interessados na recuperação económica da empresa, nomeadamente para garantia dos postos de trabalho, mas, como é óbvio, sem desrespeito pela sua dignidade.

Naturalmente que, atravessando a devedora uma situação económica difícil, não se questiona a assunção de alguns sacrifícios pelos trabalhadores, mas sem que afetem, desproporcionada e injustamente, os seus direitos, quando comparados outros credores.

Nesta perspetiva, conclui-se também que a aprovação do plano de recuperação consubstancia uma violação grave, nomeadamente do princípio da igualdade, não negligenciável, das regras aplicáveis.
Por isso, é inteiramente legal a recusa da homologação do plano de recuperação, tal como se entendeu na decisão recorrida, que agora e aqui se confirma.

2.3. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante:

I. Dando embora primazia aos credores na definição e aprovação do plano de recuperação, a lei não deixou também de estabelecer certos princípios a observar neste domínio, de modo a obter-se um plano justo e equitativo, que permita a recuperação económica do devedor e a defesa equilibrada dos interesses dos credores, com obediência expressa ao princípio da igualdade dos credores.

II. O princípio da igualdade, nesta matéria, corresponde a uma trave mestre basilar e estruturante do plano de insolvência ou de recuperação, a tal ponto que a sua infração equivale a uma violação grave.

III. A diferenciação permitida entre credores tem de ser determinada por razões meramente objetivas e, por isso, de fácil e generalizada compreensão.

IV. O plano de recuperação, contendo uma discriminação profundamente injusta dos trabalhadores em relação a outros credores, consubstancia uma violação grave, nomeadamente do princípio da igualdade, não negligenciável.

2.4. A Apelante, ao ficar vencidas por decaimento, é responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art. 527.º, n.º s 1 e 2, do Código de Processo Civil.

III – DECISÃO:

Pelo exposto, decide-se:

1) Negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
2) Condenar a Apelantes (Requerente) no pagamento das custas.



Lisboa, 9 de julho de 2015

(Olindo dos Santos Geraldes)
(Lúcia Sousa)
(Magda Geraldes)