Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9249/2006-7
Relator: ROSA RIBEIRO COELHO
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
ARRESTO
CADUCIDADE
PRINCÍPIO DA ADESÃO
CRIME SEMI-PÚBLICO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/14/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I – Perante factos que podem integrar ilícitos criminais de natureza semi-pública, o correspondente pedido de indemnização civil pode ser deduzido no processo penal respectivo ou em separado, perante o tribunal civil.
II – Havendo sido decretado arresto para garantia do correspondente crédito, a dedução do pedido indemnizatório no processo penal não é exceptuada do regime sobre caducidade a que se refere o art. 389º do C. Proc. Civil, só impedindo a caducidade da providência se tiver lugar dentro do prazo nele imposto.

(RRC)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
7ª SECÇÃO CÍVEL

I – Nos autos de procedimento cautelar movido por T.[…] Lda., contra José […], tendo sido decretado e efectivado o arresto de bens pertencentes a este último, foi proferida decisão que declarou caduca a providência decretada, determinando, em consequência, o levantamento do arresto.

Contra tal despacho agravou a requerente, tendo apresentado alegações onde pede a sua revogação e formula as conclusões que passamos a transcrever na sua íntegra:

1) Não se podendo conformar com a decisão que determinou a caducidade do presente procedimento cautelar

2) Interpôs a ora agravante recurso ao abrigo do disposto no artigo 733.0 do Código de Processo Civil (CPC);

3) Pese embora o respeito devido, que é muito, mal andou o Meritíssimo Juiz "a quo" ao buscar argumento a favor da tese da inércia processual da ora recorrente.

4) Sem desdouro das várias análises possíveis em torno da factualidade supra sintetizada, há, desde logo, uma que ressalta à evidência e que se prende com o já vastas vezes discutido (mas ainda não solucionado) problema da morosidade da justiça ("Que a justiça seja pronta é indispensável", já escreveu Alberto dos Reis em 1935, Projecto do Código de Processo Civil, Capítulo IV, que se ocupa da Discussão e Julgamento da Causa em Primeira Instância).

5) Sem quebra do devido respeito, que é muito, não parece razoável, a todos os títulos, que exarados os despachos de arquivamento em 8 de Outubro de 2004 e 19 de Outubro de 2004, estes tenham sido notificados à queixosa apenas em 25 de Julho de 2006, quase dois anos depois.

6) Acresce que a decisão, ora posta em crise, que determina a caducidade do presente procedimento cautelar parece não atender às especificidades do caso sub judice.

Senão vejamos,

7) É certo que o conteúdo normativo oferecido pela letra do artigo 3810/1 do Código de Processo Civil (CPC) dispõe que o "O procedimento cautelar é sempre dependência da causa que tenha por fundamento o direito acautelado e pode ser instaurado como preliminar ou como incidente de acção declarativa ou executiva." Porém,

8) A letra da lei tem de ser temperada, sabemos hoje, ultrapassado que está o paradigma positivista, com os factos que compõem o caso concreto.

9) No nosso sistema jurídico funciona o chamado princípio da adesão, segundo o qual o pedido de indemnização civil com base na prática de um crime deve ser deduzido no processo penal respectivo (cfr. artigo 71.0 do Código de Processo Penal), muito embora o pedido possa (tratando-se de uma mera faculdade, atenta a forma verbal empregue pelo legislador na parte final do artigo 71º do CPP) possa ser feito em separado nas hipóteses contempladas no nº 1 do artigo 72.0.

10) As partes poderão mesmo optar, e nomeadamente na hipótese consignada na alínea a) do referido normativo legal, por não fazer o pedido em separado ao abrigo do chamado princípio da economia processual que obtém, decerto, consagração, v. g., no artigo 137.0 do Código de Processo Civil (CPC)

11) Traçadas as linhas gerais destes autos de processo, é este o ponto nuclear em apreço: como harmonizar in casu o artigo 389.0/2 do Código de Processo Civil (CPC) com o disposto nos artigos 71° e 72.0/1 Código de Processo Penal (CPP)?

12) Com a consagração do artigo 389.0/2 do Código de Processo Civil (CPC) o legislador pretendeu não perpetuar indefinidamente os efeitos que o procedimento cautelar tem inevitavelmente na esfera do requerido.

13) Ora, no caso sub judice, o ora requerido optou por não deduzir o pedido de indemnização civil, ao abrigo do princípio da economia processual, tal como permitido pelo artigo 72.0/1 do Código de Processo Penal (não podendo ser chamada de inércia processual uma opção legalmente admissível, não desrespeitando, porém, e sem conceder, a ratio do artigo 3890/2 do Código de Processo Civil (CPC), uma vez que informou os autos que teria já solicitado o desentranhamento dos cheques dos respectivos processos criminais, a fim de lançar mão da tutela executiva.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Cumpre decidir.

II – As ocorrências processuais a considerar para a decisão do recurso são, para além das já resenhadas em sede de relatório do presente acórdão, as seguintes:

1. Notificada para comprovar a instauração da acção de que a providência dependeria ou demonstrar a impossibilidade de dedução do pedido civil em separado, a requerente, ora agravante, em 19.07 do corrente ano, veio dizer que ainda não fora notificada para deduzir o pedido de indemnização dessa natureza, mas que solicitara, no âmbito dos respectivos processos criminais, o desentranhamento dos cheques em causa a fim de instaurar as competentes acções executivas – cfr. fls. 40.

2. Em ambos os inquéritos a que deram lugar as queixas, feitas em 1 de Outubro de 2004 e 18 de Outubro do mesmo ano, respectivamente, pela ora requerente contra o ora requerido, por este haver emitido, a seu favor, cheques que, apresentados a pagamento, foram devolvidos com a menção de “falta de provisão”, foram proferidos despachos de arquivamento, notificados à requerente por cartas expedidas em 25.07.06 – cfr. fls. 42-45 e 49-50.

3. Foi em 25.07.06 que a requerente solicitou naqueles autos de inquérito o desentranhamento dos cheques em causa, com vista à instauração de acções executivas – fls. 46 e 51.

III – A questão sujeita à nossa apreciação é - como se vê do teor das conclusões que, como é sabido, delimitam o objecto do recurso – tão só a de saber se o facto de correr termos processo penal onde, ao abrigo do denominado princípio da adesão, pode ser deduzido o correspondente o pedido de indemnização civil e em cujo âmbito não houve ainda notificação do ofendido para a sua dedução, leva a que não possa funcionar a regra de caducidade da providência, estabelecida no art. 389º, nºs 1, a) e 2 do C. P. Civil – diploma a que respeitam as normas de ora em diante referidas sem menção de diferente proveniência.

Os argumentos e raciocínio que subjazeram à emissão da decisão de caducidade do arresto decretado foram, em síntese nossa, os seguintes:

- O requerido foi notificado da decisão que decretou o arresto em 19 de Junho de 2006, presumindo-se a requerente notificada da notificação do requerido em 23 do mesmo mês e ano, pelo que, em vista do que estabelece o art. 389º, nºs 1, alínea a) e 2, o último dia para interpor a acção de que a providência depende era o dia 3 de Julho de 2006, sem prejuízo do que dispõe o art. 145º, nº 5.

- Contra o que entende a requerente, o facto de ainda não ter sido notificada, no âmbito do processo crime, para deduzir o pedido de indemnização civil, não é fundamento bastante para não ter interposto já a acção de que a providência depende.

- Isto porque, segundo o art. 72º, nº 1, alíneas a) e c) do C. P. Penal, o pedido de indemnização civil pode ser deduzido em separado, perante o tribunal civil, quando o processo penal não tiver conduzido à acusação dentro de oito meses a contar da notícia do crime, ou estiver sem andamento durante esse lapso temporal ou, ainda, se o processo depender de queixa, acontecendo que, no caso dos autos, a acusação foi deduzida naquele prazo e, por outro lado, o crime em apreço tem natureza semi-pública.

- Conclui-se, assim, que a acção de que a providência depende só não foi instaurada por negligência da requerente, já que sempre poderia ter deduzido o seu pedido de indemnização em separado, no tribunal civil, o que apenas não fez por sua escolha e/ou inércia processual.

Estes fundamentos e a conclusão que, com base neles, a decisão recorrida extraiu, merecem a nossa inteira concordância, não havendo crítica fundada que lhe possa ser dirigida.

E, reiterando, na sua íntegra, a argumentação usada no despacho impugnado, nada de substancial haveria a acrescentar.

Porém, em mero complemento do que aí se disse, salientar-se-á apenas o seguinte:

A presente providência seria dependência de acção cível a enxertar no processo penal ou de acção, de natureza executiva ou declarativa, a deduzir perante o tribunal civil. Uma ou outras seriam meio processual adequado para a ora agravante obter do agravado o cumprimento da obrigação cartular emergente dos cheques em causa e a indemnização pela mora que ao caso coubesse.

Estando-se perante factos que, em tese, poderiam integrar ilícitos criminais de natureza semi-pública, já que o respectivo procedimento criminal dependia de queixa – cfr. os arts. 11º, nºs 1 e 2 e 11º A do Dec. Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, na redacção dada pelo Dec. Lei nº 316/97, de 19 de Novembro –, sempre foi opção livre da agravante deduzir o correspondente pedido de indemnização civil no processo penal respectivo ou em separado, perante o tribunal civil.

É isto o que resulta, sem margem para qualquer dúvida, das disposições combinadas dos arts. 71º e 72º, nº 1, alínea c) do C. P. Penal.

E, mesmo que assim não fosse, sempre poderia ter deduzido o pedido de indemnização civil em separado, fazendo funcionar a faculdade estabelecida no citado art. 72º, nº 1, alínea a) que no caso lhe poderia aproveitar por se verificar o circunstancialismo aí previsto.

Para o exercício do seu direito de natureza civil, nunca esteve sujeito ao andamento do processo penal, não lhe sendo imposto, pois, que aguardasse a chegada do momento em que, no seu âmbito, poderia deduzir o pedido de indemnização civil.

Daí que, pretendendo usufruir das óbvias vantagens advenientes do decretado arresto sobre bens do requerido, estivesse sujeita à observância das regras de que a lei faz depender a manutenção da providência – propor, segundo exigência do art. 389º, nº 2, a acção da qual depende a providência no prazo de dez dias contados da notificação ao requerente de que foi efectuada ao requerido a notificação prevista no nº 5 do art. 385º.

E nada obstava o que o tivesse feito, como se viu já.

Porém, tendo optado livremente por não deduzir o pedido de indemnização civil em separado, com isso deixando de intentar, naquele referido prazo, a acção de que a providência era dependente, ficou sujeito, naturalmente, às consequências que o mesmo preceito estabelece para tal omissão.

É certo que a opção pela dedução do pedido cível no processo penal era uma faculdade que lhe assistia, mas exactamente porque se está no campo de uma faculdade, e não de uma imposição legal, o seu exercício não pode excluir a aplicação do citado dispositivo legal, com a inerente caducidade da providência.

Nesta linha, já Alberto dos Reis (1), dissertando sobre o preceito então vigente sobre esta matéria – art. 387º - idêntico, na sua essência, ao actual art. 389º dizia assim: “O requerente da providência obtém um determinado efeito provisório sobre a base duma apreciação jurisdicional sumária, porque se inculca titular dum direito e alega o perigo de dano, o risco da insatisfação do direito, se houver de esperar pelo julgamento normal e definitivo. A lei concede-lhe este benefício provisório, mas impõe-lhe um ónus: o de, dentro de prazo curto, propor a acção destinada à apreciação jurisdicional definitiva da relação litigiosa. Este ónus é a contra-partida do benefício.

Compreende-se perfeitamente que a vida ou eficácia da providência preventiva esteja condicionada à proposição imediata da causa principal. O requerente foi favorecido por uma providência que se traduz numa intromissão grave na esfera jurídica do seu adversário (…); e conseguiu esse efeito mediante uma instrução resumida e um julgamento superficial, que não podem dar garantias de segurança e justiça. Não faria sentido que o efeito se mantivesse indefinidamente sobre base tão precária (…)”  

E o facto de haver pedido nos autos de inquérito o desentranhamento dos cheques para, com base neles, instaurar acção executiva contra o requerido não tem, para este efeito, a mínima relevância, até porque o fez – como bem se diz no despacho recorrido – já depois de estar esgotado o prazo em que a acção, necessária à manutenção da providência, deveria ter sido proposta.

Soçobram, deste modo, as razões invocadas pela agravante contra a decisão recorrida, impondo-se a improcedência do agravo.

IV – Pelo exposto, nega-se provimento ao agravo, mantendo-se o despacho recorrido.

Custas a cargo da agravante.

Lxa. 14.11.06

(Rosa Ribeiro Coelho)
(Arnaldo Silva)
(Graça Amaral)


_________________________
1.-Código de Processo Civil anotado, 3ª edição, vol. I, pág. 609-610