Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
16142/12.7T2SNT-F.L1-6
Relator: EDUARDO PETERSEN SILVA
Descritores: VENDA EXECUTIVA
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
SUSPENSÃO DE EXECUÇÃO
LEIS COVID 19
INCONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/23/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - A inconstitucionalidade procede da desconformidade de uma determinada norma, em si, à Constituição, o que não se confunde com a cessação da situação de facto que determinou a emissão legislativa da referida norma.
II - A suspensão das diligências de entrega de casa de morada de família vendida em processo executivo, prevista na alínea b), do nº 7, do art.º 6º-E, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, e aditado pela Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril, não foi revogada pelo DL nº 66-A/2022 de 30 de Setembro, nem a norma em causa caducou.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes que compõem este colectivo do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório
Na execução de que este processado é apenso, instaurada em 19.6.2012, pela C…, S.A., contra V… e M…, por crédito hipotecário para aquisição de habitação própria, concedido em 04.08.1995, no montante de 12.150.000$00, veio, para o que interessa ao presente recurso, a ser proferida decisão pelo agente de execução, em 22.11.2019, declarando concluído o leilão electrónico de que foi objecto o imóvel[1] adquirido com o referido crédito, sendo melhor proponente e adquirente R…, nos autos m.id., casado em separação geral de bens com A…, também nos autos m.id., e sendo o valor proposto o de €102.428,39.
Em 22.11.2019, no âmbito de uma série de diligências que os executados promoveram e nas quais não vieram a ser bem sucedidos, o executado V… informa os autos que o imóvel é a sua residência habitual, juntando atestado da Junta de Freguesia.
Em 04.02.2020, o adquirente expôs e requereu nos autos, além do mais, que:
“1. No passado dia 8 de maio de 2020, foi proferido o douto despacho que indeferiu os requerimentos de interposição de recurso, bem como a Reclamação apresentada pelo Executado, todavia, o tribunal não se pronunciou sobre o requerimento do aqui Requerente datado de 16 de abril de 2020, com a referência n.º 16705449.
2. Conforme se deu conta nesse requerimento, os Executados, apesar de notificados para o efeito, não procederam, no prazo concedido, à entrega do imóvel de forma voluntária.
3. Em consequência e de harmonia com o douto despacho já proferido em 20 de fevereiro de 2020, foi aí requerido a competente autorização judicial para recorrer à força pública com vista à entrega coerciva do imóvel.
4. É sabido que atualmente, em virtude das medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus, que tais diligências estão suspensas, nos termos do disposto no artigo 7.º n. º 6 alínea b) da Lei n.º 1-A/2020 de 19 de março alterada pela Lei n. º4-A/2020 de 6 de abril.
5. Apesar de não ser possível, na presente data, concretizar o ato de entrega coerciva do imóvel, devido às medidas excecionais em vigor, o despacho que vier a autorizar o recurso à força pública para o efeito, pode e deve ser já proferido, sendo certo que apenas poderá ser cumprido quando tais medidas cessem.
(…)”.
Em 22.05.2020 foi proferido despacho com a referência nº 16825284, do seguinte teor:
Autorizo que o Sr(a). Agente de Execução proceda à requerida entrega, se necessário com o auxílio da força pública e arrombamento das portas, observando o disposto nos artigos 757.º, nºs. 5 e 6, e 861.º, nºs. 3 e 6, do CPC, aplicáveis por força do artigo 828.º do mesmo diploma legal.
Atento o disposto no artigo 7.º, n.º 6, alínea b), da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril, o presente despacho só produzirá efeitos quando cessar a medida de suspensão dos actos executivos de entrega judicial de imóveis”.
Em requerimento com a referência 39741543, o adquirente, expondo a não entrega por parte dos executados, requereu:
“(…) 3.  Em 22 de maio de 2020, foi proferido o douto despacho que autoriza o recurso das forças policiais para lograr a entrega coerciva do imóvel, e no qual ficou determinado, ao abrigo do disposto no artigo 7.º, n.º 6, alínea b), da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, que a produção dos seus efeitos, seria diferida para o momento em que cessassem as medidas de suspensão dos atos executivos de entrega judicial de imóveis.
4. A norma supra referida no ponto antecedente foi revogada, e vigora hoje, o artigo 6.º-E da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 13-B/2021, de 05/04.
5. Dispõe o n.º 7 alínea b) do artigo 6º- E da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, que “os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família”
6. E, o nº 8 da referida norma, dispõe o seguinte: “Nos casos em que os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência referentes a vendas e entregas judiciais de imóveis sejam suscetíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente, este pode requerer a suspensão da sua prática, desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou dos credores do insolvente, ou um prejuízo irreparável, devendo o tribunal decidir o incidente no prazo de 10 dias, ouvida a parte contrária.” (…)
7. Assim, nos termos da lei supra citada, e para que se verifique a suspensão da entrega judicial do imóvel, é necessário que, por um lado, o Executado o requeira, e por outro lado, que se verifique que a entrega judicial do imóvel cause prejuízo à subsistência do Executado e que dessa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do Exequente ou um prejuízo irreparável.
8. Do caso sub judice, verificamos que nada foi requerido pelos Executados no
sentido de requerer a suspensão da entrega do imóvel.
(…)
17. Assim, face a todas as circunstâncias do caso em apreço, aliado ao facto dos Executados, por um lado, nada terem requerido quanto à suspensão do ato de entrega do imóvel, e por outro lado, por se encontrarem de forma ilícita a ocupar o imóvel, requer-se a V. Exa. que seja autorizada a entrega coerciva do imóvel”.
Em 12.10.2021 foi proferido despacho referência 133084548, do seguinte teor:
“(…) Pese embora as razões invocadas, não existe fundamento legal para a requerida entrega coerciva do imóvel, considerando o disposto no artigo 6.º-E, n.º 7, alínea b), da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, na redacção da Lei n.º 13-B/2021, de 4 de Abril, que expressamente determina a suspensão, enquanto vigorar o regime excepcional e transitório nele previsto, dos «actos a realizar em sede de processo executivo (…) relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família», sem necessidade de dedução pelo executado de qualquer incidente.
Encontrando-se os executados na situação prevista no citado preceito legal, como os autos demonstram e o próprio requerente reconhece, não pode ser autorizado o recurso às autoridades policiais para efectivação da entrega do imóvel.
Pelo exposto, indefiro o requerido”.
Resulta ainda dos autos que em 07.07.2022 foi proferido despacho determinando a notificação dos executados para, “em 10 dias, comprovarem que o imóvel penhorado e vendido na presente execução é sua casa de morada de família”, ao qual o executado respondeu em 8.7.2022, juntando o atestado da junta de freguesia que já tinha junto, juntando ainda carta que lhe foi dirigida pela Segurança Social para a morada em causa, relativa a apoio judiciário, com referência de 2019, e juntando carta também dirigida a si para a mesma morada, emitida pela C… em 2017.
E sobre a junção destes documentos se pronunciou o adquirente, em 9.9.2022, alinhando que a entrega devia ser ordenada “(…) na medida em que a declaração apresentada é de 2019 e o que é declarado na mesma não confirma que se trata de casa de morada de família. 2. Ademais, a executada não respondeu e a sua morada dos autos já não coincide com o imóvel vendido”.
Resulta ainda dos autos que em 4.10.2022 foi proferido despacho com a referência 139881728, do seguinte teor:
Ref.ª 21883304 do p. e. (04.10.2022): o artigo 6.º-E da Lei n.º 1-A/2020 de 19.03. foi aditado pela Lei n.º 13-B/2021 de 05.04. O Decreto-Lei n.º 66-A/2022 de 30.09. não revogou expressamente a Lei n.º 1-A/2020 de 19.03., nem a Lei n.º 13-B/2021 de 05.04. Assim sendo, mantém-se em vigor a alínea b) do n.º 7 do artigo 6.º-E da Lei n.º 1-A/2020 de 19.03., aditado pela Lei n.º 13-B/2021 de 05.04.
Antes de mais, averigue a secção nas bases de dados as informações disponíveis quanto ao actual domicílio dos Executados”.
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Finalmente, em 10.10.2022, com a referência 139990084, foi proferido o despacho ora recorrido, do seguinte teor:
“Pesquisas com a ref.ª 139983122, 139983123, 139983124, 21902842, 139985821 e 21903503 do p. e.: visto. Notifique o respectivo teor ao Adquirente (R…) e aos Executados.
Ref.ª 21201569 (03.06.2022), 21424080 (08.07.2022), 21720161 (09.09.2022) do p. e.: conforme resulta das pesquisas efectuadas nas bases de dados supra mencionadas, a Executada M… não tem já domicílio no imóvel sito na (…).
Todavia, do resultado dessas pesquisas extrai-se que o Executado V… ainda tem a sua residência nessa morada, corroborando assim a sua alegação constante da ref.ª 21424080 do p. e., de que aquele imóvel constitui a sua casa de morada de família.
Ora, conforme já se fez constar no despacho proferido em 12.10.2021, a entrega coerciva do imóvel encontra-se suspensa face ao disposto na alínea b) do n.º 7 do artigo 6.º-E da Lei n.º 1-A/2020 de 19.03., aditado pela Lei n.º 13-B/2021 de 05.04. (vd. ref.ª 133084548 do p. e.), norma que ainda se mantém em vigor (vd. despacho de 04.10.2022, com a ref.ª 139881728 do p. e.).
Contudo, o Adquirente do imóvel, R…, invoca a inconstitucionalidade de tal norma, ainda que em termos genéricos.
O n.º 1 do artigo 62.º da Constituição da República Portuguesa consagra o direito à propriedade privada nos termos da Constituição, mas não se trata de um direito absoluto, no sentido de não poder ser sujeito a quaisquer restrições. Conforme bem evidenciam Jorge Miranda e Rui Medeiros, “da circunstância de o artigo 62.º não estabelecer restrições explícitas à propriedade privada não pode extrair-se que elas estejam vedadas. Somente numa quimérica Constituição liberal radical se pretenderia que a propriedade não pudesse ser restringida senão nos casos nela directa e expressamente contemplados e se entenderiam proibidas quaisquer normas legais restritivas que não lhes correspondessem. Pelo contrário, qualquer Constituição positiva, ainda que imbuída de respeito pela propriedade, tem de admitir que a lei declare outras restrições (…). O que a lei, também aqui, tem de respeitar é o feixe de regras do art.º 18.º (…).”[2]
Também não se pode olvidar que o artigo 64.º da Constituição consagra o direito à protecção da saúde, direito este que também tem de ser compatibilizado com os demais direitos.
Qualquer restrição destes direitos deve obedecer ao disposto no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa.
Estes direitos fundamentais estão em confronto no presente caso, pelo que há que verificar se é razoável a suspensão decorrente da referida alínea b) do n.º 7 do artigo 6.º-E.
De facto, conforme ensinam os mesmos Autores, “(…) são diversos os conceitos de restrição e suspensão. A restrição atinge um direito a título permanente, e sempre apenas parcialmente; a suspensão, provocada por situações de necessidade, atinge um direito a título transitório, equivale a um eclipe. A restrição apaga uma parcela potencial do direito; a suspensão paralisa ou impede, durante algum tempo, o seu exercício, no todo ou em parte (e, só neste caso acaba, porventura, por corresponder a uma restrição).”[3]
Tal norma surge num contexto de crise pandémica, em que foi necessário adoptar um conjunto de medidas excepcionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo Coronavírus SARS-COV-2, de molde a evitar a propagação da doença e as consequências para a saúde pública daí decorrentes.
Ora, neste contexto, entende-se que a norma cuja inconstitucionalidade é suscitada é razoável e adequada à situação de emergência que visa acautelar.
É certo que, actualmente, já foram levantadas algumas das restrições inicialmente impostas, mas tal não significa, que a medida em causa já não seja necessária, adequada e proporcional stricto sensu.
Não obstante a campanha de vacinação, a epidemia não terminou. De acordo com o último relatório de monitorização da situação epidemiológica[4], “A epidemia de COVID-19 manteve uma incidência elevada, com tendência estável. O número de internamentos por COVID-19 e a mortalidade específica apresentam uma estabilização. Deve ser mantida a monitorização da situação epidemiológica da COVID-19, recomendando-se a manutenção das medidas de proteção individual, a vacinação de reforço e a comunicação frequente destas medidas à população.”
Perante este cenário, a medida em causa é necessária, uma vez que a situação epidemiológica se mantém.
É adequada, porquanto evita que os executados sejam retirados das suas casas de morada de família e potencialmente sujeitos à condição de sem abrigo (uma vez que as respostas sociais no campo da habitação são claramente insuficientes), em que as condições de higiene são inexistentes.
E é razoável, ou seja, não é excessiva, para salvaguarda da situação de saúde pública em causa.
Pelo exposto, uma vez que se apurou que o imóvel supra identificado constitui ainda a casa de morada de família do Executado, por ora deverão manter-se suspensas as diligências destinadas à concretização da entrega judicial do imóvel, face ao disposto na alínea b) do n.º 7 do artigo 6.º-E da Lei n.º 1-A/2020 de 19.03., aditado pela Lei n.º 13-B/2021 de 05.04., motivo pelo qual se indefere o requerido na ref.ª 21201569 (03.06.2022) do p. e..
Notifique e comunique à Sr.ª AE”.
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Inconformado, o adquirente interpôs o presente recurso, formulando, a final, as seguintes conclusões:
A) O aqui Recorrente adquiriu o imóvel vendido no âmbito dos presentes autos, em novembro de 2019, tendo pago o preço no dia 6 de dezembro de 2019 e os respetivos impostos a 12 de dezembro de 2019, conforme documentos juntos aos autos.
B) A dívida exequenda encontra-se paga e a execução extinta pelo pagamento.
C) O aqui Recorrente há quase 36 meses que se encontra esbulhado no seu direito de propriedade, cumprindo apenas seus deveres e encontrando-se impedido de usufruir em pleno o seu direito de propriedade, por não ter sido entregue o imóvel.
D) Os Executados, aqui Recorridos, apesar de notificados para procederem à entrega voluntária do imóvel, não o fizeram nem, no prazo concedido para o efeito, nem até à presente data.
E) Em 22 de maio de 2020, foi proferido despacho com a referência número 125097447, mediante o qual foi determinado o auxílio da força pública e arrombamento das portas, ao abrigo do disposto nos artigos 757.º, nºs. 5 e 6, e 861.º, nºs. 3 e 6, do Código de Processo Civil, ex vi artigo 828.º do mesmo diploma legal.
F) Foi igualmente determinado que, atento o teor do artigo 7.º, n.º 6, alínea b), da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril, aquele despacho só produzirá efeitos quando cessar a medida de suspensão dos atos executivos de entrega judicial de imóveis.
G) Todavia aquele preceito legal foi revogado pela Lei n.º 13-B/2021, de 05/04.
H) Por tais motivos, o aqui Recorrente apresentou pedido, com a referência número 19427041, apelando à entrega do imóvel, na medida em que considerou que não foi alegado qualquer facto pelos executados no sentido de requerer a suspensão da entrega do imóvel nos termos do artigo 6.º E n.º 8 do aludido regime excecional e transitório.
I) Em 3/6/2022, o Requerente requereu novamente a entrega judicial do imóvel, conforme requerimento número 21201569, apoiando-se em arestos entretanto proferidos pelo Tribunal da Relação de Lisboa e de Évora, no sentido de considerarem que, só há suspensão das diligências de entrega de imóvel quando fique demonstrado, através da diligência praticada pelo Agente de Execução, que se trata de casa de morada de família.
J) O aqui Recorrido V… alegou que há 30 anos que reside naquele imóvel, tendo procedido à junção de declaração emitida pela Junta de Freguesia emitida apenas em 21/11/2019 e onde declara que o aqui Recorrido reside no imóvel agora adquirido.
K) O Tribunal a quo ordenou a consulta às bases de dados públicas para aferir se os executados, aqui Recorridos, ali tinham morada, tendo sido apurado que a executada M… já residia noutra morada mas que o executado V…, aqui Recorrido mantinha a sua morada no imóvel adquirido pelo aqui Recorrente.
L) Assim, o Tribunal a quo proferiu decisão mediante a qual considera que, dado que se apurou que “o imóvel supra identificado constitui ainda a casa de morada de família do Executado, por ora deverão manter-se suspensas as diligências destinadas à concretização da entrega judicial do imóvel, face ao disposto na alínea b) do n.º 7 do artigo 6.º-E da Lei n.º 1-A/2020 de 19.03., aditado pela Lei n.º 13-B/2021 de 05.04., motivo pelo qual se indefere o requerido na ref.ª 21201569 (03.06.2022) do p. e
M) Inconformado, o aqui Recorrente apela a V. Exas. a alteração de tal decisão por a mesma se fundar em lei que já não se encontra em vigor por caducidade e por sua aplicação constituir uma violação à Constituição da República Portuguesa.
N) Em primeiro lugar, o Tribunal a quo considerou que o imóvel agora vendido ao Recorrente é casa de morada de família, apoiando-se no facto da morada constante nas bases de dados coincidir com a localização do imóvel.
O) Não basta ter a morada nas bases de dados públicas e uma declaração de 2019 para que o Tribunal a quo possa considerar, sem mais, que o Recorrido tem ali a sua casa de morada de família.
P) Efetivamente e seguindo o entendimento dos arestos proferidos pelo Tribunal da Relação de Lisboa e Tribunal da Relação de Évora em 24.03.2022 e 28.4.2022 respetivamente, o Tribunal a quo nem sequer diligenciou no sentido de verificar in loco, através do Agente de Execução, que se tratava da casa de morada de família.
Q) Seguidamente, o aqui Recorrente não pode aceitar a decisão do Tribunal a quo pois a mesma aplica uma lei que se encontra caducada.
R) A Lei n.º 1-A/2020 de 19.03, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 13-B/2021 de 05.04 contempla medidas excecionais e temporárias para fazer face à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19.
S) Este diploma legal surgiu em contexto de estado de emergência e manteve-se até ao estado de alerta não ser renovado no final em 30 de setembro de 2022
T) Com efeito, Portugal já não se encontra em estado de emergência desde 30 de abril de 2021, não se justificando a suspensão do direito do aqui Recorrente.
U) O estado de alerta não foi renovado em 30 de setembro de 2022, tendo o Governo declarado que é altura de “adequar a legislação ao estado epidemiológico atual, equiparando, em termos legais e procedimentos daí decorrentes, a infeção Covid-19 às outras doenças.”, conforme melhor resulta da publicação na página oficial do XXIII Governo da República Portuguesa in https://www.portugal.gov.pt/pt/gc23/comunicacao/noticia?i=fim-do-estado-de-alerta,
V) E esclarece que: “Ao longo do tempo, para orientar e proteger a população portuguesa perante uma situação de excecional imprevisibilidade e gravidade, foi sendo criado um conjunto de diplomas legais e normas que acompanharam os estados de exceção que o país foi vivendo, nomeadamente o estado de alerta. Agora, são eliminados do ordenamento jurídico os atos legislativos cuja vigência se mostrou desnecessária ou ultrapassada, mantendo-se em vigor disposições dirigidas à proteção das pessoas mais vulneráveis à Covid-19, bem como salvaguardando-se os efeitos futuros de factos ocorridos durante a vigência das respetivas disposições.”
W) Assim, a partir daquela data não faz sentido considerar que aquele diploma legal se mantém em vigor, pois a realidade que pretende proteger já não justificam o regime de exceção.
X) Por fim, considera o aqui Recorrente que a decisão do Tribunal a quo viola o princípio da proporcionalidade ínsito no artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa, bem como o direito à propriedade resultante do artigo 62.º do mesmo diploma legal.
Y) Nesse conspecto, o Tribunal a quo considera que esta medida extraordinária e excecional: “evita que os executados sejam retirados das suas casas de morada de família e potencialmente sujeitos à condição de sem abrigo (uma vez que as respostas sociais no campo da habitação são claramente insuficientes), em que as condições de higiene são inexistentes.”
Z) Trata-se de uma clamorosa injustiça à qual o Tribunal, salvo devido respeito, não podia fechar os olhos pois colide com os direitos fundamentais consagrados na Constituição da República Portuguesa, nomeadamente o direito de propriedade e o direito à habitação.
AA) Se o executado não tem meios de sustentar uma habitação, deverá a Senhora Agente de execução atuar nos termos do artigo 861.º n.º 6 do CPC.
BB) O direito de propriedade do aqui Recorrente só pode ser coartado dentro dos limites de salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
CC) O aqui Recorrido não pode invocar o direito de habitação pois há muito que não tem esse direito, após a venda do imóvel ao aqui Recorrente.
DD) O direito à habitação, constitucionalmente protegido, deve ser concretizado pelo Estado e não pelos Tribunais.
EE) Ademais, esta suspensão do direito de propriedade do aqui Recorrente só pode manter-se se existir estado de emergência ou de sítio de acordo com o previsto no artigo 19.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, o que, como bem se sabe, não existe.
FF) Por outro lado, é permitido atualmente realizar entregas judiciais de imóveis no caso de despejo e já não se permite entregar imóveis já vendidos antes da pandemia.
GG) Tal sustentação também viola o princípio da igualdade, na medida em que um senhorio pode obter a entrega da sua casa junto do inquilino, mas um adquirente de um imóvel em leilão não pode.
HH) Por tais razões, apela-se a V. Exas. se digne declarar a inconstitucionalidade da aplicação da norma 6.º E, n.º 7 da Lei n.º 1-A/2020 de 19.03, aditado pela Lei n.º 13-B/2021 de 05.04, por violação do princípio da proporcionalidade, igualdade e legalidade, dado que este normativo caducou por já não se verificar uma situação excecional.
Termos em que se requer aos Venerandos Desembargadores se dignem julgar procedente o presente recurso e, em consequência, revogar o despacho que declara a suspensão das diligências atinentes à entrega do imóvel ao aqui Recorrente em virtude da caducidade do artigo 6.º-E, n.º 7, alínea b), da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, na redação da Lei n.º 13-B/2021, de 4 de Abril e da inconstitucionalidade da sua aplicação por violação do princípio da proporcionalidade e do direito à propriedade, máxime artigo 18.º, 19.º n.º 1 e artigo 61.º ambos da Constituição da República Portuguesa e ainda os princípios da legalidade e igualdade constitucionalmente protegidos (…)”. 
Não consta dos autos a apresentação de contra-alegações.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir:
II. Direito
Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões da alegação - artigo 635.º, n.º 3, 639.º, nº 1 e 3, com as excepções do artigo 608.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC - a questão a decidir é a de saber se o despacho recorrido deve ser revogado, declarando-se que a entrega do imóvel não está suspensa, em função da caducidade da lei que determinava a suspensão e da inconstitucionalidade da sua aplicação por violação do princípio da proporcionalidade e do direito à propriedade, e ainda por violação do princípio da igualdade.
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III. Matéria de facto
A constante do relatório supra.
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IV. Apreciação
Numa primeira linha argumentativa contra a decisão recorrida, o recorrente afirma (conclusões J, K e N, O e P) que a demonstração de que o imóvel é casa de morada da família não se basta com a pesquisa nas bases de dados, antes seria necessário que fosse confirmada localmente pelo agente de execução. Cita dois acórdãos em apoio da sua argumentação, os quais, com o devido respeito, não indicam de que normativo legal procede o suposto dever do tribunal ordenar oficiosamente a averiguação ou confirmação local de que o imóvel efectivamente é a casa de morada da família, quando o recorrente, como no caso presente, nem sequer o requereu. É certo que os documentos juntos pelo executado para responder ao despacho em que lhe foi ordenada a comprovação da residência são de 2019 e de 2017, e o tribunal não se bastou com eles, ordenando seguidamente as pesquisas nas bases informáticas.
Não encontramos normativo que imponha ao tribunal determinar a averiguação local da efectiva qualidade de casa de morada da família em determinado imóvel, e de resto, o recorrente não pede que revoguemos o despacho recorrido e determinemos essa averiguação, pelo que nada mais importa dizer sobre esta linha de argumentação.
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Da inconstitucionalidade:
Vamos começar por esta questão, dizendo que o recorrente nada opõe à argumentação jurídico-discursiva da sentença que não considera inconstitucional (relativamente ao princípio da proporcionalidade e relativamente ao direito de propriedade privada) o artigo 6º-E nº 7 alínea b) da Lei 1-A/2020, de 19 de Março, na redação da Lei n.º 13-B/2021, de 4 de Abril, salvo o que, em feliz síntese que o recorrente faz na conclusão HH do seu recurso nos afirma: - a “violação do princípio da proporcionalidade, igualdade e legalidade, dado que este normativo caducou por já não se verificar uma situação excecional”, ou seja, o referido preceito é inconstitucional porque caducou.
De resto, como é claro do relatório que acima fizemos, foi o próprio recorrente que, requerendo a autorização do uso da força policial para a obtenção da entrega do imóvel que adquiriu, reconheceu que essa entrega estava suspensa por virtude da legislação “pandémica”, digamos assim por facilidade de expressão. Quer isto dizer, ao tempo da sua emissão o referido preceito encontrava fundamento numa situação de facto relacionada com a doença, que impunha medidas que podiam afectar o direito de propriedade, e que não eram desproporcionais, antes justificadas, em tanto que os próprios proprietários também eram eles alvo da protecção consistente nas medidas de combate à propagação da doença.
Para o recorrente, o que se passa é que a situação de base que levou sucessivamente à declaração de estado de emergência, de calamidade e de alerta, já não existe mais.
Ora, a norma que era constitucional – proporcionadamente impondo restrições ao direito de propriedade garantido pelo artigo 62º da Constituição da República Portuguesa – não passa a inconstitucional porque o seu fundamento deixou de se verificar. O valor jurídico, que o tribunal tem de apreciar e acautelar, não é a recusa de aplicação de norma inconstitucional, mas a não aplicação da norma por caducidade.
Em termos jurídicos rigorosos, a inconstitucionalidade procede da desconformidade de uma determinada norma, em si, à Constituição, o que não se confunde com a cessação da situação de facto que determinou a emissão legislativa da referida norma.
Relativamente à invocação da inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade, no caso concreto, porque segundo o recorrente, os senhorios já podem obter o despejo do imóvel, mas os adquirentes em venda executiva ainda não, como se verá na questão seguinte, a asserção não é rigorosa, sendo que na verdade o que existem é diferenças nos requisitos de suspensão dos despejos e de suspensão da entrega da casa de morada da família em processo executivo. Por outro lado, mesmo que de facto houvesse a diferença afirmada pelo recorrente, a inconstitucionalidade passaria então pela omissão do legislador em legislar para o caso da venda executiva do modo como legislara para o caso do despejo, sendo que a fiscalização concreta da constitucionalidade por parte dos tribunais não abrange senão normas existentes, como decorre do artigo 280º da Constituição da República Portuguesa.
Da caducidade do artigo 6.º-E, n.º 7, alínea b), da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, na redação da Lei n.º 13-B/2021, de 4 de Abril:
O ora relator subscreveu, em 13.10.2022, o acórdão proferido nesta Relação e Secção no processo 17696/21.2T8LSB.L1-6, disponível para consulta no sítio electrónico da dgsi, em que, ainda que com pronúncia específica sobre o caso da alínea c) do nº 7 do referido artigo 6º-E[5], se abordou também a situação prevista na alínea b) do mesmo número e preceito, e a final se concluiu pela não caducidade do referido artigo 6º-E em face do DL 66-A/2022 de 30.9.
Porque se revela de interesse para a solução deste recurso, vamos citar parte do referido acórdão.
Nele se considerou:
“A Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril (1), como é consabido, vem determinar a Cessação do regime de suspensão de prazos processuais e procedimentais adoptado no âmbito da pandemia da doença COVID-19, alterando a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, tendo entrado em vigor no dia 6 de Abril de 2021 ( Artigo 7.º), sendo que, ao mesmo tempo em que revoga os artigos 6.º-B e 6.º-C da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, na sua redacção “actual”, vem designadamente e também aditar à Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, o artigo 6.º-E, com a seguinte redacção:
Artigo 6.º-E
Regime processual excepcional e transitório
1 - No decurso da situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, as diligências a realizar no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal regem-se pelo regime excepcional e transitório previsto no presente artigo.
2 - As audiências de discussão e julgamento, bem como outras diligências que importem inquirição de testemunhas, realizam-se:
(...)
7 - Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excepcional e transitório previsto no presente artigo:
a) O prazo de apresentação do devedor à insolvência, previsto no n.º 1 do artigo 18.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março;
b) Os actos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família;
c) Os actos de execução da entrega do local arrendado, no âmbito das acções de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa;
(...)
8 - Nos casos em que os actos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência referentes a vendas e entregas judiciais de imóveis sejam susceptíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente, este pode requerer a suspensão da sua prática, desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou dos credores do insolvente, ou um prejuízo irreparável, devendo o tribunal decidir o incidente no prazo de 10 dias, ouvida a parte contrária.
(...)”.
Cotejando a Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril com a Lei nº 4-B/2021, de 1 de Fevereiro, vemos que, apesar de revogar a primeira o Artigo 6.º-B da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março - com a redacção introduzida pela Lei nº 4-B/2021, de 1 de Fevereiro -, vem porém e no essencial manter [agora no art.º Artigo 6.º-E, nº 7, alíneas b) e c)] a SUSPENSÃO já anteriormente decretada pelo nº 11 do Art.º 6-B,  da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março - com a redacção introduzida pela Lei n.º 4-B/2021,de 1 de Fevereiro -, pois que revelava ele que :
São igualmente suspensos os actos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família ou de entrega do locado, designadamente, no âmbito das acções de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando, por requerimento do arrendatário ou do ex-arrendatário e ouvida a contraparte, venha a ser proferida decisão que confirme que tais actos o colocam em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.”
Tendo presente o conteúdo dos dois normativos acabados de transcrever [o 6-E,  nº 7, alínea c), e o revogado nº 11 do Artº 6-B,  da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março] , temos assim que o “nó górdio” da questão da presente apelação tem a ver com a pertinência de a suspensão dos autos pelo tribunal a quo decretada se ter baseado, como tudo indica, na alínea b), do art.º 6º-E, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março , mais exactamente no respectivo nº 7º, alínea b) [artº último este que foi aditado pelo seguinte diploma: Lei n.º 13-B/2021, de 05 de Abril].
O acabado de referir, decorre, igualmente, do facto de na alínea b), do referido nº 7, do art.º 6-E, se aludir – e para justificar a suspensão ope legis de actos a praticar - à entrega judicial da “casa de morada de família”, dispensando-se prima facie qualquer indagação pelo Juiz da possibilidade de o arrendatário vir a ser colocado – com a execução de acto de entrega do local arrendado - em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa [ como já o exige a alínea c), do nº 7, do art.º 6-E , da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março.
Ora, antes de mais, importa afastar qualquer interpretação conjugada e literal [porque a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico – cfr. art.º 9º, do CC] de ambas as normas supra descritas (as alíneas b) e c) nº 7, do art.º 6-E), ou seja, considerar que o legislador quis determinar uma suspensão automática das diligências executórias relacionadas com a entrega judicial de imóveis sempre que estes constituam a casa de morada de família, mas, estando em causa diligências executórias relacionadas com a entrega judicial de imóveis que não sejam a casa de morada de família, já a suspensão de atos de execução exigem a prova de poder colocar-se o “obrigado à entrega” em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.
Ao invés, em ambas as alíneas b) e c), do nº 7, do art.º 6-E, há-de estar-se na presença de actos de execução que incidem sobre imóveis que constituem a casa de morada de família do obrigado, pois que, a alusão – na alínea c) - à "falta de habitação própria" só pode significar que aqui se inclui, necessariamente, a "casa de morada de família". (2)
Depois, pacífico é que o que diferencia o campo de aplicação de ambas as alíneas b) e c), do nº 7, do art.º 6-E é que, a primeira, tem por objecto os atos a realizar em sede de processo executivo (…) relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família" e, a segunda, incide já sobre actos de execução da entrega do local arrendado, no âmbito das ações de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada.
Por outra banda, e ao contrário do que sucede com os atos a realizar em sede de processo executivo relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família, cuja suspensão opera ope legis, já a suspensão de actos de execução da entrega do local arrendado, v.g. no âmbito dos procedimentos especiais de despejo , apenas opera ope judicis, ou seja quando se revele que os referidos actos podem colocar o “obrigadoem situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.
Para o referido efeito, ou seja, para que haja lugar à suspensão de actos de execução da entrega do local arrendado a ter lugar no âmbito dos procedimentos especiais de despejo, e ainda que em causa esteja a "casa de morada de família", cabe ao arrendatário o ónus de a requerer e de alegar e provar factos concretos e objetivos de onde resulte que, a concretizar-se a entrega do arrendado, ele ficará numa "situação de fragilidade por falta de habitação própria" ou que há uma "outra razão social imperiosa" que também justifica que a entrega não tenha lugar. (3)
Ou seja, as acções de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, não se suspendem ope judicis, antes podem vir a ser suspensas caso seja proferida decisão que o determine [correndo termos até que seja a mesma proferida], o que só deverá ocorrerá [na linha do que decorre de resto do art.º 15º-N, nº2, do NRAU, propósito do Diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação] quando comprovado o necessário fundamento legal, maxime não dispor o arrendatário de outra habitação podendo assim ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.
 O aludido regime, de resto, não diverge de todo do introduzido logo pela Lei nº 4/2020, de 6.04, diploma que, republicando em anexo a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, passou esta última a dispor no respectivo art.º 7º, nº 11, que “Durante a situação excepcional referida no n.º 1, são suspensas as acções de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa”.
Ora, perante o acabado de expor, e integrando os nossos autos claramente a previsão da alínea c), do nº 7, do art.º 6º-E, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, inevitável é concluir que a decisão recorrida assenta em pressuposto legal desadequado e, o correcto, não opera ope legis, antes só poderá efectivar-se se verificados os pressupostos na lei expressos/fixados”. (fim de citação).

No mesmo sentido da operação ope judicis no caso da al. c) e da operação ope legis no caso da alínea b) do nº 7 do artigo 6º E citado, e ainda com interesse para a invocação que o recorrente faz da não subsunção do caso dos autos ao nº 8 do artigo 6º E, veja-se também o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25.10.2022, no processo 18281/21.0T8PRT.P1, em cujo sumário se lê:
“I – As medidas excepcionais e temporárias consagradas nas alíneas b) e c), do n.º 7, do artigo 6.º-E, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, não se confundem nem se sobrepõem, sendo distinto o modo como operam e o seu âmbito de aplicação.
II – Enquanto a suspensão prevista na al. b) do n.º 7 opera ope legis, isto é, automaticamente, por força da lei, a suspensão prevista na al. c) do mesmo n.º 7, assim como a suspensão prevista no n.º 8, operam ope judicis, ou seja, depois de confirmada por decisão judicial a verificação dos respectivos requisitos legais.
III – A suspensão prevista na alínea c) do n.º 7 aplica-se aos actos de execução de entrega de imóveis arrendados, no âmbito das ações de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, independentemente de se tratar da casa de morada de família ou não.
IV – A suspensão prevista na al. b) do n.º 7 e a suspensão prevista no n.º 8 dizem respeito a imóveis pertencentes ao executado ou ao insolvente, apreendidos nos respectivos processos de execução ou de insolvência, tendo em vista a sua venda e a subsequente satisfação dos créditos do exequente ou dos credores do insolvente; mas enquanto a al. b) se aplica apenas quando está em questão a casa de morada do executado ou do insolvente e abrange tão somente os actos relacionados com a entrega judicial dessa casa, o n.º 8 aplica-se a quaisquer imóveis e abrange também os actos relacionados com a venda”.

*
As citações feitas, com cujo teor se concorda, relevam para afastar a argumentação do recorrente no sentido de que há uma desigualdade de tratamento entre os senhorios e os adquirentes em processo executivo, e relevam ainda para estabelecer que, tratando-se, no caso, de entrega da residência habitual/casa de morada da família vendida em processo executivo, a suspensão da mesma entrega opera por simples decorrência da lei, não sendo necessário que o obrigado à entrega demonstre que não tem outra alternativa ou que fica numa situação de fragilidade face à pandemia. 
Relativamente à questão central deste recurso, qual seja a de saber se a situação de facto que determinou a emissão da legislação de protecção contra a propagação da doença Covid-19, no primeiro acórdão que citámos apreciou-se justamente essa questão, nos seguintes termos que passamos a citar:
“Uma última nota se justifica aduzir a propósito da aprovação, recentemente, do Decreto-Lei 66-A/2022, de 30 de Setembro, que determina a cessação de vigência de decretos-leis publicados, no âmbito da pandemia da doença COVID-19, e que entrou em vigor em 1 de Outubro de 2022 e o qual “Considera revogados diversos decretos-leis aprovados no âmbito da pandemia da doença COVID-19, determinando expressamente que os mesmos não se encontram em vigor, em razão de caducidade, revogação tácita anterior ou revogação pelo presente decreto-lei”.
A justificar a aprovação do referido diploma, explica o legislador que:
Desde o início da pandemia da doença COVID -19, o Governo tem vindo a adotar uma série de medidas de combate à pandemia, seja numa perspetiva sanitária, seja nas vertentes de apoio social e económico às famílias e às empresas, com o intuito de mitigar os respetivos efeitos adversos. Face ao desenvolvimento da situação epidemiológica num sentido positivo, observado nos últimos meses, assistiu-se à redução da necessidade de aprovação de novas medidas e de renovação das já aprovadas. Concomitantemente, importa ter presente que a legislação relativa à pandemia da doença COVID -19 consubstanciou-se num número significativo de decretos-leis com medidas aprovadas com o objetivo de vigorar durante um período justificado. Neste contexto, através do presente decreto-lei, procede-se à clarificação dos decretos-leis que ainda se encontram em vigor, bem como à eliminação das medidas que atualmente já não se revelam necessárias, através da determinação expressa de cessação de vigência de decretos-leis já caducos, anacrónicos ou ultrapassados pelo evoluir da pandemia. Importa, contudo, garantir que as alterações promovidas a legislação anterior à pandemia pelos decretos-leis agora revogados não são afetadas. Assim, clarifica-se que a revogação promovida pelo presente decreto-lei tem os seus efeitos limitados aos decretos-leis aqui previstos, não afetando alterações a outros diplomas introduzidas por estes que agora se revogam. Desta forma, ganha-se em clareza e certeza jurídica, permitindo aos cidadãos saber — sem qualquer margem para dúvidas — qual a legislação relativa à pandemia da doença COVID-19 que se mantém aplicável. (…)”.
Ora, em razão da aprovação do diploma acabado de mencionar, temos para nós que a decisão pela qual envereda o presente acórdão não se mostra “prejudicada”, antes mantém a sua “actualidade”, desde logo porque não é o art.º Artigo 6.º-E, nº 7, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, por aquele [Decreto-Lei 66-A/2022,de 30 de Setembro] visado/atingido.
Depois, sendo certo que refere o nº 7, do art.º 6.º-E referido, que “Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório previsto no presente artigo”, a verdade é que o período de vigência do regime excecional e transitório visado é o que indica o nº 1. do mesmo art.º 6º-E, a saber, aquele em que permanecer a “situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19”.
Destarte, porque é nosso entendimento de que nada permite concluir que a “situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19”, deixou já de existir [antes tudo obriga a considerar que continuamos ainda hoje a viver em estado de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica, ainda que, é verdade, já não em período de estado de emergência - a qual se iniciou em Portugal ao abrigo do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, tendo sido objecto de diversas renovações, v.g. operadas pelo Decreto n.º 17-A/2020, de 2 de abril, pelo Decreto n.º 20-A/2020, de 17 de abril e pelo Decreto do Presidente da República n.º 41-A/2021, de 14 de abril, mas já cessado - , de calamidade - estado que foi decretado pelo Governo através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 33-A/2020, de 30 de abril, aprovada ao abrigo do artigo 19.º da Lei de Bases da Proteção Civil, aprovada pela Lei n.º 27/2006, de 3 de julho, prorrogada por diversas vezes também, mas já cessado - , ou sequer de alerta - estado v.g. decretado e regulamentado através de Resolução do Conselho de Ministros n.º 73-A/2022, de 30 de Agosto e para vigorar até às 23:59 h do dia 30 de Setembro de 2022], continua portanto a justificar-se o atrás decidido no tocante ao prosseguimento dos autos e dos seus termos, sem prejuízo todavia de, em face do requerido pela apelada, decidir o tribunal a quo que se mostra alegada e provada factualidade que preenche a previsão da parte final da alínea c), do nº 7, do art.º 6º-E, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, e aditado pela Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril.
Em suma, nada permite concluir que a alínea c), do nº 7, do art.º 6º-E, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, e aditado pela Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril, não se encontra já em vigor, por ter a sua vigência cessado por aplicação do art.º 7º, nºs 1 e/ou 2, do CC.
Acresce que, em rigor, não consubstancia a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março uma lei temporária [limitada a um determinado período de vigência, ou porque o tempo seja nela prefixado ou se circunscreva a duração de certo acontecimento previamente identificado], antes melhor corresponde a uma lei de emergência, porque prima facie destinada a vigorar enquanto se mantiverem as circunstâncias extraordinárias ou excepcionais e de interesse público que determinou a sua aprovação, circunstâncias de resto de duração indefinida, mais ou menos longa [as quais , estamos em crer que não deixaram já e em absoluto de existir, de todo] .
(…)”.
*
Concordamos. Não há, de resto, nenhuma razão para distinguir a alínea c) da alínea b) do nº 7 do artigo 6º-E referido, no que toca à caducidade.
É verdade que passaram vários meses desde a publicação do Decreto-Lei 66-A/2022 e que a evolução relativamente à pandemia aparentemente é positiva, mas entendemos não alterar o juízo sobre a não caducidade do artigo 6º E da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, e aditado pela Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril por uma razão, a saber, porque com um legislador que legisla com o propósito específico de clarificar a legislação que já caducou, seguramente mais munido de informação relevante em termos sanitários do que os tribunais, e portanto que legisla em função da certeza e segurança jurídica, terá esse legislador ponderado mesmo que a norma em vigor não tinha deixado de ter um fundamento factual a que se referir/aplicar, não cabendo então ao tribunal introduzir um elemento de incerteza na mesma apreciação, devendo outrossim em benefício da segurança jurídica esperar-se que o legislador venha a produzir nova legislação em que revogue as normas da legislação “pandémica” que já não tenham correspondência com a situação de facto real. É que, renova-se, o artigo 7º do Código Civil estabelece, na parte que aqui nos interessa, que “1. Quando se não destine a ter vigência temporária, a lei só deixa de vigorar se for revogada por outra lei.
2. A revogação pode resultar de declaração expressa, da incompatibilidade entre as novas disposições e as regras precedentes ou da circunstância de a nova lei regular toda a matéria da lei anterior.
Nenhuma destas situações ocorre no presente caso.
*
Consequentemente, improcede o recurso.
Tendo nele decaído, é o recorrente responsável pelas custas – artigo 527º nº 1 e 2 do CPC.
*
V. Decisão
Nos termos supra expostos, acordam negar provimento ao recurso e em consequência confirmam a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.
Registe e notifique.
Lisboa, 23 de Fevereiro de 2023
Eduardo Petersen Silva
Nuno Lopes Ribeiro
Gabriela de Fátima Marques
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[1] Fracção Autónoma designada pelas letras "…" correspondente ao 2.º andar B do Prédio Urbano submetido ao Regime de Propriedade Horizontal sito na …, n.º …, T…, em M…, Concelho de … e Distrito de …, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de … sob a ficha n.º … da Freguesia de … e inscrito na matriz urbana sob o artigo … da referida Freguesia.
[2] Nota de rodapé 1, do texto original, com o seguinte teor: In “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Tomo I, Coimbra Editora, Março de 2005, p. 628
[3] Nota de rodapé 2 no texto original, do seguinte teor: In ob. cit. supra, p. 160.
[4] Nota de rodapé 3 no texto original, do seguinte teor: Disponível para consulta in 20221005_Monitorizacao_COVID-19_PDF-2578kb.pdf (min-saude.pt).
[5] A questão decidenda, em tal acórdão, era: “Aferir se o DESPACHO recorrido [que declarou suspensos os atos a realizar neste procedimento especial de despejo, relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família] porque “ilegal”,deve ser  revogado, sendo substituído por outro que não admita a suspensão dos autos, antes determine o seu prosseguimento” (negrito nosso).