Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10423/06-2
Relator: EZAGÜY MARTINS
Descritores: APLICAÇÃO DA LEI PROCESSUAL NO TEMPO
COMPETÊNCIA CONVENCIONAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/15/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: O pacto de competência (pactum de foro prorogando) mais não é do que uma norma definidora da competência territorial fundada em disposição legal que a consente e cuja aplicabilidade não pode deixar de ser encarada nos mesmos termos em que o é a das demais normas relativas à competência territorial. II- A aplicação da alínea a) do n.º 1 do artigo 110.º do Código de Processo Civil, com a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, aos contratos celebrados antes da entrada em vigor desta última lei, ainda que se entenda que se trata de uma aplicação retroactiva da mesma, não consubstancia violação de forma inadmissível, intolerável ou arbitrária dos direitos ou expectativas das partes.
(E.M)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: 15
Acordam na 2ª Secção (cível) deste Tribunal da Relação


I- Banco , com sede em Lisboa, requereu em procedimento cautelar, a entrega imediata do veículo automóvel com a matrícula PC e o cancelamento do registo de locação financeira que sobre ele impende, contra R A S, residente na , Fiães VFR.
Alegando, para tanto, e em suma, ter entregue o dito veículo à Requerida, em regime de locação financeira, sendo que, na sequência de incumprimento do contrato respectivo, por aquela, procedeu a Requerente à resolução do contrato.
E ser o “Tribunal o competente por as partes como tal o terem eleito”.

Por despacho de folhas 42-45, considerando-se cobrar aplicação a nova redacção dada ao art.º 74º, n.º 1, do Código de Processo Civil, pela Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, e o disposto no art.º 6º da mesma Lei, foi declarada a incompetência, em razão do território, dos Juízos Cíveis de Lisboa, julgando-se competente o Tribunal da Comarca de Santa Maria da Feira, para o qual foi ordenada a remessa, após trânsito, dos autos.

Inconformada, recorreu a Requerente, formulando, nas suas alegações, as seguintes conclusões:

“(i) O despacho recorrido ao aplicar o disposto na alínea a), do n° 1 do artigo 110° do Código de Processo Civil, com a redacção que lhe foi dada pela Lei 14/2006, de 26 de Abril, à hipótese dos autos, atento o que consta do contrato aos mesmos junto com a petição inicial, em que as partes escolheram um foro convencional nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 100°, n°s. 1, 2, 3 e 4 do Código de Processo Civil, violou o disposto nos artigos 5° e 12°, n°s. 1 e 2, do Código Civil.
(ii) O despacho recorrido, ao interpretar e aplicar, como o fez, a alínea a) do n° 1 do artigo 110° do Código de Processo Civil, com a redacção que lhe foi dada pela dita Lei 14/2006, de 26 de Abril, à hipótese dos autos e, consequentemente, a não considerar válida e eficaz a escolha do foro convencional constante do contrato dos autos, atento a data da celebração do mesmo e o disposto no artigo 100°, n°s. 1, 2, 3 e 4, do Código de Processo Civil, do que então se dispunha no artigo 110° do mesmo normativo legal, maximé na alínea a) do respectivo n° 1, é inconstitucional por violação dos princípios da adequação, da exigibilidade e da proporcionalidade, e da não retroactividade consignados no artigo 18°, n°s. 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa, e, também ainda, por violação dos princípios da segurança jurídica e da confiança, corolários ambos do principio de um Estado de Direito Democrático consagrado no artigo 2° da Constituição da Republica Portuguesa.
(iii) Impõe-se, pois, como se requer, procedência do presente recurso, a revogação do despacho recorrido, e a sua substituição por outro que reconheça a competência territorial do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa para conhecer dos autos onde o mesmo foi proferido, desta forma se fazendo
JUSTIÇA”.
*
Foi proferido despacho de sustentação tabelar.

II- Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
Face às conclusões de recurso, que como é sabido, e no seu reporte à fundamentação da decisão recorrida, definem o objecto daquele – vd. art.ºs 684º, n.º 3, 690º, n.º 3, 660º, n.º 2 e 713º, n.º 2, do Código de Processo Civil – é questão proposta à resolução deste Tribunal, a de saber se o disposto na alínea a), do n.º 1 do artigo 110° do Código de Processo Civil, com a redacção que lhe foi dada pela Lei 14/2006, de 26 de Abril, cobra aplicação, à hipótese dos autos.
*
Emerge da dinâmica processual, com interesse para o julgamento do recurso, o que se deixou referido supra, em sede de relatório.
*
Vejamos:
II-1- Com a nova redacção introduzida pelo art.º 1º da Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, passou o art.º 74º n.º 1, do Código de Processo Civil, a dispor:
“1—A acção destinada a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de cumprimento é proposta no tribunal do domicílio do réu, podendo o credor optar pelo tribunal do lugar em que a obrigação deveria ser cumprida, quando o réu seja pessoa colectiva ou quando, situando-se o domicílio do credor na área metropolitana de Lisboa ou do Porto, o réu tenha domicílio na mesma área metropolitana.”.
E, o art.º 110º, n.º 1, al. a), do mesmo Código, também na redacção introduzida por aquela Lei, e no que agora interessa, que: “A incompetência em razão do território deve ser conhecida oficiosamente pelo tribunal, sempre que os autos fornecerem os elementos necessários, nos casos seguintes: a) Nas causas a que se referem…a primeira parte do n.º 1 e o n.º 2 do art.º 74ª…”.

Por seu lado, o art.º 100º, n.º 1, do Código de Processo Civil, na redacção introduzida pelos Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12-12 e 180/96, de 25-09, dispõe que “As regras de competência em razão da matéria, da hierarquia, do valor e da forma de processo não podem ser afastadas por vontade das partes; mas é permitido a estas afastar, por convenção expressa, a aplicação das regras de competência em razão do território, salvo nos casos a que se refere o artigo 110º”. (o negrito é acrescentado).

De acordo com o art.º 6º da referida Lei n.º 14/2006:
“A presente lei aplica-se apenas às acções e aos requerimentos de injunção instauradas ou apresentados depois da sua entrada em vigor.”.
A qual se verificou em 2006-05-01, ex vi do art.º 2º, n.º 2, da Lei n.º 74/98, de 11-11.

Tendo a petição inicial dado entrada, como da mesma se colhe, em 2006-08-14, portanto já depois da entrada em vigor da nova redacção dos referidos art.ºs 74º e 110º.

Também, como decorre do referenciado em sede de relatório, visa-se na presente acção o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes do invocado contrato de mútuo.
Assim, cobrando aplicação imediata a dita nova redacção do art.º 74º, n.º 1, do Código de Processo Civil – podendo mesmo equacionar-se a nulidade da convenção de foro, porque contrária à lei vigente à data da propositura da acção, cfr. art.º 280º, n.º 1, do Código Civil – deve a acção ser proposta no domicílio do Réu, pessoa singular.

Resultando competente em razão do território, para o procedimento, o Tribunal Judicial da Comarca de Santa Maria da Feita, que não os Juízos Cíveis de Lisboa.
Sendo a correspondente incompetência daqueles últimos, e como visto já, de conhecimento oficioso, cfr. cit. art.º 110º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Civil, na redacção introduzida pela mesma Lei n.º 14/2006.

1. Contra isto, sustenta a Recorrente, e tanto quanto julgamos acompanhar as suas alegações, que tendo sido anteriormente estipulado pelas partes – no n.º 15 das “Condições Gerais” do contrato de mútuo respectivo – um foro convencional, a saber, a “comarca de Lisboa”, o despacho recorrido teria violado o princípio da irretroactividade da lei, consagrado no art.º 12º do Código Civil.

De facto, a doutrina geral aceite no direito civil é a de que a nova lei só rege para o futuro, não se aplicando aos factos pretéritos.
Sendo que orientação paralela, elevada ao plano superior dos princípios constitucionais, vigora no domínio das leis penais incriminadoras, cfr. art.º 29º, da Constituição da República Portuguesa.
Como assinalam Antunes Varela. J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora,(1) “outra é, no entanto, a orientação geral que tem prevalecido na própria doutrina em relação às normas do processo”.
Nesse sector tem-se entendido que a nova lei processual deve aplicar-se imediatamente, não apenas às acções que venham a instaurar-se após a sua entrada em vigor, mas a todos os actos a realizar futuramente, mesmo que tais actos se integrem em acções pendentes, que o mesmo é dizer, em causas anteriormente propostas.
A ideia proclamada no art.º 12º do Código Civil, “de que a lei dispõe para o futuro significará, nesta área do direito processual, que a nova lei se aplica às acções futuras e também aos actos futuros praticados nas acções pendentes.”.(2)
Em matéria de competência dos tribunais, uma tal directriz geral requer adaptações.
Assim, quando se dispõe, no art.º 22º, da L.O.F.T.J., que “A competência fixa-se no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente”, estabelece-se a regra “da aplicação imediata da nova lei apenas quanto às acções futuras. Relativamente às acções pendentes, a regra é a da aplicação da lei vigente à data da proposição da acção.”(3)

No caso em apreço, temos que a enunciada regra se mostra observada, no despacho recorrido.
Pois que se tratou de aplicar a nova regra em matéria de competência territorial, resultante da redacção introduzida pela Lei n.º 14/2006, a procedimento requerido após a entrada em vigor daquela.

E nem da circunstância de se substituir a regra de competência resultante da nova redacção do art.º 74º, n.º 1, do Código de Processo Civil, à definição de foro convencional, anteriormente operada adentro o contrato de adesão respectivo, implica, alterando os dados da questão, a violação do princípio da irretroactividade da lei.
Não sofre crise a validade de tal pacto, à data da sua celebração.
Nem ser o foro convencional tão vinculativo para as partes como a determinação do tribunal competente resultante da lei, já que o Código de Processo Civil aderiu ao sistema obrigatório, que não apenas facultativo, de estipulação negocial, cfr. art.º 100º, n.º 3, do referido Código.
Porém o pacto de competência (pactum de foro prorogando) mais não é do que uma norma definidora da competência territorial fundada em disposição legal que a consente e cuja aplicabilidade não pode deixar de ser encarada nos mesmos termos em que o é a das demais normas relativas à competência territorial.(4)
Nesta perspectiva nenhuma razão existindo para se deferir tratamento privilegiado, em matéria de sucessão de leis no tempo, à regra de competência estabelecida por convenção das partes, no confronto de regra de competência resultante da lei de processo.

2. Mais pretendendo a Recorrente, e como visto, que “o despacho recorrido”…é inconstitucional, por violação dos princípios da adequação, da exigibilidade e da proporcionalidade, e da não retroactividade consignados nos art.ºs 18°, n.°s 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa, e dos princípios da segurança jurídica e da confiança, corolários ambos do princípio de um Estado de Direito Democrático consagrado no artigo 2° da Constituição da Republica Portuguesa.

2.1. O princípio da proporcionalidade é um dos pressupostos materiais para a restrição legítima de direitos, liberdades e garantias, encontrando guarida no citado art.º 18º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
E, como anotam J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira,(5) “desdobra-se em três subprincípios: (a) princípio da adequação (também designado por princípio da idoneidade), isto é, as medidas restritivas legalmente previstas devem revelar-se como meio adequado para a prossecução dos fins visados pela lei (salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); (b) princípio da exigibilidade (também chamado princípio da necessidade ou da indispensabilidade), ou seja, as medidas restritivas previstas na lei devem revelar-se necessárias (tornaram-se exigíveis), porque os fins visados pela lei não podiam ser obtidos por outros meios menos onerosos para os direitos, liberdades e garantias; (c) princípio da proporcionalidade em sentido restrito, que significa que os meios legais restritivos e os fins obtidos devem situar-se numa «justa medida», impedindo-se a adopção de medidas legais restritivas desproporcionadas, excessivas, em relação aos fins obtidos”.
2.2. A não retroactividade das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias, é um dos requisitos de legitimidade daquelas, estabelecido no art.º 18º, n.º 3, da mesma Constituição da República Portuguesa.
Tal proibição incidirá “sobre a chamada retroactividade autêntica, em que as leis restritivas de direitos afectam posições jusfundamentais já estabelecidas no passado ou mesmo esgotadas, e alguns casos de retrospectividade ou de retroactividade inautêntica (a lei proclama a vigência para o futuro mas afecta direitos ou posições radicadas na lei anterior) sempre que as medidas legislativas se revelarem arbitrárias, inesperadas, desproporcionadas ou afectarem direitos de forma excessivamente gravosa e impróprias as posições jusfundamentais dos particulares…A razão de ser deste requisito está intimamente ligada à ideia de protecção da confiança e da segurança aos cidadãos, defendendo-os contra o perigo de verem atribuir aos seus actos passados ou às situações transactas efeitos jurídicos com que razoavelmente não podiam contar”(6).
Como o Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado, o princípio da não retroactividade da lei encontra-se consagrado na Constituição, de modo expresso, unicamente para a matéria penal (desde que a lei nova não seja mais favorável ao arguido) – art.º 29º, n.os 1 e 4 – para as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias— art.º 18º, n.º 3 – e para o pagamento de imposto – artigo 103º, n.º 3 – podendo, consequentemente, dizer-se que a Constituição não consagra um princípio geral de proibição de emissão de leis retroactivas.
Aquele Tribunal tem, porém, igualmente considerado, na esteira do entendimento que vem já da comissão constitucional, que o princípio do Estado de direito democrático (consagrado no artigo 2º da C.R.P.) postula «uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas», razão pela qual «a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do Estado de direito democrático, terá de ser entendida como não consentida pela lei básica».(7)
Ressalvando sempre, no entanto, que tal não conduz a que seja absolutamente vedada ao legislador a emissão de normas com eficácia retroactiva, pois «entender o contrário representaria, ao fim e ao resto, coarctar a “liberdade constitutiva e a auto-revisibilidade” do legislador, características que são “típicas”, “ainda que limitadas”, da função legislativa».(8)
Havendo que «proceder a um justo balanceamento entre a protecção das expectativas dos cidadãos decorrentes do princípio do Estado de direito democrático e a liberdade constitutiva e conformadora do legislador, também ele democraticamente legitimado, legislador ao qual, inequivocamente, há que reconhecer a legitimidade (senão mesmo o dever) de tentar adequar as soluções jurídicas às realidades existentes, consagrando as soluções mais acertadas e razoáveis, ainda que elas impliquem que sejam “tocadas” relações ou situações que, até então, eram regidas de outra sorte. Um tal equilíbrio, como o Tribunal tem assinalado, será postergado nos casos em que, ocorrendo mudança de regulação pela lei nova, esta vai implicar, nas relações e situações jurídicas já antecedentemente constituídas, uma alteração inadmissível, intolerável, arbitrária, demasiado onerosa e inconsistente, alteração com a qual os cidadãos e a comunidade não poderiam contar, expectantes que estavam, razoável e fundadamente, na manutenção do ordenamento jurídico que regia a constituição daquelas relações e situações. Em tais casos, a lei viola aquele mínimo de certeza e segurança que as pessoas devem poder depositar na ordem jurídica de um Estado de direito, impondo-se, então, a intervenção do princípio da protecção da confiança e segurança jurídica que está implicado pelo princípio do Estado de direito democrático, por forma que a nova lei não vá, de forma acentuadamente arbitrária ou intolerável, desrespeitar os mínimos de certeza e segurança, que todos têm de respeitar». (9)

O que, no caso em apreço, não ocorre.

Com efeito:
2.3. Conforme se alcança do Plano de Descongestionamento dos Tribunais publicitado pelo Ministério da Justiça,(10) a proposta de Lei n.º 47/X subjacente à Lei n.º 14/2006 firmou-se na seguinte ordem de considerações:
- os grandes litigantes promovem frequentemente acções nos tribunais onde lhes é mais conveniente e barato litigar;
- a litigância de massa concentra-se sempre nos mesmos locais, congestionando os tribunais nesses locais;
- os consumidores são frequentemente obrigações a grandes deslocações para poder contestar essas acções;
- para o evitar, o autor passa a ter de propor a acção no tribunal do domicílio do réu, excepto quando amas as partes tenham/domicílio nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto;
- evita-se a concentração da litigância de massa e promove-se a proximidade entre o cidadão e a Justiça.

Sendo, nos dizeres da Exposição de Motivos da referida Proposta que: “A adopção desta medida assenta na constatação de que grande parte da litigância cível se concentra nos principais centros urbanos de Lisboa e do Porto, onde se situam as sedes dos litigantes de massa, isto é, das empresas que, com vista à recuperação dos seus créditos provenientes de situações de incumprimento contratual, recorrem aos tribunais de forma massiva e geograficamente concentrada.
Ao introduzir a regra da competência territorial do tribunal da comarca do demandado para este tipo de acções, reforça-se o valor constitucional da defesa do consumidor – porquanto se aproxima a justiça do cidadão, permitindo-lhe um pleno exercício dos seus direitos em juízo – e obtém-se um maior equilíbrio da distribuição territorial da litigância cível.”.

Tendo-se assim que a ratio da Lei n.º 14/2006 é, desde logo, a protecção do consumidor perante os grandes litigantes, designadamente bancos e sociedades financeiras, aproximando o centro da decisão do litígio da residência do consumidor.
Na verdade, a pendência do pleito em foro distante do da residência do consumidor importa despesas acrescidas, desde logo com mandatários.
E, por outro lado, o poder económico da contraparte e a sofisticação da sua estrutura operativa suportam melhor os incómodos e despesas de uma acção judicial proposta em foro distinto do foro do local da respectiva sede.
Depois, teve-se em vista mitigar os efeitos nefastos da litigância de massa.
Deste modo, e na perspectiva de alcançar uma conjugação entre a protecção dos direitos dos consumidores – art.º 60º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa – e o direito à iniciativa privada e de acesso ao direito – art.ºs 61°, n°1 e 20° da mesma C.R.P. – se justificando o regime da Lei n.º 14/2006.

O regime assim instituído revela-se apto a realizar os objectivos que presidiram à sua criação (princípio da adequação), constituindo o meio menos restritivo necessário para alcançar os fins em vista (princípio da exigibilidade) e não impõe uma restrição desproporcionada ao direito do credor à obtenção de tutela judicial para o seu crédito, e ao acesso aos tribunais (princípio da proporcionalidade), não afectando o direito a que uma causa seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.
Também não afectando expectativas do credor de tal modo consistentes que tenham de prevalecer sobre os interesses públicos que ditaram o regime em causa (princípios da segurança e confiança, decorrentes da consagração da República Portuguesa como um Estado de Direito Democrático).
Com efeito, a expectativa da Autora na continuidade do quadro legal em matéria de competência territorial, não implicou qualquer investimento baseado numa determinada previsão.
E não afecta de forma intolerável, inadmissível e arbitrária a expectativa da Autora na manutenção desse quadro legislativo.
Tenha-se presente que o regime ora em causa se inscreve na tendência evolutiva do sistema legislativo que, em particular a partir do Decreto-lei n.º 446/85, vem sucessivamente reforçando a protecção do consumidor.
E, como se considerou no recente Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 691/2006,(11) de 19 Dezembro de 2006, a cláusula de foro convencional «…sempre estará condicionada pela eventualidade de uma reorganização judiciária, a que o legislador decida proceder, e que, no limite, pode mesmo fazer desaparecer o tribunal que as partes convencionaram como territorialmente competente.
Por outro lado, há que ter em conta que a cláusula de convenção de foro é uma cláusula que não respeita ao sinalagma do contrato, tendo antes a ver com a patologia deste e com a fixação de um pressuposto processual da competência territorial dos tribunais. Competência esta que também possui normas que estão subtraídas, de todo, à possibilidade de convenção. Ora, o facto é que, sempre se entendeu que, em matéria processual, as expectativas das partes ou não merecem, de todo, a tutela da confiança ou só em termos mitigados dela podem beneficiar. Além disso, no caso concreto, a acção foi proposta já após a entrada em vigor da nova lei, sendo certo que a competência dos tribunais se fixa de acordo com a lei em vigor à data da respectiva propositura.».

Como se consignou no ponto 6.2.3, do mesmo Acórdão do Tribunal Constitucional – proferido em processo em que é Recorrente o mesmo Banco «Assim sendo, pode, então, concluir-se que a aplicação da alínea a) do n.º 1 do artigo 110.º do Código de Processo Civil, com a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, aos contratos celebrados antes da entrada em vigor desta última lei, ainda que se entenda que se trata de uma aplicação retroactiva da mesma, não consubstancia violação de forma inadmissível, intolerável ou arbitrária dos direitos ou expectativas fundadas do recorrente, não se verificando, por isso, o desrespeito dos mínimos de certeza e segurança salvaguardados pelo artigo 2.º da Constituição.».
*
Não ocorrendo pois as pretendidas inconstitucionalidades.

III- Nestes termos, acordam em negar provimento ao agravo, confirmando a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente.
Lisboa, 2007-02-15

(Ezagüy Martins)
(Maria José Mouro)
(Neto Neves)
___________________________________________

1 In “Manual de Processo Civil”, 2ª Ed., Coimbra Editora, 2004, pág. 47.
2 Idem, pág. 49.
3 Vd. autores e top. cit., págs. 50-51.
4 Neste sentido, veja-se o Acórdão desta Relação, de 2006-09-14, proc. 6952/2006-8, in www.dgsi.pt/jtrl.nsf.
5 In “Constituição da República Portuguesa, Anotada”, Vol. I, 4ª Ed. Revista, Coimbra Editora, 2007, págs. 392-393
6 Idem, pág. 394.
7 Cf., entre vários outros nesse sentido, o Acórdão n.º 303/90, in “Acórdãos do Tribunal Constitucional”, 17º Vol. pág. 65.
8 Cfr. Acórdão do tribunal Constitucional, n.º 304/2001, in www.tribunalconstitucional.pt, citando Vieira de Andrade “Os Direitos Fundamentais na Constituição da República Portuguesa”, pág. 309.
9 Ibidem.
10 In www.mj.gov.pt 5
11 Processo n.º 937/2006, in Diário da República, 2.ª série, n.º 22, de 31 de Janeiro de 2007.