Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | PAULA CARDOSO | ||
Descritores: | ESTADO DE EMERGÊNCIA PROCESSO URGENTE PLANO ESPECIAL PARA ACORDO DE PAGAMENTO HOMOLOGAÇÃO ABERTURA DE VOTOS AVISO ACORDO APROVADO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 12/03/2020 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | I - A redação do artigo 7º., dada pelo Lei n.º 1-A/2020, de 19/03, que veio introduzir na ordem jurídica portuguesa «Medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19», foi alterada pela Lei n.º 4-A/2020, de 06/04, dali resultando que os processos urgentes continuariam a ser tramitados, sem suspensão ou interrupção de prazos, actos ou diligências, apenas salvaguardando, nas suas três alíneas seguintes, condições respeitantes à realização de diligências presenciais. II – Em face do assim consagrado, no âmbito do presente processo de Plano Especial para Acordo de Pagamento (PEAP), pese embora tenha sido inicialmente anunciado, em 23/03/2020, que «o prazo de 10 dias para os credores votarem o acordo junto ao processo, solicitando a sua não homologação estava suspenso, face à situação de pandemia e conforme o disposto no art.º 7 da Lei 1-A de 19/3/2020», certo é que, com a alteração introduzida pela dita Lei n.º 4-A/2020, de 06/04, tal suspensão deixou de ter justificação legal e os autos retomaram o seu curso, nenhuma violação ocorrendo do assim consagrado na lei, quando em 05/05/2020, a administradora judicial provisória requereu a junção ao processo do auto de contagem dos votos, datado de 28/04/2020, ali dando conta que o Plano apresentado pela Devedora não fora aprovado. III - O direito de participação do devedor na abertura dos votos, consagrado no artigo 222º F nº. 4 do CIRE, implica que aquele seja avisado, pelo administrador provisório da hora e local para abertura. IV - Não obstante, a eventual falta desse aviso e notificação, ainda que importe num desvio da tramitação processual prevista, não acarreta consigo a nulidade da contagem, pois que a lei assim o não determina, nem o vício ocorrido é susceptível de influir na decisão da causa, não implicando a inutilização do acto, nem a invalidade dos votos. V - A aprovação do acordo de pagamento deve ser sujeita a votação até ao fim do prazo das negociações, e apenas o acordo aprovado, por unanimidade ou maioria, deve ser remetido ao tribunal, sendo que apenas o segundo deve ser publicitado por força do nº 2 do citado artigo 222º F do CIRE, não fazendo assim qualquer sentido que o seja, como o foi nos autos, um designado “Plano de Recuperação” que a devedora apresentou sem que o mesmo tivesse sido alvo de qualquer prévia aprovação por parte dos seus credores. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA I – Relatório: (…) veio, ao abrigo do disposto no art.º 222ºA do CIRE, intentar o presente processo especial para acordo de pagamento, visando estabelecer negociações com os respectivos credores com vista à obtenção de tal acordo. Foi nomeada administradora judicial provisória, nos termos do disposto no artigo 222º C, n.º 4, do CIRE. Terminado o período de negociações, a devedora apresentou nos autos um “Plano de Recuperação”. Foi feita publicação do «Acordo de Pagamento», ali se dizendo que «foram concluídas as negociações, sem observância do disposto no nº 1 do artigo 222º-F do CIRE, ficando todos os interessados advertidos que tal acordo fora junto ao processo, correndo desde a publicação do aludido anúncio o prazo de votação de 10 (dez) dias, no decurso do qual poderia ser solicitada a não homologação do plano (nº 2 do artigo 222º-F do CIRE), mais ali se consignando que o prazo acima mencionado ficaria suspenso, face à situação de pandemia e conforme o disposto no art.º 7 da Lei 1-A de 19/3/2020». A Sr.ª Administradora Judicial Provisória veio posteriormente dar conta nos autos que, por força do mapa de contagem que apresentou, não foi aquele “Plano” aprovado, dado ter sido alcançada uma percentagem de votação de 55,29% da totalidade dos créditos reconhecidos, sendo de 100,00% a percentagem dos votos emitidos contra o Plano apresentado pela Devedora. Após, foi proferida a seguinte decisão: «Não tendo sido possível obter aprovação do acordo, sendo 100,00% dos votos emitidos contra o Plano apresentado pela Devedora, conclui-se que o mesmo não foi aprovado nos termos do artigo 222.º-F, n.º 5 a contrário do CIRE. Assim, declara-se encerrado o processo, nos termos do artigo 222ºG, n.º 1. Publique-se no Citius o encerramento do processo negocial e a falta de acordo. Custas pelos requerentes. Notifique.». Não se conformando com o teor de tal decisão, apelou a devedora formulando, a final, as seguintes conclusões, que se reproduzem: «1. O presente recurso vem interposto do douto despacho proferido pelo Tribunal recorrido que declarou encerrado o processo especial de Acordo de pagamento. 2. A Recorrente não se conforma com tal decisão por considerar que a mesma viola o disposto no artigo 7º da Lei n.º 1-A/2020 de 19 de Março. 3. O preceito legal supra mencionado prevê a suspensão dos prazos judiciais. 4. No caso dos autos, a Recorrente remeteu o Acordo de Pagamento ao Processo no dia 20 de Março de 2020, embora o prazo judicial para a sua apresentação se encontrasse suspenso, de acordo com o disposto no artigo 7º da Lei n.º 1-A/2020 de 19 de Março. 5. Não obstante a suspensão dos prazos judiciais, no dia 23 de Março foi publicado o anúncio da Publicidade do Plano com a menção expressa de que o prazo de 10 dias para a votação do plano ficava suspenso face à atual situação de pandemia e conforme o disposto no artigo 7º da Lei 1-A/2020 de 19 de Março. 6. Salvo o devido respeito por opinião diversa, a Recorrente entende que até à presente data continua em vigor o artigo 7º da Lei 1-A/2020 de 19 de Março, continuando, por conseguinte, suspensos os prazos judiciais suspensos e, como tal o para os credores votarem o Acordo. 7. O douto despacho recorrido ao considerar que o Acordo de Pagamento não foi aprovado antes de decorrido o prazo legal para os credores procederem à votação do mesmo viola o disposto no artigo 7º da Lei 1-A/2020 de 19 de Março, bem como, o disposto no artigo 222ºF, n.º 2 do CIRE. 8. Pelo exposto deverá o douto despacho ser revogado e substituído por outro que a repetição de todos os atos praticados após a apresentação do Acordo de Pagamento. Caso assim se não entenda, o que apenas se aceita por mera hipótese de raciocínio, também de dirá que, 9. A Recorrente não teve conhecimento que no dia 28 de Abril de 2020 a Senhora Administradora Judicial Provisória procedeu à abertura e contagem dos votos dos credores, 10. Motivo pelo qual, não esteve presente nem participou em tal diligência, ficando, assim, impedida de se pronunciar e/ou impugnar a contagem de votos ou da atribuição do direito de voto. 11. Ora, estabelece o n.º 4 do artigo 222º-F do CIR que “A votação efectua-se por escrito, aplicando-se-lhe o disposto no artigo 211º com as necessárias adaptações e sendo os votos remetidos ao administrador judicial provisório, que os abre em conjunto com o devedor e elabora documento com o resultado da votação, que remete de imediato” 12. A Recorrente foi confrontada com a não aprovação do Acordo de Pagamento e com a decisão de encerramento do Processo sem que lhe tivesse sido permitido exercer o seu direito de participar e/ou impugnar a abertura e contagem dos votos. 13. A Recorrente não se conforma com a decisão de encerramento do processo por entender que a mesma viola o disposto no número 4 do artigo 222º-F do CIRE. 14. Nesse sentido, deverá a douta sentença ser revogada e substituída por outra e ordene a repetição da votação. Nestes termos e nos melhores de direito que V. Ex.as doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser julgado procedente, por provado e, em consequência: a) Ser revogado o douto despacho que determinou o encerramento do processo e substituído por outro que ordene a repetição de todos os atos praticados após a apresentação do Acordo de Pagamento; b) Ou caso assim se não entenda, ser o douto despacho revogado e ordenado a repetição da votação do Acordo de Pagamento. Sendo certo que V. Exa. com douto critério, decidirão com a tão desejada e acostumada JUSTIÇA». Não foram apresentadas contra-alegações nos autos. Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, e colhidos que foram os vistos legais, cumpre, pois, apreciar e decidir. * II. Questões a decidir: Estando o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, a questão que se coloca à apreciação deste Tribunal consiste em: (i) apurar se, como afirma a recorrente, continua em vigor o artigo 7º da Lei 1-A/2020 de 19/03, continuando suspensos os prazos judiciais, não tendo assim decorrido o prazo legal para os credores procederem à votação do acordo de pagamento em causa nestes autos, aferindo se a decisão recorrida violou desta forma o aludido preceito legal; (ii) apurar se a devedora não foi avisada da abertura e contagem dos votos dos credores, como impunha o n.º 4 do artigo 222º-F do CIRE, que foi violado com a decisão recorrida, apreciando as consequências legais daí advindas. * III. Fundamentação de facto: Dos autos, e com interesse para a decisão do presente recurso, resulta que: 1 - Apresentada pela Senhora Administradora Judicial Provisória a lista provisória de créditos, prevista no artigo 222º D n.º 3 do CIRE, a mesma foi impugnada pela Devedora, relativamente aos créditos reconhecidos aos credores Montepio Crédito - Instituição Financeira de Crédito, S.A., NOS Comunicações, S.A. e Novo Banco, S.A., e pelo credor Banco Comercial Português, S.A.. 2 - Notificados os credores, cujos créditos foram impugnados, bem como a Senhora Administradora Judicial Provisória, pronunciou-se esta última, mantendo os créditos nos termos reconhecidos, bem como o credor Montepio Crédito – Instituição Financeira de Crédito, S.A., pugnando pela manutenção do seu crédito, nos termos reconhecidos pela Senhora Administradora Judicial Provisória. 3 - Foi proferida decisão sobre a matéria da impugnação em 31/01/2020, tendo-se, no final dessa decisão, determinado que os autos aguardassem pelo prazo de dois meses pela conclusão das negociações. 4 – Em 21/02/2020 foi requerida a prorrogação do prazo das negociações e em 20/03/2020 a recorrente requereu a junção aos autos de um “Plano de Recuperação”, alegando que o fazia «nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 222º F do CIRE». 5 – Foi emitido anúncio, em 23/03/2020, com «Publicidade do Acordo de Pagamento», ali se dizendo que «foram concluídas as negociações, sem observância do disposto no nº 1 do artigo 222º-F do CIRE, ficando todos os interessados advertidos que tal acordo fora junto ao processo, correndo desde a publicação do aludido anúncio o prazo de votação de 10 (dez) dias, no decurso do qual poderia ser solicitada a não homologação do plano (nº 2 do artigo 222º-F do CIRE), mais ali se consignando que o prazo acima mencionado ficaria suspenso, face à situação de pandemia e conforme o disposto no art.º 7 da Lei 1-A de 19/3/2020». 6 – Em 22/04/2020 a Senhora Administradora Judicial Provisória foi notificada pelo tribunal de que «tendo já terminado o prazo das votações, deverá juntar aos autos o resultado da mesma. Prazo 10 dias.». 7 - Em 05/05/2020, a administradora judicial provisória requereu a junção ao processo do Auto de contagem dos votos, datado de 28/04/2020, do Mapa de votação do Plano, e da Cópia dos votos dos credores, ali dando conta que a percentagem de votação foi de 55,29% da totalidade dos créditos reconhecidos, sendo 100,00% dos votos emitidos contra o Plano apresentado pela Devedora, pelo que o mesmo não foi aprovado. 8 - Por decisão proferida em 06/05/2020, foi então consignado que o plano não foi aprovado nos termos do artigo 222.º-F, n.º 5 a contrário do CIRE, assim se declarando encerrado o processo, nos termos do artigo 222ºG, n.º 1. * IV — Do mérito do recurso: Com a necessidade de restringir o PER a empresários, o Decreto-Lei n.º 79/2017 de 30/06 veio introduzir no CIRE, mediante o aditamento dos artigos 222.º-A e ss., um novo instrumento de negociação no âmbito da insolvência das pessoas singulares, designado como Plano Especial para Acordo de Pagamento (PEAP). De acordo com as normas que regulam esse instituto, apresentado um acordo de pagamento e verificando-se a sua aprovação unânime com intervenção e assinatura de todos os credores, o mesmo é de imediato remetido ao juiz, para homologação ou recusa da mesma, acompanhado da documentação que comprova a sua aprovação, atestada pelo administrador judicial provisório nomeado (artigo 222º-F, nº 1 do CIRE). Não havendo concordância de todos os credores, mas o acordo tiver sido aprovado, o administrador judicial provisório deve remeter o plano aprovado para o tribunal, sendo publicado anúncio no Citius, advertindo dessa junção, correndo desde essa data o prazo de votação de 10 dias no decurso do qual qualquer interessado pode solicitar a não homologação, nos termos e para os efeitos dos artigos 215º e 216º, aplicáveis com as necessárias adaptações (artigo 222º-F, nº 2 do CIRE). Caso o devedor ou a maioria dos credores concluam antecipadamente não ser possível alcançar acordo, ou caso seja ultrapassado o prazo de negociações, o processo negocial é encerrado, devendo o administrador judicial provisório comunicar tal facto ao processo, se possível, por meios eletrónicos e publicá-lo no portal Citius (artigo 222.º-G do CIRE). Revertendo ao caso em análise, cumpre apreciar agora a bondade das alegações da recorrente, sabendo nós que o tribunal recorrido declarou encerrado o processo por ter concluído que o Plano apresentado pela devedora não foi aprovado pelos credores. Vejamos pois. I/ - Da alegada violação do artigo 7º da Lei 1-A/2020 de 19/03 e da suspensão do prazo legal para os credores procederem à votação do acordo de pagamento em causa nestes autos: Numa primeira argumentação, defende a recorrente que a contagem dos votos do Acordo de Pagamento não foi realizada com as formalidades legalmente exigidas, não sendo por isso válida e eficaz, violando tal despacho o disposto no artigo 7º da Lei n.º 1-A/2020 de 19/03. Com efeito, alega, após a publicação do anúncio da Publicidade de Acordo de Pagamento, nenhuma notificação foi realizada nos autos, nomeadamente, no que concerne ao prazo de 10 (dez) dias para os credores procederem à votação do Plano, o que viola o disposto no citado artigo 7º, bem como o n.º 2 do artigo 222º-F do CIRE, dado que continua em vigor a Lei que aprovou a suspensão dos prazos judiciais e, como tal, o prazo para os credores procederem à votação do Acordo ainda não teve o seu inicio. Assim, termina pedindo que seja revogado o despacho recorrido e substituído por outro que ordene a repetição de todos os actos praticados após a apresentação do Acordo de Pagamento. Apreciando. Com a Lei n.º 1-A/2020, de 19/03, que veio introduzir na ordem jurídica «Medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19», e que entrou em vigor no dia 20/03/2020, por força do preceituado nos artigos 7º e 10º daquela Lei, e artigo 37º do Decreto Lei nº. 10-A/2020, foram suspensos actos processuais e procedimentos a partir de 09/03/2020 (ainda que com nuances que ao caso agora não importam), o que se manteve até ao dia 07/04/2020, data da entrada em vigor da Lei n.º 4-A/2020, de 06/04. Com efeito, pese embora o artigo 7º da Lei nº 1-A/2020, de 19/03, só tenha sido revogado com o artigo 8º da Lei nº 16/2020, de 29/05, entrada em vigor no dia 03/06, certo é que a redacção de tal norma, a considerar nestes autos, não é a original, como pretende a recorrente, mas sim a introduzida no referido artigo pela Lei nº 4-A/2020, de 06/04, que se manteve em vigor até ele ser revogado. E assim sendo, de acordo com a aquela redacção, o nº 7 do preceito estabelecia que «os processos urgentes continuam a ser tramitados, sem suspensão ou interrupção de prazos, actos ou diligências”, apenas salvaguardando, nas suas três alíneas seguintes, condições respeitantes à realização de diligências presenciais. A ser assim, sendo pacífico nos autos que a presente acção tem carácter urgente, nos termos do artigo 222º A nº. 3 do CIRE, o prazo em causa, a que alude o anúncio de 23/03/2020 - de 10 dias a contar desde a publicação do aludido anúncio - ainda que se possa ter suspendido (o que ficou salvaguardado naquele mesmo anúncio), retomou depois o seu curso, com a nova redação do artigo 7º dada pela Lei nº 4-A/2020, de 06/04, pois que nenhum impedimento existia então que tal pudesse correr, não se tratando de qualquer situação que tivesse sido excepcionada pela nova lei. Pelo que, à data da contagem dos votos, em 28/04/2020, terminara já o aludido prazo de 10 dias, que, contrariamente ao pretendido pela recorrente, não estava já suspenso, tanto mais que nada obstava a que o acto em causa fosse praticado por transmissão electrónica de dados, mediante comunicação do sentido de voto à administradora judicial provisória. Improcede, pois, por esta via, a argumentação aduzida no recurso interposto, que, fosse como fosse, sempre estaria destinado a fracassar dado que a pretensão da recorrente não tem sustentabilidade legal, como veremos de seguida. II-/ Da alegada violação do disposto no n.º 4 do artigo 222º-F do CIRE e consequências legais daí advindas: Como segunda linha de argumentação, alega ainda a recorrente, que, caso assim se não entenda, não pode também conformar-se com a decisão de encerramento do processo, por entender que a mesma viola o disposto no número 4 do artigo 222º-F do CIRE, dado que desconhecia, até à data da notificação do encerramento do processo, que no dia 28/04/2020 a Senhora Administradora Judicial Provisória tinha procedido à abertura e contagem dos votos, não podendo dessa forma exercer o direito de discordar e/ou impugnar a contagem de votos e/ou da atribuição do direito de voto. Por todo o exposto, alega, deverá o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que ordene a repetição de todos os actos praticados após a publicação do anúncio da Publicidade do Acordo de Pagamento. Apreciando. Estabelece o n.º 4 do artigo 222º-F do CIR que “A votação efectua-se por escrito, aplicando-se-lhe o disposto no artigo 211º com as necessárias adaptações e sendo os votos remetidos ao administrador judicial provisório, que os abre em conjunto com o devedor e elabora documento com o resultado da votação, que remete de imediato”. O não cumprimento do consagrado no preceito de que aqui cuidamos – que determina que os votos remetidos ao administrador sejam abertos em conjunto com o devedor - importa um desvio na regulada tramitação processual. Acontece, porém, que fora dos casos regulados na lei, resulta da leitura do artigo 195º nº 1 do CPC, que quaisquer irregularidades detectadas na tramitação processual só constituirão nulidade se a lei assim o determinar ou quando o vício possa influir no exame ou decisão da causa, altura em que estaremos perante as chamadas nulidades secundárias ou inominadas, que poderão ter por base a omissão de um acto que a lei prescreve, e que poderão conduzir à invalidação dos actos que dele dependam absolutamente. De tais nulidades, contudo, em face da conjugação dos artigos 195º a 197º, 199º e 200º do CPC, não se tratando de nulidades de que a lei permita o conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer em caso de reclamação dos interessados. Ora, considerando a velha máxima de que “dos despachos recorre-se e das nulidades reclama-se”, deveria a aqui recorrente, ao tomar conhecimento da decisão objecto do presente recurso, reclamar perante o tribunal a quo, suscitando então a prolação de despacho sobre tal nulidade, podendo posteriormente, e então aí, dependendo da decisão proferida, a mesma ser eventualmente impugnada por via de recurso, ainda que com a limitação constante do nº 2 do artigo 630º do CPC. Veja-se que, em bom rigor, pese embora a recorrente reaja contra a decisão de encerramento proferida, certo é que não ataca directamente o seu conteúdo, mas sim a prévia omissão de um acto que entende deveria ter sido praticado pela Sra. Administradora e não foi, dado que a mesma não cuidou de a avisar da data da abertura dos votos. Tal irregularidade estaria assim sanada em face da não arguição em tempo útil, sendo certo que, mesmo que assim se não entendesse, sempre diremos, também a mesma não teria qualquer relevância processual, não acarretando consigo a consequência defendida pela recorrente. Senão vejamos. Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição Quid Juris, Lisboa 2015, pág. 236, em anotação ao artigo 17º Fº, que na sua anterior redação, no seu nº 4 (hoje nº. 6) referia igualmente ao direito de participação do devedor na abertura dos votos, dizem que o mesmo deve ser avisado, pelo administrador provisório da hora e local para abertura. Todavia, dizem, a eventual falta desse aviso e notificação, «… em nada pode prejudicar ou retardar o processo, não constituindo qualquer irregularidade relevante», e adiante «… a falta de informação ao devedor sobre as circunstâncias da abertura será causa de responsabilidade, mas não inutiliza o ato, nem por maioria de razão atinge a validade dos votos. Com efeito, não se pode dizer que a situação emergente para o devedor da omissão é de molde a afetar a sua posição no processo, pelo que não se vê como conferir outra relevância à falta». As razões ali expostas igualmente fazem sentido no que concerne ao preceito agora em causa – 222º F nº. 4 do CIRE - em tudo similar, pelo que a irregularidade ocorrida nenhum reflexo tem nos autos – não é nula pois que a lei assim o não determina e não é nula uma vez que o vício ocorrido não é susceptível de influir na decisão da causa. Improcede, pois, também por esta via, a argumentação aduzida no recurso interposto, sendo que, como dissemos acima, a pretensão da recorrente sempre teria de fracassar por lhe faltar sustentabilidade jurídica. Vejamos agora porquê. Da prévia necessidade de aprovação antes da sua remessa ao tribunal: Diz o artigo 222.º-F nºs 1 e 2 do CIRE que «1 - Concluindo-se as negociações com a aprovação unânime de acordo de pagamento, em que intervenham todos os seus credores, este deve ser assinado por todos, sendo de imediato remetido ao processo, para homologação ou recusa do mesmo pelo juiz, acompanhado da documentação que comprova a sua aprovação, atestada pelo administrador judicial provisório nomeado, produzindo tal acordo de pagamento, em caso de homologação, de imediato, os seus efeitos. 2 - Concluindo-se as negociações com a aprovação de acordo de pagamento, sem observância do disposto no número anterior, o devedor remete-o ao tribunal, sendo de imediato publicado anúncio no portal Citius advertindo da junção do plano e correndo desde a publicação o prazo de votação de 10 dias, no decurso do qual qualquer interessado pode solicitar a não homologação do plano, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 215.º e 216.º, com as devidas adaptações» (sublinhado nosso). Ou seja, da conjugação dos nºs 1 e 2 do aludido preceito (com a epigrafe de «Conclusão das negociações com a aprovação de acordo de pagamento») resulta que o acordo é remetido ao Tribunal após estarem concluídas as negociações e após a aprovação desse acordo pelos credores – ou por unanimidade (nº 1) ou por maioria (nºs 2 e 3). No que concerne às negociações e aprovação do acordo de pagamento, este artigo 222º-F seguiu o regime inicial do anterior PER, de apresentação e aprovação do “acordo de pagamento” dentro do prazo das negociações. Donde, e em resumo, temos como certo que a aprovação do acordo de pagamento há de ser sujeita a votação até ao fim do prazo das negociações, pelo que apenas o acordo aprovado é remetido ao tribunal e publicitado por força do nº 2 do citado artigo 222º F nº 2 do CIRE, não fazendo assim qualquer sentido que seja publicitado, como o foi nos autos, o “Plano de Recuperação” que a devedora apresentou sem que o mesmo tivesse sido alvo de qualquer prévia aprovação por parte dos seus credores. Catarina Serra, em “Lições de Direito da Insolvência”, edição 2019 Almedina, p. 588, nota 906, afirma que «Esta norma é um dos exemplos mais flagrantes dos resultados/acidentes decorrentes da “costura” legislativa (…). Transpondo-se sem grande atenção parte da norma do art. 17º F nº 3 para a norma do art. 222º F nº 2, esta além de se referir indevidamente a “plano”, refere-se ao início do prazo de votação quando o pressuposto desta norma é que o acordo de pagamento já tenha sido aprovado. A única possibilidade de atribuir sentido ao preceito é interpretá-lo à luz do regime anterior do PER em que, pura e simplesmente, não se definia prazo para a votação (não havia possibilidade de junção de nova versão de plano nem havia por isso prazo que corresse desde a publicação do anúncio da junção ou não junção) e se entendia que ela tinha lugar no decurso (e até ao final) do prazo previsto para as negociações. A única parte realmente proveitosa do art. 222º F nº 2 é a determinação de que, concluindo-se as negociações com aprovação de acordo de pagamento sem unanimidade, o devedor remete o acordo ao tribunal para homologação ou recusa dela, sendo, pois, a única que deve e pode ser aproveitada. Tal como antes, mesmo que a lei o não diga expressamente, deve continuar a admitir-se que, no decurso da votação e até ao final do prazo das negociações, os credores solicitem a não homologação do acordo nos termos e para os efeitos dos arts. 215º e 216º.» (sublinhado nosso). Por ser assim, no Acórdão da Relação do Porto de 11/07/2018, disponível na dgsi, relatado pela Exma. Desembargadora Fátima Andrade, cujos argumentos subscrevemos, diz-se que «Ora, sendo pressuposto da remessa a tribunal do acordo de pagamento (e não plano, conforme consta na letra da lei deste segundo segmento em análise) a prévia sujeição do mesmo a votação, resulta a nosso ver incompreensível e contrário à lógica do regime definido, a menção (no caso de votação sem unanimidade) à publicação do acordo de pagamento (e não plano) para votação no prazo de 10 dias a contar de tal publicação, bem como a possibilidade de em tal prazo poder qualquer interessado solicitar a não homologação desse mesmo acordo de pagamento nos termos e para efeitos do artigo 215º e 216º. Pois que o acordo de pagamento já foi votado. Havendo apenas, após observância do nº 3 do artigo 222º-F que proceder à sua homologação ou recusar a mesma, nos termos previstos no nº 5 deste mesmo artigo. Assim entende-se necessária uma interpretação ab-rogante [3] deste artigo 222º-F nº 2 ao abrigo do artigo 9º do CC, por forma a conferir coerência ao regime instituído no PEAP, nomeadamente no que respeita à votação do acordo do pagamento que sempre ocorrerá em momento prévio à sua remessa a tribunal. Implicando que após a remessa cabe apenas ao tribunal verificar os pressupostos de que depende a sua homologação ou recusar a mesma». (sublinhado nosso). Ou seja, e em conclusão, no PEAP existem duas formas alternativas de aprovação – unanimidade ou maioria - sendo que, em qualquer dos casos, o juiz decide se deve homologar ou recusar a homologação do acordo de pagamento; não existindo esse acordo de aprovação, em qualquer uma das duas modalidades, por assim o entenderem os credores ou por ser ultrapassado o prazo de negociações sem tal acordo, o processo negocial é encerrado e o processo também. Apresentado nos autos um acordo de pagamento, que pressupõe, já, a sua prévia votação pelos credores, compete ao juiz decidir se o homologa, ou não, sendo aplicáveis as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência previstas no título IX, em especial o disposto nos artigos 215.º e 216.º, do CIRE, com as necessárias adaptações. Não se olvide, contudo, que o PEAP visa essencialmente que o devedor estabeleça negociações com os respectivos credores de modo a concluir com estes um acordo de pagamento (art. 222º-A, n.º 1, do CIRE), dúvidas não havendo que, à semelhança do PER, o PEAP assume um procedimento de cariz marcadamente extrajudicial, pretendendo o legislador deixar na disponibilidade dos credores a escolha entre a aprovação de um acordo de pagamento que possibilite a satisfação, ainda que parcial, dos seus créditos ou a não aprovação de acordo algum. Aqui chegados, e revertendo aos autos, verifica-se que o “Plano de Recuperação”, tal como qualificado pela devedora, que a mesma fez juntar aos autos em 20/03/2020, e que foi objecto de publicação nos termos do artigo 222º-F nº 2 do CIRE, não tem justificação legal, pois, como dissemos, a mesma deveria ter junto, não o aludido Plano de Recuperação, mas sim um acordo de pagamento aprovado pelos credores, ainda que sem unanimidade dos mesmos, após conclusão das negociações, e esse sim seria publicitado, podendo depois os credores requerer - ou não - a sua homologação. Ora, dos autos resulta, pelo contrário, que a mesma juntou um Plano, por si elaborado, para que o mesmo fosse submetido à votação dos credores. Aliás, da sua leitura consta mesmo que «Não tendo sido possível no prazo das negociações obter uma sentença relativamente à anulação da venda do imóvel que servia de garantia ao crédito hipotecário, a Devedora, ainda assim, não poderá deixar de considerar a satisfação da necessidade básica e essencial de habitação para si e para a sua filha. (…) O presente plano foi elaborado de forma realista e de modo a obter resultados realistas que permitam, por um lado, a satisfação dos credores e, por outro, assegurar a satisfação das necessidades básicas e essenciais da Devedora e da sua filha, estando assim, a Devedora convicta que o mesmo irá merecer o apoio e a confiança dos seus credores». Tal plano foi depois remetido pela AJP para os credores, que por email notificou os mesmos de que fora junto aos autos pela devedora, em 20/03/2020, um plano de recuperação, e sujeitou então tal plano a votação. No anúncio feito do acordo que a devedora fez juntar aos autos, é publicitado que estavam já findas as negociações, ao que a recorrente nada objectou, sendo certo que, em bom rigor, não logrou a mesma, findo o processo negocial, alcançar o aludido acordo, ainda que com a maioria dos credores, para que este fosse publicitado. Ou seja, decorrido o período de negociações, o plano que a devedora juntou aos autos não consubstancia um verdadeiro acordo de pagamento, acordo esse que nunca foi alcançado nas duas modalidades prevista na lei. Ainda que em 20/03/2020, mediante requerimento que juntou aos autos, a devedora venha requer a junção aos autos de um “Plano de Recuperação”, alegando que o fazia «nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 222º F do CIRE». Certo é que tal preceito implica, como vimos, um prévio acordo dos credores que, de todo, nos autos não ocorreu. Consequentemente a pretensão da recorrente, que não demonstrou que até ao final das negociações tivesse alcançado um acordo com os seus credores, estaria sempre destinada a fracassar ainda que com diferente sustentação legal. Em conclusão, e sem mais, as considerações tecidas levam-nos a rejeitar a argumentação apresentada pela apelante, e improcedendo as alegações recursivas da mesma, impõe-se a manutenção e confirmação da decisão recorrida. * V. Decisão: Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar totalmente improcedente a presente apelação, assim se mantendo a decisão recorrida. Custas pela recorrente sem prejuízo de decidido quanto ao apoio judiciário. Lisboa, 03/12/2020 Paula Cardoso Eurico José Marques dos Reis Ana Grácio |