Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
11813/20.7T8LSB.L1-7
Relator: ANA RODRIGUES DA SILVA
Descritores: ATRIBUIÇÃO DE NACIONALIDADE PORTUGUESA
DECISÃO DA CONSERVATÓRIA DOS REGISTOS CENTRAIS
RECURSO
TRIBUNAL COMPETENTE
MOMENTO DO CONHECIMENTO DA INCOMPETÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/26/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1.–No âmbito da Lei da Nacionalidade, o legislador optou por concentrar o contencioso da nacionalidade na esfera dos tribunais administrativos e fiscais, afastando-se do que se prescreve quanto aos demais procedimentos constantes do Cód. do Registo Civil;

2.–Assim, todas as questões relacionadas com as decisões e procedimentos para a atribuição, aquisição ou perda de nacionalidade portuguesa no âmbito da Lei da Nacionalidade são decididas, em sede de recurso, pelos tribunais administrativos e fiscais;

3.Estando em causa a opção entre um tribunal judicial e um tribunal administrativo, a questão da competência pode ser analisada em momento posterior ao início da audiência final, excepto se verificadas as excepções previstas no art. 97º, nº 1 do CPC;

4.–Face ao disposto no art. 97º, nº 1 do CPC, pode a excepção de incompetência material ser oficiosamente suscitada e conhecida até ao trânsito da sentença proferida sobre o fundo da causa, desde que exercido o contraditório.


Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


I.–RELATÓRIO


1.–A [ Marianne ...... ]  intentou junto da Conservatória dos Registos Centrais pedido de atribuição de nacionalidade portuguesa, enviando, para o efeito, documentos assinados digitalmente com assinatura digital certificada, tendo a entrega sido confirmada por MDDE.

2.–Tal pedido foi recusado, por ter sido entendido não ser possível a tramitação do processo de atribuição de nacionalidade portuguesa sem a apresentação dos documentos originais ou de cópias autenticadas dos mesmos a remeter por correio registado ou a apresentar presencialmente.

3.–A requerente recorreu desta decisão, referindo que “deve o recurso ser admitido e remetido ao Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa” e ainda que “cumprido o disposto no artº 288º, 2 do Código do Registo Civil, seja o processo enviado ao Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa”.

4.–No requerimento de remessa dos autos ao Tribunal Judicial de Lisboa, a Srª Conservadora dos Registos Centrais, refere que “Estando em causa um pedido de nacionalidade, entendemos que a competência para quaisquer questões de nacionalidade pertence aos tribunais administrativos [cfr. art.ºs 61.º e segs do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa (DL 237-A/2006, de 14.12)], mas questionado a Sra. Advogada sobre o tribunal para onde pretendia o reencaminhamento do seu recurso a mesma esclareceu o que consta infra. Comunico que o recurso judicial da Sra. Advogada tem por base a informação prestada, via e-mail, por esta Conservatória dos Registos Centrais”.

5.–Distribuídos os autos, foi emitido parecer pelo Ministério Público, após o que foi proferida sentença confirmando a decisão da Srª Conservadora dos Registos Centrais.

6.–É desta decisão que a apelante recorre, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:
I.-A douta sentença recorrida omitiu pronúncia sobre a questão essencial do recurso que é a de saber se em 2020 é ou não amissível decidiu a apresentação do requerimento de inscrição de nascimento para efeitos de atribuição de nacionalidade originária é ou não admissível.
II.-Deveria ter-se pronunciado em sentido afirmativo, atento o disposto no artº 104º do CPA, que derrogou todas as normas do procedimento administrativo precedentes.
III.-Deve, em sede de recurso, corrigir-se o erro que consiste em concluir que o recorrente podia apresentar o requerimento por correio eletrónico, com a consequente condenação da recorrida a abrir o procedimento, em conformidade com o disposto no artº 105º do CPA.
IV.-Nos termos do disposto no artº 1º do Decreto-Lei nº DL n.º 30/2000, de 13 de março, tem o recorrente o direito de instruir processos de registo civil com fotocópias dos documentos originais, pelo que o processo deveria ter sido autuado, notificando-se os mandatários, para apresentarem os originais em data e hora certa, para os termos do disposto naquele diploma.
V.-Os documentos em causa são digitalizações de documentos originais, processadas por advogados, com competência para fazer certificações de fotocópias, pelo que devem ser aceites como se fossem originais, nos termos do disposto no artº 4º,9 do Decreto-Lei nº 16/2020, de 16 de março.
VI.-Se se entender, como se entendeu, que os originais documentos cujas cópias digitais foram enviadas com o requerimento inicial, não têm força probatória, deverão as mesmas ser tratadas como fotocópias, para os efeitos do artº 1º do Decreto-Lei nº DL n.º 30/2000, de 13 de março, notificando-se o recorrente para exibir os originais.
VII.-Salvo melhor opinião, tendo em consideração o disposto no artº 12º do Código Civil, deve aplicar-se ao pedido de registo a que se refere o presente recurso, o disposto no artº 4º do Decreto-Lei nº 16/2020, de 15 792 de agosto, condenando-se a recorrida autuar o processo com a data do requerimento eletrónico, (artº 105º do CPC) a processar o que foi requerido, nos seus precisos termos”.

4.–Em contra-alegações, o Ministério Público defendeu a improcedência do recurso.

5.–Suscitada pela relatora a questão da competência material dos tribunais judiciais, a apelante nada disse, tendo o Ministério Público defendido a incompetência material dos tribunais judiciais.

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II.–QUESTÕES A DECIDIR

Considerando o disposto nos arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do CPC, nos termos dos quais as questões submetidas a recurso são delimitadas pelas conclusões de recurso, impõe-se concluir que a questão sob recurso é averiguar a possibilidade de apresentação de documentos electrónicos no processo de atribuição de nacionalidade, sendo necessário ainda, como questão prévia, apurar qual o tribunal competente para apreciar a justeza da decisão da Conservatória dos Registos Centrais nessa matéria.

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III.–APRECIAÇÃO DO RECURSO

Vem o presente recurso interposto da decisão que não aceitou a tramitação do pedido de atribuição de nacionalidade portuguesa mediante a junção de documentos assinados digitalmente com assinatura digital certificada, mais exigindo os respectivos originais.

Insere-se, pois, a questão em apreço na matéria relacionada com a atribuição da nacionalidade portuguesa, a qual tem especificidades próprias.

Com efeito, o pedido de atribuição da nacionalidade portuguesa depende de um acto de declaração da vontade de se ser cidadão português, estando previstas as formas de atribuição, aquisição e perda da nacionalidade portuguesa na Lei 37/81, de 3 de Outubro (Lei da Nacionalidade).

Por outro lado, o DL 237-A/2006, de 14 de Dezembro (Regulamento da Nacionalidade Portuguesa) estabelece a forma como essa atribuição, aquisição e perda se processam.

No caso dos autos, não está em causa qualquer decisão referente à atribuição, aquisição e perda da nacionalidade portuguesa, mas sim um indeferimento liminar relativo à pretensão da apelante em que lhe seja atribuída essa nacionalidade, consubstanciado na recusa de apreciação da documentação junta.

Por esse motivo, a questão em apreço assume-se como parte integrante do processo de atribuição de nacionalidade, devendo ser apreciada sob esse prisma. Ou seja, as normas a apreciar para a solução a dar ao caso dos autos decorrem daquele conjunto de diplomas e não directamente do Cód. de Registo Civil, como parece pugnar a apelante, nomeadamente no requerimento de interposição de recurso para o tribunal.

Nessa medida, importa recordar que o CAPÍTULO III da Lei da Nacionalidade se refere ao “Contencioso da nacionalidade” e é composto pelos arts. 25º e 26º.

Assim, “Têm legitimidade para interpor recurso de quaisquer atos relativos à atribuição, aquisição ou perda de nacionalidade portuguesa os interessados diretos e o Ministério Público” (art. 25º), mais estatuindo o art. 26º que “Ao contencioso da nacionalidade são aplicáveis, nos termos gerais, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, o Código de Processo nos Tribunais Administrativos e demais legislações complementares”.
Por seu turno, nos termos do art. 61º do DL 237-A/2006, de 14 de Dezembro (Regulamento da Nacionalidade Portuguesa), “Tem legitimidade para reagir contenciosamente contra os atos e omissões praticadas no âmbito dos procedimentos de atribuição, aquisição ou perda da nacionalidade, no prazo de um ano, quem alegue ser titular de um interesse direto e pessoal e o Ministério Público, exceto no que respeita à reação contenciosa contra o indeferimento liminar.
2-O indeferimento liminar pode ser objecto de reacção contenciosa para os tribunais administrativos e fiscais, nos termos do Código de Processo nos Tribunais Administrativos”.

Constata-se, assim, que foi opção do legislador concentrar o contencioso da nacionalidade na esfera dos tribunais administrativos e fiscais, afastando-se do que se prescreve quanto aos demais procedimentos constantes do Cód. do Registo Civil e ainda do que antes era preceituado no citado art. 26º.

Na verdade, a redacção originária do art. 26º da Lei da Nacionalidade estipulava que a apreciação dos recursos relativos à atribuição, aquisição ou perda de nacionalidade portuguesa era da competência do Tribunal da Relação de Lisboa, tendo o legislador optado por afastar esta regra, atribuindo a competência para apreciar tais recursos aos tribunais administrativos e fiscais.

Face ao que se vem de expor, facilmente se extrai que todas as questões relacionadas com as decisões e procedimentos para a atribuição, aquisição ou perda de nacionalidade portuguesa no âmbito da Lei da Nacionalidade são decididas, em sede de recurso, pelos tribunais administrativos e fiscais.

Consequentemente, os tribunais competentes para apreciar a questão trazida a juízo são os Tribunais Administrativos e não os Tribunais Judiciais.

Aqui chegados, importa apreciar os reflexos desta incompetência no conhecimento das questões suscitadas no presente recurso.

A competência assume-se como um “pressuposto processual, isto é, uma condição necessária para que o tribunal se possa pronunciar sobre o mérito da causa” (Miguel Teixeira de Sousa, in “A Competência e a Incompetência dos Tribunais Comuns”, 2ª Edição, pág. 13).

Nos termos do art. 212º, nº 3 da Constituição da República Portuguesa, “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.

Por outro lado, decorre do art. 64º do CPC, que os tribunais judiciais são competentes para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, sendo que, nos termos conjugados dos arts. 1º e 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei 13/2002, de 19 de Fevereiro, e 144º nº 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário, os tribunais de jurisdição administrativa são competentes para administrar a justiça nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.

De salientar o art. 29º, nº 1 da Lei de Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) -Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto - que estatui que “Além do Tribunal Constitucional, existem as seguintes categorias de tribunais:
a)-O Supremo Tribunal de Justiça e os tribunais judiciais de primeira e de segunda instância;
b)-O Supremo Tribunal Administrativo e os demais tribunais administrativos e fiscais;
c)-O Tribunal de Contas”.

Por outro, lado, “Determinam a incompetência absoluta do tribunal:
a)-A infração das regras de competência em razão da matéria e da hierarquia e das regras de competência internacional;
b)-A preterição de tribunal arbitral” (art. 96º do CPC).

Há que referir que o art. 97º do CPC, sob a epígrafe “Regime de arguição - Legitimidade e oportunidade”, estabelece que “A incompetência absoluta pode ser arguida pelas partes e, exceto se decorrer da violação de pacto privativo de jurisdição ou de preterição de tribunal arbitral voluntário, deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa” (nº 1) e que “A violação das regras de competência em razão da matéria que apenas respeitem aos tribunais judiciais só pode ser arguida, ou oficiosamente conhecida, até ser proferido despacho saneador, ou, não havendo lugar a este, até ao início da audiência final.” (nº2).

Da conjugação destas normas extrai-se a existência de dois regimes relativos à arguição e conhecimento das regras de competência material: um, quando a competência diz respeito a tribunais de diferente categoria e que permite que essa arguição possa ter lugar e deva ser oficiosamente suscitada até ao trânsito da sentença proferida sobre o fundo da causa, salvo se decorrer da violação de pacto privativo de jurisdição ou de preterição de tribunal arbitral voluntário; outro, relativo apenas a tribunais judiciais e nos termos do qual a arguição e o conhecimento oficioso só pode ter lugar até ser proferido despacho saneador, ou, não havendo lugar a este, até ao início da audiência final.

Desta dualidade de regimes resulta que, estando em causa a opção entre um tribunal judicial e um tribunal administrativo, a questão da competência pode ser analisada em momento posterior ao início da audiência final, excepto se verificadas as excepções previstas no citado art. 97º.

No caso vertente, a violação de competência reporta-se a tribunais de categoria diferente, tal como estipulado no art. 29º da LOSJ, já que a apreciação do contencioso da nacionalidade deve ser efectuada pelos tribunais administrativos nos termos já expostos.

Donde, e face ao disposto no art. 97º, nº 1 do CPC, pode a excepção de incompetência ser oficiosamente suscitada e conhecida até ao trânsito da sentença proferida sobre o fundo da causa, desde que exercido o contraditório. Neste sentido, veja-se António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Parte Geral e Processo de Declaração, Coimbra, 2018, pág. 126.

Como se pode ler no Ac. TRL de 10-01-2017, proc. 167463/15.9YIPRT.L1, relator Rosa Ribeiro Coelho “A incompetência em razão da matéria é uma exceção dilatória de que o tribunal pode conhecer oficiosamente – arts. 96º, al. a), 97º, nº 1 e 578º -, sendo, por isso, irrelevante o facto de nenhuma das partes ter invocado a sua ocorrência.

Porém, a oficiosidade do seu conhecimento por parte do tribunal é regime que tem de ser conjugado com o do nº 3 do art. 3º, segundo o qual:“O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”

Assim, a incompetência absoluta é uma questão que, apesar de poder ser oficiosamente apreciada pelo tribunal, não pode ser decidida sem que as partes tenham possibilidade de sobre ela se pronunciarem, impondo-se ao juiz que, previamente, lhes dirija convite nesse sentido”.

No caso dos autos, foram as partes ouvidas sobre a questão, mais se verificando que não foi proferida qualquer sentença sobre o fundo da causa, a saber: a atribuição da nacionalidade portuguesa à apelante, nem a mesma se insere nas excepções previstas no art. 97º, nº 1 do CPC, pelo que se conclui que pode este Tribunal conhecer a excepção de incompetência material.

Ora, estando estabelecida a incompetência material dos tribunais judiciais para o conhecimento da questão atinente ao despacho proferido pela Conservatória dos Registos Centrais relativamente ao pedido de atribuição de nacionalidade portuguesa, cfr. arts. 64º e 65º do CPC e normas supra citadas, verifica-se, assim, a existência de uma excepção dilatória, a qual é de conhecimento oficioso (cfr. arts. 577º, al. a) e 578º, ambos do CPC).

Assim, declara-se o tribunal recorrido absolutamente incompetente, em razão da matéria, para a apreciação da presente causa, absolvendo-se, em consequência, o R. da instância.
Consequentemente, fica prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas no recurso, nos termos do art. 608º, nº 2 do CPC, aplicável ex vi do disposto no art. 663º, nº 2, in fine, do mesmo diploma.

IV.–DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízes desta 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em declarar o tribunal recorrido absolutamente incompetente, em razão da matéria, para a apreciação da presente causa, por serem competentes para o efeito os tribunais administrativos, absolvendo o R. da instância.
Sem custas.


Lisboa, 26 de Outubro de 2021



Ana Rodrigues da Silva
Micaela Sousa
Cristina Silva Maximiano