Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1278/12.2YYLSB-A.L1-6
Relator: CARLOS M. G. DE MELO MARINHO
Descritores: SUBSCRIÇÃO DE LETRA
AVAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/12/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: - A subscrição, no verso, de letras de câmbio sem menção à qualidade dos subscritores como envolvendo a sua capacidade para vincular uma determinada sociedade, sob os dizeres «Bom por aval ao aceitante», inculca a noção segura de que nos encontramos diante da assunção de um aval individual pelas pessoas singulares apontadas pelas assinaturas;
- Num tal contexto, não tem qualquer relevo, para desviar esta conclusão, a mera aposição de carimbo da aceitante desgarrada de uma qualquer menção verbal;
- Neste quadro técnico e subjectivo, é também inatacável a noção de que, para os efeitos do disposto no n.º1 do art. 236.º do Código Civil, o sentido normal da declaração lançada é a acima referida.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:



I. RELATÓRIO:


                   
D... e P..., com os sinais identificativos constantes dos autos, executados nos autos de execução para pagamento de quantia certa em que é Exequente I... S.A., deduziram oposição à referida execução solicitando que o requerimento executivo fosse julgado como não provado. Alegaram, para o efeito, que apuseram as suas assinaturas no verso das letras de câmbio dadas à execução, sob o carimbo da sociedade de que são legais representantes, denominada O... S.A., com a menção “bom por aval ao aceitante”; quando assim actuaram, não pretenderam dar o seu aval pessoal à obrigação da sociedade sua representada porque estavam, e estão, convictos que se tratava de uma obrigação da referida sociedade.

A Exequente contestou tal oposição concluindo pela sua improcedência e pela necessidade de ser ordenada a prossecução da acão executiva. Para o efeito, impugnou alguns dos factos alegados pelos Opoentes e extraiu distintas consequências jurídicas da construção fáctica que teceu.

Foi proferida sentença que declarou a oposição improcedente e, em consequência, ordenou o prosseguimento da execução.

É desta sentença que vem o presente recurso interposto pelo Opoentes, que alegaram e apresentaram as seguintes conclusões:

1. Através da sentença proferida em 19.11.2014, entendeu o Tribunal a quo julgar improcedente a oposição à execução deduzida pelos Recorrentes, determinando, por conseguinte, o prosseguimento da execução, tendo, para o efeito, concluído (i) “que o aval foi prestado pelos executados/opoentes a título pessoal e não pela sociedade de que eram legais representantes, aceitante das letras de câmbio dadas à execução”, e (ii) que “só se pode constatar que os executados/opoentes se comprometeram ao avalizar as letras de câmbio e tal não pode escamotear-se, implicando, portanto, que a oposição à execução não possa ser considerada procedente, levando - isso sim - à sua improcedência.”

2. Não podem, contudo, os Recorrentes concordar com o mencionado entendimento, porquanto o mesmo não só padece de insuficiente fundamentação jurídica, como, mais evidente ainda, carece, em absoluto, de fundamento de facto.

3. Por requerimento datado de 23.01.2012, a Recorrida deu à execução duas letras de câmbio, no valor de € 25.000 (vinte e cinco mil euros) cada, sacadas e aceites pela O... (“O...”).

4. Contrariamente ao que se pode ler na sentença recorrida, as referidas letras têm como data de emissão os dias 01.11.2011 e 01.12.2011 (e não 11-11-2001 e 11-12-2001).

5. Os Recorrentes são sócios e legais representantes da O....

6. A O..., devidamente representada pelos Recorrentes, entregou à Recorrida duas letras em branco.

7. Os Recorrentes apenas assinaram, na qualidade de legais representantes da O..., o verso das letras em causa (recorde-se que foi aposto exactamente o mesmo carimbo na frente e verso de ambas as letras), uma vez que tal foi expressamente solicitado pela Recorrida.

8. Os Recorrentes julgaram tratar-se duma mera formalidade com vista a que a referida sociedade se obrigasse ao pagamento das quantias em causa, sendo este, como a Recorrida bem sabe, o único motivo pelo qual os Recorrentes assinaram, na qualidade de legais representantes da O..., o verso das letras em causa.

9. Os Recorrentes não se obrigaram, e não quiseram obrigar-se, ao pagamento de qualquer quantia à custa do seu património pessoal, nem assumiram, ou quiseram assumir, a qualidade de avalistas da O....

10. Se a Recorrida pretendia que, no âmbito da relação material subjacente e das letras de câmbio, os Recorrentes se constituíssem como avalistas da sociedade que representam, então sempre se poderá alegar que estamos perante uma omissão de informação relevante quanto aos alegados avales pessoais, o que determinaria responsabilidade précontratual daquela, na medida em que, em momento algum, tal foi exigido a estes.

11. Nunca a Recorrida informou, deu conta ou exigiu que os Recorrentes figurassem como avalistas, a título pessoal, da O..., o que, aliás, determinou a aposição do carimbo da sociedade, facto que transparece a única qualidade em que os Recorrentes sempre actuaram, sendo que, caso os avales fossem concedidos pessoalmente, não haveria razão ou fundamento para apor o carimbo da O..., o que sucedeu.

12. A sacada e aceitante das referidas letras (O...) vinculou-se, nos termos do artigo 260.º, n.º 4, do Código das Sociedades Comerciais, através da assinatura dos respectivos legais representantes, a saber os Recorrentes.

13. Ao contrário do que a Recorrida pretende fazer crer, entendimento este sufragado pelo Tribunal a quo, as letras não foram avalizadas pessoalmente pelos Recorrentes, não correspondendo à realidade dos factos que “os Executados garantiram pessoalmente o pagamento integral das letras que ora se executam”.

14. Tal resulta inequivocamente dos títulos executivos (i.e., das letras de câmbio), porquanto, no seu verso, “encontram-se apostas, transversalmente, as assinaturas dos ora opoentes sob o carimbo da sociedade O... S.A., cada uma delas encimada pelos dizeres escritos “Bom por aval ao aceitante” (…).”

15. Revela-se, pois, evidente que os Recorrentes não agiram em nome próprio.

16. Muito pelo contrário: os Recorrentes agiram, única e exclusivamente, na qualidade de legais representantes da O..., facto que a Recorrida bem sabe!

17. In casu, estamos perante duas letras em que, no seu verso, os Recorrentes apuseram, inequivocamente na qualidade de legais representantes da O... e sob o carimbo desta, as suas assinaturas.

18. Sendo as assinaturas da administração da O... e constando o carimbo desta, dúvidas não subsistem de que a representação e vinculação foi desta sociedade, e não dos Recorrentes.

19. Se é de presumir que as assinaturas qualificadas pelo carimbo da sociedade pertencem a alguém responsável pela sua gerência, não se pode presumir que pertençam às pessoas singulares, individualmente consideradas.

20. Se assim não fosse, estaríamos perante o melhor de dois mundos: em qualquer situação, o sacador poderia, consoante lhe fosse mais favorável e/ou conveniente, escolher se a vinculação é da sociedade comercial ou das pessoas singulares que a representam!

21. Os actos praticados pelos administradores em nome da sociedade e dentro dos poderes que a lei lhes confere, vinculam-na para com terceiros.

22. Se a O... se mostra validamente vinculada através da aceitação das letras, que se efectuou com a assinatura dos Recorrentes e carimbo desta sociedade, não é razoável que as mesmas assinaturas e carimbo consubstanciem, no verso das letras, avales pessoais.

23. No limite, e levando o entendimento do Tribunal a quo até às últimas consequências, ter-se-ia que concluir igualmente que a O... não aceitou as letras de câmbio.

24. O carimbo aposto sob a assinatura dos Recorrentes, quer na face anterior, quer na face posterior das letras, “destina-se a comprovar que o representante da sociedade [os Recorrentes] não agiu em nome próprio, mas em nome da sua representada”, ou seja, da O....

25. Nem se diga que as circunstâncias da assinatura e aposição do carimbo divergem ou são materialmente distintas, na medida em que é a própria lei que admite que o sacado assine o verso de uma letra de câmbio, sem que tal implique o aval pessoal dos legais representantes do mesmo – vide artigo 31.º da LULL.

26. Em determinadas circunstâncias, o sacado pode assinar o verso da letra de câmbio.

27. É caso para questionar: como pode o Tribunal a quo ter desconsiderado tal possibilidade, concluindo, sem recurso a qualquer elemento de prova que não os documentos constantes do processo, que os Recorrentes avalizaram as letras a título pessoal? Antecipando a resposta, afigura-se abusivo e não podia o Tribunal recorrido concluir, sem mais, que as assinaturas no verso das letras, apostas sob o carimbo da sacada O..., consubstanciam avales pessoais dos Recorrentes.

28. Da prova documental resulta manifesto que os Recorrentes não avalizaram, a título pessoal, as letras dadas à execução, não se compreendendo de que forma, ainda para mais prescindindo da realização de audiência de discussão e julgamento e da consequente produção de prova, pôde o Tribunal recorrido decidir como decidiu, o que importa agora rectificar.

29. O Tribunal a quo tirou, de forma infundada, as suas conclusões e proferiu, com base em tais premissas, a decisão recorrida que, com o devido respeito, não podem os Recorrentes deixar de qualificar como profundamente injusta.

30. Os Recorrentes não avalizaram, a título pessoal, as letras dadas à execução, sendo inequívoco que os Recorrentes agiram na qualidade de legais representantes da O..., pelo que é de lamentar a conclusão abusiva retirada pelo Tribunal recorrido.

31. A oposição à execução deveria ter sido, e deverá, por um lado, ser julgada procedente, por provada, determinando-se, em consequência, a extinção da acção executiva, ou, subsidiariamente, prosseguir com a consequente produção de prova documental e testemunhal, sendo julgada, a final, igualmente procedente.

32. Normas jurídicas violadas: artigos 260.º do CSC, 3.º, 4.º, 5.º, 10.º do novo CPC, 510.º, 787.º e 817.º do anterior CPC, 30.º e seguintes da LULL e 236.º do CC.

Terminaram pedindo que a decisão recorrida fosse «revogada e substituída por outra que» julgasse «a oposição à execução deduzida procedente, por provada, com a consequente extinção da execução».

A Recorrida respondeu a estas alegações concluindo que:

I. A questão decidenda resume-se a determinar a vinculação pessoal dos recorrentes nos títulos dados à execução;
II. Os recorrentes não impugnaram as assinaturas constantes dos títulos cambiários, não impugnaram o valor (o qual ascende a mais de € 50.000,00) devido à recorrida, nem, bem assim, o preenchimento dos títulos cambiários dados à execução;
III. Para o pagamento dos valores devidos à recorrida pela subscritora das letras, esta exigiu aos recorrentes a entrega de duas letras subscritas pela O... e avalizadas pelos recorrentes;
IV. É inequívoco que os recorrentes solidarizaram-se, a título pessoal, pelo pagamento das letras dadas à execução, na qualidade de avalistas para pagamento dos títulos cambiários;
V. A aposição do carimbo não significa que os recorrentes estivessem a assumir uma obrigação da O..., uma vez que não indicaram – sequer – a respectiva qualidade de legais representantes ou que pretendiam vincular a O..., não obstante terem aposto pelo seu punho “bom por aval ao aceitante”;
VI. “Para a vinculação das sociedades anónimas é indispensável a reunião de dois elementos: assinatura pessoal do administrador (ou director) e menção dessa qualidade”, conforme acórdão do supremo tribunal de justiça, datado de 27 de Março de 2001, disponível em CJ – AC. STJ, Ano IX, 2001, T. I, p. 183;
VII. Conforme refere a douta decisão recorrida: “caso assim não fosse, não se compreenderia por que razão iria a exequente pretender que a aceitante das letras de câmbio prestasse aval a si própria, que já era a principal obrigada cambiária, posto que nisso não haveria qualquer utilidade prática.”;
VIII. Neste sentido “(…) é por isso que o aceitante não pode ser dador de aval, ou melhor, que nenhum valor teria o aval prestado pelo aceitante, visto ser ele o principal obrigado na relação cambiária, responsável perante os demais signatários. do mesmo modo, nenhum valor terá o aval dado pelo sacador a um endossante, pois é evidente que o sacador – que como tal garante o pagamento a todos os sucessivos portadores da letra – não ficaria, em virtude do aval, mais obrigado do que já era” Professor Ferrer Correia in “Lições de Direito Comercial”, vol. III, Letra de Câmbio, Coimbra, 1966, páginas 199 e seguintes;
IX. De outra face, atento o artigo 236.º do Código Civil conjugado com o n.º 1 do artigo 487.º do Código Civil (bonus pater familiae), o homem médio normal, colocado na posição de declaratário, compreende que foi prestado um aval pessoal pelos recorrentes;
X. Acresce que os recorrentes se apenas pretendiam vincular a O... (subscritora), enquanto legais representantes, tal “(…) não é admissível o aval condicional.  Não isenta o avalista o facto de o mesmo ter cedido a sua quota na sociedade executada”, de acordo com o douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 27 de junho de 1995, Colectânea de Jurisprudência, 1995, tomo III, página 141;
XI. No que concerne ao aval, o mesmo constitui um negócio cambiário unilateral concebido como promessa de pagar o título e garantido o pagamento do devedor por quem é dado;
XII. Destarte, o aval prestado pelos recorrentes respeitou os requisitos previstos na LULL, ergo os artigos 30.º e seguintes de tal diploma, sendo a expressão aposta nos títulos executivos (“bom por aval ao aceitante” inequívoca e diamantinamente demonstrativa da intenção de prestar um aval pessoal;
XIII. Por outro lado, o próprio Supremo Tribunal de Justiça já foi chamado a pronunciar-se numa situação idêntica à dos autos, tendo proferido acórdão no sentido de que: “assim, se uma livrança foi subscrita pelo sócio gerente de uma dessas sociedades por quotas, como sacador e como aceitante, nada constando do título que o tenha feito em tal qualidade de sócio gerente apenas se colhendo do exame do título que o fez utilizando o próprio nome, fica obrigado apenas a título pessoal. (…) se o aval foi dado a sociedade, não sendo esta subscritora do título, não podem os avalistas responder como tal, pois a sua obrigação de garantia, acessória e solidária, só existiria em face da obrigação da sociedade”, Acórdão de 9 de Março de 1988, Boletim do Ministério da Justiça 375.º, página 385;
XIV. Com efeito, transpondo tal orientação para os presentes autos, temos que, figurando nos títulos cambiários dados à execução como subscritora a sociedade de que os recorrentes eram legais representantes e que estes não mencionaram tal qualidade no aval prestado, temos que tal aval é pessoal e, bem assim, que respondem solidariamente pelo pagamento da dívida;
XV. Merece ainda especial referência o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2013, de 11 de Dezembro, publicado no Diário da República, I Série, n.º 14, 21 de Janeiro de 2013: “o aval dá-se em função de uma obrigação garantida, circunstância que haverá de ter, em princípio, um reflexo formal no título cambiário (o aval deverá indicar quem avaliza) e que se traduz numa consequência fundamental: o avalista responde tão só ante os tomadores do título ou seja, perante aqueles a quem responde o avalizado. O aval surge-nos, assim, como um acto pelo qual uma pessoa que não está obrigada por qualquer razão a pagar uma letra (ou outro título de crédito) aceita fazê-lo para garantir a responsabilidade de um dos obrigados, sacador, subscritor ou endossante”;
XVI. O predito acórdão elucida diamantinamente a função do aval no âmbito do comércio jurídico, concorrendo para demonstrar a inutilidade que teria, para a recorrida, aceitar o aval da subscritora das letras dadas à execução;
XVII. De outra face, importa chamar à colação o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 16 de Novembro de 2010, proferido no processo n.º 238/05.4TBPCR-B.G1, disponível em www.biblioteca.mj.pt, sustentou: “tendo a assinatura do gerente da sociedade que figura nas letras dadas à execução como sacada/aceitante, sido aposta no verso das letras exequendas, precedida da expressão “bom para aval a favor do aceitante” mas associada a um carimbo com a denominação social daquela mesma sociedade, afigura-se-nos inequívoco, na perspectiva dos “usos da vida e do comércio” e de acordo com a impressão ao destinatário, que o mesmo deu o seu aval a título pessoal”;
XIII. Importa não olvidar que os recorrentes não são pessoas com poucas habilitações literárias ou inexperientes no mundo empresarial, sendo eles quem negociavam a aquisição de produtos à recorrida, tendo um vasto conhecimento do mundo empresarial e dos negócios em curso;
XIX. Logo, numa sociedade com a dimensão da O..., a qual tinha um capital social registado de € 400.000,00 (quatrocentos mil euros), não é crível que os recorrentes desconhecessem que o aval dado era uma obrigação da O...;

XX. No tocante aos acórdãos mencionados nas alegações de recurso, a recorrida, desde já, expressa o seguinte:

a) No que tange ao douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 05.02.1997, no âmbito do processo n.º 9750243, cumpre esclarecer que os recorrentes não impugnaram, no âmbito do seu recurso, a matéria de facto provada, pelo que não podem, neste momento, invocar a não aceitação das letras dadas à execução pela O.... ademais, tal acórdão respeita à nulidade da assinatura constante do título por quem não é sacado, não tendo qualquer aplicação nestes autos;
b) No que respeita ao douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 25.10.2005, no âmbito do processo n.º 2270/05, o mesmo não tem qualquer aplicação a estes autos, na medida em que, lendo atentamente tal acórdão, consta-se que a questão decidenda assentava em indagar a quem tinha o aval sido e não se o aval tinha sido a título pessoal ou não;
c) No que tange ao douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 22.04.1996, no âmbito do processo n.º 955032, o mesmo respeita à assinatura de uma pessoa singular no lugar de uma pessoa colectiva, enquanto aceitante, situação essa que não integra o objecto desta lide;
d) No que respeita ao douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 09.07.2003, no âmbito do processo n.º 5655/2003-7, cumpre esclarecer que a questão decidenda respeita à vinculação da aceitante, enquanto subscritora da livrança em tais autos, tendo sido invocada a não vinculação da sociedade por falta da indicação da qualidade de gerentes. Acresce que os factos e considerações de tal douto acórdão não tem qualquer correspondência com estes autos, na medida em que o que estava em causa era a vinculação de uma sociedade, enquanto subscritora de uma livrança e não, outrossim, o prestar de um aval.

Terminou pedindo o indeferimento do recurso interposto e a manutenção da decisão recorrida.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

É a seguinte a questão a avaliar:

1. Os Recorrentes apenas assinaram o verso das letras em causa nos autos na qualidade de legais representantes da O...?

II. FUNDAMENTAÇÃO:

Fundamentação de facto:

Vêm provados os seguintes factos:

1.A exequente intentou a acção executiva a que coube o n.º 1278/12.2YYLSB contra os ora opoentes apresentando como título executivo duas letras de câmbio das quais consta, além do mais que aqui se dá por reproduzido, o seguinte:

- “no seu vencimento pagará(ão) V. Ex.ª(s) por esta única via de letra a nós ou à n/ordem a quantia de vinte cinco mil euros”, a “importância” de 25.000,00 €, com data de “emissão” de 11-11-2001 e com data de “vencimento” de 2011-12-31 (documento de fls. 5 dos autos de execução);
- “no seu vencimento pagará(ão) V. Ex.ª(s) por esta única via de letra a nós ou à n/ordem a quantia de vinte cinco mil euros”, a “importância” de 25.000,00 €, com data de “emissão” de 11-12-2001 e com data de “vencimento” de 2011-12-31 (documento de fls. 7 dos autos de execução).

2.Nas letras de câmbio referidas em 1. consta como sacador a exequente (documentos de fls. 5 e 7 dos autos de execução).

3.Nas letras de câmbio referidas em 1. consta como aceitante a sociedade O... – Revestimentos Metálicos, S.A. (documentos de fls. 5 e 7 dos autos de execução).

4.No verso de cada uma das letras de câmbio referidas em 1. encontram-se apostas, transversalmente, as assinaturas dos ora opoentes sob o carimbo da sociedade O... S.A., cada uma delas encimada pelos dizeres escritos “Bom por aval ao aceitante” (documento de fls. 5 e 7 dos autos de execução).

5.Os opoentes são os sócios e os legais representantes da sociedade O... S.A..

Fundamentação de Direito:

1. Os Recorrentes apenas assinaram o verso das letras em causa nos autos na qualidade de legais representantes da O...?
A questão que se impõe analisar neste recurso é a atinente à interpretação do sentido das declarações dos Recorrentes, lançadas no verso dos escritos dados à execução. Dispensam-se, pois, redundantes referências técnicas de enquadramento jurídico de tais escritos. Os mesmos foram adequadamente qualificados como letras de câmbio na sentença impugnada, o que convoca o regime normativo emergente da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças (LULL) aprovada pelo Decreto-Lei n.º 26 556, de 30 de Abril de 1936.

Vem provado, com relevo para a ponderação a realizar que:

3. Nas letras de câmbio referidas em 1. consta como aceitante a sociedade O... S.A. (documentos de fls. 5 e 7 dos autos de execução).

4. No verso de cada uma das letras de câmbio referidas em 1. encontram-se apostas, transversalmente, as assinaturas dos ora opoentes sob o carimbo da sociedade O... S.A., cada uma delas encimada pelos dizeres escritos “Bom por aval ao aceitante” (documento de fls. 5 e 7 dos autos de execução).

5. Os opoentes são os sócios e os legais representantes da sociedade O... S.A..

Temos, assim, como definitivamente cristalizado que a sociedade O... (…) figura como aceitante das letras de câmbio que se pretendeu executar e que, no aval lançado no verso, os Opoentes não indicaram a qualidade de sócios e legais representantes da mesma, apenas tendo assinado junto ao respectivo carimbo.

Esta quadro chama à colação um elemento de avaliação de raiz técnica mas também de forte referente lógico e relevante suporte no bom senso que se deve sempre presumir que preside às acções e decisões em quadros como o presente. Esse elemento concretiza-se numa questão: se alguém subscreve uma letra como aceitante, com que sentido e finalidade a subscreve também no verso como avalista?

Para se responder a esta questão, é mister ter presente em que consistem o aceite e o aval.

O primeiro tem na sua essência a assunção da obrigação de pagar a letra à data do vencimento, por parte do sacado – cf. art. 28.º da LULL. De acordo com este preceito, «Na falta de pagamento, o portador, mesmo no caso de ser ele o sacador, tem contra o aceitante um direito de acção resultante da letra, em relação a tudo o que pode ser exigido nos termos do artigo 48.º e artigo 49.º».

Já no que tange ao aval, o mesmo consiste na garantia de pagamento total ou parcial de uma letra dada por um terceiro «ou mesmo por um signatário da letra» – cf. art. 30.º do mesmo encadeado normativo. Quanto ao aval dado por um signatário da letra, o mesmo só fará sentido – face à proscrição da prática de actos inúteis e irrelevantes no âmbito do Direito cambiário – se gerar um alargamento da obrigação assumida no anterior local de subscrição (ou, nas palavras de CORREIA, A. Ferrer, Lições de Direito Comercial, Vol. III. Letra de Câmbio, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1975, pág. 210, implicar uma responsabilidade «diversa e mais onerosa»).

Neste contexto, chegamos, com mais detalhe, à questão em apreço. Tem relevo, sentido e utilidade que se aceite a letra no respectivo rosto e se dê aval ao sacador no verso? Acrescenta-se algo? Faz sentido a dupla garantia assumida pela mesma pessoa, incidente sobre o mesmo crédito e por referência a um mesmo beneficiário. É manifesto que não, já que se trataria de acto inócuo e irrelevante face ao disposto no parágrafo 1.º do art. 32.º da LULL que estatui: «O dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada» (sendo que «a sua obrigação mantém-se, mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma»). Se tal dador  é responsável da mesma maneira, por que razão se havia de reiterar essa responsabilização num quadro de responsabilização solidária, sendo os mesmos, por razões lógicas, os cabedais de sustentação económica da obrigação? 

Nesta linha, o parágrafo 3.º do art. 31.º do diploma sempre sob referência não associa ao aval (ao contrário do que faz quanto aos demais subscritores) a simples assinatura aposta na face anterior da letra, se se tratar «das assinaturas do sacado ou do sacador».   

Por assim ser, tem que se reconhecer o inegável acerto, face à arquitectura do aval cambiário, do afirmado pelo autor acima citado (ibidem) nos seguintes termos: «Daqui resulta, ao mesmo tempo, que o aval de um obrigado cambiário só poderá ter utilidade prática se por ele se oferecerem garantias aos antecessores desse subscritor. Ou, por outras palavras: se o aval for dado a um signatário cuja responsabilidade seja mais onerosa.

É por isso que o aceitante não pode ser dador de aval, ou, melhor, que nenhum valor teria o aval prestado pelo aceitante, visto ser ele o principal obrigado na relação cambiária, responsável perante todos os demais signatários».

Perante o descrito quadro normativo, claro e simples – não sendo de presumir que os Opoentes fossem pessoas desconhecedoras das regras da mecânica das relações comerciais e do uso de títulos cambiários (sendo, até, legais representantes de uma sociedade comercial), ou que tivessem pretendido iludir a sacadora ou terceiros, conseguindo, na sua expressão, o melhor de dois mundos ao assinar o que fosse necessário para obter benefícios com a vontade subterrânea de, a jusante, conseguidas tais vantagens, usar todos os meios e ardis técnicos para não honrar os seus compromissos – temos que concluir que a única leitura que é possível fazer da subscrição, no verso, dos escritos que se pretendeu executar, sem menção à sua qualidade geradora da sua capacidade para vincular uma determinada sociedade, sob os dizeres «Bom por aval ao aceitante», é a de que nos encontramos diante da assunção de um aval individual pelas pessoas singulares apontadas pelas assinaturas. Num tal contexto, não tem qualquer relevo para desviar esta conclusão a mera aposição de carimbo da aceitante desgarrada de menção verbal. Neste quadro técnico e subjectivo, é também inatacável a noção de que, para os efeitos do disposto no n.º 1 do art. 236.º do Código Civil, o sentido  normal da declaração lançada é a acima referida.

É, pois, flagrantemente negativa a resposta à questão proposta.
Não merece qualquer censura a solução técnica escolhida pelo Tribunal «a quo».

III. DECISÃO:

Pelo exposto, julgamos a apelação totalmente improcedente e, em consequência, confirmamos a sentença impugnada.
Custas pelos Apelantes.


Lisboa, 12.11.2015


Carlos M. G. de Melo Marinho (Relator)
Anabela Moreira de Sá Cesariny Calafate (1.ª Adjunta)
Maria Regina Costa de Almeida Rosa (2.ª Adjunto)
Decisão Texto Integral: