Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7793/2003-7
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
PODER PATERNAL
DELEGAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/27/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISÃO SENTENÇA ESTRANGEIRA
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário: O facto de o direito português não prever a figura da delegação do poder paternal, não obsta a que seja revista e confirmada a sentença de tribunal de Cabo Verde que homologou um acordo de delegação do poder paternal relativamente a menor de nacionalidade caboverdeana estabelecida entre a sua mãe e um familiar.
A sentença revidenda não pode ofender “princípios de ordem pública internacional”, o que não deve confundir-se com “princípios da ordem pública portuguesa”.
Decisão Texto Integral: I – D. MONTEIRO
veio requerer a revisão da sentença proferida pelo Tribunal Judicial de santa Catarina, Cabo Verde, relativamente à menor
A. MONTEIRO
na qual se homologou o acordo estabelecido entre  o requerente e a respectiva mãe, MARGARIDA B., sobre o exercício do poder paternal da referida menor.
Alegou que a menor é sua sobrinha e que vive em Portugal, desde 1999, a seu cargo. O exercício do poder paternal foi-lhe delegado por acordo estabelecido com a respectiva mãe.

Citada a mãe da menor, não contestou.
O Ministério Público opõe-se à revisão e confirmação, por considerar que o direito ao exercício do poder paternal é irrenunciável, salvo em matéria de adopção, e que as normas relativas ao poder paternal são de interesse e ordem pública.

II – Elementos a considerar:
- A menor A. Monteiro nasceu a 8-10-88, sendo filha de Margarida B e de Armando M. (fls. 3);
- Armando M. faleceu a 20-12-2001 (fls. 19);
- Por sentença judicial de 12-11-01, do Tribunal de Santa Catarina, de Cabo Verde, foi homologado um acordo estabelecido entre a mãe da menor e o requerente D. Monteiro de delegação do exercício do poder paternal, decidindo-se que, verificados “os pressupostos da delegação voluntária do exercício do poder paternal previsto nos arts. 1864º, 1865º, 1866 e 1867º do Código Civil” (de Cabo Verde), era conferida ao “delegado D. Monteiro todas as faculdades que integram o exercício do poder paternal em relação à menor ...” (fls. 4).

III – Decidindo:
1. É objecto deste processo uma sentença judicial proferida por tribunal judicial de Cabo Verde.
Malgrado a oposição deduzida pelo Ministério Público, julgamos que não se verifica qualquer obstáculo à pretendida revisão e confirmação.
Foi invocado como impedimento ao deferimento da pretensão o facto de a sentença não respeitar os “interesses de ordem pública”.
Para além das situações configuradas no art. 1100º do CPC, podem servir de obstáculo à revisão e confirmação os fundamentos previstos no art. 1096º, designadamente o facto de a decisão conduzir a um “resultado manifestamente incompatível com os princípios de ordem pública internacional do Estado Português” (al. f)).
Trata-se de um preceito que veio substituir a anterior redacção segundo a qual era motivo de impedimento o facto de a sentença conter “decisões contrárias aos princípios de ordem pública portuguesa”.
Ora, a mera análise comparativa de ambos os preceitos claramente demonstra que não se encontra neles a mesma solução.
A leitura do Preâmbulo do diploma que introduziu as alterações revela que se pretendeu pôr a “tónica no carácter ofensivo da incompatibilidade de decisão com a ordem pública internacional do Estado Português”, assim se clarificando, por via legislativa, dúvidas que a respeito da interpretação de tal preceito se haviam suscitado, se bem que fosse geralmente entendido que a alusão aos “princípios de ordem pública” se referia à ordem pública internacional e não à ordem pública interna, nos termos, que, aliás, constam do art. 22º do CC.

2. É incontestável que, mantendo-se viva a mãe da menor, o poder paternal lhe pertence em exclusivo, à face da lei portuguesa (art. 1904º do CC). E que, de acordo com a lei nacional, a sua concessão a terceira pessoa apenas pode ser feita ou por via da adopção ou por via da tutela, designadamente quando se verifique uma situação de morte ou incapacidade de ambos os pais (art. 1921º, nº 1, al. a)). Também não se questiona que, para efeitos de tutela, a designação de tutor pelos pais apenas é válida nos casos referidos no art. 1927º do CC.
Ainda assim, o sistema sofreu uma evolução, a tal ponto que, nos termos do art. 1907º do CC, se admite que o filho seja confiado a terceira pessoa, caso em que o poder paternal fica dividido, ficando essa pessoa com os poderes e deveres exigidos para o desempenho das funções e restando para os pais os poderes e deveres remanescentes.[1]
Trata-se de um preceito que, de algum modo, desmistifica os riscos que alegadamente poderiam decorrer de uma situação como a dos autos. Aliás, a “delegação de poderes” foi feita voluntariamente por ambos os pais a favor não de um estranho, nem sequer por razões ocultas, mas a um familiar e por razões que deixam entrever uma situação de miséria, ainda mais agravada com a morte posterior do pai da menor.

3. Nada permite confirmar sequer que os interessados tenham pretendido contornar o regime legal da tutela, através de fraude à lei.
Aquilo que é possível concluir é que, vivendo a menor em Portugal, com o seu tio, e sendo a mesma de nacionalidade cabo-verdeana, ao abrigo da respectiva lei pessoal (a lei de Cabo Verde), os interessados entenderam submeter aos respectivos tribunais um acordo de delegação do poder paternal, o que, ao menos, teve a virtualidade de regularizar a situação da menor à face da respectiva lei nacional.
A matéria em causa nesta acção, mais concretamente a possibilidade de ser delegado o exercício do poder paternal, insere-se na área do direito de família, precisamente a área do direito privado em que mais se reflectem as ideossincrasias e os aspectos sócio-culturais de cada povo.
A variedade de regimes jurídicos, mesmo nos países com forte afinidade com o nosso, assim o demonstra. Após a independência cada um dos países seguiu o seu curso, o que conduziu a que, por exemplo, na área do direito da família se detectem agora regimes que não coincidem com aquele que vigorava anteriormente ou com aquele que vigora actualmente entre nós.[2]
É o caso das uniões de facto que, em Cabo Verde constituem uma forma de institucionalização de vínculos familiares, a par do casamento.[3] Também a figura da delegação do exercício do poder paternal, mediante acordo sujeito a homologação judicial, reflecte a necessidade de regular situações da vida potenciadas por factores de índole económica ou por razões ligadas ao forte contingente de cidadãos que se encontram emigrados, designadamente em Portugal, noutros países da Europa ou nos Estados Unidos da América
Neste contexto, a possibilidade, aceite pelo respectivo ordenamento jurídico, de ser delegado o exercício do poder paternal, fora dos casos de verdadeira tutela, será certamente um instrumento que visa resolver situações como a da menor que, confiada a um familiar (tio), vive em Portugal.

4. Neste contexto, não se antevê qualquer motivo para rejeitar a revisão da sentença homologatória.
Assim seria se acaso tal decisão violasse princípios de ordem pública internacional que vinculam o Estado Português. [4]
Mas, sem questionar que as normas que regulam as relações familiares são de interesse e ordem pública, o facto de a sentença em causa chancelar um acordo que não seria válido se tivesse sido celebrado em Portugal ou se, celebrado no estrangeiro, pretendesse aplicar-se em Portugal, a cidadãos nacionais, não conduz a que se mostrem violados os referidos princípios de ordem pública internacional.[5]
Segundo Marques dos Santos, a nova redacção do preceito “vem esclarecer, caso pudesse haver dúvidas, que se trata de princípios de ordem pública internacional e não de ordem pública interna”, para mais adiante esclarecer que se abarcam em tal preceito aqueles que “de tão decisivos que são, não podem ceder, nem sequer nas relações jurídico-privadas plurilocalizadas”.[6]
Efectivamente, como refere Teixeira de Sousa, “o ordenamento jurídicos português não impede a produção de efeitos jurídicos que não conhece, desde que eles não sejam incompatíveis com os princípios de ordem pública internacional”.[7]
Não existe qualquer princípio, com tal dimensão, que determine a ilegitimidade de uma delegação do poder paternal, por acordo livremente estabelecido entre o respectivo detentor e um terceiro, sujeito a verificação judicial.
Pelo contrário, nos termos do art. 5º da Convenção Sobre os Direitos da Criança, aprovada pela Resolução nº 20/90, “os Estados Partes respeitam as responsabilidades, direitos e deveres dos pais e, sendo caso disso, dos membros da família alargada ou da comunidade e dos costumes locais, dos representantes legais ou de outras pessoas que tenham a criança legalmente a seu cargo ...”.
Trata-se, na verdade, de um forte indício de que a “delegação do poder paternal” prevista no ordenamento jurídico de Cabo Verde ainda se enquadra nos parâmetros definidos por tal instrumento de direito internacional a que Portugal se acha vinculado.
A diversidade de situações da vida que cumpre regular em cada momento e em cada lugar, a par da diversidade cultural e das diferentes etapas históricas, legitima precisamente que cada Estado procure encontrar a melhor forma de regulamentação. E pretendendo-se transpor o resultado para outros ordenamentos, apenas deve ser recusada a eficácia das decisões respectivas se acaso violarem preceitos ou princípios de ordem pública a que o Estado onde a revisão é requerida se tenha vinculado no plano internacional.
Ora, tal obstáculo não se verifica quando nos confrontamos com o acordo de delegação do exercício do poder paternal, através do qual os interessados pretenderam regularizar uma situação que, de facto, se verifica.
Tendo tal acordo apoio à face do ordenamento jurídico de Cabo Verde e reflectindo-se tão só na esfera jurídica de cidadãos cabo-verdeanos, não se verificando qualquer motivo para recusar, em Portugal, a validade da sentença homologatória.
 Certamente uma solução muito melhor do que a que resultaria da manutenção da situação, em que a menor, vive efectivamente com o seu tio, não tendo quem legalmente a represente em Portugal, desde 1999.

III – Conclusão:
Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente a pretensão, revendo e confirmando a sentença de delegação do poder paternal da menor A. Monteiro relativamente a seu tio D. Monteiro.
Custas a cargo do requerente, sem embargo do apoio judiciário.
Fixo os honorários de advogado em 8 (oito) UR’s.
Notifique.

Lisboa, 27-4-04

A. Abrantes Geraldes
M. Tomé Soares Gomes 
M. do Rosário Morgado

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[1] Solução de exercício simultâneo do poder paternal que é criticada por Antunes Varela, CC anot., vol. V, pág. 404.
[2] É assim que, segundo Germano Cruz de Almeida, a raiz do o Direito da Família caboverdiano se encontra no ordenamento jurídico cubano, fruto da influência que existiu no período a seguir á independência (Da União de Facto, pág. 223).
[3] Germano Cruz de Almeida encontra para a situação uma razão histórica ligada ao processo de povoamento das ilhas e ao cruzamento de escravos entre si e com terceiros (ob. cit., pág. 221)
[4] Cfr. o Ac. da Rel. de Coimbra, de 12-3-85, CJ, tomo II, pág. 42, segundo o qual aquela expressão visava o “complexo de normas, inspiradas por razões políticas, morais e económicas, que é aceite por um determinado número de nações como expressão de uma civilização e cultura idênticas”. Cfr. ainda o Ac. da Rel. de Coimbra, de 8-4-80, CJ, tomo II, pág. 46.
Incidindo precisamente sobre matéria do direito de família, cfr. ainda o Ac. da Rel. de Lisboa, de 2-3-99, CJ, tomo II, pág. 71 (adopção por indivíduos em união de facto), o Ac. da Rel. de Coimbra, de 17-11-98, CJ, tomo V, pág. 18 (divórcio),
[5] A lei só se refere, aliás, aos princípios de ordem material e não de ordem processual (Moura Ramos, RLJ, ano 130º, pág. 236).
[6] Revisão e Confirmação de Sentenças Estrangeiras, em Aspectos do Novo Processo Civil, pág. 139.
[7] ROA, ano 60º, pág. 778.