Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
305/19.7T9AGH-A.L1-9
Relator: MARIA JOSÉ CORTES CAÇADOR
Descritores: APREENSÃO DE CORREIO ELETRÓNICO
AUTORIZAÇÃO
DESPACHO JUDICIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/05/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:  I-Encontrando-se em curso, em fase de inquérito, investigação com vista a apurar da eventual prática de crimes de falsificação de documentos e de subtração de documentos, a apreensão de correio eletrónico carece sempre, de despacho judicial a autorizá-la nos termos do disposto nos artigos 17º da Lei do Cibercrime e 179º do C.P.P.;
II-Quer o art° 179°, n° 1 do CPP quer o art° 17° da Lei do Cibercrime sancionam com nulidade a violação das regras relativas à competência para a autorização de apreensão de correio electrónico. A intromissão nas comunicações e na correspondência está sujeita
a autorização judicial, o que se justifica pelo princípio da proporcionalidade face à especial danosidade social que implica tal intromissão;
III-Da redacção do art° 17° da Lei do Cibercrime resulta de forma clara que não esteve no espírito do legislador transpor para o correio electrónico e registos de comunicações de natureza semelhante a distinção, por referência ao correio tradicional, de correio aberto ou fechado, o que desde logo se colhe do elemento literal previsto neste preceito legal com a expressão “armazenados” o que pressupõe que a comunicação já foi recebida/lida e, consequentemente, armazenada, além de não existirem razões para considerar diminuídas as exigências garantísticas do correio electrónico quando aberto/lido relativamente ao correio electrónico fechado, atenta a natureza própria destas comunicações;
IV- Em suma as mensagens de correio electrónico que se encontrem armazenadas num sistema informático só podem ser apreendidas mediante despacho prévio do Juiz de Instrução Criminal, devendo ser o juiz a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo da correspondência, conforme remissão para o art° 179° do CPP.”
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes que integram a 9.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO
1.1. No âmbito do Inquérito com o n.º 305/19.7T9AGH que corre termos no Departamento de Investigação e Ação Penal, 5.ª secção de Ponta Delgada, veio o Ministério Público interpor recurso do despacho do senhor Juiz de Instrução Criminal, de 7 de março de 2022, que indeferiu a sua promoção de apreensão de correio eletrónico que viesse a ser encontrado no decurso de pesquisas eletrónicas a levar a cabo no decurso de buscas determinadas, pedindo que se revogue a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que defira a requerida apreensão de correio eletrónico.
Formula, no termo da motivação, as seguintes conclusões:
“1.ª
Vem o presente recurso interposto do despacho proferido nestes autos a 07/03/2021 (ref. 52924878; fls. 285 a 286), que, tacitamente, indeferiu a promovida apreensão de correio electrónico que viesse a ser encontrado no decurso de pesquisas electrónicas a levar a cabo no decurso de buscas determinadas pelo Ministério Público.
2.a
A questão a decidir é a seguinte: a apreensão de correio electrónico encontrado no decurso de pesquisas electrónicas determinadas pelo Ministério Público, realizadas no decurso de buscas igualmente determinadas pelo Ministério Público, carecem de prévia determinação/autorização do Juiz de Instrução Criminal?
3.ª
Sob a epígrafe "apreensão de correio electrónico e registos de comunicações de natureza semelhante", determina o artigo 17.° da Lei do Cibercrime que: "Quando, no decurso de uma pesquisa informática ou outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontrados, armazenados nesse sistema informático ou noutro a que seja permitido o acesso legítimo a partir do primeiro, mensagens de correio electrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão daqueles que se afigurem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, aplicando-se correspondentemente o regime da apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal."
4.ª
Por seu lado, e com a epígrafe "apreensão de correspondência", estabelece o artigo 179,°, do Código de Processo Penal, que:
"1 - Sob pena de nulidade, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão, mesmo nas estações de correios e de telecomunicações, de cartas, encomendas, valores, telegramas ou qualquer outra correspondência, quando tiver fundadas razões para crer que:
a) A correspondência foi expedida pelo suspeito ou lhe é dirigida, mesmo que sob nome diverso ou através de pessoa diversa;
b) Está em causa crime punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos; e
c) A diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova.
2 - É proibida, sob pena de nulidade, a apreensão e qualquer outra forma de controlo da correspondência entre o arguido e o seu defensor, salvo se o juiz tiver fundadas razões para crer que aquela constitui objecto ou elemento de um crime.
3 - O juiz que tiver autorizado ou ordenado a diligência é a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo da correspondência apreendida. Se a considerar relevante para a prova, fá-la juntar ao processo; caso contrário, restitui-a a quem de direito, não podendo ela ser utilizada como meio de prova, e fica ligado por dever de segredo relativamente aquilo de que tiver tomado conhecimento e não tiver interesse para a prova."
5.a

Da interpretação conjugada dos citados preceitos resulta que a apreensão de correio electrónico deverá ser precedida de despacho do Juiz de Instrução Criminal, sob pena de nulidade.
6.a
A posição do Tribunal a quo vai de encontro à alteração que a Assembleia da República, pelo artigo 5.° do Decreto n.° 167/XIV, pretendeu fazer da redacção do artigo 17.° da Lei do Cibercrime.
7.ª
Porém, tal redacção não entrou em vigor, pois que, em sede de fiscalização abstracta preventiva da constitucionalidade, foi, no Acórdão do Tribunal Constitucional n.° 687/2021, declarada inconstitucional, por violação das normas constantes dos artigos 26.°, n.° 1, 34.°, n.° 1, 35.°, n.°s 1 e 4, 32.°, n.° 4, e 18.°, n.° 2, da Constituição da República Portuguesa.
8.ª
Com o devido respeito por outro entendimento, temos que a interpretação feita pelo tribunal recorrido do disposto no artigo 17.° da Lei do Cibercrime (conjugado, na parte aplicável ao correio electrónico, com o artigo 179.° do Código de Processo Penal), não só não tem correspondência com a letra da lei (tendo em conta a redacção vigente), como é contrária a esta.
9.ª
Pelo que, entendemos que o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 17.° da Lei do Cibercrime e 179.° do Código de Processo Penal.
10.ª
Assim, se não for reparado (artigo 414.°, n.° 4, do Código de Processo Penal), deverá o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que defira a promovida apreensão de correio electrónico.”
Conclui pela revogação do despacho recorrido e pela substituição por outro que defira a apreensão de correio electrónico promovida.
*
1.2. Nesta Relação, a Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer em que diz acompanhar a argumentação do Digno Magistrado do Ministério Público junto da primeira instância.
1.3. Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
*
II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Âmbito do recurso e questões a decidir
Conforme entendimento pacífico são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respetiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objeto do recurso submetido à apreciação do tribunal de recurso, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que seja ainda possível conhecer.
Face às conclusões apresentadas pelo recorrente da respetiva motivação, extraímos a seguinte questão a decidir: encontrando-se em curso, em fase de inquérito, investigação com vista a apurar da eventual prática de crimes de falsificação de documentos e de subtração de documentos, saber se a apreensão de correio eletrónico carece, ou não, de despacho judicial a autorizá-la.
*
2.2. A decisão recorrida é a seguinte:
“Resulta do artigo 17.°, n.° 1, da Lei do Cibercrime que não há necessidade de obtenção de autorização judicial prévia para a apreensão de correio electrónico, sendo o mecanismo desencadeado quando no decurso de uma mera pesquisa for encontrado esse tipo de correio (cfr. João Conde Correia, "Comentário Judiciário do Código de Processo Penal", Tomo II, Almedina, pág. 650, §25).
Explicando: as mensagens de correio electrónicas encontradas no âmbito das buscas não domiciliárias ordenadas pelo Ministério Público só serão formalmente apreendidas pelo JIC, verificados os respectivos pressupostos, depois de cautelar, provisória e materialmente aprendidas pelos OPC nos termos do artigo 160, n.0 7, da LC. Como? O Ministério Público, "depois de tomar conhecimento do seu conteúdo, deve apresentar ao juiz suporte com as mensagens de correio electrónico ou semelhantes cautelarmente apreendidas (ou melhor, os dados informáticos que as constituem), juntamente com requerimento fundamentado para apreensão daquelas que considere de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, após o que o juiz apreciará, tomando conhecimento do seu conteúdo, e decidirá autorizar ou não autorizar a apreensão formal" (como demonstra Rui Cardoso, Revista do Ministério Público n.0 153, Jan.- Mar. 2018, pág. 193 e seguintes).
Assim sendo, caso na referida pesquisa informática sejam encontradas mensagens de correio electrónico, deverão tais mensagens, juntamente com promoção fundamentada para apreensão daquelas que o Ministério Público seleccione e considere de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, ser-me apresentadas, nos termos e para os efeitos do artigo 17.0 da Lei 109/2009, de 15/09.”
Este despacho foi proferido na sequência da seguinte promoção:
“DA REALIZAÇÃO DE BUSCAS NÃO DOMICILIÁRIAS, REVISTAS E PESQUISAS INFORMÁTICAS
*Investiga-se nos presentes autos, além do mais, a prática pelos denunciados (………., …………… e …………..), enquanto membros da Direcção do ................, de crimes de falsificação de documentos, previstos e punidos pelo artigo 256.°, n.° 1, al. d), e de subtracção de documento, previstos e punidos pelo artigo 259.° n.° 1, do Código Penal, consubstanciados, em suma, na adulteração de recibos emitidos no ano de 2018 (os mesmos recibos foram atribuídos a duas pessoas, sem que nas contas o clube dessem duas entradas em numerário) e na dissipação de recibos referentes a pagamentos (em numerário) efectuados pelo treinador ………...
Os factos e crimes referenciados foram denunciados por ……………., …………., …………. e ……………, ex-elementos da Direcção daquele ..., que referiram ter tido conhecimento dos mesmos já no ano de 2019. Os denunciantes foram inquiridos como testemunhas, tendo reiterado o que denunciaram, razão por que se consideram indiciados os referidos crimes.
Determina o artigo 178.°, n.° 1, do Código de Processo Penal que são apreendidos os objectos que tivessem servido ou tivessem destinados a servir à prática de um crime, bem como os que constituírem o seu produto, lucro ou recompensa, e ainda aqueles que sejam susceptíveis de servir como prova.
Dos autos resultam indícios que os denunciados praticaram os crimes acima indicados, importando, pois, proceder à apreensão de elementos — mormente documentos físicos e digitais, assim como mails trocados entre os intervenientes, respeitantes às situações acima referenciadas —, susceptíveis de concretizar e comprovar a actividade criminosa, revelando-se esta diligência essencial para a descoberta da verdade e prova dos factos em investigação e acima referenciados.
Dos elementos de prova colhidos até agora, conjugados com as regras da experiência, resulta que os elementos com relevo para a investigação se encontrarão na sede do ... .
Pelo exposto, e nos termos das disposições conjugadas dos artigos 1.°, ai.  b), 174.°, n. °s 1, 2, 3 e 4, 176.°, e 178,0, n. °s 1 a 3, todos do Código de Processo  Penal, e artigos 15.°. n.°s 1, 2 e 6, e 16.°, n.°s 1, 4 e 7 e 8, da Lei do Cibercrime,  determino a realização, no prazo máximo de 30 dias, das seguintes diligências —  as quais deverão observar os formalismos legais, designadamente o estatuído no artigo 176.° do Código de Processo Penal —. para apreensão de elementos, físicos  ou  electrónicos  com relevo para a investigação:
Busca (não domiciliária) ao seguinte local: sede do ..., sita ...;
Revistas aos suspeitos que se encontrem no local da busca referida na antecedente al. a);
c) Que no decurso da busca indicada na antecedente al. a), se proceda a pesquisa aos sistemas informáticos que se encontrem nos referidos locais ou na posse dos suspeitos, e apreensão de dados e/ou documentos (que não correio electrónico e/ou comunicações similares) que se encontrem nesses sistemas informáticos e que se mostrem com relevo para a investigação, preferencialmente, e se possível, por cópia dos dados, em suporte autónomo, ou não sendo possível, por uma das demais formas previstas no n.º 7 do artigo 16.º da Lei do Cibercrime.
*
Tiveram os presentes autos o seu início com a queixa apresentada ………., …………, ……… e ……………. contra ………., ………… e …………., na qual alegam, além do mais, que no dia 25/02/2019, os queixosos tiveram acesso aos elementos contabilísticos de 2018, relativos ao ..., tendo constatado, designadamente:
- a existência de recibos em duplicado (mesmo número de recibo atribuído a duas pessoas), sem que nas contas do ... aparecessem duas entradas em dinheiro;
- falta de recibos dos pagamentos efectuados pelo …….. (em numerário) e falta de registo de entrada dessas quantias nas contas do ... .
Em abstrato, tais factos são passíveis de integrar a prática, pelos denunciados, enquanto membros da Direcção do ... referido na queixa, de crimes de falsificação de documentos, previstos e punidos pelo artigo 256.°, n.° 1, al. d), e de subtracção de documento, previstos e punidos pelo artigo 259.° n.° 1, do Código Penal.
Inquiridos como testemunhas, os queixosos reiteraram os factos por si denunciados. Assim, e com base em tais depoimentos, temos que dos autos resultam indícios dos referidos crimes.
Como resulta do acima exposto, considera-se essencial para a investigação dos mencionados crimes a realização de busca à sede do ..., bem como a realização de pesquisas informáticas aos equipamentos que aí ou na posse dos suspeitos forem encontrados, tudo em vista a obter elementos (em suporte físico ou digital) que permita melhor apurar, delimitar e comprovar a actividade criminosa aqui objecto de investigação. Para além disso, e para o mesmo efeito, mostra-se indispensável colher as mensagens (de correio electrónico ou similares) trocadas entre os suspeitos e/ou entre estes e terceiros, relacionadas com os factos e crimes objecto de investigação.
Pelo exposto, e nos termos das disposições conjugadas dos artigos 1.°, al. b),  e 269.°, n.° 1. al. f), do Código de Processo Penal, e artigo 17.° da Lei do  Cibercrime, promovo que se ordene:
Que no decurso das buscas e pesquisa informáticas determinadas pela signatária na parte -I- constante supra, se proceda à apreensão da correspondência e ou registos de comunicações electrónica com relevo para a investigação, mormente da correspondência trocada entre os suspeitos ou entre eles e terceiros referentes aos factos acima descritos e/ou outros da mesma natureza, preferencialmente, e se possível, por cópia dos dados, em suporte autónomo, ou não sendo possível, por uma das demais formas previstas no n.º 7 do artigo 16.º da Lei do Cibercrime.
*
-Remeta os autos ao Mm.° JIC, para apreciação e decisão da promoção acima constante da parte -II-.
- Para tanto. atente-se que é territorialmente competente o Juízo Criminal de Angra do Heroísmo, para onde deverão ser os autos remetidos pela via mais expedita.
- Devolvidos os autos ao Ministério Público. emita os mandados a que se reporta a parte -I- constante supra.”
*
2.3. Apreciação do recurso
Entende o recorrente que a apreensão de correio electrónico deverá ser precedida de despacho do Juiz de Instrução Criminal, sob pena de nulidade.
Se bem se alcança da decisão em crise, o senhor Juiz de Instrução, não questionando a aplicação, ao caso, da Lei do Cibercrime (Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro), entende, à luz do disposto no seu art.º 17.º, que não há necessidade de obtenção de autorização judicial prévia para apreensão de correio eletrónico.
Dispõe o art.º 11.º, n.º 1, da citada Lei sob a epígrafe “Âmbito de aplicação das disposições processuais”, que “com excepção do disposto nos artigos 18.° e 19.°, as disposições processuais previstas no presente capítulo aplicam-se a processos relativos a crimes:
(...)c) Em relação aos quais seja necessário proceder à recolha de prova em suporte electrónico”.
Nos presentes autos, está precisamente em causa a apreensão do correio eletrónico e, por isso, não nos suscita dúvida a aplicação da Lei do Cibercrime (cfr. art.º 2.º, alíneas a) e b), da LC).
Dito isto, vejamos, então, as disposições legais pertinentes.
Nos termos do art.º 15.º, da Lei do Cibercrime:
“1. Quando no decurso do processo se tornar necessária à produção de prova, tendo em vista a descoberta da verdade, obter dados informáticos específicos e determinados, armazenados num determinado sistema informático, a autoridade judiciária competente autoriza ou ordena por despacho que se proceda a uma pesquisa nesse sistema informático, devendo, sempre que possível, presidir à diligência”.
Por seu turno, sobre a Apreensão de dados informáticos, dispõe o art.º16.º, do citado diploma:
“1. Quando, no decurso de uma pesquisa informática ou de outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontrados dados ou documentos informáticos necessários à produção de prova, tendo em vista a descoberta da verdade, a autoridade judiciária competente autoriza ou ordena por despacho a apreensão dos mesmos.
(...)3. Caso sejam apreendidos dados ou documentos informáticos cujo conteúdo seja susceptível de revelar dados pessoais ou íntimos, que possam pôr em causa a privacidade do respectivo titular ou de terceiro, sob pena de nulidade esses dados ou documentos são apresentados ao juiz, que ponderará a sua junção aos autos tendo em conta os interesses do caso concreto.
(...)”.Por fim, sob a epígrafe “Apreensão de correio electrónico e registos de comunicações de natureza semelhante”, prescreve o art.º 17.º:
“Quando, no decurso de uma pesquisa informática ou outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontrados, armazenados nesse sistema informático ou noutro a que seja permitido o acesso legítimo a partir do primeiro, mensagens de correio electrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão daqueles que se afigurarem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, aplicando-se correspondentemente o regime da apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal.”
A apreensão de correio eletrónico está em confronto com um conjunto de direitos liberdades e garantias, com a consagração constitucional: direitos ao sigilo da correspondência e à intimidade da vida privada, cuja violação, coloca em causa a dignidade da pessoa, o desenvolvimento da personalidade, e, essencialmente, o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar.
O regime previsto no art.º 16.º aplica-se sempre que esteja em causa a apreensão de dados informáticos e o do art.º 17.º sempre que esteja em causa a apreensão de correio eletrónico e registo de comunicações de natureza semelhante.
Ao contrário do que defende o senhor Juiz de Instrução, de acordo com o art.º 17.º transcrito, a apreensão de correio eletrónico ou registos de comunicação de natureza semelhante, carecem sempre de ordem ou autorização prévia do Juiz de Instrução.
Sobre esta temática já se pronunciou a nossa jurisprudência, a saber: acórdão do TRP, de 9.12.12; acórdãos do TRL de 01.11.2011, de 07.03.2018, de 0.02.2021 e de 22.02.2022; acórdão do TRE de 20.01.2015, entre muitos outros, nos quais se entende ser exigível a intervenção judicial.
A remissão efetuada pelo artº 17.º para o regime da correspondência, abrange quatro pressupostos específicos daquele regime:
i. a referência à nulidade;
ii. ao facto de ser aplicável a correio eletrónico e registos de comunicação de natureza semelhante enviado ou recebido pelo suspeito, mesmo que de um endereço eletrónico de outra pessoa;
iii. a proibição de apreensão de correio eletrónico e registos de comunicação de natureza semelhante trocado entre arguido e o seu defensor; e
iv. O facto de ter que ser o juiz que autorizou ou ordenou a diligência o primeiro a tomar conhecimento do respetivo teor.
O legislador criou um regime específico para apreensão de correio eletrónico e registos de comunicação de natureza semelhante, o que faz com que a respetiva apreensão não seja abrangida na previsão normativa do art.º 16.º, da Lei do Cibercrime.
Pela sua clareza, transcreve-se o sumário do acórdão do TRL, de 07.03.2018:
 “I. Com a aprovação da Lei do Cibercrime (Lei 109/2009 de 25 de Setembro) foi introduzida, pela primeira vez no nosso ordenamento, um regime jurídico de prova digital.
II. O regime de apreensão de correio electrónico e registos de comunicação de natureza semelhante mostra-se regulado directamente pelo artigo 17° da Lei do Cibercrime e, subsidiariamente (por remissão do mesmo) pelos pressupostos e requisitos legais relativos à apreensão de correspondência, previstos no art° 179° do CPP (deixando de se aplicar a extensão legal prevista no art° 189°, n° 1 do CPP).
III. Quer o art° 179°, n° 1 do CPP quer o art° 17° da Lei do Cibercrime sancionam com nulidade a violação das regras relativas à competência para a autorização de apreensão de correio electrónico.
IV. A intromissão nas comunicações e na correspondência está sujeita a autorização judicial, o que se justifica pelo princípio da proporcionalidade face à especial danosidade social que implica tal intromissão.
V. Da redacção do art° 17° da Lei do Cibercrime resulta de forma clara que não esteve no espírito do legislador transpor para o correio electrónico e registos de comunicações de natureza semelhante a distinção, por referência ao correio tradicional, de correio aberto ou fechado, o que desde logo se colhe do elemento literal previsto neste preceito legal com a expressão “armazenados” o que pressupõe que a comunicação já foi recebida/lida e, consequentemente, armazenada, além de não existirem razões para considerar diminuídas as exigências garantísticas do correio electrónico quando aberto/lido relativamente ao correio electrónico fechado, atenta a natureza própria destas comunicações.
VI. As mensagens de correio electrónico que se encontrem armazenadas num sistema informático só podem ser apreendidas mediante despacho prévio do Juiz de Instrução Criminal, devendo ser o juiz a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo da correspondência, conforme remissão para o art° 179° do CPP.
Nele se escreve, igualmente, que “tratando-se de direitos fundamentais a questão (artigo 34° da CRP) não poderá estar fora da sindicância jurisdicional a exercer pelo juiz de instrução criminal, enquanto juiz de garantias e de liberdades, por força do artigo 202º nº 2 da CRP quando afirma que, na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos e do artigo 17º do CPP quando estatui que o juiz de instrução tem competência, além do mais, (...) exercer todas as funções jurisdicionais até a remessa do processo a julgamento”.
Sobre esta questão escreveu Sónia Fidalgo (A apreensão de correio eletrónico e a utilização noutro processo das mensagens apreendidas, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 29, Janeiro-Abril de 2019, p. 73.) dizendo que o art.º 17.º, da Lei do Cibercrime, para além de expressamente fazer uma remissão para o regime de apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal ( art.º 179.º, n.º 1), o próprio art.º 17.º, daquela Lei determina que “quando, forem encontrados, mensagens de correio eletrónico ou registos de comunicações de natureza
semelhante o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão daqueles que se afigurem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova”
; a lei exige claramente um despacho judicial prévio a qualquer apreensão.
Enquanto se mantiver a redação atual, não deve o Ministério Público na sua função de direção do inquérito obedecendo em todas as intervenções processuais a critérios de estrita objetividade, deixar de requerer autorização judicial para a apreensão de correio eletrónico.
Assiste, pois, inteira razão ao recorrente.
Conclui-se, assim, no sentido de carecer de autorização judicial a apreensão de mensagens de correio eletrónico ou de registos de comunicações de natureza semelhante (como são as SMS) encontradas, no decurso de pesquisa informática ou outro acesso legítimo a um sistema informático, neste armazenadas, impondo-se, em consequência, a revogação de despacho recorrido.
*
III – DECISÃO
Nestes termos, e com os fundamentos expostos, acordam, em conferência, os Juízes que integram a 9.ª Secção desta Relação, em conceder provimento ao recurso interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO e, em consequência, revogar o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que, procedendo à avaliação/ponderação de acordo com o disposto no art.° 17.° da Lei do Cibercrime, decida em conformidade.
Sem custas (art.° 513.°, do Código de Processo Penal).

Lisboa, 5 de maio de 2022
(o presente acórdão foi elaborado pela relatora e integralmente revisto por ambas as signatárias – art.° 94.°, n.° 2, do Código de Processo Penal)
Maria José Cortes Caçador
Maria do Rosário Martins