Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5399/2007-6
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/22/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I. O art. 1014.º do CPC regula o objecto da acção especial da prestação de contas.
II. O direito substantivo define a atribuição do dever da prestação de contas.
III. Em termos gerais, quem administra bens ou direitos alheios está obrigado à prestação de contas.
IV. O tesoureiro, enquanto membro da Direcção de pessoa colectiva, não tem o dever da prestação de contas, com o alcance emprestado pelo art. 1014.º do CPC.
O.G.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO
C, com sede em Lisboa, instaurou, em 22 de Setembro de 1998, no então 15.º Juízo Cível da Comarca de Lisboa, contra Carlos, economista, acção declarativa, sob a forma de processo especial, pedindo que o Réu prestasse contas das importâncias do Autor que movimentara ou permitiu movimentar, nos anos de 1995 e 1996.
Para tanto, alegou, em síntese, que o R. foi seu tesoureiro, designadamente desde 31 de Março de 1988 até meados de 1996, sendo também gerente de T, Lda., que estava encarregada da execução da contabilidade, entre 1987 e 1996; como o R. tivesse apresentado um projecto de relatório e contas divergente da realidade, foi o mesmo rejeitado pela Direcção, que, após nova proposta de contas do R., determinou uma auditoria, da qual se pôde concluir pela verificação de irregularidades e desvios patrimoniais, imputáveis ao R., no valor de 9 411 847$70; as contas relativas aos exercícios de 1995 a 1997, apresentadas pelo tesoureiro, foram rejeitadas pela Assembleia-Geral, que aprovou as contas apresentadas pelo presidente da Direcção, baseadas no relatório da auditoria.
Contestou o Réu, impugnando a obrigação de prestar contas, para concluir pela improcedência da acção.
A A. respondeu à contestação.
Depois de se proceder à inquirição de testemunhas, foi proferido despacho, determinando-se que o R. prestasse contas. Por efeito do provimento do recurso interposto pelo último, foi anulada aquela decisão, por acórdão desta Relação de 9 de Outubro de 2003, para que, prosseguindo os autos, se apurassem factos tidos por indispensáveis.
Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida, em 19 de Janeiro de 2007, sentença que absolveu o R. do pedido.

Inconformada, apelou da mesma o Autor e, tendo alegado, formulou no essencial, as seguintes conclusões:
a) Provou-se que foram entregues ao R. dinheiro, cheques e outros valores da apelante.
b) O R. tinha o poder e dever de guardar e movimentar os dinheiros da A., o que efectivamente fez.
c) Consequentemente, a decisão do Tribunal viola o art. 1014.º do CPC.
Pretende, com o provimento do recurso, a revogação da decisão recorrida, condenando-se o R. a prestar contas.

Contra-alegou o R., no sentido de ser confirmada a sentença recorrida.
Cumpre apreciar e decidir.

Neste recurso, está em causa apenas a obrigação da prestação de contas pelo tesoureiro de uma pessoa colectiva.

II. FUNDAMENTAÇÃO

2.1. Na 1.ª instância, foram dados como provados os seguintes factos:

1. O C Subaquáticas tem carácter técnico, cultural e científico, sem fins lucrativos.
2. O CS foi instituído pela Câmara Municipal de Lisboa, como Museu Municipal da Vida Submersa.
3. O CS é um clube de mergulhadores e um centro de mergulho.
4. O R., desde 31 de Março de 1988 até 28 de Maio de 1996, data em que apresentou a sua demissão, foi membro da Direcção, tesoureiro.
5. O R. era, ao tempo, gerente de T, Lda., encarregada da execução da contabilidade do CPAS.
6. O réu votou contra a realização de uma auditoria, mas os demais membros da Direcção votaram favoravelmente, tendo sido escolhida, como auditora, Contabilidade e Serviço de Apoio Empresarial, Lda.
7. Concluída a auditoria, foi elaborado o relatório, conforme consta do documento n.º 3, junto com a petição inicial e apenso aos autos.
8. As contas do CS, relativas aos exercícios de 1995, 1996 e 1997, foram apresentadas pela Direcção à Assembleia-Geral, no mês de Julho de 1998.
9. O CS rege-se pelos estatutos “Remodelação Integral dos Estatutos da Associação Centro Português de Actividades Subaquáticas”, juntos a fls. 29 a 45.
10. As contas da Direcção, até ao biénio que terminou em 1993, foram aprovadas pela Assembleia-Geral, o mesmo acontecendo às do exercício de 1994.
11. Previamente à sua remessa à Assembleia-Geral, foram certificadas pelo Conselho Fiscal.
12. Os directores vão ao CS uma vez por semana reunir com os restantes membros da Direcção.
13. O CS está financeiramente dividido em quatro sectores: A tesouraria, o bar, a “boutique” e a organização de mergulhos.
14. O R. apresentou à Direcção e ao Conselho Fiscal uma versão preliminar das contas de 1995, para trabalho e análise, sendo que tal versão não foi aprovada pela Direcção e Conselho Fiscal.
15. O R. era o encarregado de controlar, gerir e contabilizar os fluxos financeiros do CPAS, fazendo-o com total autonomia e plena confiança dos demais membros da Direcção.
16. O R. apresentou aos demais colegas da Direcção um projecto de relatório e contas.
17. A Direcção rejeitou tal projecto e pediu ao R. que apresentasse novamente as contas, de forma mais rigorosa.
18. O R. aceitou continuar a dar alguma assistência à Direcção, até ser substituído estatutariamente após o termo do mandato, ocorrido em 31 de Dezembro de 1995.
19. A presidente da Direcção mandou passar um cheque de 30 800$00 e o Réu passou-o.
20. A presidente da Direcção mandou passar os cheques indicados a fls. 48, 49 e 50, que o R. assinou.
21. O R. não viu os recibos desses cheques, nem sabe qual foi a segunda assinatura dos mesmos.
22. Cada um dos sectores tinha um director responsável e o R. era director responsável pela tesouraria/secretaria.
23. Não são as pessoas que assinam os cheques que, na sua entrega, têm de providenciar pela sua troca por recibos.
24. Devido à autonomia funcional, cada sector do CS agia como entendia.
25. Foi contabilizada parte da receita (verbas recebidas), ficando a outra a aguardar justificação documental, da responsabilidade da organização de mergulhos.
26. A verba de 465 900$00 foi recebida, mas não foi contabilizada porque a organização autónoma competente não apresentava a documentação.
27. No Verão de 1995 verificou-se um roubo nas instalações do CPAS, que se traduziu no desaparecimento de bens materiais, dinheiro e cheques assinados e emitidos para fornecedores e documentação de contabilidade.
28. O R. não teve conhecimento das contas de 1995 levadas à Assembleia-Geral.

2.2. Descrita a matéria de facto provada, expurgada de repetições, importa agora conhecer do objecto do recurso, delimitado pelas respectivas conclusões, e cuja questão jurídica emergente, como antes se destacou, respeita somente à obrigação, ou não, do tesoureiro de pessoa colectiva prestar contas perante a mesma.
A sentença recorrida concluiu que o apelado não tinha o dever, legal ou estatutário, de prestar contas ao apelante.
Este, porém, continua a insistir em tal obrigação, dado que o apelado, como tesoureiro, recebeu “dinheiro, cheques e outros valores”, arguindo a violação do disposto no art. 1014.º do Código de Processo Civil (CPC).

Esta disposição legal, regulando o objecto da acção especial de prestação de contas, fixa, por um lado, a regra da legitimidade activa e passiva e define, por outro, o objecto da acção. Não se estabelece, e muito menos em termos expressos, quem deva prestar contas.
Trata-se, com efeito, de uma mera disposição adjectiva, cabendo ao direito substantivo, por sua vez, a discriminação da sua atribuição.
Para além da enumeração casuística do dever de prestação de contas, é ainda possível formular um princípio de ordem geral, segundo o qual quem administra bens ou direitos alheios está obrigado a prestar contas da administração ao respectivo titular (ALBERTO DOS REIS, Processos Especiais, I, pág. 303).
Esclarecido já que o art. 1014.º do CPC não prevê, em concreto, qualquer situação identificada com o dever de prestação de contas, verifica-se, também, que o apelante não individualizou qualquer disposição legal, de natureza substantiva, que prescrevesse tal dever ao apelado.
Deste modo, faltando a disposição legal específica a atribuir o dever de prestação de contas, importará indagar se o princípio de ordem geral, que se identificou, tem aplicação no caso presente.
Como aspecto relevante desse princípio, ressalta a característica da administração de bens ou direitos alheios, que, naturalmente, pressupõe o seu exercício de forma autónoma, designadamente sem qualquer subordinação jurídica para com o titular dos bens ou direitos.

Desenhado abstractamente o quadro normativo vigente, importa ponderar se os factos constantes dos autos aí se podem inserir, para então determinar se o apelado tem o dever de prestação de contas, pelo exercício das suas funções, enquanto membro de um órgão social de pessoa colectiva, nomeadamente de tesoureiro.
Na verdade, o apelado integrou a Direcção do apelante, incumbindo-lhe nesse âmbito o desempenho das funções de tesoureiro. Todavia, enquanto membro desse órgão social, o apelado actua e exprime a vontade própria da respectiva pessoa colectiva. Actua, assim, em sua representação, a quem são imputáveis os respectivos actos.
Neste contexto, facilmente se depreende que o apelado, ao administrar como tesoureiro da Direcção o património do apelante, não está a administrar bens alheios, mas bens próprios da pessoa colectiva, cuja legitimidade lhe advém da qualidade de membro da respectiva Direcção. Os actos praticados nesse âmbito, pelo apelado, não são actos próprios deste, mas antes da pessoa colectiva.
Torna-se, assim, claro que, excluída a configuração da situação de administração de bens alheios, não há fundamento para a aplicação do princípio geral da obrigação da prestação de contas, com o alcance conferido pelo disposto no art. 1014.º do CPC.
Nestas condições, não faria sentido qualquer apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas, assim como a eventual condenação no pagamento do saldo que viesse a apurar-se.
Certamente, embora com um sentido muito mais amplo da prestação de contas, que ultrapassa o consagrado no art. 1014.º do CPC, o apelado não deixa de ter o dever societário de prestar contas aos restantes membros da Direcção, até para esta poder, designadamente, cumprir a obrigação estatutária de apresentação das contas, com submissão à aprovação do órgão social competente.
Aliás, como resulta da materialidade apurada nos autos, as contas do apelante, relativas aos exercícios de 1995 e 1996 (espaço temporal da pretensão jurisdicional), foram até apresentadas pela Direcção à respectiva Assembleia-Geral (8.).
Concluindo, afirma-se que o apelado, enquanto membro da Direcção do apelante, com a distribuição das funções de tesoureiro, não tem o dever da prestação de contas, com o alcance que lhe empresta o art. 1014.º do CPC.
A falta de exigência legal desse dever - importa deixar claro - não obsta, obviamente, à efectivação da eventual responsabilidade civil imputável ao respectivo tesoureiro, emergente do alegado “desvio de fundos”, desde que, evidentemente, se verifiquem os correspondentes pressupostos legais.

2.3. Em face do descrito, pode concluir-se como mais relevante:
I. O art. 1014.º do CPC regula o objecto da acção especial da prestação de contas.
II. O direito substantivo define a atribuição do dever da prestação de contas.
III. Em termos gerais, quem administra bens ou direitos alheios está obrigado à prestação de contas.
IV. O tesoureiro, enquanto membro da Direcção de pessoa colectiva, não tem o dever da prestação de contas, com o alcance emprestado pelo art. 1014.º do CPC.

Nestes termos, improcedendo a apelação, é caso para confirmar a sentença recorrida, a qual não violou qualquer disposição legal, nomeadamente o invocado art. 1014.º do CPC.

2.4. O apelante, ao ficar vencido por decaimento, é responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art. 446.º, n.º s 1 e 2, do CPC.
As pessoas colectivas de mera utilidade pública, como o apelante alega ser, não gozam em regra da isenção subjectiva de custas, nomeadamente ao abrigo do disposto na alínea f) do n.º 1 do art. 2.º do Código das Custas Judiciais, na redacção anterior à introduzida pelo DL n.º 324/2003, de 27 de Dezembro (SALVADOR DA COSTA, Código das Custas Judiciais, 4.ª edição, pág. 78).

III. DECISÃO

Pelo exposto, decide-se:
1) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.

2) Condenar o A. no pagamento das custas.
Lisboa, 22 de Novembro de 2007
(Olindo dos Santos Geraldes)
(Fátima Galante)
(Ferreira Lopes)