Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | PAULA CARDOSO | ||
| Descritores: | CESSAÇÃO ANTECIPADA DA EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE NOTIFICAÇÃO DOS CREDORES VENDA DE IMÓVEL ANTES DA INSOLVÊNCIA INSOLVÊNCIA CULPOSA | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 07/13/2023 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
| Sumário: | I- A cessação antecipada do procedimento de exoneração, nos termos do disposto no artigo 243.º, n.º 1, do CIRE, depende de um pedido fundamentado dirigido ao juiz por quem detém legitimidade para o efeito, não podendo tal incidente ser oficiosamente iniciado pelo tribunal. II- Se o Juiz do processo, dando conta de determinada factualidade, determina a notificação dos credores para efeitos de uma eventual cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, e estes vêm aos autos, em requerimento fundamentado, alegar os factos que permitem aquela cessação, concluindo e requerendo de forma expressa a cessação antecipada do procedimento de exoneração em curso, a que o tribunal dá seguimento, nenhuma violação ocorre do disposto no n.º 1 do artigo 243.º do CIRE. III- Devendo tal requerimento ser apresentado no prazo dos seis meses seguintes à data em que os requerentes tiveram ou poderiam ter tido conhecimento dos fundamentos invocados, devendo ser oferecida logo a respetiva prova, à luz do n.º 2 do artigo 243.º do CIRE, tal prazo foi respeitado nos autos tendo por referência os requerimentos inicialmente juntos pelos dois credores que deram origem ao incidente em causa, que o tribunal entendeu depois suspender, dando continuidade ao mesmo após o trânsito em julgado da sentença que qualificou de culposa a insolvência. IV- É motivo de cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante a venda de um imóvel por parte dos insolventes, em momento anterior à apresentação à insolvência, sem que nada noticiassem nos autos e sem que tivessem destinado o apuro com a venda ao pagamento igualitário dos seus credores. V- A tanto não obsta o facto de não terem contraído diretamente os créditos reconhecidos pela AI, sendo apenas avalistas em todos os créditos reclamados, pois que, à luz do artigo 32.º da LULL, assumem a responsabilidade legal do pagamento, resultando do regime legal ali previsto que o avalista responde por uma obrigação própria e não de terceiro. VI- O comportamento que adotaram na sequência da venda em causa (ao terem dissipado o remanescente do preço recebido pela venda do seu património, deixando alguns dos seus credores sem qualquer garantia patrimonial), antes de lhes ser deferido inicialmente o seu pedido de exoneração, determinaria o indeferimento liminar do mesmo se tal venda e destino do valor recebido tivesse sido noticiado nos autos em momento prévio àquele despacho, à luz do artigo 238.º n.º 1 al. e) do CIRE (por indiciar a probabilidade da existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º), situação que foi depois reforçada perante a qualificação culposa da insolvência, como decorre da al. c) do artigo 243.º do CIRE (qualificada pelas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE), assim permitindo a cessação antecipada do procedimento de exoneração em curso. | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA I./ Relatório: N… e C…, casados no regime de comunhão de adquiridos, ambos residentes no …. apresentaram-se à insolvência, deduzindo, simultaneamente, pedido de exoneração do passivo restante. Por sentença proferida em 15/12/2020, foi declarada a insolvência dos requeridos e por despacho de 18/03/2021 foi proferido despacho inicial no âmbito do incidente de exoneração do passivo restante. Por requerimento de 12/04/2021, a AI veio informar que na sequência das pesquisas efetuadas constatou que os insolventes procederam à venda de um imóvel (fração autónoma letra “N”), tendo com o produto da venda agido preferencialmente por determinados credores em prejuízo dos demais. Por despacho de 04/06/2021, foi ordenada a notificação dos credores, da AI e dos devedores para se pronunciarem quanto à cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, tendo-se alguns credores pronunciado no sentido de ser declarado cessado antecipadamente o procedimento em curso. Por despacho de 16/07/2021, atendendo a que no apenso B estava em discussão a questão da qualificação de insolvência, foi determinado que a decisão relativa à cessação antecipada do benefício de exoneração do passivo restante aguardaria pelo apuramento dos factos naquele apenso, que possuíam interesse para este último incidente. Por sentença proferida em 18/12/2021 foi qualificada como culposa a insolvência, o que veio a ser confirmado em recurso por este Tribunal da Relação, por decisão sumária proferida em 18/03/2022. Na sequência do trânsito em julgado do assim decidido, por despacho proferido em 17/02/2023, o tribunal determinou a notificação dos intervenientes para se pronunciarem quanto à cessação antecipada da exoneração do passivo restante. Os devedores opuseram-se a tal cessação antecipada, alegando em suma que: - O Tribunal carece de legitimidade para despoletar a declaração de cessação antecipada; - Decorreram mais de seis meses desde o trânsito em julgado da sentença de qualificação proferida no apenso, conforme previsto no art.º 243º, n.º 2, do CIRE; - Têm cumprido escrupulosamente com as suas obrigações durante o período de cessão e pretendem continuar a fazê-lo até ao seu término, sem prejuízo de eventual prorrogação do mesmo, de modo a cumprirem todas as obrigações a que foram condenados, nomeadamente quanto ao pagamento de indemnização a pagar aos credores nos termos da sentença proferida no incidente de qualificação. Por requerimentos que dirigiram aos autos em 24/02 e 01, 02, 03 e 06 de março de 2023, os credores Banco Primus, BCP, S.A., CGD, SA, LX Investments Partners e o Montepio, pronunciaram-se no sentido de ser declarado cessado antecipadamente o procedimento de exoneração em curso. Foi então proferido despacho em 02/04/2023, que terminou com o seguinte dispositivo «Nestes termos, pelos fundamentos expostos, declaro cessado antecipadamente o procedimento de exoneração do passivo restante requerida nestes autos por N… e C… (…)». Não se conformando com o teor desta decisão, apelaram os insolventes formulando, a final, as seguintes conclusões, que se reproduzem: «I. O despacho ora em crise declarou a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, tendo os recorrentes recusado tal cessação antecipada, porquanto, no entendimento destes, o douto Tribunal a quo carece de legitimidade para despoletar a declaração de cessação antecipada e, por outro lado, a previsão constante na alínea c) do artigo 243.º do CIRE não deve ter como consequência natural, direta e necessária a cessação antecipada de exoneração, nomeadamente nas situações em que os devedores se encontram a cumprir as obrigações decorrentes do período de cessão. II. Ora, nos termos do n.º 1 do artigo 243.º do CIRE, antes ainda de terminado o período de cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, nas situações ali previstas. III. Sucede que, após o trânsito em julgado da sentença de qualificação de insolvência como culposa, o tribunal a quo procedeu à notificação de todos os intervenientes para se pronunciarem quanto à cessação antecipada da exoneração do passivo restante. IV. A dita sentença transitou em julgado em Abril de 2022, tal como é do conhecimento de todos os credores. Deste modo, nos termos do n.º 2 do artigo 243.º do CIRE, os intervenientes têm o prazo de seis meses para requerer a cessação antecipada do procedimento de exoneração após a data em que tenham conhecimento dos fundamentos invocados. V. Tratando-se nos presentes autos de cessação antecipada do procedimento de exoneração com fundamento na alínea c) do n.º 1 do art.º 243.º do CIRE, isto é, de decisão judicial do incidente de qualificação de insolvência, teriam os intervenientes de requerer a cessação antecipada no prazo de 6 meses após o seu trânsito em julgado, o que não ocorreu. VI. Verifica-se que nenhum dos intervenientes com legitimidade para requerer a cessação antecipada o fez tempestivamente, tendo só após notificação, os credores pronunciam-se em sentido afirmativo da exoneração antecipada, todavia já se manifestaram extemporaneamente à luz do n.º 2 do art.º 243.º do CIRE. VII. Pelo exposto, o Douto Tribunal recorrido violou os artigos 3.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, ambos do CPC, ao decidir pela cessação antecipada do procedimento de exoneração sem que tal tivesse sido requerido por qualquer dos intervenientes processuais, nos termos ínsitos do art.º 243.º do CIRE. VIII. Os recorrentes têm cumprido escrupulosamente com as suas obrigações durante o período de cessão, e pretendem continuar a fazê-lo até ao seu término. IX. Os recorrentes manifestaram-se junto do tribunal a quo no sentido de aceder a uma eventual prorrogação do período de cessão, de modo a cumprirem todas as obrigações a que foram condenados em sede de incidente de qualificação, nomeadamente quanto ao pagamento de indemnização a pagar aos credores. X. Ao decretar a cessação antecipada do procedimento de exoneração, com inerente recusa dela quanto ao passivo restante, sem a prática de quaisquer diligências e sem análise factual, o douto Tribunal a quo violou os princípios da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da justiça e da solidariedade, ínsitos no artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa. XI. Ora, apesar de ter sido apurada culpa dos Insolventes, em virtude do transito em julgado do incidente de qualificação da insolvência, o mesmo não quer dizer que os Insolventes tiveram “...culpa na criação ou agravamento da situação de insolvência...” (alínea c) do N.º 3 do artigo 243.º do CIRE) XII. Na realidade, caso o Douto Tribunal tivesse tido presente a prova do processo de insolvência, verificava que nenhuma divida reclamada nos presentes autos foi criada pelos Insolventes, visto que os mesmos eram fiadores em todos os créditos reclamados. XIII. Assim, com o devido respeito, considera-se que a conclusão do Douto Tribunal a quo, está errada, pois em momento algum existe alguma evidencia da existência de culpa na criação ou agravamento da situação de insolvência. XIV. Pelo exposto, deve a decisão ora em crise ser revogada e substituída por outra que ordene o prosseguimento do procedimento de exoneração do passivo restante. Nestes termos e nos melhores de direito cujo suprimento de V. Ex.ªs Venerandos Juízes Desembargadores, se invoca, Deve o presente recurso ter provimento e em consequência ser revogado o douto despacho ora em crise, sendo o mesmo substituído por outro que ordene o prosseguimento do procedimento de exoneração, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA». Admitido o recurso, e remetidos os autos a este Tribunal da Relação, colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir. * II./ Questões a decidir: Estando o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, tal como decorre dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal, consistem em aferir se se encontram verificados os pressupostos do artigo 243.º do CIRE para que haja lugar a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante. * III./ Fundamentação de facto: Para a decisão do presente recurso, para além do que consta já do relatório que antecede, importam também os factos considerados pela decisão recorrida: 1. Em 11/12/2020, N… e C… apresentaram-se à insolvência, alegando em suma que: - O Requerente marido tem 39 anos e trabalha na …… Informação, Lda., auferindo o vencimento base mensal de €635,00; - A Requerente esposa tem 41 anos e encontra-se a trabalhar na I.P.S.S (Instituição Particular de Solidariedade Social) …, auferindo cerca de €1.330,27; - Durante largos anos, os Requerentes deram o seu aval em diversos créditos da empresa ……, Lda.; - A crise pandémica da doença Covid-19 agravou a situação económica dos Requerentes, visto que, em virtude da execução dos diversos avais dados à empresa supra identificada, os Requerentes não conseguem claramente pagar as despesas e dívidas existentes; - Dado o parco salário dos Requerentes, estes encontram-se a viver nos últimos tempos à custa da ajuda e caridade de família e amigos; - Os Requerentes tentaram desesperadamente pagar aos credores, mas comparando a dimensão das dívidas com os seus agora diminutos rendimentos, e tendo ainda a sua situação sido agravada pela crise pandémica causada pela doença Covid-19, os Requerentes sentem-se incapazes de o fazer; - A condição financeira atual dos Requerentes, não lhes permite de forma alguma, pagar as dívidas existentes até ao momento, que atingem o valor aproximado de € 317.507,11. 2. Requereram a exoneração do passivo restante. 3. Por sentença proferida em 15/12/2020, transitada em julgado, foi declarada a insolvência dos requerentes. 4. Não foram apreendidos quaisquer bens pertencentes aos insolventes. 5. Por despacho proferido em 18/03/2021 foi admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante e fixado o rendimento disponível naquilo que os devedores viessem a obter, em tudo o que excedesse a quantia global de €1.330,00 mensais, equivalentes a duas vezes o valor da RMMG, que se considerava cedido ao fiduciário nomeado. Igualmente se considerou como rendimento disponível para efeitos de entrega o correspondente a 25% dos subsídios de férias e de natal eventualmente recebidos pelos insolventes. 6. Por via do consignado expressamente no despacho suprarreferido os devedores ficaram ainda obrigados, nomeadamente, a não ocultarem ou dissimularem quaisquer rendimentos que aufiram, por qualquer título, e a informarem o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhes seja requisitado. 7. Por requerimento de 12/04/2021, a AI juntou aos autos a escritura de compra e venda celebrada pelos devedores em 23/07/2020, informando terem os mesmos agido preferencialmente por determinados credores em prejuízo dos demais, recebendo o preço no valor de €138.000,00 e amortizando uma hipoteca no valor de €60.000,00. 8. Mediante requerimentos de 14/06/2021 e 16/06/2021, os credores Banco Santander Totta e Banco Primus, requereram a cessação antecipada do procedimento de exoneração (eliminamos a referência aos req. de 18/06 e de 21/06/2021, que abaixo destacaremos, à luz do artigo 662.º n.º 1 do CPC); 9. Foram reconhecidos créditos pela AI no valor de €393.633,50 nos seguintes termos: a) Banco BPI, S.A., no valor de €15.844,07, relativo a Fundo de Maneio e Investimento e Cartão de Crédito BPI Business Classic avalizados pelos insolventes, encontrando-se em dívida à data da declaração de insolvência a quantia de €827,49; b) Banco Comercial Português, S.A., no valor de €9.375,00, relativo a um contrato de mútuo avalizados pelos insolventes, que se venceu na data de declaração de insolvência; c) Banco Santander Totta, S.A., no valor de €41.508,51, relativo a quatro contratos de crédito avalizados pelos insolventes, tendo as últimas prestações sido pagas em 28/09/2019, 05/07/2019, 29/09/2019 e 19/12/2020; d) Banco Primus, S.A., no valor de €2.583,05, relativo a um contrato de crédito avalizado pelos insolventes, tendo a última prestação sido paga em fevereiro de 2020, e deu origem ao Processo n.º 8302/20.3T8SNT – Juízo Execução Sintra; e) Bankinter, S.A. - Sucursal em Portugal no valor de €59.181,56, relativo a dois contratos de empréstimo avalizados pelos insolventes, sendo mutuária a sociedade comercial “…, Lda.”, que foi declarada insolvente em 05/03/2020, no processo n.º 18555/19.4T8SNT, deste Juízo de Comércio de Sintra (Juiz 3); f) Caixa Económica Montepio Geral, Caixa Económica Bancária, S.A., no valor de €43.587,18, relativo a quatro contratos de mútuo, um contrato de factoring e um contrato de Plafond Financiamento a Operações Internacionais, avalizados pelos insolventes, tendo deixado de ser pagas prestações, designadamente, em 22/08/2019 e 06/09/2019; g) Caixa Geral de Depósitos, S.A, no valor de €188.902,43, relativo a dois contratos de crédito em conta-corrente, concedidos à sociedade comercial “…, Lda.”, e avalizados pelos insolventes, tendo aquela sido declarada insolvente em 05/03/2020, no processo n.º 18555/19.4T8SNT, deste Juízo de Comércio de Sintra (Juiz 3); h) Lisgarante – Sociedade de Garantia Mútua, S.A., no valor de €31.942,92, relativo a quatro livranças avalizadas pelos insolventes. 10. Por sentença proferida em 18/12/2021, transitada em julgado, foi qualificada como culposa a insolvência de N… e C…, tendo os mesmos sido declarados inibidos da administração do património de terceiros e para o exercício do comércio, bem como para ocuparem qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, por um período de 2 (dois) anos, e ainda, condenados a indemnizarem os credores no montante de €50.000,00. 11. Na sentença acima referida consideraram-se, entre outros, provados os seguintes factos: - Em 23/07/2020 os insolventes procederam à venda da fração autónoma letra “N”, correspondente ao terceiro andar B, sita em Rinchoa na Rua …e Avenida …, n.ºs 28, 28-A e 28-B, em 23/07/2020, descrita na Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o n.º 4369 e inscrita na matriz predial urbano n.º 9218 freguesia de Rio de Mouro, concelho de Sintra, com intervenção de uma Agência Imobiliária, pelo preço de €138.000,00. - Daquele montante, liquidaram o empréstimo ao «Novo Banco, S.A.», no valor de €60.000,00, por ser beneficiário de uma hipoteca sobre o imóvel; - Ao longo de largos meses, os Insolventes acabaram por recorrer a diversos cartões de crédito, que acabaram por ser totalmente saldados aquando da venda do imóvel; - Os insolventes agiram preferencialmente por determinados credores em prejuízo dos demais. Atentamos também, por uma questão de rigor, em face da análise dos aludidos requerimentos juntos aos autos, que: - Em requerimento de 18/06/2021, a Administradora de Insolvência consignou que «… vem pronunciar-se quanto á possibilidade da cessão antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, por se encontrarem reunidos elementos que indiciam a existência de culpa dos devedores na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do art.º 186.º do CIRE». - Em requerimento de 21/06/2021, a credora Caixa Geral de Depósitos, S.A., consignou que «… na sequência do despacho datado de 07.06.2021, pronunciar-se favoravelmente à cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, nos termos e para os efeitos do artigo 186.º e alínea e) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE, face à informação já descrita nos autos». * IV./ Do mérito do recurso: Em causa nos autos está a decisão recorrida que declarou antecipadamente cessado o procedimento de exoneração do passivo restante, sustentada no facto de entender que a escritura de 12/04/2021 constituiu um ato de privilegiar determinados credores e ainda de subtrair ao património dos insolventes, para satisfação dos credores da insolvência, a quantia total de €78.000,00, poucos meses antes da apresentação a juízo, conduta não admissível do ponto de vista da juridicidade prevalente para que seja concedida a exoneração aos devedores que adotaram nitidamente uma atitude oposta aos princípios de total transparência na apresentação à insolvência perante os seus credores. Foi assim considerado pelo tribunal recorrido que se encontravam preenchidos os requisitos previstos no artigo 243.º n.º 1 al. b) (1- Antes ainda de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando: (…) b) Se apure a existência de alguma das circunstâncias referidas nas alíneas b), e) e f) do n.º 1 do artigo 238.º, se apenas tiver sido conhecida pelo requerente após o despacho inicial ou for de verificação superveniente) ex vi artigo 238.º n.º 1 al. e) (1- O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se: (…) e) Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º); e ainda artigo 243.º n.º 1 al. c), do CIRE (c) A decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência). É contra esta decisão que se insurgem os recorrentes, argumentando, em suma (i) que não compete ao tribunal dar andamento ao procedimento de cessação antecipada do procedimento de exoneração, pois que apenas os intervenientes processuais têm legitimidade para o efeito; (ii) que os intervenientes têm o prazo de seis meses para o requerer, o que, nos autos, atenta a data do trânsito em julgado da decisão proferida no incidente de qualificação de insolvência, já havia decorrido quando os credores se vieram pronunciar em sentido afirmativo da exoneração antecipada; e ainda (iii) que nenhuma divida reclamada nos autos foi criada pelos Insolventes, visto que os mesmos eram apenas fiadores em todos os créditos reclamados, não criando nem assim agravando a insolvência e que têm cumprido escrupulosamente com as suas obrigações durante o período de cessão, tendo-se manifestado junto do tribunal a quo no sentido de aceder a uma eventual prorrogação do período de cessão, de modo a cumprirem todas as obrigações a que foram condenados em sede de incidente de qualificação, nomeadamente quanto ao pagamento de indemnização a pagar aos credores, violando assim a decisão recorrida os princípios da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da justiça e da solidariedade, ínsitos no artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa. Vejamos então. O instituto da exoneração do passivo restante encontra-se previsto nos artigos 235.º e ss. do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), e, como escreve Catarina Serra, (na obra “O Novo Regime Português da Insolvência - Uma Introdução”, págs. 73 e 74), tem como objetivo «a extinção das dívidas e a libertação do devedor, para que, «aprendida a lição, este não fique inibido de começar de novo e de, eventualmente, retomar o exercício da sua atividade económica». No que concerne à cessação antecipada do procedimento de exoneração, e no que ao caso agora interessa, as causas que o permitem, à luz do convocado artigo 243.º, n.º 1, alínea b) do CIRE, são situações justificativas do indeferimento liminar do pedido, previstas no artigo 238.º, sendo, contudo, supervenientes, ao nível do seu conhecimento ou verificação, relativamente ao despacho inicial. É o caso dos autos, pois que, aquando do despacho liminar de 18/03/2021 era ainda desconhecida no processo a escritura de compra e venda outorgada pelos insolventes em 23/07/2020, que a AI apenas trouxe aos autos em 12/04/2021. Foi após essa junção que o tribunal a quo deu o alerta aos credores, notificando-os para tomarem posição à luz da eventual cessação antecipada do procedimento de exoneração. Será correto tal procedimento? Da lei decorre, sem margem para dúvidas, que a cessação antecipada depende de requerimento dirigido ao juiz por quem para tanto tenha legitimidade, não podendo, desta feita, o incidente em causa ser iniciado oficiosamente pelo tribunal (veja-se, nesse sentido, entre muitos outros, as decisões dos acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 19/05/2022, processo n.º 4112/18.6T8VCT.G1, relatado por José Alberto Moreira Dias, e da Relação de Évora de 03/12/2020, processo n.º 92/14.5T8OLH.E1, relatado por José Manuel Barata e de 24/02/2022, processo n.º 8098/19.1T8STBD.E1, relatado por Francisco Matos, todos disponíveis na dgsi). Neste último aresto consignou-se mesmo que «… Impulsionando ex officio um procedimento que a lei coloca na disponibilidade dos credores, do administrador da insolvência ou do fiduciário, o juiz da insolvência violou o princípio da disponibilidade da tutela jurisdicional especialmente prevista no n.º 1 do artigo 243.º do CIRE, o que significa que, também por esta razão, a decisão recorrida, a nosso ver, carece de correção». Posto isto, revertendo ao caso em apreço, em face da argumentação deduzida em (i) pelos recorrentes, constata-se que, nos autos, apesar de ter dado o alerta, não podemos concluir que o procedimento de cessação antecipada do procedimento de exoneração tivesse sido oficiosamente desencadeado pelo tribunal, com a prolação da decisão recorrida, sem que nenhum credor da insolvência ou a fiduciária tivesse solicitado essa cessação mediante a apresentação de requerimento, formulando expressamente esse pedido e indicando quais os concretos fundamentos em que o alicerçava, tudo conforme expressa exigência do n.º 1 do artigo 243.º do CIRE. Ao contrário do sucedido nos arestos acima citados, em que a decisão recorrida foi proferida sem nada ter sido requerido, ou onde apenas chegaram aos autos declarações passivas, do tipo de “nada terem a opor à cessação”, no caso de que aqui cuidamos assim não foi, bastando para o efeito ler os requerimentos apresentados em 14/06/2021 e 16/06/2021, pelos credores Banco Santander Totta e pelo Banco Primus, onde os mesmos alegaram os factos e concluíram, requerendo expressamente, a cessação antecipada do procedimento de exoneração, o que voltaram novamente a fazer por requerimentos que dirigiram aos autos em 24/02 e 01/03/2023, sendo agora acompanhados pelos requerimentos de 03 e 06 de março de 2023, pelos credores LX Investments Partners e Montepio (exceção feita aos requerimentos de 18/06/2021 e 21/06/2021, da AI/fiduciária, e da CGD, SA, pois que, em bom rigor, e como resulta do elenco dos factos apurados, nenhum pedido expresso e concreto formularam). Destarte, ao proferir o despacho recorrido o tribunal a quo fê-lo na sequência do expressamente requerido nos autos, e não oficiosamente, não ocorrendo assim a alegada violação do disposto no n.º 1 do artigo 243.º do CIRE. Improcede, pois, e nesta matéria, o recurso intentado. Como segunda frente de batalha argumentam os recorrentes, como vimos, (ii) a extemporaneidade do pedido, à luz do n.º 2 do artigo 243.º do CIRE, por terem, segundo dizem, decorridos mais de seis meses sobre o trânsito em julgado da decisão proferida no incidente de qualificação de insolvência quando os credores se vieram pronunciar em sentido afirmativo da exoneração antecipada. Estamos em presença de um prazo de caducidade, que, ultrapassado, faz desencadear a extinção do direito. Tal prazo, contudo, manifestamente não decorreu nos autos. Veja-se que, em bom rigor, foram os requerimentos apresentados em 14/06/2021 e 16/06/2021, pelos credores Banco Santander Totta e pelo Banco Primus, que deram início ao incidente da cessação antecipada do procedimento de exoneração, incidente que o tribunal entendeu depois “suspender” (assim se subentende), por despacho de 16/07/2021, enquanto não fosse decidido o apenso B, decisão contra a qual ninguém reagiu. Transitada em julgado tal decisão, o incidente retomou o seu curso, não podendo o prazo de seis meses ser agora contado dos novos requerimentos que os credores fizeram juntar aos autos, após o trânsito em julgado da sentença de qualificação de insolvência, como pretendem os recorrentes, muitos deles remetendo até para os anteriormente juntos, esses sim verdadeiramente iniciadores do incidente em apreço. A decisão recorrida não merece, também aqui, qualquer censura. Finalmente, sustentando-se a decisão recorrida no facto de entender que a escritura de 12/04/2021 constituiu um ato de privilegiar determinados credores e de subtrair ao património dos insolventes, para satisfação dos credores da insolvência, a quantia total de €78.000,00, poucos meses antes da apresentação a juízo, o que veio a ser dissecado em sentença que julgou culposa a insolvência, não vemos de que forma tal juízo possa ser afastado. No entender dos insolventes, em última análise argumentativa (iii), os mesmos não criaram nenhuma dívida, sendo apenas fiadores em todos os créditos reclamados, não criando nem assim agravando a insolvência, argumentação que, a nosso ver, nenhum sentido faz, nem tem qualquer fundamento legal, pois que, em termos jurídicos, estando provado nos autos que os insolventes foram avalistas em diversos contratos que titulam os créditos reclamados, à luz do artigo 32.º da LULL, os mesmos são responsáveis pela sua liquidação, mantendo-se a sua obrigação mesmo no caso de ser nula a obrigação por eles garantida por qualquer razão que não seja um vício de forma. Sendo o aval uma garantia pessoal das obrigações, um ato cambiário que origina uma obrigação autónoma independente e pessoal, cujos limites são aferidos pelo próprio título, o avalista assume, ele próprio, a responsabilidade legal do pagamento, assim resultando deste regime que o avalista responde por uma obrigação própria e não de terceiro. Não tem, pois, qualquer razão de ser e fundamento legal a distinção efetuada pelos recorrentes, entre dívidas criadas ou avalizadas, na qual insistem nas presentes alegações de recurso. Ainda que não tendo contraído diretamente os créditos reconhecidos pela AI, no valor de €393.633,50, os insolventes por eles são responsáveis, facto que não podemos olvidar, nem desvalorizar. E mais. Sabedores desses créditos, que, em face dos avais prestados, não podiam desconhecer ou ignorar, venderam o seu único imóvel (nenhum bem foi apreendido para a massa insolvente) e com o produto da respetiva venda, para além do pagamento, natural e compreensível do crédito garantido por hipoteca, não encaminharam o seu remanescente para o pagamento igualitário dos seus credores, preferindo uns em detrimento de outros. Com tal comportamento, atento o valor do remanescente da venda, fizeram desaparecer em parte considerável o seu património, em proveito próprio (veja-se que está provado que, ao longo de largos meses, os Insolventes acabaram por recorrer a diversos cartões de crédito, que acabaram por ser totalmente saldados aquando da venda do imóvel, em valor que, diremos nós, não se encontra especificamente demonstrado). Defendem ainda que têm cumprido escrupulosamente com as suas obrigações, pretendendo aceder a uma eventual prorrogação do período de cessão, de modo a cumprirem todas as obrigações a que foram condenados em sede de incidente de qualificação, nomeadamente quanto ao pagamento de indemnização a pagar aos credores. Acontece, porém, que a cessação antecipada resulta do comportamento que tiveram antes de lhes ser deferido inicialmente o seu pedido de exoneração (dissipando, em data muito próxima da apresentação à insolvência, 11/12/2020, o remanescente do preço recebido pela venda do seu património, operada pela escritura de 23/07/2020, deixando alguns dos seus credores sem qualquer garantia patrimonial), e que poderia ter sido alvo de indeferimento liminar se o descrito comportamento dos insolventes tivesse sido noticiado nos autos em momento prévio àquele, à luz do artigo 238.º n.º 1 al. e) do CIRE (por indiciar a probabilidade da existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º), o que foi depois reforçado perante a qualificação culposa da insolvência, como decorre da al. c) do artigo 243.º do CIRE (qualificada pelas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE). Pressupondo o prosseguimento do pedido de exoneração uma lisura e retidão do comportamento anterior dos insolventes no que concerne à sua situação económica, a mesma não se verifica nas circunstâncias descritas, em que os mesmos vendem o único imóvel de que eram proprietários, em momento anterior à sua apresentação à insolvência, sem que o tivessem noticiado nos autos, e, com o apuro realizado, deram ao mesmo o destino que entenderam, em detrimento de alguns credores. Impõe-se, pois, também aqui, o juízo culposo feito na sentença recorrida. Por último, argumentam ainda em sede recursiva que a decisão recorrida viola os princípios da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da justiça e da solidariedade, ínsitos no artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa, o que não mais é que uma afirmação genérica, global e sem qualquer sustentação fática, nenhum fundamento existindo nos autos que o sustente. Donde, e sem mais, impõe-se a improcedência da apelação. * V./ Decisão: Perante o exposto, julga-se totalmente improcedente a presente apelação, assim se mantendo o despacho recorrido. Custas pelos apelantes, sem prejuízo do concedido apoio judiciário. Registe e notifique. Lisboa, 13/07/2023 Paula Cardoso Manuela Espadaneira Lopes Manuel Marques |