Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3076/2007-6
Relator: CARLOS VALVERDE
Descritores: RESERVA DE PROPRIEDADE
MÚTUO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/26/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: I - É certo que a reserva de propriedade, tal como está prevista na lei, foi pensada para os contratos de compra e venda, todavia o art. 409º, 1 do CC abrange, na sua letra e no seu espírito, a extensão de tal clausulado a contratos diferentes dos contratos de alienação, nomeadamente ao de mútuo a prestações que com o contrato de compra e venda de veículo automóvel financiado apresenta uma estreita relação de conexão, por virtude do objecto daquele ser constituído e representar o elemento preço do segundo.
II - Acresce que não é pelo facto de se tratar de uma situação pouco ortodoxa de constituição contratual da reserva de propriedade que se altera o regime legal que decorre da lei, nomeadamente o da presunção registral (art. 7º do CRP).
(C.V.)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

A, SA, intentou acção declarativa, com processo ordinário, contra B, peticionando se declare resolvido o contrato de crédito outorgado entre ambas e incumprido pela Ré, tendo por objecto o financiamento destinado à aquisição de um veículo, vendido com reserva de propriedade, registada na competente Conservatória do Registo Automóvel a seu favor, sendo-lhe reconhecido o direito ao cancelamento do registo averbado em nome da Ré e esta condenada a restituir-lhe o veículo.

Regularmente citada, a Ré não contestou.

Cumprido que foi o nº 2 do art. 484º do CPC, foi proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, declarou validamente resolvido o contrato de crédito outorgado pelas partes e absolveu a Ré do mais peticionado.

Inconformada com essa decisão, dela a A. interpôs recurso, em cujas conclusões, devidamente resumidas - art. 690º, 1 do CPC - , coloca, nuclearmente, a seguinte questão:
- se pode reservar-se a favor do financiador da compra de um veículo automóvel a propriedade deste.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir, atenta a factualidade apurada na instância recorrida e constante da decisão impugnada, para a qual, por não ter sido posta em causa nem haver lugar à sua alteração, se remete, ao abrigo do disposto no nº 6 do art. 713º do CPC, na redacção introduzida pelo DL nº 329-A/95, de 12/12.

Na sentença sindicanda, na consideração de que, na ausência de declaração expressa do devedor na sub-rogação dos direitos do credor, a entidade financiadora do crédito para a aquisição de um veículo automóvel não pode reservar para si o direito de propriedade do veículo, teve-se como nulo, por violação de lei imperativa, o clausulado do contrato referente à reserva propriedade a favor da A. e desatendeu-se a pretensão desta a ver-lhe restituído o veículo, cuja compra financiara.
De tal dissente a recorrente, no entendimento de que é legítimo inscrever a favor do mutuante, que corre o risco do não pagamento do preço, a reserva da propriedade do veículo financiado, acrescendo que se encontra validamente sub-rogada nos direitos do vendedor deste.
Como é sabido, a nossa lei consagra o princípio da consensualidade - consensus parit proprietatem - e, por isso, a constituição ou transferência dos direitos reais sobre uma coisa certa ocorre, em regra, por mero efeito do contrato (art. 408º, 1 do CC).
Todavia, no contrato de compra e venda e nos demais contratos de alienação, é lícito ao vendedor, de acordo com o comprador, reservar para si a propriedade da coisa vendida até à verificação de um qualquer evento futuro, nomeadamente o cumprimento total ou parcial das obrigações do comprador, em especial o pagamento do preço (arts. 879º e 409º do CC).
Clausula-se, deste modo, a reserva de propriedade - pactum reservati dominii -, estabelecendo-se uma excepção àquela regra de que a transferência dos direitos reais sobre coisas determinadas se dá por mero efeito do contrato.
Os efeitos do contrato, pelo que respeita à transmissão da propriedade sobre a coisa, estão suspensos da ocorrência de uma condição, ou, de outra forma, o efeito translativo do contrato - de compra e venda ou equiparado - fica subordinado a uma condição suspensiva ou a um termo inicial (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, vol. I, 3ª ed., pág. 357, Antunes Varela, Das Obrigações, 9ª ed., pág. 314, Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9ª ed., pág. 266 e Luís Lima Pinheiro, A Cláusula de Reserva de Propriedade, 1988, pág. 93).
É certo que a reserva de propriedade, tal como está prevista na lei, foi pensada para os contratos de compra e venda, estando-se na situação sub judicio perante o estabelecimento de tal condição suspensiva para garantia do cumprimento das obrigações pecuniárias decorrentes de um contrato de mútuo.
Porém, o art. 409º, 1 do CC abrange, na sua letra e no seu espírito, a extensão do clausulado em referência a contratos diferentes dos contratos de alienação, nomeadamente ao de mútuo a prestações que com o contrato de compra e venda do veículo automóvel financiado apresenta uma estreita relação de conexão, por virtude do objecto daquele ser constituído e representar o elemento preço do segundo (neste sentido, Luís Lima Pinheiro, ob. cit., págs. 3 e 34 e o Ac. da RL de 21-2-2002, relatado por Salvador da Costa, in www.dgsi.pt).
Na verdade, lembrando que “na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” (nº 3 do art. 9º do CC), cada vêz mais a interpretação jurídica das normas vai deixando de se restringir a um conceptualismo formativista, totalmente despido das consequências práticas que dele provinham.
Conforme se escreve lapidarmente no Ac. do STJ de 19-9-89, BMJ 389, págs. 536 e segs., ( maxime, a fls. 547 ), “a ponderação das consequências constitui ainda um momento da argumentação jurídica, pelo menos para todos quantos entendem - e são hoje muitos - que a inferência jurídica não pode ficar alheia aos efeitos práticos da solução inferida”.
Ora, a ponderação dessas consequências parece demonstrar a irrazoabilidade da solução propugnada na decisão sobre recurso.
Como se observa no Ac. desta Relação de 5-5-2005, citado pela apelante e de que fomos relator, com a proibição do estabelecimento da cláusula da reserva de propriedade para garantia do contrato de financiamento chegaríamos à tão iníqua quanto absurda situação de o mutuário/comprador relapso não poder ser desapossado do veículo de que não é proprietário, exactamente porque a transferência da propriedade ficou salvaguardada pela cláusula da reserva de propriedade, esvaziando-se por completo a finalidade e utilidade desta, já que, por um lado, o vendedor, recebendo do financiador o montante integral do preço do veículo - o que, na maioria dos casos, corresponde ao cumprimento integral do contrato de alienação pelo comprador - estaria, em bom rigor, impedido de resolver esse contrato, porque integralmente cumprido e, logo, de fazer reverter a cláusula de reserva de propriedade estabelecida a seu favor, pois, ocorrido o evento futuro que a integra - o pagamento do preço do veículo -, opera-se a transmissão da propriedade deste para o comprador como efeito do contrato, sem necessidade de qualquer outra conduta das partes (arts. 879º, a) e 408º, 1 do CC) e, por outro lado e ainda que verdadeiramente a reserva de propriedade tenha tido como finalidade a garantia do cumprimento do contrato de financiamento, o financiador igualmente não a poderia fazer reverter a seu favor, precisamente, porque, contratualmente, tal não tinha nem podia ser clausulado.
Acresce que não é pelo facto de se tratar de uma situação pouco ortodoxa de constituição contratual da reserva de propriedade que se altera o regime legal que decorre da lei, que o mesmo é dizer que os efeitos da constituição da reserva de propriedade a favor do mutuante são os mesmos que derivariam do facto dela haver sido constituída a favor do vendedor do veículo automóvel financiado.
Ora, estando, como está, registada a reserva de propriedade do veículo a favor da recorrente e sendo aplicáveis ao registo de automóveis as disposições relativas ao registo predial (art. 29º do DL nº 54/75, de 12/2), temos que “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o direito o define” (art. 7º do Cód. do Reg. Predial) e, se assim é e não tendo sido ilidida tal presunção, impõe-se considerar como assente que a apelante é titular do direito de propriedade sobre o veículo automóvel (neste sentido, ainda o citado Ac. desta Relação, de 21-02-2002).
Do que vem de dizer-se, já resulta que, sendo incontroverso o incumprimento pela Ré do contrato de mútuo ajuizado e, logo, inverificada a condição suspensiva da sua eficácia, não é de ter, como se concluiu na sentença censuranda, transferida para a Ré a propriedade do veículo questionado, mas tal sai ainda reforçado se, como cremos, está sempre aberta a porta à configuração da sub-rogação da A. pela Ré nos direitos do vendedor do mesmo veículo.
Como resulta do art. 591º do CC, o devedor que cumpre a obrigação com dinheiro ou outra coisa fungível emprestada por terceiro, pode sub-rogar este nos direitos do credor, sem necessidade do consentimento deste, bastando a declaração expressa, no documento suportador do empréstimo, de que a coisa se destina ao cumprimento da obrigação e de que o mutuante fica sub-rogado nos direitos do credor.
Nos termos do nº 1 do art. 236º do CC, "a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele ".
E o nº 2 acrescenta: "Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida".
Segundo Pires de Lima e A. Varela, a regra estabelecida no nº 1, para o problema básico da interpretação das declarações de vontade é esta: o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante. Exceptuam-se apenas dois casos de não poder ser imputado ao declarante, razoavelmente, aquele sentido (nº 1) ou de o declaratário conhecer a vontade real do declarante (nº 2), (ob. cit., pág. 222).
Consagra a nossa lei a chamada teoria da impressão do destinatário.
O Código não se pronuncia, porém, sobre o problema de saber quais as circunstâncias atendíveis para a interpretação.
Ora, como acentua Mota Pinto, também aqui se deve operar com a hipótese de um declaratário normal: serão atendíveis todos os coeficientes ou elementos que um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz, na posição de declaratário efectivo, teria tomado em conta (in Teoria Geral do Direito Civil, pág.421).
Para Heinrich Ewald Horster, a normalidade do declaratário, que a lei toma como padrão, exprime-se não só na capacidade de entender o texto ou o conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante (in A Parte Geral do Código Civil Português - Teoria Geral do Direito Civil - pág. 510).
Nos negócios formais, ou seja, nos que devem constar de documento escrito, exige-se que o sentido da declaração tenha “um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso” (cfr. nº 1 do art. 238º do CC), podendo, porém, aquele sentido valer, apesar da falta de correspondência, se “as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade” (nº 2 do mesmo artigo).

Revertendo para o concreto dos autos, tendo-se clausulado no contrato ajuizado que, como garantia do cumprimento do mútuo, a mutuante podia constituir, no seu interesse, reserva de propriedade sobre o objecto visado no contrato, identificando-se este como o veículo automóvel a cujo pagamento se destinava o crédito e bem ainda o seu vendedor, tem de entender-se que, a existir obstáculo legal à constituição da reserva de propriedade directamente a favor da mutuante A., então se constituiu esta pela via da sua sub-rogação nos direitos do credor.
Cremos ser este o sentido da declaração suportada no clausulado em referência apreendido por um declaratário com as características que a lei lhe traça, isto é, um declaratário normal, o que passa por ser medianamente instruído e diligente, para quem na disposição do mais se contém, por via de regra, a disposição do menos, podendo ainda dizer-se que, na dúvida, é este, por menos favorecente ao mutuário/comprador relapso, o sentido que conduz ao maior equilíbrio das prestações (art. 237º do CC).

Pelo exposto, na procedência da apelação, revoga-se a parte absolutória da decisão recorrida, condenando-se a Ré a restituir o veículo automóvel 67-35-MI à A., podendo esta proceder ao cancelamento do registo averbado em nome daquela.
Custas pela apelada em ambas as instâncias.
Lisboa, 26-04-2007
Carlos Valverde
Granja da Fonseca
Pereira Rodrigues