Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
27709/22.5T8LSB-B.L1-7
Relator: DIOGO RAVARA
Descritores: SOCIEDADE ANÓNIMA
TRANSMISSÃO DE ACÇÕES
VALOR DA CAUSA
PEDIDO ININTELIGÍVEL
FALTA DE CAUSA DE PEDIR
ILEGITIMIDADE ACTIVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/02/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Sumário: 1-2-3-4
I. Numa ação em que o autor pede que o Tribunal declare a invalidade de determinado contrato que operou a transmissão de ações de que era titular em certa sociedade anónima e condene os réus que adquiriram as mesmas ações a restituí-las, o valor correspondente a tais pedidos corresponde ao valor que o autor atribui a essas ações, ainda que seja diverso do indicado em tal contrato;
II. Não é ininteligível um pedido cujo sentido se alcança em função da interpretação da causa de pedir que emerge da factualidade invocada pelo autor na petição inicial;
III. Não se verifica o vício da falta de causa de pedir se na petição inicial o autor indica os factos e razões de Direito que em seu entender sustentam o pedido (ainda que tal causa de pedir possa ser considerada insuficiente ou inconcludente);
IV. Ainda que um pedido de resolução de determinado contrato se funde em cláusula contratual que confere a entidade diversa do autor a faculdade de o resolver mediante o pagamento de certa quantia em dinheiro, não se verifica ilegitimidade ativa quanto a tal pedido se o autor alega que pagou essa quantia e se depreende da alegação constante da petição inicial que tal quantia não foi devolvida, o que poderá configurar aceitação tácita dessa resolução.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

1. Relatório
AA5 intentou a presente ação declarativa de condenação com processo comum contra
Hotel das Flores - Gestão e Exploração Hoteleira S.A.6,
BB7,
CC8,
Subtlecondition, Lda.9
Coya – Real Investments, Lda.10,
Daytona, Investments, Lda.11;
Bluecrow Growth Fund I, FCR12 (representada pela sua entidade gestora Bluecrow – Sociedade de capital de Risco, S.A.13, formulando os seguintes pedidos:

1. Que seja declarado nulo a transmissão das ações da 1.ª Ré pelo Autor aos Réus ABV e FBV por falta de modo do contrato, ou seja, a condição de validade da declaração negocial é nula por vício.
2. Que, em todo o caso, sejam os Réus ABV e FBV condenados a devolver as ações que possuem do Hotel das Flores – Gestão e Exploração Hoteleira S.A. ao Autor;
3. Que seja anulado o acordo global de compra e venda de ações da Hotel das Flores – Gestão e Exploração Hoteleira S.A. e promessa de compra e venda de ações da Parque do Sapal – Investimentos Imobiliários S.A., e consequentemente, todos os acordos e documentos assinados posteriormente por erro nas declarações do Autor, por evidente dolo e má-fé negocial por parte dos Réus ABV e FBV.
4. Caso assim o Tribunal não entende, não poderá o mesmo deixar de considerar válido a resolução do contrato de mediação imobiliária pelo pagamento do preço efetuado pelo Autor e, consequentemente, inválido a aquisição pela 5.ª Ré de 50% do referido contrato de mediação imobiliária pela assinatura com a 4.ª Ré do contrato de associação em participação, o que se requer.
5. Que seja oficiado a CMVM dos atos praticados pela 5.ª Ré em violação dos seus deveres de forma a esta iniciar o competente processo contraordenacional.”
Citados os réus, foram apresentadas duas contestações:
a. A ré Bluecrow Growth Fund I, FCR:
a. invocou as exceções de dissolução e encerramento da liquidação da 2ª ré Subtlecondition, Lda.; ilegitimidade substantiva do 5º réu quanto aos 4º e 5º pedidos; falta de interesse em agir do autor e incompetência absoluta do Tribunal quanto ao 5º pedido; e ineptidão da petição inicial quanto ao 3º pedido;
b. impugnou a factualidade alegada na petição inicial;
c. invocou a litigância de má-fé do autor.
… concluindo nos seguintes termos:

a. Deve ser julgada totalmente procedente a invocada excepção peremptória de ilegitimidade substantiva do 5.º Réu quanto ao 4.º pedido, dando lugar à absolvição do pedido (cfr. artigo 576.º, n.º 3 do CPC);
b. Deve ser julgada totalmente procedente a invocada excepção peremptória de ilegitimidade substantiva do 5.º Réu quanto ao 5.º pedido, dando lugar à absolvição do pedido (cfr. artigo 576.º, n.º 3 do CPC).
c. Deve ser julgada totalmente procedente a invocada excepção dilatória de incompetência absoluta deste Tribunal em razão da matéria e de falta de interesse em agir do Autor quanto ao 5.º pedido, dando lugar dando lugar à absolvição da instância (cfr. artigo 576.º, n.º 2 do CPC);
d. Deve ser julgada totalmente procedente a invocada excepção dilatória de ineptidão da petição inicial relativamente ao 3.º pedido, que conduz à abstenção do conhecimento do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância (cfr. artigos 186.º, n.os 1 e 2, alínea a), 278.º, n.º 1, alínea b), 576.º, n.º 2, 577.º, alínea b) e 578.º todos do CPC).
e. Deve a presente acção ser julgada totalmente improcedente, por não provada e, por via disso, ser o 5.º Réu absolvido da totalidade dos pedidos feito pelo Autor, com as legais consequências.
f. Deve o Autor ser condenado como litigante de má-fé, em multa e indemnização de montantes a fixar pelo prudente arbítrio de V. Exa. nesta incluída os honorários do ora mandatário.”
Por seu turno, os demais réus, em contestação separada, invocaram as seguintes exceções dilatórias:
“(i) DA NULIDADE DO PROCESSO, COM FUNDAMENTO NA INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL, RELATIVAMENTE AO PEDIDO FORMULADO NO PONTO 1. DO PETITÓRIO (artigos 9.º a 44.º)
(ii) DA NULIDADE DO PROCESSO, COM FUNDAMENTO NA INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL, RELATIVAMENTE AO PEDIDO FORMULADO NO PONTO 2. DO PETITÓRIO (artigos 45.º a 53.º)
(iii) DA NULIDADE DO PROCESSO, COM FUNDAMENTO NA INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL, RELATIVAMENTE AO PEDIDO FORMULADO NO PONTO 3. DO PETITÓRIO (artigos 54.º a 101.º)
(iv) DA NULIDADE DO PROCESSO, COM FUNDAMENTO NA INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL, RELATIVAMENTE AO PEDIDO FORMULADO NO PONTO 4. DO PETITÓRIO (artigos 102.º a 137.º)
(v) DA ILEGITIMIDADE PROCESSUAL DAS RÉS COYA E SUBTLECONDITION (artigos 138.º a 167.º)
(vi) DA FALTA DE INTERESSE EM AGIR DO AUTOR, RELATIVAMENTE AO PEDIDO CONSTANTE DO PONTO 5 DO PETITÓRIO DA PETIÇÃO INICIAL (artigos 168.º a 208.º)”
No mais, impugnaram a factualidade invocada pelo autor, invocaram diversas exceções perentórias, e impugnaram o valor da causa, concluindo nos seguintes termos:

a. Deve ser julgada procedente a exceção dilatória de nulidade do processo, com fundamento na ineptidão da petição inicial, por ininteligibilidade do pedido formulado no ponto 1. do petitório desse articulado, nos termos do disposto nos artigos 186.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), 576.º, e 577.º, alínea b), todos do Código de Processo Civil, e, em consequência, devem as rés ser absolvidas da instância relativamente a este pedido;
b. Deve ser julgada procedente a exceção dilatória de nulidade do processo, com fundamento na ineptidão da petição inicial, por ininteligibilidade do pedido formulado no ponto 2. do petitório desse articulado, nos termos do disposto nos artigos 186.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), 576.º, n.ºs 1 e 2 e 577.º, alínea b), todos do Código de Processo Civil, e, em consequência, devem as rés ser absolvidas da instância relativamente a este pedido;
c. Deve ser julgada procedente a exceção dilatória de nulidade do processo, com fundamento na ineptidão da petição inicial, por ininteligibilidade do pedido formulado no ponto 3. do petitório desse articulado, nos termos do disposto nos artigos 186.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), 576.º, e 577.º, alínea b), todos do Código de Processo Civil, e, em consequência, devem as rés ser absolvidas da instância relativamente a este pedido;
d. Deve ser julgada procedente a exceção dilatória de nulidade do processo, com fundamento na ineptidão da petição inicial relativamente ao pedido formulado no ponto 4. do petitório desse articulado, por falta de causa de pedir, nos termos do disposto nos artigos 186.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), 576.º, e 577.º, alínea b), do Código de Processo Civil, e, em consequência, devem as rés ser absolvidas da instância relativamente a este pedido;
e. Deve ser julgada totalmente procedente por provada a exceção dilatória de ilegitimidade processual das rés Coya e Subtlecondition, nos termos conjugados dos artigos 30.º, 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, alínea e), e 578.º do Código de Processo Civil, e, em consequência, serem as mesmas absolvidas da presente instância;
f. Deve ser julgada totalmente procedente por provada a exceção dilatória inominada de falta de interesse em agir do autor relativamente ao pedido formulado no ponto 5. do petitório da petição inicial, nos termos do disposto no artigo 576.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, e, em consequência, devem as rés ser absolvidas da instância relativamente a este pedido;
g. Deve a presente ação ser julgada totalmente improcedente, por não provada, e, em consequência, devem as rés ser absolvidas da totalidade dos pedidos deduzidos pelo autor na petição inicial;
h. Caso assim não se entenda – o que não se concede, e apenas por mero dever de patrocínio se admite –, deve ser julgada procedente a exceção perentória extintiva, com fundamento no abuso de direito do autor, pelos atos praticados posteriormente à assinatura do Acordo Global, e, em consequência, devem as rés ser absolvidas da totalidade dos pedidos deduzidos pelo autor na petição inicial, nos termos do disposto no artigo 576.º, n.º 1 e 3, do Código de Processo Civil;
i. Caso assim não se entenda – o que não se concede, e apenas por mero dever de patrocínio se admite – deve ser julgada procedente a exceção perentória extintiva, com fundamento no abuso de direito do autor, pela sua conduta processual, e, em consequência, devem as rés ser absolvidas da totalidade dos pedidos deduzidos pelo autor na petição inicial, nos termos do disposto no artigo 576.º, n.º 1 e 3, do Código de Processo Civil;
j. Caso assim não se entenda – o que não se concede, e apenas por mero dever de patrocínio se admite – deve ser julgada procedente a exceção perentória preclusiva, com fundamento na caducidade do pedido de anulação do Acordo Global, formulado no ponto 3. do petitório da petição inicial, e, em consequência, devem as rés ser absolvidas do mesmo, nos termos do disposto nos artigos 289.º, n.º 1, do Código Civil, e 576.º, n.º 1 e 3, do Código de Processo Civil.”
Na sequência da tramitação do processo veio a ser proferido despacho saneador, no qual, nomeadamente, o Tribunal a quo:
a. Dispensou a realização de audiência prévia;
b. Alterou o valor da causa;
c. No que toca à exceção que qualificou como “incompetência material do tribunal para o pedido deduzido em 5 do petitório versus inadmissibilidade de tal pretensão como pedido propriamente dito”, consignou que “o Autor também não está impedido de denunciar contra-ordenações junto das autoridades competentes, sem prejuízo do dever de participar às autoridades competentes infracções de que o Tribunal tome conhecimento, mais do que uma situação de incompetência ou falta de interesse em agir, a pretensão em causa não corresponde a um efeito jurídico que integrasse o objecto da acção (e nem se trata de uma consequência administrativa decorrente da procedência dos demais pedidos, como por exemplo sucede com o cancelamento de registos, etc.), o que o torna inadmissível como pedido por não implicar uma tutela judicial de mérito de natureza cível, absolvendo-se os RR da instância da quanto ao “pedido” constante do ponto 5 do petitório”;
d. Julgou “procedentes as excepções dilatórias de ineptidão da petição inicial quanto aos pedidos deduzidos nos pontos 1, 2ª parte do ponto 3 e no ponto 4, absolvendo-se os Réus da instância relativamente a estes pedidos, verificando-se ainda a ilegitimidade activa para o pedido deduzido no ponto 4.”
No mesmo despacho decidiu ainda o Tribunal a quo julgar “(…) procedente a excepção de ilegitimidade passiva, absolvendo-se os 4º (DD), 5ª (Coya – Real Investimentos Lda.), 6ª (Daytona Investments, Lda.) e 7º (Bluecrow Grouth Fund I, FCR) Réus da instância relativamente aos pedidos constantes do ponto 2 e da primeira parte do ponto 3 do petitório.”
De seguida, consignou o Tribunal a quo que “a acção prossegue apenas contra a 1ª, 2º e 3º RR para apreciação dos pedidos constantes dos pontos 2 e da 1ª parte do ponto 3.”
Inconformado, com tal decisão, o autor interpôs o presente recurso de apelação, cujos fundamentos sintetizou nas seguintes conclusões:

A. A apelação que ora se submete à apreciação de V. Exªs vem interposta das decisões proferidas quanto ao valor da causa, bem como quanto às alíneas c) a f) do Ponto 1 do presente articulado, isto porque, salvo o devido respeito, considera o Recorrente que a decisão ora recorrida, peca por uma violação clara da lei substantiva, por erro de interpretação e de aplicação de determinados preceitos legais, nomeadamente, dos artigos 30º, 186º nº 2 alínea a) e nº 3, 590º nºs 2, 3 e 4, do nº 2 do art. 6º, do nº 1 do art. 7º e do artigo 5º nº 3 do Código de Processo Civil, bem como de determinados princípios/deveres que norteiam o n/ ordenamento jurídico, nomeadamente, do princípio do dever de gestão processual do juiz e do princípio da cooperação tendente à realização da finalidade última do processo, que é a justa composição do litígio (cfr. nº 1 do artº. 7º do Código de Processo Civil).
B. No que concerne à decisão proferida quanto ao valor da causa, que veio fixar à acção o valor de € 489.980.17 (€ 229.989,58 + € 229.990,58+€ 30.000,01), sendo atribuído ao pedido constante do ponto 1 o montante de € 229.989,58, ao valor do pedido constante do Ponto 3 a quantia de € 229.990,58 e ao pedido 5, o valor de € 30.000,01.
C. O ora Recorrente discorda dos critérios adoptados pelo Tribunal a quo para fixação do valor dos pedidos 1 e 3 do petitório, isto porque, entre o Recorrente e os 2º e 3º Recorridos nunca foi celebrado nenhum contrato de compra e venda de ações; os 2º e 3º RR/Recorridos nunca procederam ao pagamento de qualquer quantia a título de um preço pela transmissão das referidas acções e, jamais, essa “venda” teve como contraprestação um conjunto de outras obrigações, respeitantes ao pagamento e aquisição de créditos pelos 2º e 3º RR, em face da insolvência da 1ª Ré;
D. Isto porque, a verdade é que, entre o ora Recorrente e os Recorridos foi celebrado um negócio fiduciário, uma alienação fiduciária em garantia, no âmbito da qual, aquele transmitiu aos 2º e 3º Recorridos, a titularidade de 51% (cinquenta e um por cento) das acções do capital social da sociedade, com a finalidade de garantir todas as importâncias que, os mesmos viessem a emprestar à sociedade quer directamente, quer indirectamente, ficando estes obrigados, uma vez ressarcidos de tais montantes, a retransmitir as acções ao ora Autor;
E. De facto, não faz qualquer sentido e era perfeitamente incongruente e inconcebível que, o ora Recorrente procedesse à “venda” de 51% das acções correspondentes ao capital social da 1ª Ré, sem qualquer retorno financeiro e, ainda, os 2º e 3º Recorridos fossem ressarcidos de todas as quantias disponibilizadas para pagamento dos credores acrescidas de outros valores totalmente leoninos.
F. Sendo assim, atendendo à natureza dos pedidos formulados em 1) e 3) do petitório, bem como os critérios definidos no artigo 301.º, n.º 1, do Código de Processo Civil o valor a atribuir à acção deverá ser o indicado pelo Recorrente na sua petição inicial, ou seja, € 19.750.000,00 (dezanove milhões setecentos e cinquenta mil euros);
G. Por outro lado, no que concerne à declaração de ineptidão do pedido formulado no Ponto 1 do petitório, desde já, cabe referir que, o Tribunal a quo identificou que o Pedido do Ponto 1 é distinto do pedido de Ponto 3), contudo, não fez a devida interpretação e aplicação do regime jurídico aplicável à transmissão de ações, enquanto valor mobiliário que é, sujeito a regras próprias.
H. E, a verdade é que, o Tribunal a quo nunca equacionou que no caso de alienação de ações o contrato é um facto jurídico e, a transmissão em si mesma é facto jurídico distinto, sujeito a declarações e atos próprios, ou seja, que só se verifica com o efetivo cumprimento do modo, o que vem a justificar os pedidos distintos, de Pontos 1 e 3;
I. Mais, se tivermos em consideração o teor das contestações apresentadas pelos Recorridos, não restam dúvidas de que, os mesmos entenderam bem que a pretensão do Recorrente que aflora do pedido de Ponto 1 é que a transmissão das ações deve ser declarada nula por falta de modo, na medida em que, a declaração para tanto padece de vício (vício que, como se sabe, não precisa estar identificado no pedido, mas sim na causa de pedir, como está, o qual é transversal aos pedidos de Pontos 1 e 3).
J. Porém, mesmo que, se considerasse que a redação do pedido possa não ser a mais correcta, e, sem conceder, é inequívoco que do pedido decorre a pretensão do Recorrente, ou seja, é pedida a nulidade da transmissão das ações por falta de modo, porque o Recorrente considera existir vício na declaração essencial que traduz o modo, ou seja, que existe vício na declaração que consubstancia o modo/a transmissão das ações.
K. Ou seja, é que sem declaração de transmissão (ato designado como “modo” e vulgarmente referido como “endosso do título”) a transmissão (ato indissociável do modo) não opera e, por conseguinte, para a transmissão ser válida a declaração respetiva não pode contemplar vício.
L. Acresce que, no caso de transmissão de ações tituladas nominativas (caso dos autos), como valores mobiliários que são, a transmissão (ato real) é regulada pelo disposto no artigo 102.º do Código de Valores Mobiliários, que afasta a regra prevista no artigo 408.º, n.º 1 e o efeito consensualista consagrado no artigo 879.º alínea a) do Código Civil, o que significa que um contrato de compra e venda de ações não tem efeito translativo, é meramente obrigacional, e distinto do ato de transmissão (modo), esse sim facto jurídico com efeito real.
M. Em face do exposto, é claramente evidente que, não nos encontramos perante um problema de ineptidão da inicial por ininteligibilidade do pedido, mas sim, por um problema de má interpretação do regime aplicável à alienação de ações enquanto valores mobiliários que são, não existindo, por conseguinte, qualquer ineptidão do pedido em questão, pedido de Ponto 1, isto porque, o que o ora Recorrente pretendia peticionar (aceitando-se, desde já, que pode não se ter expressado correctamente) era a declaração da nulidade da transmissão (modo) porque a declaração que emitiu para cumprir o modo contempla vício;
N. Por outro lado, em relação à decisão que veio julgar parcialmente procedente a excepção de ineptidão da petição inicial no que toca à segunda parte do pedido constante do ponto 3 do petitório, no sentido de ver anulados “todos os acordos e documentos” assinados depois de 30 de Outubro de 2020, data da celebração do Acordo Global de Compra e Venda de Ações da Hotel das Flores – Gestão e Exploração Hoteleira S.A. e Promessa de Compra e Venda de Ações da Parque do Sapal,
O. O ora Recorrente, salvo o devido respeito, discorda por completo da decisão proferida pelo Tribunal a quo, na medida em que, no caso sub judice, não nos encontramos perante a formulação de um pedido genérico ou ininteligível e, por conseguinte, tal pedido não poderia ser culminado com a procedência da excepção dilatória de ineptidão, mas sim, quando muito, a um convite ao aperfeiçoamento.
P. Efectivamente, na sua petição inicial, o ora Recorrente identificou expressamente quais os Acordos/Contratos subsequentes à celebração do Acordo Global que pretendia ver anulados, mais concretamente: (i) Acordo Complementar ao Acordo Global de Compra e Venda de Acções do Hotel das Flores- Gestão e Exploração Hoteleira, S.A. e Promessa de Compra e Venda de Acções do Parque do Sapal – Investimentos Imobiliários, S.A. (ii) Contrato de Mediação Imobiliária, celebrado com a sociedade “Square View – Investimento Advisory, Lda., em 23 de Dezembro de 2021, tendo em vista a promoção da venda do “Palácio das Flores”,(iii) Aditamento ao contrato de mediação imobiliária celebrado entre a 4ª Ré/Recorrida e a sociedade Hotel das Flores, S.A.; (iv) “Acordo de Investimento com Cessão de Créditos, Aquisição de Quotas e Garantia da Subtlecondition” e (v) “Contrato de Cessão de Créditos e Novação Objectiva de Dividas com Hipotecas,” “entre a Subtlecondition, o ora Recorrente, o Fundo Bluecrow e a sociedade Hotel das Flores - Gestão e Exploração Hoteleira, S.A.
Q. Acresce que, não só, toda a factualidade subjacente e directamente relacionada com a celebração dos referidos acordos/contratos foi invocada pelo Recorrente na sua petição inicial, como também, foram invocados os vícios inerentes aos mesmos e, por conseguinte, os fundamentos para a solicitação da sua anulabilidade;
R. Sendo assim, o facto de o ora Recorrente na segunda parte do pedido formulado no Ponto 3 do petitório, não ter concretizado os acordos e contratos assinados entre as partes cuja anulação se requeria, não obstante, ter procedido à sua identificação/concretização no teor da sua petição inicial e, ainda, aos vícios que os mesmos padeciam, tal situação, por si só, não determina a ineptidão da petição inicial, devendo, ao invés, ter sido proferido um despacho de aperfeiçoamento, convidando o ora Recorrente a suprir tal deficiência.
S. E, por conseguinte, discorda-se da decisão proferida pelo tribunal a quo e que ora se submete à apreciação de V. Exªs, isto porque, no caso sub judice, não nos encontramos perante uma petição em que se verifique a inexistência de causa de pedir ou de pedidos, nem tão-pouco, perante a formulação de um pedido indecifrável, obscuro e ininteligível, pois, através de uma simples leitura da petição inicial era possível aferir a que contratos/acordos o ora Recorrente se estava a referir, raciocínio lógico este, que foi claramente apreendido pelos Recorridos conforme se pode comprovar pelo teor das respectivas contestações.
T. Por outro lado, no que concerne à decisão proferida quanto à ineptidão do pedido subsidiário formulado no Ponto 4) do petitório, o ora Recorrente, discorda da mesma, isto porque, conforme resulta dos factos invocados na petição inicial (artigos 222º a 382º), não restam dúvidas de que, em 23 de Dezembro de 2020, foi celebrado entre a sociedade Square View – Investments Advisory, Lda. e a ora 1ª Recorrida, Hotel das Flores, S.A., um contrato de mediação imobiliária, tendo em vista a promoção da venda do “Palácio das Flores” nos termos e condições constantes do referido documento;
U. E, dúvidas, ainda não podem subsistir de que, posteriormente, em 24 de Março de 2022, foram outorgados mais dois documentos, nomeadamente: (i) um Acordo de Cessão de Posição Contratual, no âmbito do qual, a Square View cedeu à Daytona, a sua posição contratual no Contrato de Mediação Imobiliária, com efeitos imediatos, pelo valor de 150.000,00€ (cento e cinquenta mil euros) e, (ii) um Aditamento ao contrato de mediação imobiliária, no âmbito do qual, foi alterada a Cláusula 4.ª, n.º 1.
V. Para além da referida prova testemunhal, o ora Recorrente veio ainda invocar na sua petição inicial, factos integradores e concretizadores do pedido formulado no Ponto 4 do petitório, cfr se pode aferir pelo teor dos factos invocados nos artigos nºs 262, 263, 264, 265, 266, 267, 268, 269, 270, 272, 281 e 282.
W. Mais, conforme se comprovar pela documentação já junta aos presentes autos, encontra-se provado que foi facultado ao ora Autor/Recorrente o NIB da conta bancária para o qual deveria proceder à transferência da quantia de € 300.000,00 (trezentos mil euros), com vista a que a 1ª Ré procedesse à cessação do contrato de mediação imobiliária, quantia esta, que foi liquidada pelo ora Recorrente, AA, através de sociedade GP – Gestão de Patrimónios, S.A.
X. E, por conseguinte, é perfeitamente inequívoco que, o ora Recorrente não só pretendia fazer cessar o contrato de mediação imobiliária, como efectivamente, a ora 1ª Recorrida, Hotel das Flores, S.A., representada pelo 2º e 3º Recorridos, ao recepcionar o referido pagamento deveria ter procedido à extinção de tal contrato.
Y. Situação esta que, não veio a ocorrer, motivo pelo qual, a pretensão que o Recorrente pretendia formular no ponto 4 do seu petitório era que o Tribunal declarasse a resolução de tal contrato, ao abrigo da referida cláusula contratual, pretensão esta que, foi claramente apreendida quer pelo Tribunal a quo, quer pelos demais Recorridos conforme se pode aferir pelo teor das respectivas contestações.
Z. E, por conseguinte, como consequência da declaração de resolução do contrato de mediação, não poderia deixar de ser considerada inválida a aquisição pela 5ª Ré de 50% do referido contrato de mediação imobiliária pela assinatura com a 4ª Ré do contrato de associação em participação.
AA. Em face do exposto, salvo o devido respeito, considera-se que, o Tribunal a quo ao julgar procedente as excepções dilatórias de ineptidão da petição inicial quanto aos pedidos deduzidos nos Pontos 1, 2 parte do Ponto 3 e no Ponto 4 do petitório absolvendo os Recorridos da instância, ocorreu em manifesto erro de interpretação e de aplicação de determinados preceitos legais, nomeadamente, dos artigos 186º nº 2 alínea a) e nº 3, do artigo 590º nºs 2, 3 e 4, do nº 2 do art. 6º, do nº 1 do art. 7º e do artigo 5º nº 3 do Código de Processo Civil.
BB. Devendo, ao invés, caso considerasse que existia alguma imperfeição nos pedidos formulados ou na concretização dos factos invocados na petição inicial (causa de pedir) apresentada pelo Recorrente, ter procedido a um despacho de aperfeiçoamento e não a absolvição da instância dos RR. quanto a tais pedidos.
CC. Mais, Tal ineptidão também não poderia ter sido declarada, face ao disposto no nº 3 do art. 186º do Código de Processo Civil, isto porque, os RR/Recorridos apresentaram as respectivas contestações e interpretaram devidamente a petição apresentada pelo Autor/Recorrente, pelo que, não obstante, terem vindo arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do referido preceito legal, tal arguição não deveria ter sido julgada procedente.
DD. Acresce que, no que concerne ao pedido formulado no Ponto 4) do Petitório, o tribunal a quo veio ainda a decretar a ilegitimidade activa do Recorrente, para a formulação do referido pedido;
EE. Ora, de acordo com os factos invocados no âmbito da petição inicial, bem como através do teor dos documentos já juntos aos presentes autos, é inquestionável que o Recorrente é titular de ações representativas de 49% do capital social da sociedade comercial 1.ª Recorrida, Hotel das Flores, isto porque, no âmbito da operação (fiduciária) melhor explanada na petição inicial, “transmitiu” 51% das ações que detinha para os 2º e 3º Recorridos, os quais passaram a integrar o conselho de administração (“CA”) juntamente com o Recorrente;
FF. Por outro lado, através da prova documental junta aos presentes autos, resulta que, após a entrada dos 2º e 3º Recorridos na sociedade 1ª Recorrida, foram realizadas várias operações societárias e celebrados vários contratos e acordos e melhor identificados na petição inicial, que levaram ao incremento da dívida da 1ª Recorrida, à constituição de diversas hipotecas sobre o “Palácio das Flores”, único imóvel de que a mesma era legítima proprietária e, ainda, à celebração de acordos e contratos com contrapartidas financeiras totalmente leoninas a favor dos demais Recorridos.
GG. Também é manifestamente inequívoco que, com destituição do Recorrente do cargo de administrador da 1.ª Recorrida, a sociedade é exclusivamente administrada pelos seus outros dois acionistas, ora 2º e 3º Recorridos, que, à luz do seu interesse e ao arrepio do interesse social, vêm conduzindo os destinos da 1.ª Recorrente,
HH. E, por conseguinte, sendo o Recorrente acionista e detentor de 49% das ações representativas do capital social da sociedade, não integrando o CA da 1.ª Recorrida desde 05/12/2022, e existindo um profundo conflito e oposição entre ele e os outros dois acionistas e administradores da 1.ª Ré, nunca seria possível obter consenso entre os acionistas, ou ser expectável que a ora 1.ª Recorrida, representada pelos 2º e 3º Recorridos viesse a invocar a resolução do contrato de mediação imobiliária, por forma a manter, na sua esfera jurídica, o imóvel - único património relevante da 1.ª Ré.
II. Logo, é perfeitamente evidente que, o ora Recorrente é parte legítima em relação ao pedido formulado no Ponto 4 do Petitório, no plano processual, contrariamente, ao decidido em sede de primeira instância, legitimidade esta que, enquanto pressuposto processual afere-se pelo modo como a relação controvertida é configurada pelo Autor, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 30.º do CPC.
JJ. Acresce que, não podemos deixar de referir que, das participações sociais emerge um conjunto unitário de direitos e obrigações, sendo atribuído aos sócios pelo Código das Sociedades Comerciais o direito de propor ação para defesa dos interesses sociais, e dos seus interesses, direito este de propor ação que é, de resto, constitucionalmente assegurado (artigo 52.º, n.º da Constituição da república Portuguesa
KK. Em face do exposto, face às considerações supra referenciadas, é manifestamente inequívoco que, o Recorrente tem interesse direto na procedência do pedido formulado no Ponto IV do petitório, porque é inelutável que o interesse social é, em si, o interesse dos acionistas, incluindo o do Recorrente individualmente considerado;
LL. Finalmente, cabe referir que, no âmbito do despacho saneador foi proferida decisão julgando prejudicada a apreciação da excepção de ilegitimidade passiva da 4ª Ré/Recorrida, Subtlecondition, Lda e da 6ª Ré (Coya, Lda) invocada pelos 1º, 2º, 3º, 5º e 6º Réus/Recorrentes em relação ao 1º pedido, à 2ª parte do 3º pedido e ao 4º pedido, dado que, em relação aos mesmos se concluiu pela respectiva ineptidão.
MM. Ora, atendendo a que, o ora Recorrente, AA, vem requerer a revogação das decisões proferidas em sede de despacho saneador em relação aos referidos pedidos, caso a sua pretensão venha a ser julgada procedente, conforme sua firme convicção, em consequência, deverá ser revogada a decisão ora proferida quanto à apreciação da (i)legitimidade das referidas RR/Recorridas e, desta forma, o Tribunal a quo deverá pronunciar-se sob tal matéria.”
Rematou as citadas conclusões, nos seguintes termos:
“(…)
a. Deverão ser revogadas as decisões proferidas em primeira instância quanto ao valor fixado para a causa, quanto à procedência da excepção dilatória de ineptidão da petição inicial em relação aos pedidos deduzidos no Ponto 1, Ponto 3 (segunda parte) e Ponto 4 e da excepção de ilegitimidade activa em relação ao pedido deduzido no Ponto 4 e, ainda, quanto à decisão proferida respeitante à ilegitimidade passiva das Recorridas Coya e Subtlecondition em relação aos referidos pedidos.
b. As referidas decisões deverão ser substituídas por outras nas quais seja determinado que:
i. O valor da acção corresponde ao valor indicado pelo Recorrente na sua petição inicial;
ii. O Tribunal a quo profira, ao abrigo do disposto no art. 590º do Código Processo Civil despacho de aperfeiçoamento, convidando o ora Recorrente a proceder ao aperfeiçoamento dos pedidos que considere necessários e/ou aperfeiçoamento da matéria factual que considere pertinente;
iii. O Tribunal a quo proceda ao conhecimento da excepção dilatória de ilegitimidade passiva das Recorridas Coya e Subtlecondition invocada pelas Recorridas em relação aos pedidos melhor identificados em a) (…)”.
Os apelados DD (na qualidade de liquidatário da ré Subtlecondituin, Lda), e Bluecrow Growth Fund I – Fundo de Capital de Risco Fechado apresentaram contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
Admitido o recurso, e recebido o processo neste Tribunal da Relação, foram colhidos os vistos.
2. Objeto do recurso
Conforme resulta das disposições conjugadas dos arts. 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do CPC, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, seja quanto à pretensão dos recorrentes, seja quanto às questões de facto e de Direito que colocam14. Esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação não se verifica em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art. 5º n.º 3 do CPC).
Não obstante, excetuadas as questões de conhecimento oficioso, não pode este Tribunal conhecer de questões que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas15.
Assim sendo, as questões a apreciar e decidir são as seguintes:
a. Valor da causa – Conclusões B) a F)
b. Ineptidão da petição inicial relativa ao pedido constante do ponto 1 do petitório – Conclusões F) a M);
c. Ineptidão da petição inicial relativamente à segunda parte do pedido constante do ponto 3 do petitório – Conclusões N) a R);
d. Ineptidão da petição inicial relativamente ao pedido constante do ponto 4 do petitório – Conclusões S) a Z);
e. Ilegitimidade ativa quanto ao pedido constante do ponto 4 do petitório – Conclusões DD) a KK);
f. Ilegitimidade passiva da 4ª ré e da 6ª ré relativamente aos pedidos constantes do ponto 3 (2ª parte) e 4 do petitório – Conclusões LL) a MM).
3. Fundamentação
3.1. Os factos
Os factos a considerar são os que constam do relatório que antecede, que revelam a tramitação da presente causa, com especial ênfase no teor da petição inicial.
3.2. Os factos e o Direito
3.2.1. Do valor da causa
Como já se mencionou, o Tribunal a quo decidiu alterar o valor da causa indicado pelo autor na petição inicial, tendo fixado o mesmo em € 489.980,17
Para tanto aduziu a seguinte fundamentação:
“O Autor atribuiu à acção o valor de €19.750.000,00.
A 1ª, 2º, 3º, 5ª, e 6ª Réus e o Réu DD impugnaram o valor dado à acção entendendo que o valor deve ser fixado em €719.968,75. Vejamos
Na presente acção o Autor deduz 5 pedidos, um deles subsidiário.
O valor atribuído à causa pelo Autor parece decorrer do valor de comercialização de um imóvel, o Palácio das Flores, propriedade da 1ª Ré, porém, a sua transmissão ou propriedade não está directamente em causa na acção nem é alvo de qualquer pedido específico.
Nos termos do art. 297º nº 3 do C.P.C., existindo pedidos subsidiários atende-se ao pedido formulado em primeiro lugar, ou seja ao pedido ou pedidos principais, pelo que o pedido deduzido em 4 não será considerado para efeitos de fixação de valor.
Nos três primeiros pedidos está em causa a validade da transmissão das acções (51% do capital social da 1ª Ré) e do Acordo Global que visou tal transmissão e a restituição das acções, sendo certo que o pedido formulado em 3, na sua segunda parte, não identifica sequer quais são os restantes acordos em causa.
Nos termos do art. 301º nº 1 do C.P.C. quando a acção tiver por objeto a apreciação da existência, validade, cumprimento, modificação ou resolução de um ato jurídico, atende-se ao valor do ato determinado pelo preço ou estipulado pelas partes.
De acordo com a cláusula 2ª do Acordo Global, as 25.500 acções nominativas da 1ª Ré, prestações acessórias e/ou suprimentos, foram transmitidos pelo Autor pelo preço de €1,00, mas este preço e esta transmissão foi associada a um conjunto de outras obrigações de pagamento e aquisição de créditos pelos 2º e 3º RR, em face da insolvência da 1ª Ré, e que no fundo consubstanciam a verdadeira contraprestação pela aquisição das acções com vista a reverter a declaração de insolvência da 1ª Ré (Cláusulas 3ª e 5ª do Acordo). Concorda-se com o critério sugerido pelos RR no sentido de atender aos créditos que de imediato os compradores se obrigaram a suportar (créditos da PLMJ e créditos fiscais) nos valores de €164.894,61, €19.167,31 e €45.926,66, conforme consta dos considerandos do Acordo Global, o que redunda no preço real mínimo de €229.989,58. Acresce o valor de €1,00 referente ao valor global da prometida compra e venda da Parque do Sapal no que toca ao pedido deduzido em 3 (Cláusula 8ª do Acordo Global). Donde, o valor a atribuir ao pedido constante do ponto 1 deve ser de €229.989,58 e o valor do pedido constante do ponto 3 deve ser fixado em €229.990,58.
Entendemos que o pedido constante do ponto 2 (devolução das acções a que corresponde um preço real de €229.989,58) está em estreita conexão com os pedidos formulados em 1 e 3, não se justificando uma autonomização para efeitos tributários.
Já o valor a atribuir ao pedido deduzido em 5, à falta de melhor critério, deve ser o que decorre do art. 303º nº 1 do C.P.C. (interesses imateriais), ou seja, €30.000,01.
Assim, nos termos dos artigos citados, fixa-se à acção o valor de €489.980,17 (€229.989,58+€229.990,58+€30.000,01).”
O apelante discorda do entendimento manifestado pelo Tribunal a quo, sustentando que deve ser atribuído à causa o valor indicado na petição inicial .
Em abono de tal entendimento sustentou que “entre o Recorrente e os 2º e 3º Recorridos nunca foi celebrado nenhum contrato de compra e venda de ações; os 2º e 3º RR/Recorridos nunca procederam ao pagamento de qualquer quantia a titulo de um preço pela transmissão das referidas acções e, jamais, essa “venda” teve como contraprestação um conjunto de outras obrigações, respeitantes ao pagamento e aquisição de créditos pelos 2º e 3º RR, em face da insolvência da 1ª Ré;” e que “entre o ora Recorrente e os Recorridos foi celebrado um negócio fiduciário, uma alienação fiduciária em garantia, no âmbito da qual, aquele transmitiu aos 2º e 3º Recorridos, a titularidade de 51% (cinquenta e um por cento) das acções do capital social da sociedade, com a finalidade de garantir todas as importâncias que, os mesmos viessem a emprestar à sociedade quer directamente, quer indirectamente, ficando estes obrigados, uma vez ressarcidos de tais montantes, a retransmitir as acções ao ora Autor; “
Apreciando, diremos que independentemente da qualificação jurídica dos contratos a que aludem os autos, o certo é que o apelante também não explicou por que razão o valor da causa deve corresponder ao indicado na petição inicial, embora se intua que indicou tal valor por ser aquele que atribui ao imóvel que integra o património da 1ª ré (arts. 35º e 242º da PI).
Contudo, o valor da causa deverá ser fixado em função da utilidade económica dos pedidos.
Ora, os pedidos a que se reportam os pontos 1 a 3 do petitório dizem respeito a outra utilidade económica, a saber, 51% das ações da 1ª ré.
Assim, lida a petição inicial, verifica-se que muito embora o autor sustente que o texto do “acordo global” a que se reportam os autos não corresponde ao que efetivamente foi acordado entre os outorgantes do mesmo, também reconhece que o clausulado desse mesmo acordo inclui a “aquisição das ações representativas de 51% do capital social da 1.ª Ré” (art. 126º da PI), e que “com a reavaliação do imóvel o valor das ações entregues seria muito mais alto, de facto, em vez de corresponderem ao valor nominal de 25.500,00€ (vinte e cinco mil e quinhentos euros), as mesmas, na realidade, corresponderiam a um mínimo de 10.000.000,00€ (dez milhões de euros), valor equivalente a 51% da avaliação pelos Réus ABV e FBV efetuada e incluída no Acordo de Investimento que nos iremos referir infra com a 5.ª Ré” (art. 132º da PI).
Daqui se retira com clareza que o valor que o próprio autor atribui às ações a que se reporta no mencionado acordo global é de € 10.000.000,00 (dez milhões de euros).
Nesta conformidade, e tendo presente a argumentação do próprio autor expendida na petição inicial, nos termos do disposto no art. 301º, nº 2 e 297º, nº 1 o valor da causa respeitante aos pedidos que se reportam ao mencionado acordo, a saber, os que correspondem aos pontos 1 a 3 deve corresponder ao real valor atribuído pelo autor ao lote de 51% das ações da 1ª ré que nos termos daquele acordo eram transacionadas, a saber, € 10.000.000,00 (dez milhões de euros).
Quanto aos pedidos a que correspondem os pontos 4 e 5 concordamos inteiramente com a argumentação expendida pelo Tribunal a quo e as conclusões a que chegou.
Assim sendo, conclui-se pela parcial procedência da pretensão do apelante, no que se refere ao valor da causa, que deve ser fixado em € 10.030.000,01 (dez milhões e trinta mil euros e um cêntimo).
3.2.2. Da ineptidão da petição da petição inicial relativa ao pedido constante do ponto 1 do petitório
Na decisão apelada o Tribunal a quo julgou verificada a exceção dilatória de ineptidão da petição inicial (por ininteligibilidade do pedido) relativamente ao pedido a que se refere o ponto 1 do petitório, por
Para tanto aduziu os seguintes fundamentos:
“De acordo com o art. 186º nº 2 al. a) do C.P.C., a petição inicial é inepta quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir. Nos termos do nº 3, se o Réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial.
A noção de pedido e causa de pedir há-de ser colhida no disposto no art. art. 581º nºs 3 e 4 do C.P.C.. O pedido consiste no efeito jurídico pretendido, e a causa de pedir no facto jurídico de que procede a pretensão.
No que toca à ininteligibilidade do pedido, referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I. 3ª Ed., pág. 242): “Sendo o pedido um elemento fundamental da instância processual, a petição será inepta quando, por meio dela, não foi possível descortinar que tipo de providência o autor se propõe obter ou qual o efeito jurídico que pretende alcançar (…) O pedido deve ter uma formulação que possa ser compreendida pelo réu e pelo juiz, dado que só assim é possível sustentar um processo em que se pretende uma decisão judicial definidora de um conflito de interesses, não se admitindo a apresentação de petições que integrem pedidos ininteligíveis, ambíguos, vagos ou obscuros (…).
E no concernente à falta ou ininteligibilidade da causa de pedir, como ensina Rui Pinto (in Notas ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2ª Ed., 2015, pág. 183 e segs.) «há ineptidão da petição por falta de causa de pedir, quando há uma omissão do núcleo essencial da “causa petendi” (…) essa falta não ocorre apenas porque “não se alegam factos concretos que possam integrar causa de pedir” (...) ou por o Autor “não mencionar o facto concreto que serve de fundamento à acção” (…), mas por, também, esse factos omitidos apresentarem a qualidade de essencialidade (…) para efeitos de ineptidão, a falta de causa de pedir consiste numa omissão de alegação de factos principais» (o destacado a bold é nosso). A respeito da alínea c), este autor acrescenta “deve haver nexo lógico entre a causa de pedir e o pedido e deve existir coerência substantiva no interior de uma pluralidade de causas de pedir ou de pedidos (…) não se pode confundir nem a contradição lógica, nem a coerência substantiva com a improcedência (…) por a causa de pedir não ser bastante para alicerçar o pedido”.
Ora, o primeiro dos pedidos é o seguinte: Que seja declarado nulo a transmissão das ações da 1.ª Ré pelo Autor aos Réus ABV e FBV por falta de modo do contrato, ou seja, a condição de validade da declaração negocial é nula por vício.
Decorre da petição inicial que em causa está o “Acordo Global de Compra e Venda de Ações da Hotel das Flores – Gestão e Exploração Hoteleira S.A. e Promessa de Compra e Venda de Acções do Parque do Sapal – Investimentos Imobiliários S.A.”, celebrado entre o Autor e os 2º e 3º RR com data de 30/10/20202, junto à p.i como doc. 24.
Como é bom de ver, no ponto 1 o Autor não pede o decretamento da nulidade do dito Acordo global ou contrato de compra e venda de acções por existência de determinado vício que teria de ser invocado. O que o Autor pede é declaração de nulidade da transmissão das acções “por falta de modo do contrato” (sic), referindo depois, “ou seja, a condição de validade da declaração negocial é nula por vício”, parecendo que a nulidade pedida é afinal a nulidade da condição de validade da declaração negocial por “vício” que não é identificado, nem na fundamentação de direito (cfr. art. 391º da p.i.).
Ora, uma coisa é pedir a nulidade do negócio ou de declarações negociais ali contidas, outra é pedir a nulidade do respectivo efeito jurídico, o que efectivamente não tem qualquer cabimento legal, tornando um tal pedido obscuro. A questão tem relevo porque o Acordo Global é efectivamente bem mais amplo do que uma mera transmissão de acções, contendo uma série de obrigações designadamente no que toca à venda do imóvel Palácio das Flores que é na verdade o grande pomo da discórdia subjacente à demanda e a outras acções referidas pelos Réus.
Em face do que o Autor alega na p.i. nos arts. 383º a 397º nem é possível afirmar que aquilo que o Autor verdadeiramente pretendia no primeiro pedido era obter a declaração de nulidade do próprio contrato tendo-se expressando incorrectamente. Na fundamentação de direito, o Autor apela mesmo à falta de modo do contrato exigida para a sua perfeição, transpondo o teor de vários acórdãos sem que se perceba a sua efectiva relação com os factos invocados previamente. A falta de modo do contrato no âmbito da transmissão de acções, ou seja, a falta de declaração de transmissão inscrita no título (endosso) por estarem em causa acções tituladas nominativas (modo de transmissão), releva no plano da perfeição ou completude do contrato de compra e venda de acções, mas não contende com a sua validade formal. Aliás, neste sentido decidiu um dos acórdãos citados pelo Autor, o acórdão do S.T.J. de 15/05/20008 (proferido no processo nº 08B153 in www.dgsi.pt) onde se pode ler: “Os actos exigidos por lei, e que integram o modo, não se referem ao contrato, mas sim à transmissão da propriedade das acções: são actos essenciais para a transmissão destas, mas não contendem com a validade formal do contrato. Assim, um contrato de compra e venda de acções ao portador não deixa de ser válido pelo facto de o transmitente não ter feito entrega, ao adquirente, dos títulos representativos das acções; e este pode requerer judicialmente o cumprimento do contrato, a entrega das acções.”. Ou seja, a falta de perfeição do contrato implicaria quando muito que afinal as acções não se tivessem transmitido, mas não a nulidade da transmissão (enquanto coisa diversa da nulidade do contrato), o que também por esta via torna o pedido verdadeiramente incompreensível. E diga-se que no Acordo Global (Cláusula 5ª) consta que com a sua celebração o Vendedor (o ora Autor) entrega aos compradores os títulos representativos das Acções devidamente endossados a favor dos mesmos bem como a comunicação dirigida à sociedade nos termos do art. 102º do Código dos Valores Mobiliários, para efeitos do registo de transmissão, alegando os RR compradores, inclusive, que os títulos de acções nominativas foram entregues aos RR compradores com as respectivas declarações de endosso subscritas pelo Autor, tendo-se procedido ao respectivo registo no livro de registo de acções da 1ª Ré, sem que o Autor tivesse alegado factualmente na p.i. o contrário, isto é, que essa entrega e declarações e/ou registo nunca ocorreram. E tanto que o Autor pede no ponto 2 a devolução das acções. Ou seja, mesmo que com muito esforço se concluísse que o pedido não era inepto sempre seria manifestamente improcedente.
Conclui-se pela ineptidão do pedido constante do ponto 1.”
O apelante discorda do entendimento manifestado pelo Tribunal a quo, sustentando que o pedido é claro e inteligível.
Apreciando, diremos que salvo o devido respeito o Tribunal a quo confundiu os conceitos de ininteligibilidade do pedido e improcedência do mesmo, porquanto afirmou que não se compreende o que o autor pretende porque a ordem jurídica não contempla pretensões de declaração de nulidade de efeitos jurídicos de contratos, mas apenas permite obter a declaração judicial de nulidade de negócios e atos jurídicos.
Uma tal afirmação pressupõe que o pedido em análise é perfeitamente claro e por isso inteligível, o que significa que a petição inicial não enferma de ineptidão por ininteligibilidade no que se refere a este ponto 1 do petitório.
Saber se tal pedido deve ou não proceder diz respeito à apreciação do mérito da causa, sobre o qual o Tribunal a quo não chegou a pronunciar-se, visto que não absolveu os réus de nenhum dos pedidos.
Assim sendo, conclui-se no sentido da improcedência desta exceção e pela procedência do presente recurso, na parte em que o mesmo visa a revogação da absolvição dos réus da instância quanto ao pedido a que se reporta o ponto 1 do petitório.
3.2.3. Da ineptidão da petição inicial relativamente à segunda parte do pedido constante do ponto 3 do petitório
O Tribunal a quo também julgou procedente a exceção de ineptidão da petição inicial relativamente à 2ª parte do ponto 3 do petitório, com fundamento na ininteligibilidade do pedido.
Para tanto expôs o que segue:
“No ponto 3 do petitório o Autor pede: “Que seja anulado o acordo global de compra e venda de ações da Hotel das Flores – Gestão e Exploração Hoteleira S.A. e promessa de compra e venda de ações da Parque do Sapal – Investimentos Imobiliários S.A., e consequentemente, todos os acordos e documentos assinados posteriormente por erro nas declarações do Autor, por evidente dolo e má-fé negocial por parte dos Réus ABV e FBV.
A parte do pedido em que se reclama a anulação de todos os acordos e documentos assinados posteriormente [ao acordo global de compra e venda de ações da Hotel das Flores – Gestão e Exploração Hoteleira S.A. e promessa de compra e venda de ações da Parque do Sapal] por erro nas declarações do Autor padece de tal vacuidade e falta de concretização que o torna nesta parte indecifrável, obscuro e por isso ininteligível. Se é certo que o Autor alega uma miríade acordos celebrados depois de 30/10/2020, alguns deles em que o Autor não é sequer parte (assim sucede, entre outros, com o contrato de mediação imobiliária – docs. 51 e 54 da p.i.), não se alcança quais sejam os demais acordos que não foram indicados no pedido (a própria expressão “todos os acordos” é vaga no contexto da profusa quantidade de promessas, acordos e contratos alegados na p.i., na medida em que tanto podemos falar de acordo verbais como de escritos ou mesmo de diversos acordos num único contrato), nem cabe ao Tribunal descortinar quais são os exactos acordos e documentos que o Autor pretende ver anulados. Acresce que, não se vislumbra como possa um documento ser anulado, pedido que sempre só por si seria ininteligível. Um documento não é um negócio ou uma declaração negocial podendo quando muito corporizá-lo.
E nem se diga que os RR interpretaram convenientemente o pedido por terem deduzido extensa contestação. Os RR limitaram-se a apresentar a sua versão da relação negocial havida sem que daí o tribunal possa concluir que a pretensão formulada na 2ª parte do 3º pedido é clara e perceptível, pois não o é de todo.
A ininteligibilidade da segunda parte do pedido não atinge, contudo, a primeira parte do pedido que não é inepta.
Assim, julga-se parcialmente procedente a excepção de ineptidão da petição inicial apenas no que toca à segunda parte do pedido constante do ponto 3 do petitório, no sentido de ver anulados “todos os acordos e documentos” assinados depois de 30 de Outubro de 2020, data da celebração do Acordo Global de
Compra e Venda de Ações da Hotel das Flores – Gestão e Exploração Hoteleira S.A. e Promessa de Compra e Venda de Ações da Parque do Sapal”.
O apelante discorda deste entendimento, sustentando que este pedido deve ser interpretado à luz do alegado na petição inicial, e que “face ao teor dos factos invocados pelo Recorrente na sua petição inicial, não restam dúvidas de que, os acordos/contratos cuja anulabilidade pretendia ver invocada e declarada eram os seguintes:
(i) Acordo Complementar ao Acordo Global de Compra e Venda de Acções do Hotel das Flores- Gestão e Exploração Hoteleira, S.A. e Promessa de Compra e Venda de Acções do Parque do Sapal;
(ii) Contrato de Mediação Imobiliária, celebrado em regime de exclusividade com a sociedade “Square View – Investimento Advisory, Lda., em 23 de Dezembro de 2021;
(iii) Aditamento ao contrato de mediação imobiliária celebrado entre a 4ª Ré/Recorrida e a sociedade Hotel das Flores, S.A. , celebrado em 24 de Março de 2022;
(iv) “Acordo de Investimento com Cessão de Créditos, Aquisição de Quotas e Garantia da Subtlecondition”, celebrado em 24 de Março de 2022,
(v) “Contrato de Cessão de Créditos e Novação Objectiva de Dividas com Hipotecas, celebrado em 22 de Setembro de 2022”.16
Apreciando, importa desde logo ter presente que a clarificação do pedido não pode ser alcançada mediante a prolação de despacho de aperfeiçoamento, na medida em que nos termos do disposto no art. 590º, nº 2, al. b) do CPC e no nº 4 do mesmo preceito um tal despacho visa o “suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada” e não a clarificação do pedido.
Daí que a doutrina e a jurisprudência enfatizem que a ineptidão da petição inicial constitui um vício insanável.17
Contudo, tal não significa que a clarificação do real sentido de um pedido aparentemente obscuro não possa ser alcançada em função da alegação de facto e de Direito constante da petição inicial.
Ora, analisado este articulado, verifica-se que no mesmo o autor mencionou os acordos visados, na 2ª parte do ponto 3 do petitório, a saber, os 5 acordos suprarreferidos – tal é o que resulta dos arts. 168º a 382º da petição inicial.
Nesta conformidade, conclui-se que a petição inicial não é inepta por ininteligibilidade no que se reporta à 2ª parte do ponto 3 do petitório, antes deve tal pedido ser interpretado à luz da petição inicial, devendo considerar-se reportado aos 5 acordos mencionados.
Termos em que se conclui pela improcedência da exceção em análise, procedendo o recurso nesta parte
3.2.4. Da ineptidão da petição inicial relativamente ao pedido constante do ponto 4 do petitório e da ilegitimidade ativa no tocante ao mesmo pedido
Decidiu o Tribunal a quo julgar verificada a exceção de ineptidão da petição inicial, por falta de causa de pedir, relativamente ao pedido correspondente ao ponto 4 do petitório.
Fê-lo com os seguintes fundamentos:
“Trata-se de um pedido subsidiário, no qual o Autor pede “Caso assim o Tribunal não entende, não poderá o mesmo deixar de considerar válido a resolução do contrato de mediação imobiliária pelo pagamento do preço efetuado pelo Autor e, consequentemente, inválido a aquisição pela 5.ª Ré de 50% do referido contrato de mediação imobiliária pela assinatura com a 4.ª Ré do contrato de associação em participação, o que se requer” (o destacado a bold é nosso).
Têm razão os RR quando afirmam que o Autor pede se declare a validade de uma resolução quando não alega sequer que tal resolução contratual tenha alguma vez ocorrido. Como é sabido a resolução contratual corresponde a uma declaração unilateral feita por uma parte à parte contrária no sentido de que pretende pôr termo ao contrato. O Autor não alegou tal factualidade. Por alguma razão a fundamentação de direito da p.i é totalmente omissa no que toca a este pedido subsidiário.
Mesmo que se entendesse que o Autor pretendia que o Tribunal decretasse a resolução do contrato, a putativa causa de pedir para este pedido que consta dos arts. 222º a 382º da p.i. (por ser a parte da p.i em que se alude a este contrato e seu aditamento e outros negócios co-relacionados) não é minimamente apta a fundar um tal pedido. A resolução contratual só pode ocorrer nas situações legalmente previstas para o efeito como o incumprimento da contraparte, a impossibilidade culposa ou parcial, alteração das circunstâncias (arts. 432º, 801º, 802º, 808º, 437º do Cód. Civil), etc., que não foram minimamente alegadas, ou por previsão contratual. O Autor parece apelar à Cláusula 4ª do Contrato que permite à 1ª Ré e não ao Autor, fazer cessar o contrato mediante um pagamento à 6ª Ré Daytona, faculdade que se encontrava na exclusiva disponibilidade da 1ª Ré. No art. 272º da p.i o Autor limita-se a alegar que os 2º e 3º RR procederam à venda de 50% do contrato de mediação à entidade gestora do 7º Réu Bluecrow, através de um contrato de associação que “impugna”, mal se compreendendo esta asserção. Nenhum facto ou vício é alegado para justificar a invalidade deste contrato de associação (e cuja existência até é negada pelo 7º Réu Bluecrow, não tendo o Autor junto este contrato). No pedido que formula, a invalidade da aquisição pela 5.ª Ré de 50% do referido contrato de mediação imobiliária pela assinatura com a 4.ª Ré do contrato de associação em participação, também decorreria da tal resolução (“consequentemente”) que o Autor não alega que tenha exercido (o que não podia fazer, como é óbvio), como não alega qualquer fundamento para que o Tribunal a pudesse decretar. Normalmente a resolução do contrato ocorre quando uma das partes não cumpre a prestação a que se vinculou, total ou parcialmente, ou seja, a resolução do contrato dá ao contraente cumpridor (adimplente) a faculdade de reagir contra o contraente incumpridor (inadimplente). A cláusula 4ª do Contrato de Mediação é uma cláusula de liberação do contrato atribuída a um dos contraentes, não tendo o Autor intervindo como tal no contrato.
Note-se que apesar de o Autor alegar que pagou o preço estipulado de forma a que o mesmo fosse resolvido, o que não aconteceu, o Autor não está a pedir o ressarcimento daquele valor.
A petição será inepta por falta de causa pedir, quando ocorre uma omissão do seu núcleo essencial, ou seja, quando não tenham sido indicados os factos que constituem o núcleo essencial dos factos integrantes da previsão das normas de direito substantivo que justificam a concessão do direito em causa (cfr. acórdão da Relação de Coimbra de 13/06/2023 proferido no processo nº 869/22.8T8CBR.C1 in www.dgsi.pt).
Ora, a alegação efectuada na p.i. apesar de corresponder a uma sucessão de acordos/promessas verbais e/ou escritos posteriores ao Contrato de Mediação, é omissa quanto ao núcleo essencial de factos integradores das normas de direito substantivo que permitiram o direito a uma resolução contratual. A omissão de factos bastantes para o efeito pretendido é de tal modo severa que só pode redundar na ineptidão do 4º pedido por falta ou ininteligibilidade da causa de pedir.
E nem se argumente com a possibilidade de suprir uma tal omissão com um convite ao aperfeiçoamento, pois este só se justifica para completar o que é insuficiente ou corrigir o que é impreciso, na certeza de que a causa de pedir existe (na petição) e é percetível (inteligível); apenas sucede que não foram alegados todos os elementos fácticos que a integram, ou foram-no em termos pouco precisos. O despacho de aperfeiçoamento não tem como fim permitir à parte apresentar um novo quadro fáctico que não existia ou não era percetível, restrição imposta, aliás, pelo nº 6 do artº 590º do C.P.C. (cfr. acórdão da Relação de Coimbra de 13/06/2023 cit.).
Acresce, de forma evidente e insuprível, a ausência de legitimidade activa (os RR também salientaram que a Autora não é parte no contrato de mediação) para o Autor pedir a resolução de um contrato em que não foi parte, o que também redunda na absolvição da instância por esta via.”
O apelante discorda do entendimento manifestado pelo Tribunal a quo sustentando que:
• não se verifica a exceção de ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir visto que nos arts. 262º a 282º da a petição inicial invocou factos bastantes para sustentar o pedido em apreço;
• a sua legitimidade no tocante a tal pedido deve ser considerada uma legitimidade indireta, nos termos do disposto no art. 30º, nº 3 do CPC , 21º, nº 1, al ,a) do Código das Sociedades Comerciais; e 52º da Constituição da República.
Comecemos então por apreciar a questão da alegada falta de causa de pedir.
Como é sabido, estabelece o art. 552º, nº 1, al. d) do CPC que “na petição inicial deve o autor (…) expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à ação”.
Ao conceito de causa de pedir alude, de forma indireta, o art. 581º do CPC. Este preceito rege sobre requisitos da litispendência e do caso julgado e, no seu nº 4, dispõe que “há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico. Nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas ações constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o direito pretendido.”
À luz deste preceito poderemos então dizer que a causa de pedir é o facto jurídico do qual procede o pedido (a pretensão deduzida).
Interpretando disposições legais do CPC1961 idênticas às mencionadas, comentava ABRANTES GERALDES18:
“o legislador fez uma opção clara entre dois sistemas possíveis: o da individualização ou o da substanciação da causa de pedir.
Ao primeiro bastaria a indicação do pedido, devendo a sentença esgotar todas as possíveis causas de pedir da situação jurídica enunciada pelo autor, impedindo-se que após a sentença houvesse alegação de factos anteriores e que porventura não tivessem sido alegados ou apreciados.
Já a opção pela teoria da substanciação implica para o autor a necessidade de articular os factos de onde deriva a sua pretensão, formando-se o objeto do processo e, por arrastamento, o caso julgado, apenas relativamente aos factos integradores da causa de pedir invocada.
Foi esta a opção a que aderiu o legislador e, assim, o preenchimento da causa de pedir, independentemente da qualificação jurídica apresentada, supõe a alegação do conjunto de factos essenciais que se inserem na previsão abstrata da norma ou normas jurídicas definidoras do direito cuja tutela jurisdicional se busca através do processo civil.”
E adiante, acrescentava o mesmo autor:
“Nem todos os factos alegados pelo autor na petição inicial integram a causa de pedir, sendo natural que o autor alegue factos meramente circunstanciais ou com mera função de enquadramento e clarificação dos factos essenciais. A causa de pedir é consubstanciada tão só pelos factos que preenchem a previsão da norma que concede a situação subjetiva alegada pela parte.”
Não obstante, como bem aponta LEBRE DE FREITAS19, “não deixa de haver causa de pedir quando nenhuma norma do sistema estatui o efeito jurídico pretendido.” Como salienta este autor, a identificação da norma aplicável “permite verificar se a petição inicial é apta (ou inepta) para suportar o pedido e se há ou não repetição da causa para efeito de litispendência ou caso julgado. Mas não é suficiente para que se tenha por realizada uma outra função da causa de pedir, que é a de fundar o pedido, possibilitando a procedência da ação”.
Em sentido algo diverso sustenta TEIXEIRA DE SOUSA20 que “atendendo à delimitação da causa de pedir perante os factos complementares e os factos instrumentais, não se pode dizer que o direito processual português se orienta pela teoria, própria da época do processo comum, segundo a qual a causa de pedir é constituída por todos os factos necessários (mesmo aqueles que constituem a causa agendi remota) para obter a procedência da ação: a orientação atualmente consagrada no direito português impõe uma conceção “deflacionista” da causa de pedir correspondente à chamada teoria da individualização aperfeiçoada, segundo a qual a causa de pedir é constituída apenas pelos factos necessários à individualização do pedido do autor”.
Seja como for, parece pacífica a afirmação de que a causa de pedir é constituída pelos factos essenciais relevantes para a aplicação do Direito21 de acordo com as várias soluções jurídicas plausíveis da causa, e com vista à apreciação do mérito do(s) pedido(s).
Sobre este aspeto se pronunciou o ac. STJ 18-09-2018 (Tomé Gomes), p. 21852/15.4T8PRT.S1 nos seguintes termos:
“a causa de pedir, legalmente definida (art.º 581.º, n.º 4, do CPC) como facto jurídico de que procede a pretensão deduzida, consubstancia-se numa factualidade alegada como fundamento do efeito prático-jurídico pretendido, factualidade esta que não deve ser destituída de qualquer valoração jurídica, mas sim relevante no quadro das soluções de direito plausíveis a que o tribunal deva atender ao abrigo do art.º 5.º, n.º 3, e nos limites do art.º 609.º, n.º 1, do CPC, independentemente da coloração jurídica dada pelo autor. É o que se designa por princípio da causa de pedir aberta.
Nessa conformidade, a causa de pedir pode ser, analiticamente, configurada por dois vetores complementares:
a) – o seu perfil normativo, que a doutrina designa por causa de pedir próxima, traçado não em função da qualificação jurídica dada pelo autor, mas à luz do quadro das soluções de direito plausíveis que ao tribunal cumpre, a final, convocar, em função do efeito prático-jurídico pretendido;
b) – o seu substrato factológico, também designado por causa de pedir remota, o qual é preenchido, segundo um critério empírico-normativo, em função do tipo de factualidade desenhada, em abstrato, na factis species aplicável, tendo ainda em conta os critérios de repartição do ónus da prova formulados a partir do sobredito efeito prático-jurídico.”
Em sentido idêntico, cfr. tb. ac. STJ 30-04-2019 (Fernando Samões), p. 4435/18.4T8MAI.S1..
Dessa dimensão normativa da causa de pedir resulta que quando a questão jurídica a dirimir admita diversas soluções, decorrentes da circunstância de serem potencialmente aplicáveis diversas normas, ou de a mesma norma ou conjunto de normas serem suscetíveis de diversas interpretações, conducentes a resultados distintos, a delimitação dos factos essenciais relevantes para a composição da causa de pedir deve compreender todas essas possibilidades.
Por outro lado, importa não confundir as situações de falta de causa de pedir, vício insanável que gera nulidade de todo o processado e configura exceção dilatória, devendo conduzir à absolvição da instância22 e deficiência da causa de pedir, vício sanável que constitui fundamento de convite ao aperfeiçoamento da petição inicial, e não é suscetível de gerar nulidade de todo o processado23.
Por isso mesmo, a jurisprudência tem salientado que se a petição inicial é inepta por falta de causa de pedir, não pode ser proferido despacho de convite ao aperfeiçoamento – vd. acs. RE 19-01-2012 (António Cardoso), p. 4890/10.0TBPTM.E1; RC 18-10-2016 (Miguel Capelo), p. 203848/14.2YIPRT.C1; RC 14-11-2017 (Fonte Ramos), p. 7034/15.9T8VIS.C1; RG 18-12-2017 (Eugénia Cunha), p. 3756/12.4TBGMR.G1, e RG 01-03-2018 (José Flores), p. 850/16.6T8VCT.G1..
Quanto ao despacho de convite ao aperfeiçoamento, dispõe o art. 590º, nº 2, al. b) do CPC que “findos os articulados o juiz profere, sendo caso disso, despacho pré-saneador destinado a (…) providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados, nos termos dos números seguintes“. Por seu turno, o nº 4 do mesmo preceito estipula que “incumbe ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.”
Os poderes de atuação do juiz previstos nos citados preceitos inscrevem-se claramente no âmbito do dever de gestão processual, consagrado no art. 6º do CPC, o qual, no seu nº 1 dispõe que “cumpre ao juiz, sem prejuízo do impulso processual especialmente imposto por lei às partes dirigir ativamente o processo (…) promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação (…)”
Sobre esta matéria referem PAULO RAMOS DE FARIA / ANA LUÍSA LOUREIRO24:
“O convite ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada é agora uma incumbência do juiz, isto é, um seu dever. A intenção do legislador é clara: a ação ou a exceção não podem naufragar por insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada.
(…)
O juízo de manifesta improcedência continua a poder ser formulado; todavia, deve ele assentar numa estrutura narrativa suficiente e precisa apresentada pelo autor. O mesmo se diga dos fundamentos da defesa. Por exemplo, se o réu confirma os factos articulados pelo autor, limitando-se a invocar uma difficultas praestandi - e os factos que a revelam -, a matéria alegada é insuficiente para a obtenção do efeito pretendido, mas não estamos perante uma insuficiência de alegação.
(…)
O aperfeiçoamento da exposição dos factos articulados não se destina a prestar um serviço público de proteção da parte carenciada de assistência (judiciária), face a eventuais­ limitações do seu patrocínio forense. Não está aqui em causa garantir a igualdade substancial entre as partes (art. 4º) ou a equidade processual (em sentido estrito). O interesse perseguido pela lei e pelo órgão jurisdicional é aqui o interesse último do processo: a justa composição do litígio (arts. 6º, nº 1, 7º, nº 1, 411º). A exposição factual imperfeita permite uma decisão correta, suportando a parte as consequências da sua incapacidade de narração. Todavia, se a justiça pública existe para que aquele fim seja alcançado, então não se deve bastar com decisões apenas formalmente corretas, quando possa ir mais além.
(…)
O relato da relação material controvertida apresentado pela parte é suficiente quando é consequente, isto é, quando permite um raciocínio silogístico que leve à conclusão que apresenta - a condenação no pedido ou a procedência da exceção.
(…)
O juiz não está aqui na posição de julgador, justificando a sua intervenção na inconcludência do relato apresentado. Não lhe cabe convidar a parte a apresentar um relato de onde resulte a procedência da ação, como que sugerindo a apresentação de uma história melhor ou a invenção de uma.
O juiz está, sim, na posição do leitor - jurista, é certo - que, perante a descrição de um acontecimento, deteta uma lacuna, um salto na crónica. Esta falha narrativa pode ser patente, quando não permite compreender a concreta tessitura da relação material controvertida, mas também pode ser latente, quando a história aparenta estar completa, mas outros fatores levem o leitor jurista a concluir o contrário. A utilização de conceitos de direito ou conclusivos nos articulados, mais do que ser um problema de imprecisão na exposição dos factos, é um fator que permite ao leitor perceber que a história compreende algo mais do que aquilo que foi factualmente narrado. É um dos mais fortes indícios da insuficiência (latente) da articulação dos factos25.”
Por seu turno diz LEBRE DE FREITAS que o convite ao aperfeiçoamento26 “constitui um remédio para casos em que os factos alegados por autor ou réu (os que integram a causa de pedir e os que fundam as exceções) são insuficientes ou não se apresentam insuficientemente concretizados. No primeiro caso está em causa a falta de elementos de facto necessários à completude da causa de pedir ou duma exceção, por não terem sido alegados todos os que permitem a subsunção na previsão da norma jurídica expressa ou implicitamente invocada. No segundo caso, estão em causa afirmações feitas, relativamente a alguns desses elementos de facto, de modo conclusivo (abstrato ou jurídico), ou equívoco.
Fora da previsão do preceito estão os casos em que a causa de pedir ou a exceção não se apresentam identificadas, mediante a alegação de elementos de facto suficientes para o efeito, casos esses que são de ineptidão da petição inicial (…) ou de nulidade da exceção.
Excluída está também a utilização do despacho de aperfeiçoamento para suscitar a invocação, pela parte, de nova, ou diferente causa de pedir, ou de nova ou diferente exceção. O despacho de aperfeiçoamento e o subsequente articulado da parte deverão conter-se no âmbito da causa de pedir ou exceção invocada.”
No caso vertente, como o próprio Tribunal a quo reconheceu, o autor invocou o direito a resolver o contrato de mediação imobiliária a que se reporta a petição inicial com fundamento na cláusula 4ª do mencionado contrato e da cláusula 4ª do aditamento ao mesmo. Tal é o que expressamente resulta dos arts. 231º, 232º, 240º e 241º da petição inicial.
Por outro lado, alegou igualmente o autor, nos arts. 318º e 319º da petição inicial que pagou a quantia prevista na mencionada cláusula resolutiva.
De acordo com o alegado pelo autor nos mencionados artigos da petição inicial, as mencionadas cláusulas expressamente estipulavam a possibilidade de a 1ª ré resolver o mencionado contrato de mediação imobiliária mediante o pagamento à 4ª ré de uma determinada quantia em dinheiro.
Tanto basta para verificar que nesta parte não se verifica o vício de falta de causa de pedir, dado que foi invocada uma base factual para sustentação do pedido em análise. Poderá, eventualmente, conjeturar-se se aquela base factual é suficiente para conduzir à procedência do mesmo pedido, mas a ser assim apenas se poderá afirmar que a causa de pedir é insuficiente ou inconcludente. Simplesmente tal não configura uma situação de falta de causa de pedir geradora de ineptidão da petição inicial quanto a este pedido, embora possa conduzir à improcedência com mesmo.
Termos em que se conclui que a petição inicial não enferma de ineptidão por falta de causa de pedir no que tange ao pedido constante do ponto 4 do petitório.
Aqui chegados cumpre apreciar se no tocante ao mesmo pedido se verifica a exceção de ilegitimidade ativa.
Vejamos então.
Embora sem definir cabalmente o conceito de legitimidade processual, o art. 30º do CPC reporta-o ao interesse em demandar ou contradizer.
E, no nº 2 do mesmo preceito esclarece-se que o interesse em demandar se exprime pela utilidade derivada da procedência da ação, enquanto que o interesse em contradizer se exprime pelo prejuízo que dela advenha.
Estas regras aplicam-se quer às situações de legitimidade singular, quer às situações de legitimidade plural, ou seja, aos casos de litisconsórcio e coligação (vd. arts. 32º a 36º do CPC).
Finalmente, e de acordo com o nº 3 do mesmo art. 30º do CPC, o critério supletivo para aferição da titularidade do interesse relevante para o efeito da legitimidade é o da titularidade da relação material controvertida tal como o autor a configura.
Mantém-se por isso atual a definição doutrinária de legitimidade processual proposta por CASTRO MENDES27: “A legitimidade é uma posição de autor e réu, em relação ao objecto do processo, qualidade que justifica que possa aquele autor, ou aquele réu, ocupar-se em juízo desse objecto do processo.”
Em sentido semelhante sustenta PAULO PIMENTA28 que “a legitimidade consiste numa relação concreta da parte perante uma causa. Por isso a legitimidade não é uma qualidade pessoal, antes uma qualidade posicional da parte face à ação, ao litígio que aí se discute”.
Do mesmo modo, dizem RITA LOBO XAVIER, INÊS FOLHADELA, E GONÇALO ANDRADE E CASTRO29 que “ser parte legítima é ter uma relação direta com o objeto do litígio”.
Finalmente, esclarecem ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA, E LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA30 que “o autor é parte legítima se, atenta a relação jurídica que invoca, surgir nela como sujeito suscetível de beneficiar diretamente do efeito jurídico pretendido; já o réu terá legitimidade passiva ser for diretamente prejudicado com a procedência da ação. A exigência de um “interesse” emergente da pronúncia judicial, reconduz-nos a um interesse direto e indica que é irrelevante para o efeito um mero interesse indireto, reflexo, ou mediato, ou ainda um interesse diletante ou de ordem moral ou académica”.
Não obstante, reportando-se à 1ª parte do nº 3 do mesmo art. 30º, os mesmos autores advertem para a circunstância de que “casos há (…) em que é a própria lei que identifica o detentor da legitimidade ativa ou passiva, prevalecendo tal indicação sobre a eventual alegação do autor em sentido inverso (…)”.
E é a este propósito que, como sublinham CASTRO MENDES e MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA31, haverá que distinguir os casos de legitimidade direta dos casos de legitimidade indireta.
Para estes autores, a legitimidade direta pressupõe não só “o interesse em demandar em contradizer, ou seja, o interesse da parte na obtenção de uma tutela favorável de uma decisão de procedência ou de improcedência”, mas também “o poder de produção dos efeitos que podem decorrer da decisão de procedência ou improcedência da ação.”
Já a legitimidade indireta ou substituição processual, “assenta sempre na lei ou num negócio jurídico.”
No caso em apreço verifica-se que o autor não foi outorgante o contrato de mediação imobiliária, nem do seu aditamento e, por outro, a cláusula 4ª do contrato de mediação imobiliária, tal como a cláusula 4ª do aditamento ao mesmo contrato confere o direito de resolver o mesmo contrato à 1ª ré e não ao autor.
Contudo, importa ter presente que o autor alegou expressamente que pagou a quantia prevista na mesma cláusula – art. 318º e 319º da petição inicial - o que significa que exerceu efetivamente tal direito.
Ora, depreendendo-se do alegado na petição inicial que o pagamento dessa quantia não foi recusado, tal poderia consubstanciar uma aceitação tácita da mesma resolução…
Daí que, sem prejuízo do mérito deste pedido, não pode considerar-se verificada a exceção de ilegitimidade ativa no tocante ao pedido vertido no ponto 4 do petitório.
Termos em que se conclui pela improcedência desta exceção, procedendo o recurso nesta parte.
3.2.5. Da ilegitimidade passiva da 4ª ré e da 6ª ré relativamente aos pedidos constantes do ponto 3 (2ª parte) e 4 do petitório
O último segmento do despacho apelado que cumpre apreciar é aquele em que o Tribunal a quo decidiu julgar prejudicada a apreciação da exceção de ilegitimidade passiva da 4ª e 6ª rés relativamente aos pedidos constantes do ponto 3 (2ª parte) e 4 do petitório.
Considerando que se concluiu pela improcedência da exceção de ineptidão da petição inicial quanto aos referidos pedidos, e igualmente pela improcedência da exceção de ilegitimidade ativa quanto ao pedido constante do ponto 4 do petitório, deverá o Tribunal a quo conhecer da exceção de ilegitimidade passiva em apreço, procedendo o recurso nesta parte.
3.2.6. Das custas
Nos termos do disposto no art. 527º, nº 1 do CPC, “A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.”
A interpretação desta disposição legal, no contexto dos recursos, deve atender ao elemento sistemático da interpretação.
Com efeito, o conceito de custas comporta um sentido amplo e um sentido restrito.
No sentido amplo, as custas tal conceito inclui a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte (cf. arts. 529º, nº1, do CPC e 3º, nº1, do RCP).
sentido restrito, as custas são sinónimo de taxa de justiça, sendo esta devida pelo impulso do processo, seja em que instância for (arts. 529º, nº 2 e 642º, do CPC e 1º, nº 1, e 6º, nºs 2, 5 e 6 do RCP).
O pagamento da taxa de justiça não se correlaciona com o decaimento da parte, mas sim com o impulso do processo (vd. arts. 529º, nº 2, e 530º, nº 1, do CPC). Por isso é devido quer na 1ª instância, quer na Relação, quer no STJ.
Assim sendo, a condenação em custas a que se reportam os arts. 527º, 607º, nº 6, e 663º, nº 2, do CPC, só respeita aos encargos, quando devidos (arts. 532º do CPC e 16º, 20º e 24º, nº 2, do RCP), e às custas de parte (arts. 533º do CPC e 25º e 26º do RCP).
Tecidas estas considerações, resta aplicar o preceito supracitado.
E fazendo-o diremos que no caso em apreço, face à parcial procedência da presente apelação, as custas deverão ser suportadas por apelante e apelados, na proporção dos respetivos decaimentos, que se fixa em 1/5 e 4/5, respetivamente.
4. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes nesta 7ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a presente apelação procedente, e, em consequência:
Alterar o despacho saneador apelado, revogando o mesmo:
a. na parte em que fixou o valor da causa em € 489.980,17, fixando-se o mesmo valor em € 10.030.000,01 (dez milhões e trinta mil euros e um cêntimo);
b. na parte em que julgou verificada a exceção de ineptidão da petição inicial relativamente aos pontos 1 e 3 (2ª parte) do petitório e absolveu os réus da instância quanto a tais pedidos com tal fundamento, julgando improcedentes essa exceção, e determinando o prosseguimento da ação quanto a tais pedidos;
c. na parte em que julgou verificada as exceções de ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir e ilegitimidade ativa quanto ao pedido constante do ponto 4 do petitório, julgando improcedentes essas exceções, e determinando o prosseguimento da ação quanto a tal pedido;
d. na parte em que julgou prejudicada a apreciação da exceção de ilegitimidade passiva da 4ª e 6ª rés relativamente aos pedidos a que se reportam os pontos 3, 2ª parte e 4 do petitório, determinando que o Tribunal a quo aprecie a mesma exceção.
Custas por apelante e apelados nas proporções de 1/5 e 4/5, respetivamente.

Lisboa, 02 de dezembro de 2025 32
Diogo Ravara
Micaela Sousa
Paulo Ramos de Faria
____________________________________________
1. Da responsabilidade do relator - art.º 663º nº 7 do Código de Processo Civil aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26-06.
2. Neste acórdão utilizar-se-á a grafia decorrente do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, no entanto, nas citações, a grafia do texto original.
3. Todos os acórdãos citados no presente aresto se acham publicados em http://www.dgsi.pt/ e/ou em https://jurisprudencia.csm.org.pt/, exceto se se encontrarem inéditos (o que será expressamente consignado). A versão eletrónica deste acórdão contém hiperligações para todos os arestos nele citados.
4. No presente aresto designaremos o Código Civil e o Código de Processo Civil pelas siglas “CC” e “CPC”, respetivamente.
5. Titular do nº de identificação civil 05221633 e do nº de identificação fiscal ....
6. Pessoa coletiva nº ....
7. Titular do nº de identificação civil 13594320 e do nº de identificação fiscal ....
8. Titular do nº de identificação civil 49300 e do nº de identificação fiscal ....
9. Pessoa coletiva nº ....
10. Pessoa coletiva nº 14254351.
11. Pessoa coletiva nº ....
12. Pessoa coletiva nº ....
13. Pessoa coletiva nº ....
14. Neste sentido cfr. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Ed., Almedina, 2018, pp. 114-117
15. Vd. Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 119
16. Conclusão P.
17. Neste sentido cfr., entre outros, acs. RC 14-11-2017 (Fonte Ramos), p. 7034/15.9T8VIS.C1; RP 21-11-2019 (Paulo Duarte Teixeira), p. 20935/18.3T8PRT.P1; RL 28-09-2021 (Conceição Saavedra), p. 4357/19.1T8LSB.L1-7; RL 10-04-2025 (Inês Moura), p. 9180/21.0T8LRS.L1-2; RP 28-04-2025 (Teresa Fonseca), p. 3240/24.3T8VNG.P1; STJ 17-11-2021 (José Raínho), p. 5870/20.3T8VNG.P1.S1; e STJ 07-06-2022 (Manuel Capelo), p. 3786/16.7T8BRG.L1.S3.. Reportando-se expressamente a uma situação em que a ineptidão decorre de ininteligibilidade do pedido vd. ac. RL 27-04-2021 (Cristina Silva Maximiano), p. 2725/17.2T8LRS.L1-7.
No campo da doutrina cfr, nomeadamente J. LEBRE DE FREITAS, E OUTROS, CPC Anotado, Vol. 2º, Coimbra Editora, 2001, p. 354; CARLOS LOPES DO REGO, “Comentários ao CPC”, Vol. I, 2ª edição, Almedina, 2004 p. 431 e ABRANTES GERALDES, “Temas da Reforma do Processo Civil”, 1º Volume, 2ª edição, Almedina, pp. 65-66 especialmente na parte em que, reportando-se ao art.º 508º, n.º 3 do CPC1961, na redação resultante do DL n.º 180/96, de 25.9, que corresponde ao art.º 590º, n.º 4 do CPC201 refere que “A formulação legal implica, pois, a manutenção (…) da insanabilidade da ineptidão da petição inicial caracterizada por falta absoluta de causa de pedir” porquanto “tanto a complementaridade como a concretização que delimitam os poderes de ampliação da matéria de facto implicam necessariamente a prévia alegação de factos, pelo autor na petição inicial, como fundamento da sua pretensão.” No mesmo sentido vd. tb. ANTÓNIO ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, “Código de Processo Civil Anotado”, Almedina, 2018, vol. I, p. 222, e JOSÉ LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2.º, 3.ª ed., Almedina, 2017, p. 623
18. Ob. e vol. cits., p. 176.
19. “Introdução ao processo civil – Conceito e princípios gerais à luz do novo código”, 4ª ed., Gestlegal, 2017, p 72-73
20. “Algumas questões sobre o ónus de alegação e de impugnação em processo civil”, Scientia Iuridica, tomo LXII, nº 332, maio-agosto de 2013, pp. 385-412, em especial pp. 398-399
21. Considerando-se nesta sede quer normas, quer princípios, e abrangendo-se todas as fontes de Direito.
22. Arts. 186º, nºs 1 e 2, al. a); 576º, nºs 1 e 2; e 577º, al. b), todos do CPC.
23. Arts. 590º, nº 2, al. b); e nº 4; e 591º, nº 1, al. c), também do CPC
24. “Primeiras notas ao novo Código de Processo Civil”, Vol. I, 1ª ed., Almedina, 2013, pp. 480 ss.
25. O sublinhado é nosso, e justifica-se pela relevância da afirmação no contexto do caso dos autos.
26. Ob. cit., pp. 168-170
27. “Direito processual civil”, II vol., AAFDL, 1987, p. 187.
28. “Processo Civil declarativo”, 2ª ed., Almedina, 2018, p. 75.
29. “Elementos de direito processual civil – Teoria geral – Princípios – Pressupostos”, Universidade Católica Portuguesa Editora – Porto, 2014, p. 164
30. “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, Almedina, 2018, p. 59.
31. “Manual de Processo Civil”, Vol. I, AAFDL, 2022, pp. 340-345.
32. Acórdão assinado digitalmente – cfr. certificados apostos no canto superior esquerdo da primeira página.