Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7034/15.9T8FNC.L1-7
Relator: DINA MONTEIRO
Descritores: SILÊNCIO
SAÚDE
DIREITO
CONFLITO DE DIREITOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/30/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I. A utilização de uma fração destinada à habitação pressupõe que esse local tem condições para que os seus utilizadores a possam utilizar como o seu lar e o seu local de conforto, direito que tem garantia legal e constitucional na vertente do princípio ao respeito pela dignidade da pessoa humana e o direito a um ambiente sadio e equilibrado, com o inerente direito de o poderem defender – artigos 25.º e 66.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e artigo 70.º, n.º 1, do Código Civil.

II. Há um direito fundamental que a sociedade tem de preservar, porque preservando, preserva também a saúde mental dos seus cidadãos: o direito ao silêncio! Parecendo-nos ser inquestionável que não se trata de um direito absoluto, certo é que o mesmo deve ser interpretado num contexto que permita que todos possam usufruir de um ambiente saudável. Este direito, protegido por vários mecanismos legais, entre eles, pela Lei do Ruído, deve ser observado de forma cuidadosa, nomeadamente, quando estamos perante pessoas mais debilitadas, como é o caso daquelas que têm já uma idade avançada.

III. Estando perante a verificação objetiva, efetiva e diária de danos continuados ao direito ao sossego e à saúde em geral dos moradores de uma fração, enquanto direitos de personalidade com tutela jurídico-constitucional, em confronto com o direito à exploração de um estabelecimento comercial que viola o direito daqueles, sempre teríamos de concluir pela prevalência dos primeiros uma vez que os danos assim causados devem ser considerados como inaceitáveis.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I. RELATÓRIO

JR… e LJ… intentam contra MI… e N… – GESTÃO IMOBILIÁRIA, SA, a presente ação declarativa de condenação, com processo comum, pedindo a condenação dos RR. a encerrar o estabelecimento de snack-bar K… ou, subsidiariamente, a sua condenação a remover do local onde estão instalados os aparelhos de ar condicionado e extrator de fumo, com a realização, caso sejam autorizadas, das obras necessárias ao isolamento acústico e vibrátil do estabelecimento e exaustão dos cheiros emitidos, bem como a condenação dos RR. a absterem-se de usar o pátio como esplanada e depósito de lixo, impedindo os clientes de ter acesso e permanecer no pátio.

Mais pediram a condenação dos RR. a pagarem-lhes a quantia de € 20 000,00 (vinte mil euros) a título de indemnização pelos danos causados.

Para tanto, alegaram, em súmula, o seguinte:

O A. é proprietário da fração autónoma designada pela letra “N”, localizada no piso 1 do Edifício … e a segunda Ré é titular da fração “J” desse mesmo prédio, onde funciona um estabelecimento comercial, explorado pela primeira Ré, pertencendo-lhe o uso exclusivo do pátio contíguo, com a área de 32,85 m2.

O estabelecimento funciona até às 23 horas/1 da manhã e no pátio funciona uma esplanada, sem autorização dos condóminos, e que veio a ocupar uma zona que é comum, perturbando, com o barulho que dali decorre, os AA., cuja fração deita para o pátio. O ruído provém do arrastar de cadeiras e mesas mas também dos aparelhos de ar condicionado e do exaustor, colocados por baixo da janela da cozinha e da janela do quarto de dormir do A.

A confeção dos alimentos produz cheiros que entram pela janela e pela porta da cozinha e do quarto, invadindo toda a casa dos AA. e perturbando o repouso, tranquilidade, sono e privacidade destes.

Os RR. foram regularmente citados.

A Ré N… – Gestão Imobiliária, SA contestou, suscitando a prescrição do direito a obter uma indemnização dado que os AA. têm conhecimento dos factos alegados na ação desde 2007. Alegou, ainda, em síntese, o seguinte:

O estabelecimento comercial está munido de isolamento acústico e o ruído emitido não ultrapassa os limites legais.

Os aparelhos de ar condicionado estão colocados no lado oposto às frações “J” e “N”, a uma distância de 25 metros.

A extração de fumos e cheiros do estabelecimento é efetuada através de uma chaminé que vai desde aquele até à cobertura.

O pátio não é parte comum pois que o seu uso exclusivo afasta a presunção do art. 1421º, n.º 2 do C. Civil e o seu acesso faz-se apenas pela fração “J”, sendo que esse uso exclusivo implica que o licenciamento do estabelecimento engloba tal espaço e só pode ser usado precisamente para o comércio.

A deliberação da assembleia de condóminos de 31-05-2012 que proíbe a utilização dos logradouros comuns para fins comerciais é, assim, nula, por constituir alteração ao título constitutivo sem o acordo unânime dos condóminos.

Conclui pela procedência da exceção e, assim se não entendendo, pela improcedência da ação e pela sua absolvição do pedido.

Em 29-02-2016 os AA. vieram apresentar requerimento em que alegam que o acesso ao pátio apenas pode ser feito através da fração “J” porque a construção do prédio está inacabada, tendo já sido proferida decisão de condenação da promotora e construtora do prédio para executar as obras em falta e, com base nisso, veio requerer a ampliação do pedido e da causa de pedir formulando a pretensão de que seja declarado que o pátio é parte comum.

Foi proferido despacho que convidou os AA. a fazer intervir a sociedade K… – Restauração, Lda, actual responsável pela exploração do estabelecimento, convite a que aqueles acederam deduzindo incidente de intervenção principal provocada.

Admitida a intervenção e citada a chamada esta apenas juntou procuração forense aos autos. Foi dispensada a realização da audiência prévia e admitida a ampliação do pedido.

Foi proferido despacho saneador em que se aferiram positivamente os pressupostos processuais relevantes, sendo julgada improcedente a exceção de prescrição.

Foram fixados o objeto do litígio e os temas de prova sobre o que não incidiu qualquer reclamação.

Procedeu-se à realização da audiência final tendo sido proferida sentença em que, julgando a ação parcialmente procedente, condenou os RR. nos seguintes termos:
 
“a) Determinar a cessação da atividade prosseguida na fração “J” localizada no Piso 0, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, denominado Edifício …, sito na Ajuda - Piornais, freguesia de São Martinho, concelho do Funchal, inscrito na matriz predial sob o art. …º, descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o número …, com o encerramento do estabelecimento “K…” e inerente encerramento da esplanada instalada no pátio, referida em 15. dos factos provados;

b) Condenar a chamada “K… – Restauração, Lda.” no pagamento à autora LJ… da quantia de € 1 000,00 (mil euros) e ao autor JR… da quantia de € 3 000,00 (três mil euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais por eles suportados, absolvendo-a dos demais peticionado a esse título;

c) não reconhecer o pátio como zona comum do edifício;

d) absolver a ré MI… dos pedidos;

e) absolver a ré N… – Gestão Imobiliária, SA, do pedido indemnizatório”.

Inconformados com o assim decidido, a Ré N… - Gestão Imobiliária, SA e a chamada K… – Restauração, Lda, interpuseram recurso conjunto de Apelação em que formulam as seguintes conclusões:

1ª) As Apelantes impugnam a decisão da matéria de facto quanto ao ponto nº 25 da factualidade provada, relativo à perceção pelos Autores de odores na sua fração provenientes do restaurante explorado pela Chamada, porque as testemunhas em cujo depoimento aquela decisão se baseou, nada disseram quanto à efetiva perceção de tais odores no interior da referida fração (cfr. as passagens dos depoimentos das testemunhas EF…, do minuto 19:20 ao minuto 19:27, e RC…, do minuto 15:15 ao minuto 15:30, prestados na sessão da audiência final de 12/10/2017), que também não foram sentidos quando o Tribunal a inspecionou (vidé o auto de fls. 224 e 225), pelo que pugnam pela supressão de tal ponto de facto;

2ª) Correspondentemente, e pelas mesmas razões, deverá ser suprimida do texto do ponto n° 27 dos factos provados, a referência aos “odores” aludidos no ponto nº 25;

3ª) A douta sentença é nula, salvo o devido respeito, quanto à decisão enunciada na alínea a. do seu dispositivo, por ter condenado além do pedido (art° 615°/1/e do CPC);

4ª) Efetivamente, tendo os Autores pedido a título principal a condenação “das R.R.” a “encerrar o estabelecimento de snack-bar K…”, o Tribunal recorrido determinou não só o encerramento desse estabelecimento, mas também a “cessação da atividade prosseguida na fração J”, onde aquele está instalado;

5ª) Assim, além de exceder o âmbito objetivo do pedido, a decisão recorrida excede também o âmbito subjetivo do mesmo, porquanto abarca na sua condenação, não só a Chamada, que explora o estabelecimento, mas também a Ré, proprietária do imóvel onde aquele funciona;
6ª) E tal excesso não se pode justificar numa tentativa de melhor interpretar a pretensão dos Autores, ou de tutelar mais eficazmente os seus direitos, porque no respeito pelo Princípio do Dispositivo, era a eles, titulares desses direitos (disponíveis), que incumbia não só alegar os factos em que basearam a sua pretensão, como também definir o concreto meio de tutela que pretendiam, e a medida dessa tutela – art°s 3°/1, 5°/1, 552°/1/e, e 609°/1, do CPC;

7ª) Subsumindo os factos provados à previsão do art° 1346° do C.Civil, a douta sentença considerou que não só se verifica um “prejuízo substancial” para o uso da fração “N” do Autor, como também uma “utilização anormal” da fração “J” da Ré, arrendada à Chamada;

8ª) Aquele prejuízo, decorreria da violação dos direitos de personalidade dos A.A. ao repouso, à tranquilidade e ao sono, no uso que fazem da fração “N” onde habitam, adveniente do funcionamento do restaurante instalado na fração “J” e respetiva esplanada; e a anormalidade desta utilização, proviria da circunstância de o fim assinalado a esta fração no título constitutivo da propriedade horizontal (que é o de “comércio ou serviços”: facto nº 2), não permitir uma utilização para restauração;

9ª) Contudo, e quanto ao prejuízo, não pode ser totalmente indiferente a circunstância de não ter ficado provado que o ruído produzido pelo restaurante explorado pela Chamada exceda os limites e os critérios de incomodidade estabelecidos pelo RGR (factos n°s 29 e 32);

10ª) Nem deverá ser atribuída uma relevância absoluta às particulares circunstâncias de intensidade e duração diária do uso que os Autores fazem da sua fração, sob pena de os valores da certeza e segurança do comércio jurídico ficarem na dependência de variáveis subjetivas e aleatórias, que os agentes económicos geralmente não podem prever nem controlar;

11ª) O que mais avulta no caso dos autos, quando resulta da factualidade provada que o Autor adquiriu a sua fração a 14/05/2014 (facto n° 1), enquanto que o estabelecimento agora explorado pela Chamada já funciona na fração J mediante licença de utilização de 30/01/2007 (facto n° 13), e a sua esplanada desde pelo menos Dezembro de 2007 (facto n° 28);

12ª) Por outro lado, não se pode considerar “anormal” o uso de uma fração autónoma destinada a comércio ou serviços, para restauração, com o fundamento de que se trata de uma atividade “industrial”, quando o Plano Diretor Municipal do Funchal (“PDMF”, publicado no DR, 2ª série, n° 240, de 12/12/2008) - plano territorial de âmbito municipal, cujas disposições são vinculativas e de cumprimento obrigatório para as entidades públicas e privadas (art°s 20°/1, 43°/1 e 3, e 46°/2, da Lei n° 31/2014, de 30-05) – inclui os restaurantes” na definição que dá no seu art° 6° ao conceito de “uso comercial”;

13ª) E quando o regime que disciplina a “instalação e funcionamento dos estabelecimentos de restauração ou de bebidas”, atualmente plasmado nos decretos-leis n° 48/2011 de 01-04, e n° 10/2015 de 16-01, define os estabelecimentos de restauração, como “estabelecimentos de prestação de serviços” (art° 2°/4 do DL 48/2011 e n° 1/f do Anexo II, e art° 2°/t do DL 10/2015);

14ª) A douta sentença admite expressamente que o encerramento do estabelecimento pedido pelos Autores, é uma opção “extrema” ou “radical” (cfr. pág. 23, a fls. 240);

15ª) E os próprios A.A. admitiram-no tacitamente, ao disporem um pedido subsidiário àquele de encerramento, de remoção dos aparelhos de ar condicionado e extrator de fumo do local onde estão instalados, e de realização das obras necessárias ao isolamento acústico e vibrátil do estabelecimento e à exaustão dos cheiros emitidos;

16ª) Deste modo, reconhecendo o Tribunal o excesso da tutela pedida a título principal pelos Autores, para os interesses que visam tutelar, e admitindo expressamente que “se deveria perspectivar outras opções que melhor compusessem os interesses em conflito” (pág. 23, a fls. 240), não se percebe por que não há de poder fazê-lo, quando os próprios Autores lhe dispuseram um pedido subsidiário que permite uma composição mais proporcional, moderada, harmónica e justa, dos direitos e interesses em conflito;

17ª) O reconhecimento de que a procedência do pedido principal conduz a resultado que viola os princípios da proporcionalidade, da adequação, e da justa composição do litígio, face aos direitos e interesses em jogo, deve ser motivo bastante para que o tribunal decida pela sua improcedência e passe à apreciação do pedido subsidiário, que melhor pode garantir o respeito por aqueles princípios e assegurar a justiça no caso concreto.

18ª) Sendo certo, ainda assim, que aquilo que lhe é vedado, é condenar a mais do que foi pedido, e não a menos; pelo que mesmo o pedido principal de encerramento, não é impeditivo de uma condenação de grau intermédio, que imponha à Chamada limites no funcionamento da esplanada, e a ela e à Ré a realização dos atos materiais que forem necessários e adequados para eliminar os ruídos e vibrações sentidos pelos Autores na sua fração, provenientes do restaurante;

19ª) Concretamente, condenando a Chamada a encerrar totalmente a esplanada e o acesso à mesma, às 22 horas, de modo a permitir aos Autores a partir daí descansarem tranquilamente;

20ª) E condenando a Chamada e a Ré a implementarem as medidas necessárias e adequadas para eliminar a perceção na fração “N”, dos Autores, dos ruídos e vibrações provenientes do funcionamento do exaustor da cozinha, dentro de certo prazo (seis meses), sob a cominação de encerramento do estabelecimento (então, sim);

21ª) Sendo a decisão recorrida declarada nula, caberá à Veneranda Relação, nos termos do art° 665° do CPC, substituir-se ao Tribunal a quo na definição da justa composição dos direitos e interesses em conflito;

22ª) A douta sentença, na parte recorrida, terá violado as normas dos art°s 355° e 1346° do C.Civil, do art° 6° do Plano Diretor Municipal do Funchal, do art° 2°/4 do DL n° 48/2011 de 01-04, e do n° 1/f do Anexo II a este diploma, do art° 2°/t do DL n° 10/2015 de 16-01, e as normas dos art°s 3°/1 e 609°/1, do CPC.

Concluem, assim, pedindo que seja declarado que a decisão impugnada é nula, ou revogando-a, a substituam por outra que, dentro dos limites do pedido principal ou do pedido subsidiário dos AA., componha de forma justa e equilibrada os direitos em conflito entre eles e as Ré e Chamada, com o que, como sempre, farão JUSTIÇA!

Os AA. contra-alegaram sustentando a manutenção da decisão proferida.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. FACTOS PROVADOS

1. A propriedade da fração autónoma, destinada a habitação, de tipologia T-2, identificada pela letra “N”, localizada no Piso 1, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, denominado Edifício …, sito na Ajuda - Piornais, freguesia de São Martinho, concelho do Funchal, inscrito na matriz predial sob o art. …º, descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o número …, encontra-se inscrita a favor de JR… pela Ap. n.° 2417 de 2014/05/14 (artigo 1° da petição inicial).

2. A propriedade da fração autónoma, destinada a comércio ou serviços, identificada pela letra “J”, localizada no Piso 0, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, denominado Edifício …, sito na Ajuda - Piornais, freguesia de São Martinho, concelho do Funchal, inscrito na matriz predial sob o art. …°, descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o número …, encontra-se inscrita a favor de “N… – Gestão Imobiliária, S. A.” pela Ap. n.º 10 de 2006/03/29 (artigo 2º da petição inicial).

3. Com data de 22 de Dezembro de 2005, a folhas 64 a 65 do Livro n.° 6-A das notas do Cartório Notarial do Notário ES…, foi lavrada escritura de Propriedade Horizontal mediante a qual a sociedade anónima “EP… – Empreendimentos Imobiliários e Turísticos, S. A.” declarou ser dona de um prédio urbano, com 788,5 m2, denominado “Edifício …”, sito em Ajuda, Piornais, freguesia de São Martinho, concelho do Funchal, inscrito na matriz predial sob o artigo provisório P…, descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal como terreno para construção, sob o número …, achando-se as frações identificadas em documento complementar e que este imóvel satisfaz os requisitos de distinção, isolamento e independência, previstos no artigo 1414° e seguintes do Código Civil, necessários para nele ser instituído o regime de propriedade horizontal.

4. No documento complementar a que se alude em 3., que consta dos autos a fls. 24 a 43 p.p. e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, são identificadas as frações autónomas pelas letras que lhe correspondem e respetiva localização e consignou-se sob a denominação “Zonas Comuns de Uso Exclusivo” o seguinte: “São partes comuns de uso exclusivo das frações autónomas comerciais, o pátio localizado no piso zero e respetivas escadarias de acesso e zonas de circulação”.

5. A fração “J-Piso Zero” foi identificada como unidade destinada a comércio ou serviços, localizada na zona nascente do piso, composto por uma loja. Tem a área total de cento e três vírgula cinquenta e um metros quadrados. Pertence-lhe o uso exclusivo um pátio virado a norte, com a área de trinta e dois vírgula oitenta e cinco metros quadrados. Pertence-lhe também o uso exclusivo dos estacionamentos automóveis assinalados com os números quinze e dezassete. Tem o valor declarado de vinte e seis mil euros e corresponde-lhe a permilagem de vinte e seis por mil do valor total do prédio.” (artigo 50 da petição inicial).

6. O acesso ao pátio referido em 5. é efetuado, atualmente, apenas através da fração “J” atenta a circunstância de ainda não ter sido executada a escadaria para acesso e o muro delimitador entre o pátio de acesso comum e a zona comum de uso exclusivo da fração “J”, conforme previsto no projeto (artigo 330 da contestação).

7. Na fração autónoma identificada pela letra “J” referida em 2. foi instalado pela segunda ré e está a funcionar um estabelecimento comercial de snack-bar, atualmente denominado “K…” (antes funcionou com a designação “E… Coffe”, “N… Coffe” e posteriormente “qb restaurante”), onde, entre o mais, se confecionam refeições (artigo 3° da petição inicial).

8. Com data de 26 de Novembro de 2015, MI…, como primeira outorgante, “K… – Restauração, Lda.”, como segunda outorgante e “N… – Gestão Imobiliária, S. A.”, como terceira outorgante, subscreveram um documento intitulado “Contrato de Cessão de Posição Contratual”, que consta de fls. 78 e 79 p.p. e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, através do qual a primeira declarou ceder à segunda a sua posição contratual no contrato originário de arrendamento comercial, celebrado em 4-11-2013, em que a terceira havia dado de arrendamento a exploração do restaurante denominado “K…”, instalado na fração “J” do Edifício …, situado na Estrada …, n.° …, Funchal, exploração que lhe havia sido cedida por contrato de 11-11-2014, com a concordância da terceira outorgante, com efeitos a partir do dia 1 de Dezembro de 2015 (artigo 4° da petição inicial).

9. A fração “N” identificada em 1. situa-se imediatamente acima do pátio referido em 5. (artigo 7° da petição inicial).

10. LJ… nasceu no dia … de … de 1926 (artigo 8° da petição inicial).

11. Os autores residem de forma habitual e permanente na fração identificada em 1., onde a autora passa todo o seu tempo, ali permanecendo durante o dia a ver televisão ou na companhia de familiares (artigos 6°, 9° e 10° da petição inicial).

12. O autor JR… passa a maior parte do seu tempo em casa, sendo ele quem cuida a tempo inteiro da autora, zelando pela sua saúde e bem-estar e diligenciando pela execução de todas as tarefas domésticas (artigo 11° da petição inicial).

13. Com data de 30 de Janeiro de 2007 foi emitido o alvará de licença ou autorização de utilização para serviços de restauração ou de bebidas n.° …/2007, em nome de SCF... Sociedade de Cafés do Funchal, S. A., então entidade exploradora, relativamente a estabelecimento de restauração e bebidas, situado na Estrada …, Edifício …, n.º …, fração “J”, São Martinho, com a capacidade máxima de 50 pessoas, sendo destinado a snack-bar/cafetaria (artigo 4° da contestação).

14. O estabelecimento comercial está aberto todos os dias da semana e funciona, por regra, entre as 10 e as 23 horas, encerrando, por vezes, designadamente ao fim-de-semana, pelas 24 horas ou 1 da manhã (artigos 12° e 13° da petição inicial).

15. No pátio referido em 5. foram colocadas várias mesas e cadeiras, bem como guarda-sóis e candeeiros e ainda uma coluna de som, passando a funcionar no referido espaço e numa área que lhe é adjacente, uma esplanada onde, atualmente, a chamada, “K… – Restauração, Lda.”, serve bebidas e comidas aos seus clientes (artigos 14º e 15º da petição inicial).

16. A área de 32,85 m2 do pátio referida em 5. corresponde ao espaço que se desenvolve entre a porta à retaguarda do estabelecimento e a linha vermelha assinalada na fotografia de fls. 160 p.p. (artigo 16° da petição inicial).

17. A chamada “K… – Restauração, Lda.”, ocupa ainda com a esplanada um espaço que se estende desde a linha vermelha referida em 16. até uma vedação, servida de porta, e ainda, fora desse espaço, deposita grades de bebidas e lixo (artigo 17° da petição inicial).

18. Na assembleia de condóminos de 31 de Maio de 2011, os condóminos do Edifício … deliberaram aprovar a proposta do condómino da fração “N” de proibição de utilização dos logradouros comuns do piso 0 para fins comerciais de qualquer fração (artigos 21° da petição inicial).

19. Com data de 7 de Agosto de 2015, a administração do Edifício … dirigiu a “Restaurante K…, Lda.” e à empresa “N…” cartas registadas mediante as quais lhes deu conhecimento que, embora a parte do terraço (32,85 m2) seja de uso exclusivo da fração “J”, é uma parte comum do edifício e que não é permitida a sua utilização para fins comerciais, não podendo utilizá-la como esplanada, conforme deliberado em reunião de 31 de Maio de 2011 (artigo 22° da petição inicial).

20. A janela do quarto de dormir do autor e a varanda da cozinha da fração “N” deitam para o pátio referido em 5. (artigo 23° da petição inicial).

21. O funcionamento da esplanada no pátio causa ruídos decorrentes quer do movimento e vozes de clientes e funcionários, do arrastar de cadeiras e mesas, quer da música difundida através da coluna ali colocada, que são audíveis na fração dos autores, afetando a sua tranquilidade e descanso (artigo 23° da petição inicial).

22. Com data de Dezembro de 2007, alguns dos condóminos do Edifício … subscreveram um documento intitulado “Abaixo-assinado/petição” dirigido ao presidente da Câmara Municipal do Funchal dando conta da perturbação que lhes é causada pelo funcionamento do estabelecimento comercial, então designado “E… Coffee”, pelo facto de estar aberto para além das 24 horas, com esplanada e música (artigo 24° da petição inicial).

23. Os clientes do estabelecimento comercial que frequentam a esplanada podem aperceber-se do que se passa no interior do quarto de dormir do autor e da cozinha, quando as janelas estão abertas, assim como têm vista para a varanda da cozinha (artigo 25° da petição inicial).

24. A conduta de extração dos fumos e cheiros, designadamente da instalação sanitária, do interior do estabelecimento vai desembocar na parte superior das portas existentes a tardoz, que dão para o pátio, imediatamente por baixo das janelas da cozinha e do quarto de dormir do autor, onde apenas existem grelhas fixas em alumínio (artigo 26° da petição inicial).

25. A confeção e a cozedura dos alimentos libertam odores a comida, assim como são emitidos odores advenientes da extração do ar da instalação sanitária, que são sentidos pelos autores na sua fração e lhes causa indisposição e mal-estar (artigos 28° e 30° da petição inicial).

26. Quando o exaustor da cozinha do estabelecimento comercial está em funcionamento são produzidos ruídos e vibrações que são audíveis e percetíveis na fração dos autores, nomeadamente, na varanda e no quarto de dormir do autor (artigo 27° da petição inicial).

27. Os ruídos e odores referidos em 21., 25. e 26. causam mal-estar nos autores e, tal como a devassa referida em 23., são fonte de permanentes angústia e stress para o autor JR…, por não conseguir descansar (artigo 31° da petição inicial).

28. A esplanada encontra-se em funcionamento no pátio pelo menos desde Dezembro de 2007 (artigo 5° da contestação).

29. Em 8-09-2007, a Câmara Municipal do Funchal, na sequência de reclamação apresentada, promoveu a medição de níveis sonoros no quarto de dormir situado na fração “N” identificada em 1., no período noturno (23 horas – 7 horas), tendo apurado uma diferença entre o ruído ambiente e o ruído residual de 1,7 dB, entendendo aquela entidade que a reclamação não tinha fundamento (artigo 16º da contestação).

30. O Edifício … situa-se no lado esquerdo da entrada do Centro Comercial FM… (artigo 18º da contestação).

31. Alguns aparelhos de ar condicionado afetos a algumas frações do Edifício … estão colocados no logradouro a norte, a cerca de 18 metros da zona onde se encontra a esplanada (artigos 23º e 24º da contestação).

32. Foram executadas medições acústicas para os períodos de referência diurno e entardecer, relativos a ruído incomodativo interior provocado pela atividade de restauração K… – Restauração, Lda., medições que relativamente ao período entardecer (20 a 23 horas) ocorreram em circunstâncias em que o restaurante não mostrou indícios de qualquer atividade, estando encerrada ao público a esplanada existente no pátio interior, pelo que os ensaios não foram considerados relevantes e/ou válidos para as conclusões quanto a atividade ruidosa, apurando-se, quanto ao período diurno, uma diferença entre o ruído ambiente e o residual de 4 dB.

33. Factos Não Provados:

a) os aparelhos de ar condicionado estão colocados na parte sobranceira das duas portas do estabelecimento comercial, a tardoz, por baixo das janelas da cozinha e do quarto de dormir do autor, sem qualquer isolamento (artigo 26º da petição inicial);

b) Causam nos autores náuseas e tonturas (artigo 30º da petição inicial);

c) Provocam insónias, constantes dores de cabeça e cansaço permanente (artigo 33º da petição inicial)

d) O estabelecimento comercial está munido de isolamento acústico (artigo 15º da contestação);

e) Em todo o rés-do-chão do edifício e dos prédios vizinhos encontram-se instalados estabelecimentos comerciais, onde os ruídos característicos são uma constante (artigo 19º da contestação);

f) A extração de fumos e cheiros dos estabelecimentos comerciais é efetuada através de uma chaminé existente no interior do edifício, feita de raiz aquando da construção, e que se estende desde os estabelecimentos comerciais até à cobertura, onde são expelidos (artigo 25º da contestação).

34. Motivação apresentada:

“Os factos descritos sob os pontos 1., 2. e 3. a 5. correspondem ao teor dos factos inscritos no registo predial e, bem assim, ao conteúdo da escritura de constituição da propriedade horizontal e respetivo documento complementar, documentos que se mostram juntos aos autos a fls. 7 verso a 9, 101 e 9 verso e 10 e 22 a 43 p.p..

Quanto ao ponto 6., o autor JR… admitiu, em sede de declarações de parte, que o único modo de aceder ao pátio, quer à zona afeta ao uso exclusivo da fração “J”, quer ao restante espaço do pátio situado a norte, é através desta mesma fração “J” mas explicou que isso sucede apenas e tão-só pelo facto de o promotor do edifício e construtora não terem executado integralmente o projeto, não tendo construído a escadaria de acesso e o muro que delimitaria o espaço afecto àquela fração do restante espaço, o que foi confirmado pelas testemunhas EJ… e RS…, condóminos, respetivamente, das fração “M” e “Q”, do edifício … e se mostra comprovado pelo teor da decisão proferida na ação com processo ordinário n.º …/…, que correu termos na extinta …ª secção da Vara de Competência Mista do Funchal, que condenou a promotora do edifício a executar as obras inacabadas onde se incluem, precisamente, a aludida escadaria e o muro delimitador acima referidos.

Os pontos 7. e 8. da matéria de facto provada foram admitidos pelas partes tal como se afere do teor dos respetivos articulados, sendo certo que o ponto 8. está suportado pelo teor do documento de fls. 78 e 79 p.p..

A convicção do Tribunal quanto aos factos vertidos nos pontos 9. e 20. baseou-se no depoimento das testemunhas acima mencionadas, que identificaram e localizaram a fração dos autores por referência ao pátio onde se situa a esplanada e, mais do que isso, na perceção direta que o Tribunal pôde adquirir no decurso da inspeção judicial ao local, comprovando, assim, a correspondência com a realidade quanto à localização das janelas da fração “N”, imediatamente por cima da esplanada, conforme se afere da fotografia que consta de fls. 159 dos autos.

O ponto 10. resulta do teor do documento de fls. 11 verso e 12 p.p..

Relativamente aos factos descritos sob os pontos 11., 12. e 14. o Tribunal atendeu ao depoimento das testemunhas EJ… e RS…, condóminos e vizinhos dos autores, que confirmaram o alegado e declarado pelo autor JP…, no sentido de que a autora LJ…, atenta a sua idade e condições de saúde, já não sai de casa, passando o dia na sala a ver televisão, sendo o autor quem toma dela conta e diligencia pela execução de todas as tarefas domésticas, não tendo outra ocupação e passando os seus dias, essencialmente, na sua habitação.

Quanto ao período de funcionamento do estabelecimento comercial, as testemunhas referiram que este está aberto todos os dias, sendo que em dias em que ocorrem festas mantém-se em funcionamento até cerca da meia-noite; por sua vez, as testemunhas MÂ… e JC…, anteriores responsáveis pela exploração do estabelecimento entre 2011 e 2013, confirmaram o período de funcionamento aludindo, apesar disso, a situações excecionais de realização de eventos específicos que determinam o prolongamento do funcionamento do estabelecimento até mais tarde, tendo a testemunha JN… referido que este poderia estar aberto até à meia-noite (de notar que não se revelaram credíveis tais depoimentos no sentido de a esplanada no pátio interior ser encerrada entre as 21 e as 22 horas, o que, aliás, é refutado pelas demais testemunhas inquiridas).

O ponto 13. assenta no conteúdo do documento junto aos autos a fls. 55-A.

No que diz respeito aos factos enunciados sob os pontos 15. a 17., 21. e 23. a 27. o Tribunal atendeu aos depoimentos das testemunhas EF…, RC… e OL…, agente da Polícia de Segurança Pública, que esteve na fração dos autores na sequência de uma queixa destes, em conjugação com as perceções que recolheu no local no decurso da inspeção judicial realizada.

A colocação das mesas no pátio interior e a abrangência de uma área que extravasa os 32,85 m2 que estão afetos ao uso exclusivo da fração “J” emerge das fotografias juntas aos autos a fls. 159 a 161, foi mencionada pelas testemunhas e constatada no local.

Cumpre notar que, com base na planta de fls. 57, elaborada a uma escala de 1:200, foi possível calcular a área do espaço afeto ao uso exclusivo da fração “J”, verificando-se que corresponde, precisamente, ao espaço até ao enfiamento do muro com o envidraçado, tal como se pode aferir da fotografia de fls. 160 p.p.. Daqui se retira também que existem mesas, cadeiras e toldos colocados para além dessa área e, bem assim, a colocação de grades de bebidas e lixo para além da vedação existente.

Os ruídos causados pelo funcionamento da esplanada foram claramente enunciados pelas testemunhas EF… e RC…, sendo evidente que todo o movimento inerente à circulação de clientes e funcionários, sua entrada e saída e fornecimento de comida e bebida provoca ruídos característicos que não podem deixar de ser audíveis para quem reside na fração “N”, situada imediatamente no piso superior, ou seja, a cerca de 4 a 5 metros do local da esplanada.

Por outro lado, tendo o Tribunal estado na esplanada, no interior do estabelecimento comercial e na fração “N” pôde aperceber-se claramente da visibilidade que os clientes e funcionários podem ter para a varanda daquela fração e, bem assim, para o interior do quarto e da cozinha quando as janelas estão abertas, sobremaneira aqueles que estão nas mesas mais afastadas da fachada do edifício.

A inspeção judicial ao local permitiu ao Tribunal aferir que existe uma conduta de extração de ar (de fumos e cheiros) que percorre o andar superior (a zona de mezanino) e que vai desembocar imediatamente na zona inferir ao piso da fração “N”, por baixo das janelas da cozinha e quarto de dormir do autor, sendo por aí que os fumos e cheiros são extraídos do interior do estabelecimento, não existindo qualquer vidro pelo lado interior das grelhas de alumínio (que, a existir, impediria, naturalmente, o fim visado com a existência de tal conduta de extração).

Ademais, foi possível ouvir e sentir no local o ruído e vibração provocados pelo funcionamento do exaustor da cozinha e pela caixa de filtro de ar colocada no tecto do primeiro andar, ou seja, naquilo que corresponde ao solo da fração “N”; mais do que isso, o Tribunal apercebeu-se do ruído e da vibração que se ouve e sente na varanda e no quarto de dormir do autor, quando o exaustor está ligado e a ausência desses ruído e vibração quando está desligado.

A perturbação e mal-estar sentidos pelos autores e, sobremaneira, pelo autor JP… por força dos ruídos, vibrações e devassa da sua privacidade decorrentes do funcionamento do exaustor e da esplanada do estabelecimento comercial foram descritos pelas testemunhas, seus vizinhos, sendo certo que aquando das suas declarações de parte foi possível ao Tribunal aferir do efetivo incómodo descrito por JP… e do stress de que padece em virtude desta situação.

Reforçando essa situação, figuram ainda as recorrentes reclamações, confirmadas pela testemunha CA…, funcionário da empresa responsável pela administração do condomínio do edifício ….
De notar que a repercussão na qualidade de vida e no estado anímico do autor dos efeitos desta situação, foi um facto foi também relatado pelo perito JC…, engenheiro eletrotécnico, responsável pelas medições acústicas realizadas na fração “N” que, afirmando assertivamente que o exaustor incomoda quem reside na fração (o que, aliás, foi constatado pelo Tribunal), afirmou ter encontrado o autor “à beira de um ataque de nervos”.

Os pontos 18., 19. e 22. basearam-se no teor dos documentos de fls. 15 e 16, 16 verso e 17 e 17 verso e 18 p.p..

Quanto ao ponto 28. atendeu-se à circunstância de o abaixo-assinado referido no ponto 22. datar de Dezembro de 2007, onde se alude, entre o mais, ao ruído proveniente da esplanada, assim se dando como provado que, pelo menos a partir dessa data, a esplanada está em funcionamento.

O ponto 29. emerge do teor de fls. 55-A verso e 56 p.p..

A localização do edifício … junto à entrada do Centro Comercial FM… foi constatada no local e relatada pelas testemunhas inquiridas, pelo que se deu como provado o vertido no ponto 30. da matéria de facto provada.

A localização de aparelhos de ar condicionado que não aparentam qualquer ligação com a fração “J”, referida no ponto 31., foi verificada no local e medida a distância a que se situam da esplanada e da fração “N”, conforme consta do auto de inspeção judicial de fls. 224 a 226 p.p..

Quanto ao ponto 32. atendeu-se ao conteúdo do relatório pericial que consta de fls. 116 a 131 p.p., cujas conclusões foram amplamente fundamentadas e explicadas pelo senhor perito em sede de esclarecimentos prestados no decurso da audiência de julgamento.

Os factos dados como não provados ficaram a dever-se à inconsistência da prova testemunhal e/ou documental que sobre eles incidiu.

O senhor perito, JC…, referiu desconhecer se o estabelecimento comercial está munido de aparelhos de ar condicionado, sendo que o Tribunal não aferiu a sua existência aquando da realização da inspeção judicial, tanto mais que os funcionários que lá se encontravam foram incapazes de identificar a sua localização ou sequer asseverar a sua existência, sendo evidente que o som advindo da zona situada por baixo das janelas da cozinha e do quarto de dormir do autor reporta-se ao funcionamento do aparelho de extração de fumos e exaustor da cozinha do estabelecimento.

Apesar da perturbação comprovada e suportada pelos autores não foi objetivamente demonstrada a existência de náuseas, tonturas, insónias e dores de cabeça mencionadas nas alíneas b) e c) dos factos não provados.

Não foi verificado pelo senhor perito nem foi produzida qualquer prova cabal que revelasse a existência de isolamento acústico no estabelecimento comercial (alínea d) dos factos não provados).

Não foram identificados ou verificados outros estabelecimentos no rés-do-chão do edifício com as características do restaurante em causa nos autos ou similares.

Não obstante o alegado pela ré na sua contestação, nem sequer no decurso da realização da inspeção judicial esta diligenciou pela identificação e visualização da chaminé que transportaria os fumos e cheiros do estabelecimento até à cobertura, nem existem elementos documentais que a revelem, pelo que tal facto resultou não demonstrado (cf. alínea f) dos factos não provados)”.

III. FUNDAMENTAÇÃO
O conhecimento das questões por parte deste Tribunal de recurso encontra-se delimitado pelo teor das conclusões ali apresentadas salvo quanto às questões que são de conhecimento oficioso – artigos 635.º, n.ºs 3 a 5 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil Revisto.

O conteúdo de tais conclusões deve obedecer à observância dos princípios da racionalidade e da centralização das questões jurídicas objeto de tratamento, para que não sejam analisados todos os argumentos e/ou fundamentos apresentados pelas partes, sem qualquer juízo crítico, mas apenas aqueles que fazem parte do respetivo enquadramento legal, nos termos do disposto nos artigos 5.º e 608.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil Revisto.

Excluídas do conhecimento deste Tribunal de recurso encontram-se também as questões novas, assim se considerando todas aquelas que não foram objeto de anterior apreciação pelo Tribunal recorrido.

Constituem questões de Direito colocadas pelas Apelantes à consideração deste Tribunal de recurso:

1. Conhecer da invocada nulidade da sentença por violação do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo civil Revisto;

2. Saber se na fração “N” em causa nos autos pode ser exercida a atividade de restauração;

3. Verificar e decidir se no caso em apreciação se verifica uma situação de conflito entre o direito de personalidade dos AA. e o direito dos RR. à exploração do estabelecimento comercial existente na fração “N”.

Para além dessas questões de Direito suscitadas pelas A. e Chamada/Apelantes, as mesmas impugnaram ainda a matéria de facto dada como Provada pelo Tribunal de 1.ª Instância, quanto aos seus Pontos 25 e 27, nos termos que ali referem.
 (…)
Não há, pois, qualquer censura a proferir quanto aos factos fixados pelo Tribunal de 1.ª Instância que, assim, se mantêm.

Vejamos agora as demais questões colocadas, seguindo a ordem indicada pelos Apelantes.

Os Apelantes defendem a nulidade da sentença em apreciação uma vez que a condenação proferida é distinta do pedido formulado pelos AA. com o que foi violado o disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Civil Revisto.

Muito concretamente, os Apelantes reportam-se à condenação constante da alínea a) da sentença que tem o seguinte teor:

“a) Determinar a cessação da atividade prosseguida na fração “J” localizada no Piso 0, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, denominado Edifício …, sito na Ajuda - Piornais, freguesia de São Martinho, concelho do Funchal, inscrito na matriz predial sob o art. …º, descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o número …, com o encerramento do estabelecimento “K…” e inerente encerramento da esplanada instalada no pátio, referida em 15. dos factos provados”.

Em contraponto com o pedido principal formulado pelos AA./Apelados na sua petição inicial e que tem o seguinte teor:

“Condenação dos RR. a encerrar o estabelecimento de snack-bar K…”.

Defendem, assim, que a distinta formulação entre o pedido deduzido pelos AA. e a condenação proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância, consubstancia uma autêntica violação do princípio do dispositivo e do comando inserto no artigo 609.º, n.º 1, do Código de Processo Civil Revisto em que se dispõe que: “a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir”.

Desde já podemos afirmar que, neste ponto, assiste razão aos Apelantes.

Com efeito, o pedido formulado na ação reporta-se apenas ao encerramento do estabelecimento comercial K…, no que apenas é atingida a chamada, exploradora do estabelecimento, a K… – Restauração, Lda.

Na condenação proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância, em que é determinada a cessação da atividade prosseguida na fração “J”, fica abrangida não só aquela chamada, como também a proprietária da fração, a Ré N… – Gestão Imobiliária, SA, com o que sempre teríamos de concluir que o âmbito desta condenação abarca uma realidade que excede o pedido formulado na ação e, nessa medida, sempre estaríamos perante uma decisão que, neste particular, é nula, nos termos do disposto nos artigos 5.º, n.º 1, 609.º, n.º 1 e 615.º, n.º 1, alínea e), todos do Código de Processo Civil Revisto.

Esta nulidade impõe a este Tribunal de recurso o conhecimento do objeto da ação e do recurso, nos exatos termos em que as partes a apresentaram em Tribunal e que, neste caso, será objeto de decisão a proferir após o estudo a que adiante iremos proceder ao analisar os demais pontos de discordância suscitados neste recurso – artigo 665.º do Código de Processo Civil Revisto.

Desde já podemos adiantar que compreendemos a extensão que foi dada a este segmento da decisão uma vez que foi entendimento do Tribunal de 1.ª Instância que a fração “J” aqui em causa – em que funciona o estabelecimento comercial K… -, estava a ser utilizada para um fim que não era o legalmente permitido. Esta questão, porém, como já acima referimos, será objeto de autónoma apreciação e decisão. E porque esta questão entronca necessariamente na apreciação a realizar quanto ao fim dado à fração em causa, vamos desde já proceder à sua análise.

No título da propriedade horizontal respeitante à fração “J”, aqui em apreciação, propriedade da 1.ª Ré e que é explorada pela chamada, consta que a mesma se destina a “comércio e serviços”.

Após ter realizado um apurado estudo jurisprudencial sobre o conceito de atividade comercial e industrial, entendeu o senhor juiz do Tribunal de 1.ª Instância que a atividade de restauração – aquela que é a praticada na fração -, integra uma atividade industrial e, como tal, não é permitida naquele espaço por desvirtuar o fim dado àquela fração, desde logo, na constituição da propriedade horizontal.
    
Com o devido respeito, não podemos acompanhar este entendimento.

Com efeito, como podemos verificar a fração aqui em causa situa-se no Funchal, estando abrangido por um plano diretor – o Plano Diretor Municipal do Funchal (PDMF), vigorando à data dos factos a Deliberação n.º 3282/2008, da Câmara Municipal do Funchal, publicada no DR n.º 240/2008, II.ª Série, de 12 de Dezembro de 2008.

Nos seus artigos 1.º, n.º 1 e 4.º, n.º 1, dispõe-se ali que:

“O Plano Diretor Municipal do Funchal, adiante designado por Plano, constitui o instrumento definidos das linhas gerais de política de ordenamento físico e de gestão urbanística do território municipal, tendo ema tenção os objetivos de desenvolvimento definidos pelo concelho.
(…)
O Plano reveste a natureza de regulamento administrativo, sendo as respetivas disposições de cumprimento obrigatório, quer para as intervenções de iniciativa pública, quer para as promoções de iniciativa privada ou cooperativa”.

Dispondo-se ainda no artigo 6.º deste mesmo PDMF, relativamente a Definições e Abreviaturas:
“(…)
Uso comercial – inclui comércio retalhista, cafés e restaurantes”.

Este conceito de estabelecimentos de restauração está, por sua vez, regulado pelo DL n.º 234/2007, de 19 de Junho e pelo Decreto Regulamentar n.º 20/2008, de 27 de Novembro, classificando-os como estabelecimentos de prestação de serviços.

Pelo que, sem necessidade de mais e aprofundadas razões, sempre teríamos de concluir que na fração “J” aqui em causa pode ser exercida a atividade de restauração prosseguida pelos RR. desde que, obviamente, sejam cumpridas as demais disposições legais que regem essa atividade.

Questão distinta é a de se saber se os AA. podem, como o fazem nesta ação, pedir o encerramento do estabelecimento comercial K… invocando a violação grave e reiterada dos seus direitos de personalidade uma vez que os ruídos e cheiros que advêm da utilização do restaurante explorado pelos RR. os incomodam e retiram o sossego que lhes é devido e que deve ser proporcionado a um qualquer cidadão que esteja em sua casa.

Vejamos os contornos jurídicos desta questão.

Por um lado, temos que a utilização realizada pelos AA. da sua fração “N” é adequada ao fim para o qual a utilizam: o local em causa constitui o espaço que elegeram como o seu lar e, como não poderia deixar de ser, o seu local de conforto, direito que tem garantia legal e constitucional na vertente do princípio ao respeito pela dignidade da pessoa humana e o direito a um ambiente sadio e equilibrado, com o inerente direito de o poderem defender – artigos 25.º e 66.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e artigo 70.º, n.º 1, do Código Civil.

Nas palavras produzidas pela própria sentença aqui em análise: “A jurisprudência tem considerado que o direito ao repouso, ao sono e à tranquilidade são pressupostos da realização do direito à saúde e à qualidade de vida, constituindo emanação dos direitos fundamentais de personalidade, nomeadamente dos direitos à integridade física e moral, a um ambiente de vida sadio, constitucionalmente tutelados como Direitos Fundamentais no campo dos direitos, liberdades e garantias pessoais”.

E neste particular cumpre ter presente que tendo os AA. baseado a presente ação na violação, por parte dos RR., do seu direito ao descanso e ao bem-estar na fração “N”, de que são proprietários e moradores, por se produzirem ruídos, vibrações e cheiros na fração “J” que os incomodam, diariamente, e provando-se esses mesmos itens descritivos, sempre teríamos de concluir que os RR. mantêm uma conduta ilícita e reprovável, independentemente de ter-se provado valores de produção de ruído acima do nível legal admissível.

Aliás, quanto a este propósito cumpre ter presente que a diligência realizada pelos senhores Peritos com vista à medição do ruído mostra-se inquinada, no dizer do próprio Perito e, nesse contexto, sem qualquer interesse prático. Com efeito, no período em que ocorreram as medições, e como é expressamente referido pelo senhor perito, “o restaurante não mostrou qualquer atividade”, estando com as portas abertas e a esplanada fechada o que aconteceu, possivelmente, e no dizer do mesmo Perito/Engenheiro, pelo facto de as partes intervenientes nos autos terem sido avisadas dos dias e horas em que iam ser feitas as medições e, nesse caso “terem fechado a torneira (…)”, uma forma muito esclarecedora para traduzir que os RR. se tinham precavido para que as medições não registassem o verdadeiro volume de ruído que ali era realizado.

Essa circunstância, porém, e como já acima referimos, é inócua para a decisão a proferir.

Com efeito, importante para a presente decisão é o facto de estarmos perante duas pessoas idosas (sendo que a A. tem 92 anos – fls. 12 e Ponto 10 dos factos Provados -, e o Réu, seu sobrinho, e que daquela toma conta, ter também uma idade que já lhe permite estar em casa – Ponto 12 dos Factos Provados), que vivem num primeiro andar, tendo por baixo instalado um estabelecimento de restauração que provoca trepidações e ruídos contínuos, e assim sendo, incomodativos, independentemente da respetiva medição.

O próprio funcionamento da esplanada no pátio do prédio aqui em questão, e que está integrada na exploração realizada pela chamada K…, provoca também esses mesmos ruídos “(…) decorrentes quer do movimento e vozes de clientes e funcionários, do arrastar de cadeiras e mesas, quer da música difundida através da coluna ali colocada, que são audíveis na fração dos AA., afetando a sua tranquilidade e descanso” – Ponto 21 dos Factos Provados, matéria que não foi objeto de impugnação.

Todos sabemos, até por experiência comum, que um ruido continuado, ainda que baixo [o que não é o caso], é algo que altera os nossos níveis de resistência e de boa disposição. No caso, esses ruídos são da laboração de um restaurante e de uma esplanada que lhe é inerente, com o arrastar de cadeiras, música, funcionamento de exaustores (ainda que deficientes), a emanação de cheiros de comida, quer sejam fritos ou não, a sua impregnação nas casas, roupas e na própria saúde dos AA. e não só, como podemos aferir dos documentos juntos a fls.14/18 dos autos em que os demais condóminos daquele prédio, através da respetiva Administração e de um abaixo-assinado/petição dirigida ao senhor Presidente da Câmara Municipal do Funchal, demonstram o seu incómodo e pesar perante toda esta situação e pedem a sua intervenção para a resolução do problema que, malgrado todo o exposto, se arrasta há anos, sem solução.

Note-se que “o estabelecimento comercial está aberto todos os dias da semana e funciona, por regra, entre as 10 e as 23 horas, encerrando, por vezes, designadamente ao fim-de-semana, pelas 24 horas ou 1 da manhã (artigos 12° e 13° da petição inicial)” e que “no pátio referido em 5. [sendo que o quarto de dormir do A. e a varanda da cozinha da fração dos AA. situa-se imediatamente acima desse pátio], foram colocadas várias mesas e cadeiras, bem como guarda-sóis e candeeiros e ainda uma coluna de som, passando a funcionar no referido espaço e numa área que lhe é adjacente, uma esplanada onde, atualmente, a chamada, “K… – Restauração, Lda.”, serve bebidas e comidas aos seus clientes (artigos 14º e 15º da petição inicial)” - Pontos 14, 15, 9 e 20 dos Factos Provados, que não foram objeto de impugnação.

Neste cenário, sempre seria de perguntar qual a dúvida que possa existir quanto à gravidade da situação em termos de perturbação da vida diária dos AA. e que, neste caso, dura há vários anos.

Há um direito fundamental que a sociedade tem de preservar, porque preservando, preserva também a saúde mental dos seus cidadãos: o direito ao silêncio! Parecendo-nos ser inquestionável que não se trata de um direito absoluto, certo é que o mesmo deve ser interpretado num contexto que permita que todos possam usufruir de um ambiente saudável. Este direito, protegido por vários mecanismos legais, entre eles, pela Lei do Ruído, deve ser observado de forma cuidadosa, nomeadamente, quando estamos perante pessoas mais debilitadas, como é o caso dos aqui AA./Apelados, já com uma idade avançada.

Por outro lado, entendemos que se trata de um falso problema aquele que é equacionado pelos RR./Apelantes neste recurso quando referem que paralelamente ao direito dos AA. há também o direito dos RR. à livre iniciativa e ao desenvolvimento económico com a prossecução da sua atividade económica que, neste caso, não foram observados com a decisão proferida.

Na verdade, podem e devem os RR./Apelantes prosseguir com a sua atividade económica, esta ou outra, só que, ao fazê-lo, têm de respeitar os ditames legais inerentes a tal exercício e o direito de terceiros, legalmente protegidos, o que não aconteceu neste caso, como decorre cristalinamente da matéria de facto dada como Provada e que, em grande parte, não foi sequer objeto de impugnação, como é o caso da materialidade constante dos Pontos 17 a 24 e 26 dos Factos Provados. Igual materialidade comprova a gravidade desta situação e encontra-se plasmada nos Pontos 25 e 27 dos Factos Provados que, embora tenham sido objeto de impugnação por parte dos RR., não obtiveram provimento.

Todos os atos nocivos acima enumerados, praticados na fração “J”, prejudicam objetiva e subjetivamente o direito dos AA., e subsumem-se como um prejuízo substancial, significativo e importante, para o uso que os AA. fazem do seu imóvel, fração “N”, local da sua habitação permanente, o que lhes permite oporem-se à continuação de tais ofensas, tal como o fizeram, entre outros procedimentos adotados durante vários anos, com a instauração da presente ação.

Seja como for, bastaria a verificação – não contestada -, da factualidade acima referida para que o Tribunal fundadamente decidisse pelo encerramento do estabelecimento de snack-bar K…, em conformidade, aliás, com o que se estabelece nos artigos 1346.º e 1347.º do Código Civil.

Estamos perante a verificação objetiva, efetiva e diária de danos continuados no direito ao sossego e à saúde em geral, dos aqui AA., enquanto direitos de personalidade com tutela jurídico-constitucional, em confronto com o direito à exploração de um estabelecimento por parte dos RR., que não cumprem com a preservação dos direitos daqueles. Como decorrência desta atividade por parte da chamada que explora o estabelecimento comercial de restauração instalado na fração “J”, decorrem danos prejudiciais na vida e na saúde dos AA. e que não podem, neste contexto, serem considerados como aceitáveis.

Salvo sempre o devido respeito, não compreendemos em que medida possa ser invocado o princípio da proporcionalidade para a resolução deste caso, em face dos contornos que acima deixamos definidos e que desembocam numa atuação inaceitável, ilícita e objetivamente prejudicial aos direitos dos aqui AA. 

Seja como for, também neste particular, a sentença aqui em apreciação realizou uma cuidadosa ponderação que, pela sua acuidade e relevância, se passa a transcrever:

“Na situação sub judice, é inquestionável que o direito ao repouso dos autores foi perturbado pelo funcionamento do estabelecimento “K…”, mas os direitos de natureza económica, como o da livre iniciativa económica e da propriedade privada, têm também protecção constitucional (cf. artigos 61° e 62° da Constituição da República Portuguesa).

Assim, quer o direito dos autores à saúde e ao repouso, quer o direito dos que exploram o estabelecimento comercia têm consagração na lei fundamental e apresentam-se conflituantes entre si, o que impõe o recurso ao instituto de colisão de direitos (cf. artigo 335° do Código Civil).

Estabelece o art. 335°, n.° 1 do C. Civil: “Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente os seus efeitos, sem maior detrimento para qualquer das partes.”

Contudo, o n.° 2 do referido normativo legal acrescenta: “Se os direitos forem desiguais ou de espécies diferentes, prevalece o que deva considerar-se superior.”

A aplicação deste instituto “apenas se coloca se, existindo dois diferentes direitos pertencentes a titulares diversos, não se mostre possível o exercício simultâneo e integral de ambos, o que pressupõe, evidentemente, a efectiva existência, validade e eficácia de tais direitos conflituantes.

Aquela norma prevê para a colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, a cedência recíproca na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior perda para qualquer dos seus beneficiários. Se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deve considerar-se superior. Portanto, numa primeira abordagem, impõe-se uma tarefa de ponderação e harmonização no caso concreto, através do princípio da concordância prática” ou a “ideia do melhor equilíbrio possível entre os direitos colidentes”, por forma a atribuir a cada um desses direitos a máxima eficácia possível. Sendo inviável essa harmonização, ocorre a prevalência do direito que seja tido como superior.” - cf. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16-03-2010, relatora Cecília Agante, processo n.° 462/06.2TBTNV.C1 disponível na base de dados do ITIJ.

A jurisprudência tem vindo a seguir o entendimento que em caso de colisão entre o direito ao repouso, à tranquilidade e ao sono num ambiente ecologicamente equilibrado e o direito de uso, fruição que o proprietário tem sobre a coisa que lhe pertence, deve prevalecer o primeiro. Com efeito, tal direito, porque contende com a integridade física e moral do indivíduo, afectando os direitos de personalidade de uma pessoa, deve preponderar sobre o direito de propriedade.

Não obstante, as regras de proporcionalidade e da justa composição dos interesses justificam que mesmo o direito inferior (v.g. o direito de propriedade) deva ser respeitado até onde for possível e a sua limitação deve circunscrever-se à exacta proporção em que isso é exigido pela tutela razoável do conjunto principal de interesses.

Para efeitos do funcionamento da prevalência do direito superior, será necessário provar-se que a acção ilícita (no caso, a emissão de ruídos e cheiros e devassa decorrente do funcionamento da esplanada) viola o direito ao repouso, tranquilidade e sono dos autores, para efeitos do estatuído no art. 1346º do C. Civil.

Assim, para que os donos de um prédio vizinho se possam opor à emissão de ruídos (ou à produção de trepidações e outros factos semelhantes provenientes de outro prédio) devem tais emissões importar num uso anormal do imóvel, ou num prejuízo substancial (ou seja, um dano considerável) para uso do seu imóvel. Nestas circunstâncias, sendo inconciliáveis os direitos em disputa, deve prevalecer, enquanto direito de personalidade, o direito ao repouso, descanso e saúde das pessoas lesadas – cf. neste sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1-03-2016, relator Garcia Calejo, processo n.° 1219/11.4TVLSB.L1.S1 publicado na base de dados do ITIJ.

Terá de ser em face da situação concreta e por via da ponderação das respectivas especificidades e a avaliação dos interesses em jogo, que se encontrará o modo de exercício dos direitos de autores, ré e chamada.

Certo é que no âmbito dos direitos de personalidade não se deve ter por referência os parâmetros de um homem médio ou cidadão normal e comum, pois, “como direitos eminentemente pessoais, inerentes a cada pessoa per se, tais direitos devem ser entendidos como corporizados numa pessoa individualizada, ao lesado com a sua individualidade própria, com a sua sensibilidade.” Mas “[] respeitando a sensibilidade dos autores, o critério judicial de conformação do quadro factual não pode deixar de apelar a conceitos de normalidade, razoabilidade e proporcionalidade, sob pena de bastar a prova de qualquer ruído para conduzir à procedência de toda e qualquer oposição à sua emissão.” – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16-03-2010, relatora Cecília Agante, processo n.º 462/06.2TBTNV.C1 disponível na base de dados do ITIJ.

Os ruídos, cheiros, incómodos e devassa suportados pelos autores e supra identificados têm, de acordo com os mencionados critérios de razoabilidade, de considerar-se substanciais, porque, sendo a autora uma pessoa com 91 anos de idade (cf. ponto 10.), que passa todo o seu tempo na fracção onde reside (fracção “N”) e sendo o autor uma pessoa que se dedica a tempo inteiro a cuidar daquela, zelando pela sua saúde e bem-estar e, como tal, passa a maior parte do seu tempo em casa, é evidente que não podem deixar de se mostrar afectados pelos ruídos, trepidações e cheiros que emanam da fracção “J”, causando-lhes transtorno e incomodidade.

Na verdade, a tratar-se de pessoas que saíssem pela manhã para o trabalho e regressassem ao final do dia, sempre o período de funcionamento do estabelecimento licenciado pela entidade administrativa reduziria o tempo durante o qual estariam sujeitas aos transtornos causados.

Mas são pessoas, uma de idade avançada e outra que dela cuida, que passam todo o seu tempo no seu imóvel e, ainda que os ruídos causados possam não ultrapassar os limites legais – e isto é do conhecimento de qualquer cidadão médio e conhecedor da convivência num prédio constituído em regime de propriedade horizontal –, certo é que a reiteração dos ruídos, cheiros e vibrações e a sujeição dos autores, diariamente, sobremaneira nos períodos de confecção das refeições, aos incómodos deles decorrentes, transformam-nos em lesão exponencial da sua tranquilidade e sossego”.

No mais, trata-se de questões paralelas invocadas pelos RR./Apelantes, e sem interesse para a decisão da causa, como é o caso da questão ligada à anterioridade do funcionamento do estabelecimento [fração “J”], através do alvará de utilização para serviços de restauração ou de bebidas emitido em 30 de Janeiro de 2007 [muito embora o seu funcionamento se reporte a Dezembro de 2007, segundo os próprios RR.], relativamente à data aquisição de aquisição da fração pelo A. [fração “N”], o que lhes permitiria invocar a anterioridade do seu Direito.

Desde logo, diga-se que tal afirmação não corresponde sequer à verdade como podemos aferir da própria contestação dos RR. em que se reconhece a A. como proprietária, pelo menos, desde 2007, bem como pelo reconhecimento realizado pelo próprio A., nas declarações produzidas, de que reside com a A. (sua tia), desde há 16/17 anos atrás, o que sempre nos levaria a uma data anterior a 2006 tendo por base a data da constituição da Propriedade Horizontal do imóvel no qual se situam as frações aqui em consideração (22 de Dezembro de 2005).

Por outro lado, sabemos que a A. era a proprietária da fração até 2014, data em que procedeu à sua venda ao aqui A., seu sobrinho [registo da aquisição conforme Ap. 2417 de 2014/05/14 – fls. 08 verso/9 dos autos], pelo que nem sequer pela anterioridade de ocupação podemos ver esta questão.

Acresce que, o facto de o estabelecimento em causa ter uma licença de utilização datada de 2007 é irrelevante para a resolução da questão uma vez que o que importa é o facto de se ter comprovado a existência do dano, no caso, os já mencionados prejuízos consideráveis, inaceitáveis e prejudiciais ao direito de terceiros (neste sentido, entre outros, Código Civil Anotado, Ana Prata e Outros, II.º vol., Almedina, 2017, págs. 166/ss.

Importante, sim, é verificarmos que os RR. conhecem os problemas aqui em consideração há já vários anos, ignoram-nos, e continuam a sua atividade comercial sem se importarem com as consequências nocivas que o funcionamento do estabelecimento comercial, nas condições em que se encontra a laborar, provocam a terceiros, malgrado terem sido por várias vezes e por diversos modos alertados para esses factos, nomeadamente, pelos aqui AA.

Desde logo, atente-se que anteriormente ao funcionamento do estabelecimento explorado pela Chamada K… [26 de Novembro de 2015], tinham já ali funcionado outros estabelecimentos comerciais com a designação “E… Coffe”, “N… Coffe” e posteriormente “qb restaurante”, onde, entre o mais, se confecionam refeições [Ponto 7 dos Factos Provados], e que determinaram as mesmas reações por parte dos condóminos do prédio onde se encontram as frações dos AA. e dos RR, como decorre de toda a materialidade dada como provada, sem que os RR. tivessem alterado e/ou tivessem procurado alterar esta situação.

Como podemos comprovar, o estabelecimento de restauração instalado na fração “J” teve já várias denominações comerciais, foi já objeto de várias queixas e, a final, tudo permanece na mesma. Aliás, melhor dizendo, a única coisa que se alteraram ao longo dos anos foram as denominações sociais daquele estabelecimento. A sua proprietária, a aqui 1.ª Ré, não demonstrou e muito menos alegou, ter realizado quaisquer obras durante todos estes anos, com vista à eliminação dos concretos problemas decorrentes da utilização daquele espaço, malgrado o conteúdo do pedido subsidiário deduzido pelos AA. nesta ação e sobre o qual os RR. nada disseram.
 
Esta constatação é importante para verificarmos que, só agora, em sede alegações, vêm pedir ao Tribunal que lhes seja fixado e concedido um prazo para procederem a obras visando alterações no funcionamento daquele estabelecimento comercial. Ora, para além de se tratar de matéria que este Tribunal de recurso não pode conhecer, por ser nova nos autos, a verdade é que se os RR. pretendiam realizar essas obras, tiveram já anos para as efetivar e/ou para acordarem com os AA. e demais condóminos daquele prédio, a melhor forma de resolver o problema, o que não fizeram.
Tanto bastaria para, na sequência do que acima já deixamos exarado, podermos concluir que o segmento da condenação a proferir neste recurso, no que tange à alínea a) do segmento decisório proferido pelo Tribunal de 1.ª Instância, deve cingir-se ao pedido formulado pelos AA., no caso, a ser proferida uma condenação a determinar o encerramento do estabelecimento de snack-bar K… que, como não poderia deixar de ser, abrange o encerramento da esplanada instalada no pátio daquele prédio onde se encontra a fração “J”.

Esta condenação, porém, em face do que já deixamos expresso na análise realizada ao pedido de declaração de nulidade da sentença, deve cingir-se tão-só ao pedido formulado na ação e que, neste caso, abrange apenas a chamada, a 2.ª Ré, K… – Restauração, Lda e determina a absolvição da 1.ª Ré deste pedido, enquanto proprietária legitimada a ali poder exercer a atividade de restauração, logo que não o faça nas condições em que a mesma tem vindo a ser realizada, ou seja, perturbando a tranquilidade, privacidade e a saúde dos demais condóminos daquele prédio, entre os quais, os aqui AA.

Esta alteração decisória implica o aditamento de uma alínea aa), que contemple esta mesma realidade.

No mais, deve manter-se o decidido na sentença em apreciação – que não foi objeto de recurso -, sendo de realçar o tratamento aprofundado, nomeadamente jurisprudencial, das matérias submetidas à apreciação do Tribunal e o cuidado demonstrado na sua resolução, mormente em termos práticos e que se traduziram, nomeadamente, com a ida ao Local, determinada por iniciativa do próprio Tribunal.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, julga-se parcialmente procedente a Apelação e procede-se à alteração da alínea a) do segmento decisório proferido pelo senhor Juiz do Tribunal de 1.ª Instância, que passa a ter a seguinte redação:

“a) Condena-se a chamada K… – Restauração, Lda a encerrar o estabelecimento de snack-bar K… que prossegue a sua atividade na fração “J” localizada no Piso 0, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, denominado Edifício …, sito na Ajuda - Piornais, freguesia de São Martinho, concelho do Funchal, inscrito na matriz predial sob o art. ….º, descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o número …, e que abrange o inerente encerramento da esplanada instalada no pátio, referida em 15. dos Factos Provados, também explorada por esta mesma chamada;

aa) Abolve-se a Ré N… – Gestão Imobiliária, SA, do pedido de enceramento do estabelecimento acima referido”.

No mais, mantém-se a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância.

Custas por AA. e RR., na proporção de 1/8 para os primeiros e de 7/8 para os segundos.

Lisboa, 30 de Outubro de 2018

Dina Maria Monteiro
Luís Espírito Santo
Maria da Conceição Saavedra