Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
94/21.5IDSTB.L1-9
Relator: BRÁULIO MARTINS
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
PRAZOS
FALTA DE CONDIÇÃO OBJECTIVA DE PUNIBILIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/25/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: O teor das alíneas a) e b) do n.º 4 do art.º 105.º da Lei n.º 15/2001, de 05 de Junho contém condições objetivas de punibilidade, na medida em que o facto penalmente ilícito (o não pagamento do tributo) se encontra previsto  o n.º 1 do citado preceito legal, funcionado a restante factualidade como pressupostos de natureza burocrática ou até resultantes de simples decurso do tempo, de cuja verificação depende a plena atuação da censura legal.
Isto constitui uma opção legal de conceder um prazo extra ao devedor tributário que declarou a sua dívida (a tal notificação adicional de 30 dias) para o discriminar positivamente em relação àquele que nada fez, que pura e simplesmente ocultou a situação. Compreende-se e é razoável esse benefício adicional que é, simultaneamente, um estímulo ao cumprimento da obrigação de declarar a dívida tributária – assim, quem cumprisse esta obrigação, disporia de 30 dias adicionais para se eximir à responsabilidade criminal mediante o pagamento.
Nestes termos, a alínea a) será aplicável a todos, ou seja, àqueles que omitem totalmente a sua obrigação e àqueles que declaram a sua dívida ao Estado, embora a não paguem no momento devido (o da entrega da declaração), sendo certo que a estes últimos a lei ainda concede (cumulativamente), pela alínea b), um prazo adicional de 30 dias, depois de decorridos os 90 iniciais, para proceder ao pagamento excludente de responsabilidade penal, e além disso, impõe aos serviços do Fisco que procedam a uma notificação pessoal  expressa ao contribuinte em dívida para tal fim – note-se que, neste caso, o cuidado da lei é duplo: prazo adicional e notificação pessoal obrigatória para que o início da sua contagem ocorra, o quer dizer que enquanto (ou se) a notificação não for efetuada, ou enquanto (ou se) não for efetuada nos termos legais (pessoal), o incumpridor não pode ser perseguido criminalmente, independentemente do tempo que estiver em causa.
Estas alíneas são de aplicação cumulativa quando o devedor tributário cumpriu a sua obrigação de declarar a dívida tributária, e não o são quando o devedor omite completamente as suas obrigações, ocultando totalmente a sua situação tributária, caso em que se aplica apenas a alínea a) -  a tal folga de 90 dias.
Os elementos de punibilidade, sejam condições ou causas, têm de constar da matéria de facto alegada na acusação e provada na decisão para poder ser proferida decisão condenatória, uma vez que, embora não façam parte do tipo de ilícito ou do tipo de culpa, fazem seguramente parte do tipo de garantia, que abrange, para além do tipo em sentido restrito, ou tipo objetivo, a ilicitude, a culpa e as condições de punibilidade.
Não constando esta factualidade da acusação nem da decisão recorrida, não estão preenchidos, obviamente, todos os pressupostos da punição, pelo que o arguido deve ser absolvido.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: I
RELATÓRIO
1
Em processo comum, com intervenção do tribunal singular, que corre termos no Juízo Criminal do Seixal – J 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, com o n.º 94/21.5IDSTB, teve lugar a audiência de julgamento, finda a qual foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
1) Condena-se a arguida “ A” pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105º, n.º 1 do Regime Geral das Infracções Tributárias (aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, na redacção da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro), nos termos do disposto do 7º, n.º 1 do mesmo diploma legal, com referência ao artigo 27º, n.º 1 e artigo 41º, n.º 1, alínea b) do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 394-B/84, de 26 de Dezembro), e artigo 90º-B, n.º 3 do Código Penal na pena de 230 (duzentos e trinta ) dias de multa, à taxa diária de € 5,00( cinco) euros no montante global de € 1150,00 (mil cento e cinquenta ) euros;
2) Condena-se o arguido B pela prática em autoria material, de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105º, n.º 1 do Regime Geral das Infracções Tributárias (aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, na redacção da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro), com referência ao artigo 27º, n.º 1 e artigo 41º, n.º 1, alínea b) do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 394-B/84, de 26 de Dezembro), na pena de 230 (duzentos e trinta ) dias de multa, à taxa diária de € 5,00( cinco) euros no montante global de € 1150,00 (mil cento e cinquenta ) euros.


2
Não se conformando com a decisão, o arguido B interpôs o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:
A) O Recorrente foi condenado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal p. e p. pelo artigo 105º nº 1 do Regime Geral das Infrações Tributária, com referência ao artigo 27º n.º 1 e artigo 41º nº 1 al) b) do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, na pena de 230 dias de multa, à taxa diária de 5,00 euros, no montante global de 1.150 euros.
B) O Recurso versa sobre matéria de direito.
C) O artigo 105º nº 1 do Regime Geral das Infrações Tributárias estipula que “Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.”
D) O artigo 105º nº 4 do Regime Geral das Infracções Tributárias prevê duas condições objectivas de punibilidade:
a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação,
b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.
E) Na acusação, deduzida pelo Ministério Público apenas consta no artigo 9º o seguinte“ Apoderando-se, assim, da referida quantia de €15.866,05€ (vinte e seis mil quatrocentos e oitenta euros e trinta e três cêntimos) pertencente ao Estado”
F) No artigo 10º da acusação consta o seguinte: “Da mesma forma, os arguidos também não procederam à entrega de tal montante, bem como os respectivos acréscimos legais, incluindo o valor da coima aplicável pela falta de entrega daquela prestação tributária, no prazo de 30 dias que lhes foi dado, através de notificação pessoal que receberam para esse efeito”
G) Esta factualidade assim descrita não satisfaz as exigências contidas nas alíneas a) e b) do nº 4 do artigo 5º do RGIT, pois não consta da acusação os factos necessários para preenchimento das condições objectivas de punibilidade previstas no artigo 105º nº 4 alínea a) e b) do RGIT.
H) Em nenhuma parte da acusação consta que os arguidos foram notificados nos termos do disposto na alínea a) e b) do nº 4 do artigo 105º do RGIT.
I) Salvo melhor opinião, a acusação não contendo os factos pertinentes às duas condições objectivas de punibilidade, o Tribunal “ a quo” deveria ter absolvido o arguido.
J) Deve o ora recorrente ser absolvido da pratica do crime de abuso de confiança fiscal p. e p. pelo artigo 105º nº 1 do Regime Geral das Infrações Tributária, com referência ao artigo 27º n.º 1 e artigo 41º nº 1 al) b) do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado.
TERMOS EM QUE E NOS DEMAIS DE DIREITO DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E POR VIA DELE, SER REVOGADO O ACÓRDÃO RECORRIDO, TUDO COM AS LEGAIS CONSEQUÊNCIAS.

3
O Ministério Público respondeu, pugnando pela improcedência do recurso, formulando as seguintes conclusões:

1- O arguido B interpôs o presente recurso, alegando, em síntese, que, em nenhuma parte da acusação consta que o arguido foi notificado nos termos do disposto na alínea a) e b) do nº 4 do artigo 105º do R.G.I.T., e que, desta feita, não contendo a acusação os factos pertinentes às referidas duas condições objetivas de punibilidade, o Tribunal " a quo" deveria ter absolvido o arguido.
2- O n.º4 do artigo 105ºdo R.G.I.T., na redação introduzida pelo artº95ºda Lei nº 53º-A/2006 de 29.12, passou a estabelecer uma nova condição objetiva de punibilidade relativamente àqueles contribuintes que tenham cumprido tempestivamente a obrigação declarativa, designadamente na alínea b) do dito artigo.
3- Essa nova condição consiste na não regularização da situação tributária declarada mas não paga, no prazo de 30 dias, depois da notificação efetuada para o efeito.
4- Os contribuintes poderão evitar a punição criminal, mantendo-se a responsabilidade contraordenacional, se, nos trinta dias seguidos à notificação que lhes deve ser feita, pagarem a prestação tributária, os juros e a coima prevista no artigo 114.º do RGIT pela não entrega no prazo legal.
5- Com efeito, caso o contribuinte proceda ao pagamento das quantias em falta no decurso do prazo de 90 dias (prazo estipulado na al. a), nº 4 do art.º 105ºdo RGIT), não incorre na prática do crime de abuso de confiança fiscal, mas sim numa mera contraordenação
4- A falta da notificação referente à al. b) do nº 4 do art.º 105º do R.G.I.T. consubstancia a não verificação de um pressuposto jurídico-material da punibilidade.
5- Para se aquilatar das consequências de tal asserção, este elemento objetivo da punibilidade, deve constar da acusação, da pronúncia (se for o caso) e naturalmente da sentença.
6- No caso dos autos, foi dado como provado na douta sentença a quo no ponto 10 que:, apenas nos segmentos referentes à questão colocada em crise:"(...)10. Da mesma forma, os arguidos também não procederam à entrega de tal montante, bem como os respectivos acréscimos legais, incluindo o valor da coima aplicável pela falta de entrega daquela prestação tributária, no prazo de 30 dias que lhes foi dado, através de notificação pessoal que receberam Dam esse efeito":
7- Em tal facto encontra-se, expressamente, mencionado que os arguidos foram notificados para, em 30 dias, procederem à entrega das prestações tributárias, coimas e respetivos não tendo, ainda assim, procedido à imposta entrega, apenas não constando o dispositivo normativo que estipula tal notificação, ou seja, a menção "nos termos do disposto na al. b), do nº 4, do art.º 105ºdo R.G.I.T.., pelo que não vislumbramos em que medida é que se poderá considerar que não se encontram verificadas as referidas condições objetivas de punibilidade.
8- Note-se que, nos casos em que o contribuinte procedeu à entrega das declarações periódicas, para que a A.T. proceda à notificação estipulada na al. b) do nº4 do art.º 105ºdo RGIT - que, caso seja incumprido pelo contribuinte, leva à prática de um crime pelo mesmo - é, previa e forçosamente cumprida a notificação estipulada na al. a), nº4 do referido artigo, sendo que caso o contribuinte não proceda à entrega das prestações tributárias em divida, apenas incorrerá em ilícito contraordenacional.
9- Assim, facilmente se depreende, não só pela exigida tramitação sequencial destas duas notificações, mas também pela diferença no que tange às consequências pelo não cumprimento por parte do contribuinte - em que apenas pelo não cumprimento do disposto na alínea b), do nº 4 se verifica a prática do crime de abuso de confiança fiscal - que é essencial que conste no despacho de acusação, ou de pronúncia, sob pena de violação do disposto no art.º 283º, nº 3, al. b), art.º 308º, nº 2 e 311º, nºs 1 e 3, al. b) e d) todos do C.P.P. (levando, em primeira linha à rejeição do recebimento da acusação/pronúncia) ou, posteriormente, na sentença (à absolvição) a menção do facto relativo à notificação do arguido para proceder à entrega da divida tributária em 30 dias.
9 - Mas tal, como supra demonstrado não foi o caso dos presentes autos.
10- A decisão recorrida deve ser mantida pois não padece dos vícios apontados pelo recorrente ou quaisquer outros.
DEVE ASSIM NEGAR-SE PROCEDÊNCIA AO RECURSO E, CONSEQUENTEMENTE, MANTER A DECISÃO RECORRIDA, UMA VEZ QUE SÓ ASSIM SE FARÁ A COSTUMADA JUSTIÇA.

4
Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, o Ministério Público emitiu parecer também no sentido da improcedência do recurso.

5
Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417.º, n.º 2, do CPP, não tendo sido apresentada resposta.

6
Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.


II
FUNDAMENTAÇÃO

1
Objeto do recurso:
A factualidade dada como provada na decisão recorrida preenche o teor das alíneas a) e b) do nº 4 do artigo 5º do RGIT (condições objetivas de punibilidade)?

As alíneas a) e b) do nº 4 do artigo 5º do RGIT são de aplicação cumulativa?

2
Decisão recorrida (excerto relevante):
1.  A arguida “A”, com o NIPC ..., dedicava-se desde 05-07-2010 à actividade de Serviços e comunicações, Construção de redes de transporte e distribuição de electricidade e redes de telecomunicações, a que corresponde o CAE principal 61900-R3.
2. O arguido B, no período infra indicado, era o seu único representante, a quem competia em exclusivo a responsabilidade pela gestão administrativa e financeira, em nome e por conta da sociedade arguida;
3. No exercício de tal actividade, a sociedade arguida era sujeito passivo de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), enquadrada no regime de periodicidade trimestral, o que manteve ao longo do ano de 2019;
4. Enquanto sujeito passivo de IVA, a primeira arguida, através do arguido B, estava obrigada a cumprir as regras de liquidação deste imposto e a entregar, até ao dia 20 (vinte) do 2º mês seguinte àquele a que respeitam as operações, nos Serviços de Administração do IVA, uma declaração relativa às operações efectuadas no exercício da sua actividade no decurso desse trimestre, com a indicação do imposto que liquidou e dos elementos que serviram de base ao respectivo cálculo;
5. Estava ainda obrigada a, simultaneamente com a declaração ora referida, entregar à Direcção dos Serviços de Administração do IVA o montante do imposto liquidado e recebido no período a que aquela se reportava;
6. No período correspondente aos meses de outubro a dezembro de 2019, o arguido B, enquanto gerente da arguida pessoa colectiva, actuando em nome, por conta e no interesse desta, exerceu a actividade supra descrita, tendo liquidado, a título de IVA a favor do Estado, as quantias de 18.935,13€;
7.  O arguido B, agindo em representação desta, entregou nos serviços da Administração Tributária a declaração periódica referente ao período indicado em 6., o que ocorreu em 17-02-2020, na qual constava o montante de imposto liquidado
8. Porém, não procedeu à entrega do montante que efectivamente recebeu a título de IVA em tal período, que perfez o valor de 15.866,05€;
9. Apoderando-se, assim, da referida quantia de 15.866,05€ (vinte e seis mil, quatrocentos e oitenta euros, e trinta e três cêntimos) pertencente ao Estado;
10. Da mesma forma, os arguidos também não procederam à entrega de tal montante, bem como os respectivos acréscimos legais, incluindo o valor da coima aplicável pela falta de entrega daquela prestação tributária, no prazo de 30 dias que lhes foi dado, através de notificação pessoal que receberam para esse efeito;
11. Ao invés, o arguido B utilizou tais quantias monetárias no pagamento de despesas pessoais e relativas ao exercício da actividade da primeira arguida, com o consentimento desta, integrando-as totalmente no seu património e no desta;
12. Ao actuarem da forma descrita, agiram os arguidos de forma deliberada, livre e consciente, sendo o arguido B, na qualidade de gerente de facto da primeira arguida e no interesse e por conta desta, no intuito, que lograram alcançar, de não entregar à administração fiscal a quantia de IVA que efectivamente receberam e liquidaram, fazendo-a sua, bem sabendo que pertencia ao Estado e que, desse modo, diminuíam as respectivas receitas fiscais e património, agindo contra a vontade deste;
13. Os arguidos bem sabiam que a sua conduta era proibida e punida por lei.
*
*
3
O direito.
A decisão condenatória foi a seguinte:
1) Condena-se a arguida “ A” pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105º, n.º 1 do Regime Geral das Infracções Tributárias (aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, na redacção da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro), nos termos do disposto do 7º, n.º 1 do mesmo diploma legal, com referência ao artigo 27º, n.º 1 e artigo 41º, n.º 1, alínea b) do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 394-B/84, de 26 de Dezembro), e artigo 90º-B, n.º 3 do Código Penal na pena de 230 (duzentos e trinta ) dias de multa, à taxa diária de € 5,00( cinco) euros no montante global de €1150,00 (mil cento e cinquenta ) euros;
2) Condena-se o arguido B pela prática em autoria material, de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105º, n.º 1 do Regime Geral das Infracções Tributárias (aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, na redacção da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro), com referência ao artigo 27º, n.º 1 e artigo 41º, n.º 1, alínea b) do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 394-B/84, de 26 de Dezembro), na pena de 230 (duzentos e trinta ) dias de multa, à taxa diária de €5,00( cinco) euros no montante global de € 1150,00 (mil cento e cinquenta ) euros.

Vejamos o que diz a lei n.º 15/2001, de 05 de Junho em relação ao crime que aqui está em causa:

Artigo 105.º
Abuso de confiança
1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.
3 - É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.
4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.
5 - Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a (euro) 50000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.
6 - (Revogado pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro).
7 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.

Resulta, portanto, da lei que o tipo de crime em causa nos autos consta do n.º 1 do transcrito preceito legal.
O recorrente não levanta qualquer questão em relação ao preenchimento do tipo objetivo e subjetivo da referida infração penal, pelo que despicienda se torna qualquer exposição a este respeito.

Todavia, consta ainda da lei um conjunto de circunstâncias de caráter puramente objetivo de cuja verificação depende a punibilidade dos factos descritos.

Tais circunstâncias constam das alíneas a) e b), do n.º 4 da referida norma:

4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.

“Afirmámos que a verificação de um crime é o pressuposto da responsabilidade penal. E é sempre um pressuposto necessário, embora excecionalmente não seja um pressuposto suficiente.
É que nem sempre ao crime se segue a responsabilidade penal; a aplicabilidade da pena pode, em casos excecionais, ser condicionada por um facto, diverso do crime e que, diferentemente deste, não é fundamento, mas tão-só condição objetiva de punibilidade, isto é, de aplicação da pena.
A noção e natureza das condições objetivas de punibilidade é questão controvertida.
Se o crime é um facto punível, a punibilidade seria elemento essencial do próprio crime; mas deste modo incluir-se-iam na noção de crime, não somente a ilicitude e culpabilidade do facto, mas um terceiro requisito, inteiramente estranho ao facto ilícito e culpável, que não constituiria, como os demais, fundamento da punibilidade, mas somente a condicionaria extrinsecamente.
Excluída a inclusão das condições objetivas de punibilidade nos elementos co crime, a doutrina seguiu diversas vias para explicar a sua natureza jurídica. Uns, a maioria, aceitaram a noção de condições objetivas de punibilidade como uma condição extrínseca ao facto criminoso, de que ficará dependente a aplicação da pena; outros excluem tais condições do direito penal substantivo, e qualificam-nas como condições de procedibilidade, das quais depende somente a instalação da ação penal.
As condições objetivas de punibilidade não são, portanto, elementos constitutivos do crime; são factos diversos, extrínsecos ao facto constitutivo da responsabilidade penal. Não fundamentam a ilicitude – não são, em si mesmas, um facto penalmente ilícito -, e não são objeto de culpabilidade, pois que o objeto de culpabilidade é o facto penalmente ilícito.” – Prof. Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, Parte Geral, II, pág. 6/7, Reimpressão da edição de Janeiro de 1989, Almedina 2010.

Ora, atentos estes ensinamentos, não restam dúvidas de que o teor das alíneas a) e b) do n.º 4 do art.º 105.º da Lei n.º 15/2001, de 05 de Junho contém condições objetivas de punibilidade, na medida em que o facto penalmente ilícito (o não pagamento do tributo) se encontra previsto  o n.º 1 do citado preceito legal, funcionado a restante factualidade como pressupostos de natureza burocrática ou até resultantes de simples decurso do tempo, de cuja verificação depende a plena atuação da censura legal.

Na verdade, o não pagamento do tributo devido é das mais antigas e severas opções legais de consagração no âmbito da ilicitude penal, não obstante a generalidade das sociedades em que tal foi sucedendo ao longo da história nem sempre ter estado alinhada com esse pensamento legal, nem com a própria tributação cuja infração se penalizava – desde os judeus Zelotas do tempo de Jesus que, sob  o pretexto do, para eles, infame recenseamento ordenado por César Augusto, se insurgiram, na verdade, contra a tributação imposta por Roma, à revolta inglesa do sec. XIII contra o Rei João, que culminou com a Magna Carta de 1215, à Revolução Americana, originada com os novos impostos sobre o chá e de selo cobrados pelos britânicos, que desencadearam a Guerra da Libertação e levaram à Declaração de Independência em 1776, sem esquecer a própria Revolução Francesa, cuja origem profunda também esteve nos elevadíssimos impostos que Luís XVI lançou para sustentar os incomensuráveis gastos da sua casa real, e até à nossa Maria da Fonte, que além da questão da obrigação de sepultamento nos cemitérios se insurgia também ou principalmente contra a reforma fiscal de Costa Cabral, tudo são exemplos (e muitos outros se poderiam adiantar), uns mais intensos, outros menos, do recalcitrante inconformismo das sociedades em face do exercício concreto da odiosa soberania tributária.

“Mas as sanções jurídicas diferem, quanto à intensidade, e até quanto à natureza, segundo as reações de reprovação social provocadas pelas infrações. Nesta, como noutras matérias, não cabe ao legislador estabelecer as regras que lhe parecem preferíveis, ou tecnicamente mais aperfeiçoadas.  Cumpre-lhe, sobretudo, a missão de auscultar as tensões da sociedade e de apurar qual a sanção que institucionalmente deverá corresponder a cada infração. Até porque, conforme juízo já emitido por Pastoret em fins do século XVIII, e que mantém atualidade, os efeitos das penas perdem-se quando elas contrariam a opinião comum de assentimento geral em relação a determinada violação das leis.
Tanto basta para entender a complexidade que envolve a ilicitude fiscal, complexidade já entrevista por Beccaria através das suas considerações acerca do delito de contrabando. Segundo o citado penalista clássico, o contrabando é um delito que ofende gravemente a sociedade; mas, contudo, a sanção respetiva não devia ser infamante, porque a opinião pública não atribui a marca de infâmia a tal delito, pois os delitos que os homens não julgam ofensivos dos seus interesses não suscitam a sua indignação. As considerações de Beccaria sobre o contrabando poderiam estender-se a todo o domínio das infrações fiscais.
A violação generalizada das normas tributárias poria em causa a sobrevivência do Estado, toda a ordem social; donde poderá inferir-se que o bem jurídico ameaçado pela infração fiscal se situa a nível cimeiro; mas importa ponderar também que a reprovação social suscitada pelas infrações fiscais está longe de situar-se a esse mesmo nível.” – cfr. Pedro Soares Martínez, Manual de Direito Fiscal, Almedina, 1984, pág. 307.

Ora, é precisamente por causa desta tensão permanente e quase universal entre a obrigação fiscal e o seu autor, por um lado, e o seu destinatário, por outro, e do correspondente muito diferente grau de gravidade atribuído à infração daquela por parte do soberano e do súbdito, que a lei prevê aquelas condições objetivas de punibilidade, que, no fundo, constituem como que uma segunda oportunidade que o coletor concede ao devedor para cumprir as suas  odiosas obrigações fiscais sem ser confrontado com a inerente e imediata responsabilidade penal – na verdade, não se vislumbra que, por exemplo, a punibilidade do crime de furto pudesse depender do decurso de um prazo de posse do bem furtado ou de uma notificação para o restituir, até porque será uma das infrações mais universalmente tidas como ilícitas, extremamente grave e merecedora de punição (nalguns casos, até, com penas absolutamente desumanas, como é consabido), não antevendo o legislador qualquer necessidade de temperar aqui a sua intervenção penal com adoçamentos desta ou de outra natureza (existem outras justificações adiantadas para esta opção legal do RGIT, designadamente para a que prevê a citada alínea a), do n.º 4 do art.º 105.º, como as que adianta, por exemplo, Susana Aires de Sousa, in Os Crimes Fiscais, Análise Dogmática e reflexão sobre a legitimidade do discurso criminalizador, Coimbra Editora, pág. 136/137).

É certo que há quem entenda que a previsão da alínea b) do n.º 4 do art.º 105.º da Lei n.º 15/2001, de 05 de Junho constitui uma causa de exclusão da punibilidade por estar dependente da vontade do agente, por estar aliada a uma componente pessoal e não puramente material – isto é, se o agente decidir pagar no prazo legalmente previsto depois de para tal notificado, não pode ocorrer a punição. Todavia, se em parte assim é, não podemos olvidar que a notificação, que também integra a materialidade excludente, não é de natureza pessoal, nem depende da vontade do agente, pelo que mais rigoroso seria atribuir uma natureza mista a esta previsão. E será causa de exclusão da punibilidade se ocorrer o pagamento e condição de punibilidade se ele não ocorrer, com a verificação da parte restante da norma.

De qualquer modo, devemos atender ao AUJ n.º 6/2008, publicado no DR n.º 94/2008, Série I, de 15/05/2008, segundo o qual a exigência prevista na al. b) do n.º 4 do art.º 105.º do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), na redação introduzida pela Lei n.º 53-A/2006, configura uma nova condição objetiva de punibilidade (…). Por maioria de razão, assim será em relação à previsão da alínea a) do dito preceito legal.

Tanto quanto se pode interpretar da motivação e conclusões, o recorrente parece entender que a as condições constantes das alíneas a) e b) do n.º 4 do art.º 105.º da Lei n.º 15/2001, de 05 de Junho, acima citado, são de verificação cumulativa, pois afirma que da decisão recorrida apenas consta factualidade para a verificação do que está previsto na alínea b), pelo que não constando da acusação nem da decisão recorrida a factualidade inerente à alínea a) daquele preceito (terem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação), não se mostram preenchidas as ditas condições de punibilidade.

A este respeito, consta da decisão recorrida o seguinte:

6. No período correspondente aos meses de outubro a dezembro de 2019, o arguido B, enquanto gerente da arguida pessoa colectiva, actuando em nome, por conta e no interesse desta, exerceu a actividade supra descrita, tendo liquidado, a título de IVA a favor do Estado, as quantias de 18.935,13€;
7. O arguido B, agindo em representação desta, entregou nos serviços da Administração Tributária a declaração periódica referente ao período indicado em 6., o que ocorreu em 17-02-2020, na qual constava o montante de imposto liquidado
8. Porém, não procedeu à entrega do montante que efectivamente recebeu a título de IVA em tal período, que perfez o valor de 15.866,05€;
9. Apoderando-se, assim, da referida quantia de 15.866,05€ (vinte e seis mil, quatrocentos e oitenta euros, e trinta e três cêntimos) pertencente ao Estado;
10. Da mesma forma, os arguidos também não procederam à entrega de tal montante, bem como os respectivos acréscimos legais, incluindo o valor da coima aplicável pela falta de entrega daquela prestação tributária, no prazo de 30 dias que lhes foi dado, através de notificação pessoal que receberam para esse efeito;

Dirá então o recorrente que faltaria alegar e dar como provado que já teriam também decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação.

Assim, segundo o recorrente, ter-se-ia que alegar e provar que:
- decorreram mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
- decorreram mais de 30 dias desde a notificação para pagamento da prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração, acrescida dos juros respetivos e do valor da coima aplicável.

Ou seja, seria preciso esperar por 90 dias desde o termo do prazo legal de entrega da prestação, e, após isso, notificar o devedor para em 30 dias proceder ao pagamento em dívida, tudo num total de, pelo menos, 120 dias.
Ora, não há dúvida que da acusação, proferida em 18/03/2022, sob a referência 414976217, não consta factualidade demonstrativa de que a notificação levada a cabo ao abrigo e para os fins do disposto no art.º 105.º, n.º 4, alínea b), do RGIT foi efetuada depois de terem decorrido mais de 90 dias sobre a data de 17/02/20 (data em que foi apresentada a declaração de IVA, e na qual, simultaneamente, devia ter sido feito o pagamento). E não constando da acusação tal factualidade, também não poderia a mesma constar da decisão recorrida sem recurso aos mecanismos legais de alteração de factos, uma vez que os elementos de punibilidade fazem parte dos pressupostos da punição.

Assim, não está demonstrada a verificação cumulativa das duas condições de punibilidade referidas, podendo conjeturar-se, em face da factualidade, apurada, que a notificação a que alude a alínea b) do n.º 4 do art.º 105.º do RGIT, que, essa sim, está demonstrada nos autos, possa ter ocorrido antes ou depois do decurso de tal período de 90 dias que a lei concede aos incumpridores para procederem ao pagamento sem consequências criminais.

Isto remete-nos para a questão acima enunciada: essas condições são de natureza cumulativa?

A primeira delas - alínea a) - consta da versão original do diploma.

A segunda – alínea b) -, como já se disse, foi aditada ao diploma pela Lei n.º 53-A/2006, e tal como, numa tentativa algo enviesada de interpretação autêntica, refere o comunicado do Ministério das Finanças de 07/02/2007, citado no AUJ n.º 6/2008 acima mencionado, “ (…) essa alteração apenas abrange o caso em que a existência da dívida fiscal é participada pelo próprio sujeito passivo, através da correspondente declaração, que não foi acompanhada do respetivo meio de pagamento.”.

Diz-se ainda em tal comunicado que “só neste caso, e apenas neste caso, é que haverá lugar a uma “despenalização” nas situações sem que o sujeito passivo regularize a dívida em causa no prazo fixado, após uma notificação enviada ao contribuinte para que proceda ´regularização. Neste caso, a lei passa a considerar que existe apenas uma contraordenação para situações que antes eram consideradas crime de abuso de confiança fiscal.”

Assim, o que parecia resultar de tudo isto seria uma opção legal de conceder um prazo extra ao devedor tributário que declarou a sua dívida (a tal notificação adicional de 30 dias) para o discriminar positivamente em relação àquele que nada fez, que pura e simplesmente ocultou a situação. Compreende-se e é razoável esse benefício adicional que é, simultaneamente, um estímulo ao cumprimento da obrigação de declarar a dívida tributária – assim, quem cumprisse esta obrigação, disporia de 30 dias adicionais para se eximir à responsabilidade criminal mediante o pagamento.

Contudo, de modo desconcertante, o dito comunicado diz em seguida que “as alíneas a) e b) do n.º 4 do art.º 105.º do RGIT referem-se a duas situações diferentes, não devendo, por isso, serem entendidas como cumulativas. Assim, no primeiro caso (alínea a) do n.º 4 do art.º 105.º do RGIT) trata-se de ocultação, que é sempre crime de abuso fiscal. Já na alínea b) trata-se de atraso na entrega do valor declarado. E neste último caso será considerado crime, caso essa entrega não ocorra no prazo constante da notificação enviada ao sujeito passivo.”

Ou seja, segundo uma interpretação literal deste entendimento, o ocultador não pagador do tributo beneficiaria de um maior prazo para poder efetuar o pagamento excludente de responsabilidade criminal do que o cumpridor da obrigação de declaração mas igualmente não pagador do tributo – no caso dos autos, tendo em conta que  a data limite de pagamento do imposto ocorreu no dia 20/02/2020, e caso não tivesse sido apresentada a declaração, o devedor dispunha de um prazo até ao dia 20/05/2020 para poder pagar e eximir-se de responsabilidade penal, ao passo que o ora arguido, que apresentou a declaração de dívida em 17/02/2020, caso fosse notificado nos termos da alínea b) nos dias seguintes, por exemplo a 25/02/2020, teria de fazer esse pagamento até ao dia 25/03/2020 (os tais 30 dias adicionais) para obtenção do mesmo resultado excludente de responsabilidade penal.

Ora, certamente que não é isto que a lei pretende, por ser totalmente desequilibrado, nem foi certamente isso que o Ministério das Finanças quis dizer, sob pena de se estar a criar um regime que beneficiaria claramente o infrator; o que faz sentido é premiar com um prazo adicional aquele que, pelo menos, admitiu e declarou a sua dívida ao Estado, embora não a tenha pago tempestivamente. Assim, a alínea a) será aplicável a todos, ou seja, àqueles que omitem totalmente a sua obrigação e àqueles que declaram a sua dívida ao Estado, embora a não paguem no momento devido (o da entrega da declaração), sendo certo que a estes últimos a lei ainda concede (cumulativamente), pela alínea b), um prazo adicional de 30 dias, depois de decorridos os 90 iniciais, para proceder ao pagamento excludente de responsabilidade penal, e além disso, impõe aos serviços do Fisco que procedam a uma notificação pessoal  expressa ao contribuinte em dívida para tal fim – note-se que, neste caso, o cuidado da lei é duplo: prazo adicional e notificação pessoal obrigatória para que o início da sua contagem ocorra, o quer dizer que enquanto (ou se) a notificação não for efetuada, ou enquanto (ou se) não for efetuada nos termos legais (pessoal), o incumpridor não pode ser perseguido criminalmente, independentemente do tempo que estiver em causa.

Na verdade, e parece ser isso que o Fisco pretendeu esclarecer no seu comunicado, embora de modo pouco claro, estas alíneas são de aplicação cumulativa quando o devedor tributário cumpriu a sua obrigação de declarar a dívida tributária, e não o são quando o devedor omite completamente as suas obrigações, ocultando totalmente a sua situação tributária, caso em que se aplica apenas a alínea a) -  a tal folga de 90 dias.

Na resposta apresentada ao recurso, o Ministério Público afirma:

Ora, como podemos verificar, e ao contrário do que foi afirmado pelo Recorrente, no despacho de acusação encontra-se a menção ao facto dos arguidos terem sido notificados (pessoalmente) para proceder à entrega das prestações tributárias, respetivas coimas e juros no prazo de 30.
Veja -se o facto nº10 dado como provado na douta sentença a quo, que, curiosamente, foi transcrito pelo próprio recorrente nas motivações de recurso.
Em tal facto encontra-se, expressamente, mencionado que os arguidos foram notificados para, em 30 dias, procederem à entrega das prestações tributárias, coimas e respetivos não tendo, ainda assim, procedido à imposta entrega. Apenas não consta o dispositivo normativo que estipula tal notificação, ou seja, a menção "nos termos do disposto na al. b), do nº 4, do art.º 105ºdo R.G.I.T." - sendo certo que, em bom rigor, o que deveria sempre e tão somente constar de um despacho acusatório, seriam sempre os factos e não linguagem técnico - jurídica, importante apenas para o segmento do dispositivo e para a apreciação do enquadramento jurídico e da aplicação do direito.
Portanto, não vislumbramos em que medida é que se poderá considerar que não se encontram verificadas as condições objetivas de punibilidade estipuladas no art.º 105º, nº 4, al.s a) e b) do R.G.I.T.

Todavia, o que está em causa não é a notificação a que se refere a alínea b) do n.º 4 do art.º 105.º do RGIT – essa está minimamente (seria preferível descrever como foi feita a notificação em vez de lhe chamar pessoal, pois isso constitui um conceito legal) alegada e provada.

O que se não vislumbra na acusação e na sentença são os factos relativos ao preenchimento da previsão da alínea a) do citado precito legal. E, como já se disse, nada autoriza a exclusão da contagem de tal prazo de 90 dias a favor do devedor declarante incumpridor, pelo que  da acusação deveria constar com clareza, com esta possível redação, que no dia x (ou seja, depois de decorridos 90 dias sobre a data em que o pagamento era legalmente devido) o devedor foi notificado através de (…) – narração de factos a que legalmente corresponda notificação pessoal – para no prazo de 30 dias proceder ao pagamento … não o tendo feito dentro de tal prazo. Assim estariam, indubitavelmente, preenchidas ambas as condições de punibilidade.


Não podemos esquecer que antes da entrada em vigor da alteração constante da alínea b) do n.º 4 do art.º 105.º do RGIT, vigorava apenas o teor da alínea a) – então apenas sob o n.º 4 -, ou seja, o aludido prazo de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação. E, nessa altura, não há qualquer dúvida que essa factualidade (o decurso desse prazo) deveria estar alegada e dada como provada para considerar preenchida a mencionada condição objetiva de punibilidade. O mesmo se verifica agora nos chamados casos de ocultação – aqueles em que não é apresentada a declaração de dívida. E o mesmo se verificará, naturalmente, em relação aos casos em que tal declaração seja apresentada, pois não há motivo lógico ou legal para tratar de modo diferente a situação. Todavia, neste último caso, a lei manda, ainda, decorrido que seja o tal prazo, proceder a uma notificação adicional, a que está prevista na alínea b) do n.º 4 do art.º 105.º do RGIFT, para, deste modo, conceder um benefício adicional ao devedor tributário que, pelo menos, cumpriu parte da sua obrigação, apresentando a declaração de dívida. Aqui, portanto, a situação é de verificação cumulativa das duas previsões.

O Ministério Público alega ainda na sua resposta, a este respeito que:

Note-se que, nos casos em que o contribuinte procedeu à entrega das declarações periódicas, para que a A.T. proceda à notificação estipulada na al. b) do nº 4 do art.º 105º do RGIT - que, caso seja incumprido pelo contribuinte, leva à prática de um crime pelo mesmo - é, previa e forçosamente cumprida a notificação estipulada na al. a), nº4 do referido artigo, sendo que caso o contribuinte não proceda à entrega das prestações tributárias em divida, apenas incorrerá em ilícito contraordenacional.

Ora, o que se afigura forçoso afirmar é que o “prévia e forçosamente” referido não consubstancia, como é evidente, o preenchimento de um elemento de punibilidade, não passando de um íntimo convencimento do acusador, eventualmente baseado em procedimentos do seu conhecimento pessoal, mas que não consta, nem pode constar, dos factos alegados e dados como provados, nem constitui facto notório.

Os elementos de punibilidade, sejam condições ou causas, têm de constar da matéria de facto alegada na acusação e provada na decisão para poder ser proferida decisão condenatória, uma vez que, embora não façam parte do tipo de ilícito ou do tipo de culpa, fazem seguramente parte do tipo de garantia, que abrange, para além do tipo em sentido restrito, ou tipo objetivo, a ilicitude, a culpa e as condições de punibilidade – cfr. Teresa Pizarro Beleza, Direito Penal, Vol. II, AAFDL, pag. 98 e 329.

Não constando esta factualidade da acusação nem da decisão recorrida, não estão preenchidos, obviamente, todos os pressupostos da punição, pelo que o arguido deve ser absolvido.

A decisão será extensiva à arguida “A”, nos termos do art.º 402.º, n.º 2, do CPP.

III
DISPOSITIVO

Por todo o exposto, acordam os juízes que integram a 9.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida, e, em consequência, absolver os arguidos da prática do crime pelo qual estavam acusados.

Sem tributação.

Lisboa, 25 de maio de 2023
Bráulio Martins
Maria Carlos Calheiros
Maria Manuela Machado