Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1440/12.8TBSCR-G.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
PRESTAÇÃO DE CONTAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/26/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I.É frequente as contas apresentadas pelo administrador de insolvência serem impugnadas quanto a despesas mencionadas na conta, seja por as referidas despesas não serem consideradas úteis ou indispensáveis ou por não terem sido autorizadas, seja por não estarem documentadas.

II.Ora, se cabe fiscalização das contas em relação ao que nelas foi mencionado, igualmente tal controle se justifica em relação ao que nelas foi indevidamente omitido, nomeadamente quanto a despesas.

III.A apreciação da atuação do administrador da insolvência e do processamento da liquidação e do seu resultado final só está correta se abarcar tudo o que foi praticado: e as contas só refletem com rigor tudo isso se nelas tudo o que é relevante constar e estiver devidamente documentado.

IV. Se no extrato da conta bancária da massa insolvente constam dois movimentos negativos no valor, cada um, de € 2 000,00, que não estão mencionados nas contas elaboradas nem justificados ou explicados, haveria que, como requerido pelo Ministério Público, notificar o administrador de insolvência para explicar tal disparidade e apresentar a justificação e o suporte documental pertinentes.

(Sumário elaborado pelo Relator)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa.


RELATÓRIO:


1.Nos autos de insolvência de L, Lda, em 12.12.2016 o Sr. administrador de insolvência, após ser para isso notificado pelo tribunal, apresentou contas finais.
2.Efetuadas as notificações legais e aberta vista ao Ministério Público, apenas este se pronunciou, nos seguintes termos:
Compulsados os autos verifica-se que todos os bens foram vendidos até ao dia 7/10/2013 mas o Sr administrador só apresentou contas em Dezembro de 2016.
1- Analisadas as contas e compulsados os demais apensos constata-se que o Sr administrador não procedeu ao pagamento do IVA relativamente às facturas que se mostram juntas ao apenso de liquidação sendo que por o ter liquidado está obrigado a entregá-lo porque sobre ele impende tal obrigação legal, pelo que se P. seja o Sr AI notificado para proceder agora ao seu pagamento.
2- decorrendo de fls 5 do apenso E que 9/9/2014 foi feito o pagamento de €1.997,54 tal pagamento, que é despesa da massa, não se mostra reflectida na conta agora apresentada.
3- da conta bancária junta a fls 10 decorre que foram feitos dois levantamentos de €2.000,00 cada, os quais também não constam da conta agora apresentada nem relativamente aos mesmos existe documento que justifique tal despesa.
Pelo exposto, não se dá parecer favorável às contas pelo que se P. seja o Sr administrador notificado para, em prazo a fixar, proceder ao pagamento do IVA em falta; juntar extracto completo da conta bancária; justificar documentalmente os levantamentos efectuados em Novembro de 2013”.

3.Em 07.3.2017 foi proferida sentença em que, após se considerar que “verifica-se que as verbas de despesa e de receita constantes da conta corrente elaborada se encontram devidamente discriminadas e documentalmente comprovadas” se decidiu:
“julgo validamente prestadas as contas apresentadas pelo senhor administrador da insolvência, com excepção do cálculo da remuneração variável, determinando o aditamento à verba despesa da quantia de € 1.997,54, documentada a fls. 5 do Apenso E”,
4.O Ministério Público apelou da sentença, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões:
1- tendo a liquidação sido encerrada em 7/10/2013 no âmbito da qual foram emitidas facturas pela massa nas quais o Sr administrador liquidou o IVA nelas inserido, o qual recebeu, é obrigação legal do administrador proceder a sua entrega nos cofres do Estado, cf disposto no art. 28º-5 do CIVA.
2- não tendo assim actuado, tem o MºPº legitimidade, cf disposto no art 3º nº 1 al l) da lei 47/86 de 15/10, para requerer a notificação do administrador para proceder a tal pagamento dado o interesse público que o pagamento de impostos reveste.
3- tal pagamento, porque constitui despesa da massa insolvente cf disposto no art 51º-1 al c) do CIRE, por se reportar à entrada na massa de quantias que são devidas ao Estado, constitui matéria a apreciar pelo tribunal no âmbito da apreciação das contas apresentadas para efeitos do disposto no art 64º dos CIRE.
4- confirmando-se que foi liquidado e recebido pelo Sr administrador, e porque a não entrega do IVA ao Estado tem influência na apuramento do resultado da liquidação, é tal omissão fundamento para a não aprovação das contas
5- tendo a sentença aprovado as contas e indeferido o requerido pelo MºPº para que o administrador fosse notificado para proceder a tal pagamento , mostram-se violadas as normas legais supra referidas.
6- decorrendo dos autos que antes de ter depositado no tribunal as contas da sua administração, o Sr administrador da insolvência pagou em 9/9/2014 a um terceiro, uma despesa no valor de €1.997,54 sem que fizesse constar da prestação de contas verba que se lhe referisse, é tal facto fundamento para a não aprovação das contas.
7- tendo o tribunal aprovado as contas e simultaneamente, ordenado que o administrador fizesse “um aditamento da mesma à verba da despesa”, ficou a sentença ferida nulidade face à ambiguidade criada, o que configura o vício p. no art 615º-1 al c) do CPC.
8- na verdade sendo característica fundamental da natureza da sentença, o estabelecimento regras seguras que determinem para futuro quais as regras a seguir numa dada situação, no caso vertente tendo decidido aprovar as contas e ao mesmo tempo determinado a realização de diligências complementares “determinando o aditamento à verba da despesas da quantia de €1.997,54 documentada a fls 5 do Apenso E” , procedimento que o CIRE não só não consagra como a lei geral não admite por contender com a segurança enquanto valor intrínseco de todas as sentenças - não há sentenças sob condição- forçoso é concluir que a sentença de que se recorre é ambígua e por isso ininteligível.
9- na verdade, transitada a sentença, se o administrador nada fizer quanto ao ordenado, (como não fez), que interpretação fazer quanto ao resultado da liquidação?? E mesmo que adite, quem é que vai apreciar tal despesa, reabre-se o processo de notificações?!!!
10- decorrendo da conta bancária junta aos autos que durante o período da liquidação houve dois levantamentos de €2.000.00 cada e, não se mostrando nenhum deles referido na conta como despesa, nem dos autos constando documentos que tais saques justifiquem forçoso é concluir que existe fundamento para a não aprovação das contas
11- ora, não obstante tais levantamentos constem do extracto bancário junto aos autos pelo Sr Administrador a provar o bem fundado dos factos indicados pelo MºPº como fundamento para não dar parecer favorável às contas o tribunal não só aprovou as contas como a tais factos se não referiu.
12- porém, porque o levantamento de €4.000,00 da conta bancária constitui facto de relevo por influenciar o valor do resultado da liquidação, devia ter sido apreciado pelo tribunal.
13- não o tendo sido forçoso é concluir que a sentença é nula por omissão de pronúncia.
14- sendo o extracto da conta bancária documento que deve acompanhar a prestação de contas por documentar todas as operações da liquidação em termos de depósito de receitas e saída dos pagamentos efectuados, é legítima a sua exigência por parte do MºPº que sobre a conta tem que dar parecer.
15- no caso vertente, face aos saques da conta bancária não documentados na prestação de conta nem justificados por documentos, forçoso será concluir da necessidade da sua junção pelo que a sua junção devia ter sido autorizada e ordenada pela Mmª Juiz a quo.
16- daqui decorre que contrariamente ao decidido, não se verifica que as verbas de despesa e de receita constantes da conta corrente elaborada se encontram devidamente discriminadas e documentalmente comprovadas
16- [o número desta conclusão encontra-se repetido] pelo que as contas não deviam ter sido julgadas “validamente prestadas”.
17- Tendo-o sido deve a sentença ser declarada nula determinando-se que os autos prossigam para esclarecimento dos pontos elencados pelo MºPº no seu parecer de recusa em validá-las, ordenando-se a realização das diligências requeridas pelo MºPº.

5. Não houve contra-alegações.
6. Em 23.5.2017 foi proferido o seguinte despacho:
Atento o teor das alegações apresentadas, antes de mais, notifique o senhor administrador da insolvência para, no prazo de dez dias, juntar ao processo o comprovativo do pagamento do IVA referente à venda dos bens.
7. Em 22.6.2017 o administrador de insolvência veio juntar aos autos comprovativos do pagamento do IVA respeitante à venda dos bens, no total de € 5 150,20.
8. Em 03.7.2017 foi proferido o seguinte despacho:
Antes de mais, para definir o âmbito e objecto do presente recurso, notifique os documentos apresentados pelo senhor administrador da insolvência ao Ministério Público para, no prazo de dez dias, informar se mantem interesse no recurso apresentado na parte referente ao não pagamento do IVA.”
9. Em 10.7.2017 a Magistrada do Ministério Público apresentou a seguinte resposta:
1- o MºPº recorreu da douta sentença proferida no apenso F por a mesma ter considerado validamente prestadas as contas, contrariamente à posição defendida pelo MºPº em tal apenso.
2- com o recurso pretende-se , caso o mesmo mereça provimento, reapreciar as contas prestadas com vista à correcção das omissões que a prestação de contas evidencia.
3- uma de tais omissões era o não pagamento do IVA relativamente às vendas efectuadas e que agora, só em 21/7/2017, o Sr administrador pagou.
4- apesar de tal pagamento , o interesse na manutenção do recurso mantém-se porquanto outros factos, que também fundamentam o recurso, carecem de ser esclarecidos porquanto :
- Existe despesa paga pela massa documentada a fls 5 do Apenso E, que não só não consta da prestação de contas como não se mostra documentada nem justificada.
- Existem saques na conta bancária como resulta no único extracto (pouco legível) junto a fls 10 do apenso F, que não se mostram documentados nem justificados.
- Inexiste nos autos extracto bancário completo o que não permite ponderar quer as receitas quer as despesas efectuadas o que inviabiliza o apuramento do resultado da liquidação.
Por tudo isto entendemos que continua a existir fundamento para a manutenção do recurso, sem prejuízo de, muito embora se não tenha requerido a reforma da sentença, caso o tribunal venha a ponderar a hipótese de à mesma proceder, reabra os autos notificando o Sr administrador para juntar aos autos o extracto da conta bancária bem como os documentos que justificam os pagamentos efectuados , abrindo-se seguidamente “vista” ao MºPº.”

10. Em 12.7.2017, após ponderar que a sentença recorrida não padecia de nulidades, o tribunal a quo recebeu o recurso, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

11. Foram colhidos os vistos legais.

FUNDAMENTAÇÃO
As questões que se suscitam neste recurso são as seguintes: nulidade da sentença recorrida; validade das contas prestadas.
Primeira questão (nulidade da sentença)
O circunstancialismo de facto a considerar é o supra exposto no Relatório e, ainda, o teor da sentença, que ora se transcreve:
– Relatório
No processo de insolvência de L, Lda. veio o senhor administrador da insolvência apresentar contas.
Notificados os credores para, no prazo de cinco dias, se pronunciarem, estes não se pronunciaram.
O Ministério Público não deu parecer favorável à aprovação das contas apresentadas.
O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.
O processo é o próprio e não enferma de nulidades que o invalidem totalmente.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias; são legítimas e encontram-se regularmente representadas.
Não existem outras nulidades, excepções processuais ou questões prévias ou incidentais que cumpra conhecer.
II – Fundamentação
Nos termos do disposto no art. 62.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas o administrador da insolvência da massa insolvente encontra-se obrigado a, dado caber nas suas funções a administração de bens e interesses alheios, uma vez finda a respectiva actividade, prestar contas da mesma.
A prestação de contas consubstancia-se no registo, em forma de conta corrente, das despesas e receitas, de forma a retractar sucintamente a situação da massa insolvente, conforme decorre do art. 62.º, n.º 3 do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, devendo ser acompanhadas de todos os documentos comprovativos.
No presente caso, analisando as contas apresentadas pelo senhor administrador da insolvência, verifica-se que as verbas de despesa e de receita constantes da conta corrente elaborada se encontram devidamente discriminadas e documentalmente comprovadas.
O Ministério Público promoveu no parecer apresentado a notificação do senhor administrador da insolvência para proceder ao pagamento do IVA em falta, juntar extracto completo da conta bancária e justificar documentalmente os levantamentos efectuados em Novembro de 2013.
Ora, os presentes autos têm por objecto a apreciação das contas apresentadas pelo senhor administrador da insolvência, não cabendo nesta sede apreciar qualquer outra matéria, nomeadamente um eventual (in)cumprimento das obrigações fiscais pelo senhor administrador da insolvência.
No que concerne ao pedido referente à junção do extracto bancário completo e justificação dos levantamentos, cumpre voltar referir que a prestação de contas consubstancia-se no registo, em forma de conta corrente, das despesas e receitas, de forma a retractar sucintamente a situação da massa insolvente, conforme decorre do art. 62.º, n.º 3 do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas.
Assim, mostrando-se as contas elaboradas de acordo com o preceituado nesta norma, o solicitado não encontra fundamento legal.
Verifica-se, contudo, que o senhor administrador da insolvência não retracta nas contas apresentadas o pagamento pela massa insolvente a Fábio S. da quantia de € 1.997,54, documentada a fls. 5 do Apenso E.
Ora, considerando que tal configura uma despesa da massa insolvente, com implicação na receita final a apurar, determino o aditamento da mesma à verba da despesa.
Constata-se, ainda, que o senhor administrador da insolvência apresenta o cálculo da sua remuneração variável.
Nos termos do art. 23.º, n.º 2 da Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro, o administrador da insolvência nomeado por iniciativa do juiz aufere ainda uma remuneração variável em função do resultado da recuperação do devedor ou da liquidação da massa insolvente, cujo valor é o fixado nas tabelas constantes da Portaria n.º 51/2005, de 20 de Janeiro
Para este feito, determina o n.º 2 da mesma norma que considera-se resultado da liquidação o montante apurado para a massa insolvente, depois de deduzidos os montantes necessários ao pagamento das dívidas dessa mesma massa, com excepção da remuneração referida no n.º 1 e das custas de processos judiciais pendentes na data de declaração da insolvência.
Ou seja, o montante das custas do processo, com excepção das custas de processos judiciais pendentes na data de declaração da insolvência, sendo uma dívida da massa, conforme decorre do art. 51.º, n.º 1, alínea a) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, tem necessariamente de ser considerado para o cálculo da remuneração variável.
A não consideração nas contas do administrador da insolvência das custas do processo leva a um valor incorrecto e inflacionado do resultado da liquidação e, consequentemente, levará a um cálculo viciado da remuneração variável.
Assim, as contas deverão ser julgadas validamente prestadas, com excepção do cálculo da remuneração variável, por extemporâneo, dado que ainda não foi elaborada a conta de custas.
III – Decisão
Face ao exposto, nos termos do art. 64.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, julgo validamente prestadas as contas apresentadas pelo senhor administrador da insolvência, com excepção do cálculo da remuneração variável, determinando o aditamento à verba despesa da quantia de € 1.997,54, documentada a fls. 5 do Apenso E.
….”

O Direito
O apelante imputa à sentença os vícios da ambiguidade e da omissão de pronúncia, previstos, respetivamente, nas alíneas c) e d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC.

A lei comina com nulidade a sentença que enferme de “alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível” (alínea c) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC). Trata-se de vício que gera ininteligibilidade, de tal modo que “um declaratário normal, nos termos dos arts. 236-1 CC e 238-1 CC não possa retirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar”(José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, 3.ª edição, 2017, Almedina, pág. 735).

Por outro lado, devendo o juiz conhecer de todas as questões que foi chamado a apreciar, isto é, “todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (art. 608-2)” (Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, obra citada, pág. 737), a omissão na apreciação de alguma ou algumas delas gera, também, a nulidade da sentença (alínea d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC).

O apelante entende que a sentença padece da nulidade da ininteligibilidade em virtude de ambiguidade ou obscuridade, na medida em que, tendo-se nela afirmado que as contas apresentadas não retratam “o pagamento pela massa insolvente a Fábio S. da quantia de € 1 997,54, documentada a fls. 5 do Apenso E”, ainda assim aprovou as contas e decidiu que tal despesa fosse aditada “à verba da despesa”, decisão essa que, segundo a apelante, não encontra apoio legal, por nada dizer acerca da eventualidade de o ordenado aditamento não ser cumprido, além de que a constatação de que as contas eram omissas quanto à aludida despesa era, desde logo, fundamento para a sua rejeição.

Ora, in casu, a eventual ilegalidade do decidido não se confunde com a sua ininteligibilidade. Com efeito, resulta claro da sentença que o Sr. juiz a quo entendeu que as contas deveriam ser alteradas, no sentido de nelas passar a figurar a aludida despesa que se encontrava omitida, sendo aprovadas com essa correção. O eventual “incumprimento” do administrador de insolvência por não apresentar as contas com a aludida alteração não afeta a inteligibilidade da sentença, independentemente das dúvidas que possam surgir quanto às consequências desse “incumprimento”.

Nesta parte, pois, a apelação carece de fundamento.

O mesmo se diga quanto à invocada nulidade por omissão. Segundo o apelante, o tribunal a quo não se pronunciou acerca da questão, suscitada no parecer do M.º P.º, de no extrato da conta bancária da massa insolvente figurarem dois levantamentos de € 2 000,00 cada, que não estavam mencionados na prestação de contas nem justificados documentalmente.

Ora, a sentença aborda a citada questão, arredando embora a sua relevância, conforme se constata da transcrição do seguinte trecho:
No que concerne ao pedido referente à junção do extracto bancário completo e justificação dos levantamentos, cumpre voltar referir que a prestação de contas consubstancia-se no registo, em forma de conta corrente, das despesas e receitas, de forma a retractar sucintamente a situação da massa insolvente, conforme decorre do art. 62.º, n.º 3 do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas.
Assim, mostrando-se as contas elaboradas de acordo com o preceituado nesta norma, o solicitado não encontra fundamento legal.

Conclui-se, pois, que a sentença não padece das citadas nulidades.
Segunda questão (validade das contas prestadas)
A matéria de facto a levar em consideração é a que consta no Relatório supra e ainda:
1.No extrato da conta bancária da massa insolvente, que o administrador de insolvência apresentou com a prestação de contas, figuram dois levantamentos de € 2 000,00 cada, que não estão mencionados na conta-corrente nem na documentação que a acompanha.

O Direito
Como bem se refere na sentença recorrida, nos termos do disposto no art.º 62.º do CIRE, o administrador da insolvência, dado caber-lhe a administração de bens e interesses alheios, encontra-se obrigado, uma vez finda a respetiva atividade, a prestar contas da mesma. Isto sem prejuízo da informação trimestral referida no art.º 61.º do CIRE, constituída por “um documento com informação sucinta sobre o estado da administração e liquidação” (n.º 1) e bem assim da prestação de contas em qualquer altura do processo, sempre que o juiz o determine (n.º 2 do art.º 62.º). Para possibilitar um efetivo controle da atividade do administrador e das informações por ele prestadas, deve o administrador promover o arquivamento “de todos os elementos relativos a cada diligência da liquidação, indicando nos autos o local onde os respectivos documentos se encontram” (n.º 2 do art.º 61.º).
Segundo o n.º 3 do art.º 62.º do CIRE, “as contas são elaboradas em forma de conta corrente, com um resumo de toda a receita e despesa destinado a retratar sucintamente a situação da massa insolvente, e devem ser acompanhadas de todos os documentos comprovativos, devidamente numerados, indicando-se nas diferentes verbas os números dos documentos que lhes correspondem.

Quanto à tramitação da prestação de contas, estipula o art.º 64.º do CIRE que as contas são autuadas por apenso e o juiz fixará prazo para a comissão de credores, se existir, emitir parecer sobre elas; seguidamente os credores e o devedor insolvente são notificados por éditos e anúncio para se pronunciarem no prazo de cinco dias. O Ministério Público terá vista do processo para o mesmo fim e depois o processo é concluso ao juiz para decisão, com produção da prova que se torne necessária.

Conforme escrevem Carvalho Fernandes e João Labareda (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, 2.ª edição, 2013, pág. 379), “a apreciação das contas permite avaliar a correcção das operações realizadas pelo administrador, bem como a eficiência da respetiva atividade, tendo por matriz referencial a prossecução dos interesses a satisfazer no processo.” Por outro lado, a análise das contas do administrador constitui “o instrumento por excelência do controlo de certos atos levados a cabo pelo administrador, que ele pode unilateralmente decidir e que suscetibilizam o seu próprio benefício em eventual prejuízo da massa. É o que se passa quanto ao reembolso de despesas havidas por indispensáveis ou úteis, segundo estatui o n.º 1 do art.º 60.º”. O art.º 60.º n.º 1 estipula que o administrador de insolvência tem direito à remuneração prevista no seu estatuto “e ao reembolso das despesas que razoavelmente tenha considerado úteis ou indispensáveis.”

É frequente as contas apresentadas pelo administrador de insolvência serem impugnadas quanto a despesas mencionadas na conta, seja por tais despesas não serem consideradas úteis ou indispensáveis ou por não terem sido autorizadas, seja por não estarem documentadas (vide acórdãos da Relação de Guimarães, de 19.5.2016, processo 2842/09.2TBBCL-T.G1 e de 19.3.2013, processo 1464/0.0TBGMR-H.G1). Ora, se cabe fiscalização das contas em relação ao que nelas foi mencionado, igualmente tal controle se justifica em relação ao que nelas foi indevidamente omitido. É evidente que a apreciação da atuação do administrador da insolvência e do processamento da liquidação e do seu resultado final só está correta se abarcar tudo o que foi praticado: e as contas só refletem com rigor tudo isso se nelas tudo o que é relevante constar e estiver devidamente documentado.

Ora, conforme notou o Ministério Público, no extrato da conta bancária da massa insolvente constam dois movimentos negativos no valor, cada um, de € 2 000,00, que não estão mencionados nas contas elaboradas nem justificados ou explicados. Assim, haveria que, como requerido pelo Ministério Público, notificar o administrador de insolvência para explicar tal disparidade e apresentar a justificação e o suporte documental pertinentes – atividade essa enquadrável no disposto na parte final do n.º 2 do art.º 64.º do CIRE (“para o mesmo fim tem o Ministério Público vista do processo, que é depois concluso ao juiz para decisão, com produção da prova que se torne necessária”).

Assim, foi omitida diligência que se afigura ser indispensável para o adequado julgamento das contas, o que implica a anulação da sentença recorrida.

Já no que concerne à quantia de € 1 997,54, que o tribunal a quo entendeu reportar-se a pagamento a Fábio S. e que admitiu na conta, com base na documentação constante a fls 5 do Apenso E (não presente nesta Relação), o entendimento do tribunal a quo não se nos suscita crítica, por falta de elementos que o contrariem.

Igualmente caberá ao tribunal a quo reponderar acerca da necessidade da junção aos autos de extrato completo da conta bancária da massa insolvente, na eventualidade de o que constitui fls 10 do apenso F se mostrar incompleto (o que a peça processual acessível a esta Relação não permite esclarecer).

Nada há a ponderar, por esta Relação, quanto à inicialmente invocada falta de pagamento de IVA (conclusões 1 a 5 da apelação), face ao desenvolvimento descrito nos números 6 a 9 do Relatório supra.

DECISÃO.
Pelo exposto, julga-se a apelação parcialmente procedente e consequentemente revoga-se a sentença recorrida e determina-se que, sem prejuízo de outras diligências que julgue necessárias, o tribunal a quo notifique o sr. administrador de insolvência para, em prazo a determinar, explicar os dois movimentos negativos, datados de novembro de 2013, no valor de € 2 000,00 cada, constantes no extrato da conta bancária da massa insolvente, e apresentar a respetiva documentação justificativa.
As custas da apelação são a cargo da massa insolvente (art.º 304.º do CIRE).



Lisboa, 26.10.2017



Jorge Leal
Ondina Carmo Alves
Pedro Martins