Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1614/2007-6
Relator: MARIA MANUELA GOMES
Descritores: RESERVA DE PROPRIEDADE
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
MÚTUO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/26/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: I – É admissível a constituição da reserva de propriedade com vista a garantir um direito de crédito de terceiro, abrangendo a referência, no art. 18º, nº 1 do DL 54/75, ao “contrato de alienação” também o contrato de mútuo conexo com o de compra e venda e que esteve na origem da reserva de propriedade.
II - Parece perfeitamente admissível a constituição da reserva de propriedade com vista a garantir os direitos de crédito emergentes de um contrato de mútuo cuja finalidade última é a de assegurar o pagamento do preço da coisa ao seu alienante, o que, de resto, sempre acolheria protecção na própria lei, que permite como condicionante à transferência da propriedade, “a verificação de qualquer outro evento”, que não apenas o cumprimento das obrigações decorrentes do contrato de compra e venda, (cfr. parte final do art. 409º, 1, do C. Civil).
III – A lei permite que se o devedor cumprir com dinheiro ou outra coisa fungível emprestado por terceiro pode sub-rogá-lo nos direitos do credor. Esta situação de sub-rogação não carece do consentimento do credor e depende de declaração expressa, no documento do empréstimo, de que a coisa se destina ao cumprimento da obrigação e de que o mutuante fica sub-rogado nos direitos do credor (art. 591º do Código Civil).
IV – A referência ao "contrato de alienação"constante do disposto no artº 18º, nº 1 do DL nº 54/75, tal como a constante do art. 409º do C. Civil é de entender como extensiva ao contrato de mútuo conexo com o de compra e venda e cujo cumprimento esteve na origem da reserva de propriedade.
(F.G.)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
Relatório.
1. S, SA, intentou, no dia 2.05.2006, no Tribunal Cível de Lisboa, acção declarativa de condenação, com processo comum, sob a forma ordinária, contra C, Lda alegando para tanto, essencialmente, que no exercício da sua actividade celebrou com a ré um contrato, pelo qual emprestou a esta a quantia de € 29 728,32, destinada à aquisição, pela ré de um veículo automóvel BMW, quantia essa que deveria ser paga em 72 prestações mensais, no valor de €409,56; como condição da celebração do respectivo contrato e garantia do seu cumprimento, foi constituída e registada reserva de propriedade a favor da requerente sobre o mencionado veículo; o requerido não efectuou o pagamento da 3ª, 4ª, 5ª e 6ª prestações vencidas entre 23.06.2005 e 23.09.2005, na data dos respectivos vencimentos, nem posteriormente, quando lhe foi concedido um prazo suplementar de 8 dias úteis para regularização, do que deriva que a mora se converteu em incumprimento definitivo.
Mais alegou que até à data da propositura da acção a ré não procedera ao pagamento da totalidade das prestações, nem procedera à entrega do veículo, pelo que a autora, a favor da qual está constituída a reserva de propriedade, tem direito à restituição do veículo
Terminou pedindo que fosse declarada judicialmente a resolução do contrato e que a ré fosse condenada a entregar-lhe o veículo em causa, bem como fosse reconhecido o direito ao cancelamento do registo averbado em nome da ré, junto da entidade competente.

Citada, a ré não contestou, pelo que foram considerados provados os factos alegados pela autora.
Apresentada pela autora alegação de direito, com data de 9.11.2006, foi proferida sentença que, julgando a acção apenas parcialmente provada, declarou validamente resolvido o contrato celebrado entre as partes, mas absolveu a ré do mais que fora pedido.

Inconformada, a autora apelou.
Alegou e no final formulou, em síntese as seguintes conclusões:
- O Meritíssimo Juiz a quo julgou a acção parcialmente improcedente, por entender que não haver lugar à constituição da reserva de propriedade, em face da celebração de contratos de financiamento, uma vez que tal garantia poderá apenas ser acordada quando estamos perante a celebração de contratos de compra e venda;
- Acontece que, para o tribunal recorrido não basta que se verifique a existência de reserva de propriedade inscrita a favor da A., nem que se verifique o incumprimento das obrigações que originaram a mesma, é necessário também que a referida reserva de propriedade seja garantia do cumprimento de um contrato de compra e venda resolvido, e não qualquer outro;
- Ora, salvo o devido respeito, discordamos deste entendimento que, em nossa opinião, não faz a correcta interpretação da Lei;
- A reserva de propriedade, tradicionalmente uma garantia dos contratos de compra e venda, tem vindo, face à evolução verificada nas modalidades de contratação, a ser constituída como garantia dos contratos de mútuo, sobretudo daqueles cuja finalidade e objecto é financiar um determinado bem, ou seja, quando existe uma interdependência entre o contrato de mútuo e o contrato de compra e venda;
- Nestas situações, tem-se verificado uma sub-rogação do mutuante na posição jurídica do vendedor, isto é, o mutuante ao permitir que o comprador pague o preço ao vendedor, sub-roga-se no risco que este correria caso tivesse celebrado um contrato de compra e venda a prestações, bem como, nas garantias de que este poderia dispor, no caso, a reserva de propriedade;
- Este entendimento encontra pleno acolhimento no artigo 591° do Código Civil, bem como no princípio da liberdade contratual estabelecido no artigo 405° do Código Civil, uma vez que, não se vislumbram quaisquer objecções de natureza jurídica, moral ou de ordem pública relativamente ao facto de a reserva de propriedade ser constituída a favor do mutuante e não do vendedor;
- Ora, a própria lei que regula o crédito ao consumo o admite no n.° 3 do seu artigo 6° quando refere que "o contrato de crédito que tenha por objecto o financiamento da aquisição de bens ou serviços mediante pagamento em prestações deve indicar ainda (….) f) O acordo sobre a reserva de propriedade".
- Entendimento este, que também tem sido sufragado em diversos acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa.
- Por outro lado, o direito que a Requerente tem de reaver a viatura decorre da propriedade que tem sobre ela, bem como face à declarada resolução do contrato, tem direito ao cancelamento do registo feito a favor da ré na Conservatória do Registo Automóvel
- Posto isto, e encontrando-se inscrita a favor da Recorrente reserva de propriedade sobre a viatura que se requereu a restituição, bem como, estando provado que a mutuária não cumpriu as obrigações que originaram a constituição da reserva de propriedade, assiste à autora o direito de reivindicar o veículo, nos termos do art. 1311º do C. Civil
Terminou, pedindo a procedência do recurso e a anulação ou revogação da sentença recorrida.

Não houve contra-alegação.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

2. A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos alegados pela autora:
1 - Em 21/03/2005 A. e R. subscreveram o escrito, junto por fotocópia a fls. 22-23 dos autos, denominado "Contrato de Crédito n° 530312".
2 - Nesse escrito, e sob o título "Condições Particulares" consta:
- Fornecedor do bem: "A… — Comércio de Automóveis, Ler;
- Descrição do bem: Viatura ligeira, Marca BMW, modelo Séria-3 Diesel;
- Valor do bem: € 23 000,00;
- Entrada inicial: E 3 000,01;
- Montante do Crédito: € 19 999,99;
- N° de Prestações : 72
- Periodicidade e Vencimento: Mensal Postecipadas, com vencimento da 1ª prestação em 23/04/2005;
- Montante das prestações: 72 Prestações de € 409,56;
- Total do Financiamento e Encargos: € 29 728,32;
- Garantias: Livrança em branco Subscrita p/Cliente(s), Aval e Reserva de Propriedade.
- (…)
3 - Nesse escrito e sob o título "Condições Gerais" ficou consignado:
- a) A S concede ao Cliente um empréstimo, destinado a financiar a aquisição de bens e serviços, no montante e condições fixadas neste contrato.
2a - a) O cliente desde já autoriza a S a entregar o montante mutuado ao fornecedor do bem ou serviço indicado nas Condições Particulares, nas condições acordadas entre a S e o vendedor do bem e/ou prestador do serviço;
b) (...)
3a -a) A quantia mutuada será reembolsada em prestações sucessivas, cujo número, periodicidade, valor e data estão fixadas nas Condições particulares deste contrato;
b) Estas prestações englobarão a amortização, o pagamento de juros, encargos e os impostos legalmente obrigatórios.
9a - a) Em garantia do bom pagamento do capital emprestado, respectivos juros e demais obrigações decorrentes do presente contrato, o Cliente presta as garantias que venham referidas nas condições particulares do mesmo.
b) (...); c) (...); d) (...);
e) Até ao integral cumprimento deste contrato, a S poderá constituir, no seu interesse, reserva de propriedade sobre o(s) bem(s) objecto deste contrato, salvo se a S dela prescindir.
4 - A propriedade do veículo supra identificado está registada na CRA de Lisboa a favor da R.
5 - Sobre o referido veículo e registada na C. R. Automóvel incide uma reserva de propriedade tendo como sujeito activo a S;
6 - A R. não pagou à A. as 3ª a 6ª prestações, vencidas entre 23/06/2005 e 23/09/2005, cada uma no valor de € 408,08;
7 - A A. enviou à R. carta registada com A/R datada de 04/10/05, dando-lhe conta das prestações em dívida, concedendo-lhe um prazo suplementar de oito dias para proceder ao pagamento das mesmas, com a cominação de, não sendo efectuado o pagamento, considerar o contrato automaticamente resolvido.
8 – Essa carta foi enviada para a morada da R. constante do contrato;
9 - Essa carta não foi recebida pela R.
10 - A R., no prazo que lhe foi concedido, não pagou as prestações em dívida nem restituiu o veículo.

3. Neste recurso está em causa saber se deve ser decretada a restituição do veículo em causa, requerida pela titular da reserva de propriedade, face ao incumprimento do contrato de mútuo, cujo produto serviu para o financiamento da aquisição do mesmo veículo.
A resposta, adianta-se já, é afirmativa.
Parece não haver dúvida que, no caso em apreciação e vistos os factos provados, estamos perante um contrato de compra e venda financiada, tendo por objecto uma viatura automóvel.
Coexistem, assim, dois contratos autónomos – um contrato de compra e venda e um contrato de mútuo -, mas com ligação funcional entre eles, encontrando-se registada a favor da financiadora a reserva de propriedade. Os dois contratos coexistem, mantendo, todavia, cada um deles a sua autonomia estrutural e formal.
Atenta a referida pluralidade de contratos, como bem se diz na declaração de vencimento lavrada no acórdão do STJ de 12.05.2005, publicado em www.dgsi.pt/jstj.nsf/954, ocorre “uma espécie de relação jurídica triangular” envolvendo a vendedora (que se obrigou a vender o veículo em causa), a ré (compradora do mesmo) e a autora/financiadora e ora recorrente, que se obrigou a mutuar à compradora o preço devido pela aquisição do mesmo veículo.
Tudo isto, validado pelo princípio da liberdade contratual, consagrado no art. 405º do C. Civil, que permite às partes, além do mais, a livre fixação do conteúdo dos contratos e a sua coligação.
Ora, neste quadro de relações jurídicas complexas, sendo patente a conexão dos contratos, derivada do nexo de dependência existente entre os mesmos, tendo as partes livre e validamente acordado e constituído a reserva de propriedade a favor da financiadora, tem de concluir-se que a mesma tutela directamente, não o interesse da vendedora na restituição do veículo (na medida em que aquela recebeu já o preço devido pela venda do mesmo), mas sim o direito de crédito da financiadora, configurado como se o pagamento do preço relativo ao contrato de compra e venda do veículo fosse fraccionado no tempo.
As obrigações que originaram a reserva de propriedade foram as prestações concernentes ao contrato de compra e venda do veículo automóvel, e a mutuária vinculou-se a pagar as prestações e aos efeitos da reserva de propriedade a favor da mutuante, que aceitou fosse constituída a favor daquela.
Daí que se entenda, desde logo, que não há razão substantiva válida que obste à procedência do pedido de entrega do veículo formulado pela financiadora da aquisição do mesmo e com reserva de propriedade constituída a seu favor.

Acresce que, também razões de carácter adjectivo, levam à mesma conclusão.
Como bem se refere no acórdão deste Tribunal de 20.10.2005, publicado em www.dgsi.pt, bem como em todos os acórdãos referenciados no mesmo, e com cuja doutrina se concorda inteiramente e se segue de perto, dispõe o art. 15º, nº 1, do Decreto-lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro, que, “vencido e não pago o crédito hipotecário ou não cumpridas as obrigações que originaram a reserva de propriedade, o titular dos respectivos registos pode requerer em juízo a apreensão do veículo e dos seus documentos”.
Por sua vez, prescreve o art. 16°, nº1 que “provados os registos e o vencimento do crédito ou, quando se trate de reserva de propriedade, o não cumprimento do contrato por parte do adquirente, o juiz ordenará a imediata apreensão do veículo”.
Ora, conforme resulta do disposto no art. 5° conjugado com os citados artigos 15° e 16° do Dec.-Lei nº 54/75, no caso de incumprimento pelo comprador das obrigações que originaram a reserva de propriedade, as condições de exercício do procedimento cautelar de apreensão de veículos neles regulado são:
a) que a reserva de propriedade se encontre registada, a favor do requerente, na Conservatória do Registo de Automóveis, em obediência à alínea b) do art. 5°/1 do Dec.-Lei nº54/75, de 12/02;
b) que o requerido não tenha cumprido as obrigações que originaram a reserva de propriedade.
Por seu lado, o art. 409º do CC, constituindo uma excepção à regra prevista no art. 408º do mesmo diploma, tem como efeito suspender a transmissão do bem. O alienante reserva para si a propriedade da coisa até ao cumprimento das obrigações assumidas pelo comprador. Assim, o bem só se transmite quando o comprador tiver cumprido as suas obrigações contratuais.
Face a estes preceitos, tem sustentado parte da jurisprudência que o quadro jurídico-processual em que se integra a figura da apreensão cautelar de veículos é restrito, independentemente do regime de direito substantivo a que obedece a compra e venda com reserva de propriedade, associada ou não a contratos de financiamento bancário ou parabancário (v., entre outros, ac.R.L de 16.12.2003, (A. Abrantes Geraldes) in www.dgsi.pt).
De acordo com esta posição, a providência cautelar em causa só é susceptível de tutelar a existência de um direito de crédito vencido de natureza pecuniária garantido por hipoteca e a falta de cumprimento da obrigação de prestação correspondente, ou de um contrato de compra e venda de veículo automóvel com convenção de reserva de propriedade e incumprimento das obrigações assumidas pelo comprador.
Porém, uma outra corrente jurisprudencial vem entendendo que é admissível a constituição da reserva de propriedade com vista a garantir um direito de crédito de terceiro, abrangendo a referência, no art. 18º, nº 1 do DL 54/75, ao “contrato de alienação” também o contrato de mútuo conexo com o de compra e venda e que esteve na origem da reserva de propriedade (v., por todos e para além do acórdão citado em primeiro lugar, acórdãos desta Relação (e secção) de 13.02.2003 (Olindo Geraldes), CJ, tomo I, pág. 103; de 13.03.03, (Pereira Rodrigues) CJ, tomo II, pág. 74, de 27.06.2002 (Salvador da Costa) e de 05.05.2005 (Carlos Valverde) in www.dgsi.pt).
De facto, importa ter presente a evolução social no que concerne às novas modalidades de contratação, susceptíveis, pela sua peculiar estrutura, de alargar os tradicionais modelos processuais, em termos de englobarem as novas realidades contratuais, sobretudo quando se trata, como ocorre no presente caso, de contratos intensamente conexionados, fazendo apelo à interpretação actualista do citado nº 1 do artº 18º do DL nº 54/75.
A verdade é que, assiste-se nos últimos anos, a um enorme crescimento do crédito ao consumo, “…sendo hoje a regra para a aquisição de quaisquer bens com algum valor significativo - com especial relevo para os veículos automóveis - o recurso ao financiamento pelas instituições vocacionadas para o efeito, sobrando, por isso, não tanto a eventualidade do incumprimento pelo consumidor das obrigações emergentes do contrato de alienação, mas mais das do contrato de mútuo que aquele permite, podendo, em boa verdade, dizer-se que o pagamento do preço do bem alienado se confunde com o cumprimento integral das obrigações do contrato que tem como objecto o financiamento da sua aquisição” (cfr. mencionado acórdão de 05.05.2005)
Do disposto no art. 9º, nº 1 do C.C. resulta que à actividade interpretativa não basta o elemento literal das normas, devendo ainda atender-se à vontade do legislador, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as condições históricas da sua formulação e, numa perspectiva actualista, “as condições específicas do tempo em que é aplicada”.
No plano dos resultados da interpretação, mostra-se necessário, ainda confrontar o texto da lei com o seu espírito: havendo coincidência, estar-se-á perante a chamada interpretação declarativa; não a havendo, ocorre a chamada interpretação extensiva ou restritiva.
Alguns autores até admitem dever operar a interpretação correctiva se o seu resultado se configurar contrário a interesses preponderantes da ordem jurídica, em termos tais que, se o legislador tivesse considerado a situação, não a teria consagrado.
Ora, o citado art. 18º insere-se no âmbito das normas reguladoras da acção especial cautelar de apreensão de veículos automóveis, motivada pela ideia da sua deterioração no tempo necessário para a conclusão da acção declarativa de que é instrumental.
Por seu lado e como já se deixou dito, a venda com reserva de propriedade (art. 409º do CC) é uma alienação sob condição suspensiva, em que se suspende o efeito translativo, produzindo-se imediatamente os demais. A transferência da propriedade fica dependente de evento futuro, que, em regra, será o cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte e daí que a hipótese mais frequente seja a da venda a prestações com espera de preço, em que se clausula, para maior segurança do vendedor, que a coisa vendida continuará a pertencer-lhe até o preço estar integralmente pago.
Parece, pois, perfeitamente admissível a constituição da reserva de propriedade com vista a garantir os direitos de crédito emergentes de um contrato de mútuo cuja finalidade última é a de assegurar o pagamento do preço da coisa ao seu alienante, o que, de resto, sempre acolheria protecção na própria lei, que permite como condicionante à transferência da propriedade, “a verificação de qualquer outro evento”, que não apenas o cumprimento das obrigações decorrentes do contrato de compra e venda, (cfr. parte final do art. 409º, 1, do C. Civil)
Ademais, a lei permite que se o devedor cumprir com dinheiro ou outra coisa fungível emprestado por terceiro pode sub-rogá-lo nos direitos do credor. Esta situação de sub-rogação não carece do consentimento do credor e depende de declaração expressa, no documento do empréstimo, de que a coisa se destina ao cumprimento da obrigação e de que o mutuante fica sub-rogado nos direitos do credor (art. 591º do Código Civil).
Assim sendo, a referência ao "contrato de alienação"constante do disposto no artº 18º, nº 1 do DL nº 54/75, tal como a constante do art. 409º do C. Civil, já referida é de entender como extensiva ao contrato de mútuo conexo com o de compra e venda e cujo cumprimento esteve na origem da reserva de propriedade.
Como se salienta no mencionado acórdão de 5.05.2005 “a interpretação jurídica das normas não deve restringir-se a um conceptualismo formalista, despido das consequências práticas que dele possam provir”. E a ponderação das consequências “constitui ainda um momento da argumentação jurídica, pelo menos para todos quantos entendem - e são hoje muitos - que a inferência jurídica não pode ficar alheia aos efeitos práticos da solução inferida”.
A formal e redutora interpretação de que só o incumprimento e consequente resolução do contrato de alienação conduz à apreensão e entrega do veículo alienado, tornaria inútil e sem efeito prático a cláusula da reserva de propriedade, sempre que a aquisição do veículo fosse feita através do financiamento de terceiro, o que constitui hoje a regra, face à evolução verificada nessa forma de aquisição.
O vendedor, recebendo do financiador o montante integral do preço do veículo, o que, na maioria dos casos, corresponde ao cumprimento integral do contrato de alienação pelo comprador, fica, em bom rigor, impedido de resolver esse contrato, porque integralmente cumprido e, logo, de fazer reverter a seu favor a cláusula de reserva de propriedade, até porque, verdadeiramente, esta foi estabelecida para garantir o cumprimento do contrato de financiamento.
Como refere o acórdão a que vimos fazendo referência “… incumprido este sem que o financiador, ainda que conjuntamente com o vendedor titular da reserva, pudesse accionar tal clausulado, invocando a resolução do único contrato que, em última análise, não foi cumprido - o contrato de mútuo -, chegaríamos à tão iníqua quanto absurda situação de o mutuário/comprador relapso não poder ser desapossado do veículo de que não é proprietário, exactamente porque a transferência da propriedade ficou salvaguardada pela cláusula da reserva de propriedade, esvaziando-se por completo a finalidade e utilidade desta”.
Ora se, em tais circunstâncias jurídico-factuais, preenchido o requisito do registo da reserva de propriedade em favor do mutuante, como sucede no caso dos autos, era de deferir uma eventual providência cautelar de apreensão de veículo automóvel com o fundamento no incumprimento do mutuário e subsequente resolução do contrato de mútuo, não pode deixar de se entender que é igualmente de proceder o pedido de restituição do veículo formulado pela financiadora da aquisição do mesmo em sede da acção de que aquela podia depender.

Pelo exposto, e embora por razões diversas das invocadas - o DL 359/91, de 21 de Setembro, não pode ser invocado porque a ré não é pessoa singular (cfr. art. 1º e 2º, als a) e b)) – deve conceder-se provimento ao recurso e revogar o segmento da sentença, na parte que absolveu a ré do pedido de entrega do veículo em causa, bem como do pedido de reconhecimento do o direito ao cancelamento do registo averbado em nome da ré, junto da entidade competente.
Decisão.
4. Termos em que se acorda em julgar procedente o presente recurso de apelação e, consequentemente, revogar o segmento recorrido da sentença e condenar a ré no pedido de entrega do veículo em causa á autora, bem como declarar reconhecido o direito da mesma ao cancelamento do registo averbado em nome da ré, junto da Conservatória do Registo Automóvel de Lisboa.
Custas, nas duas instâncias, pela recorrida.
Lisboa, 26 de Abril de 2007.
(Maria Manuela B. Santos G. Gomes)
(Olindo Geraldes)
(Ana Luísa Passos G.)