Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10806/2006-6
Relator: FÁTIMA GALANTE
Descritores: DIREITO DE ACÇÃO
ABUSO DE DIREITO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/08/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - O direito de acção é um dos vários direitos que está compreendido no direito fundamental de acesso aos tribunais (art.º 20º da C.R.P.).
II - O direito de acção é um direito subjectivo autónomo e distinto do direito material que se pretende fazer actuar em juízo, pelo que o seu exercício não está dependente de qualquer requisito prévio de demonstração da existência do direito substancial. Uma coisa é o direito de poder provocar a actividade jurisdicional do Estado, para que este aprecie os direitos concretos ou incertos entre as partes, mediante uma decisão fundamentada, outra é o direito substantivo que, por exemplo, o autor se arroga contra o réu e pretende que lhe seja reconhecido pelo tribunal.
III - Não litiga de má fé, quem litiga sem direito, mas o faz convicto de que tem razão substancial, ainda que não a tenha.
IV - Em abstracto há sempre um certo grau de risco em todas as acções, podendo vir a ser julgadas procedentes ou improcedentes, e nem por isso, as mais das vezes, se põe, sequer como hipótese, a existência de um exercício abusivo, ilegítimo do direito de acção.
(F.G)
Decisão Texto Integral: 14
ACORDAM NA 6ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA REÇÃO DE LISBOA

I - RELATÓRIO

M veio intentar a presente acção de condenação, em processo declarativo comum, sob a forma ordinária, contra V e mulher, I.
Alega, sucintamente, que é advogada e que em Março de 1998 foi surpreendida ao ser citada, como executada, numa acção executiva que o 1º R. lhe moveu, com base em 3 letras que correu termos na 16ª Vara Cível de Lisboa. Sucede que, nem a A., nem a sociedade M, de que a A. é sócia, intervieram a qualquer título nas referidas letras. A isso acresce que essas letras teriam sido objecto de reforma, e as reformas foram pagas numa parte por cheque e noutra por compensação pelos honorários devidos pelos serviços jurídicos que a A. prestou ao R., pelo que jamais este poderia ter utilizado as mesmas para demandar a A.
Quando a A. foi citada para pagar 5.200.000$00, acrescida de juros, ficou em estado de choque, tendo então de recorrer a colegas para a ajudarem, não só na elaboração dos embargos de executado como no seu trabalho. Como se não bastasse, apesar de deduzidos os embargos, o R. não se coibiu de nomear à penhora as contas bancárias em nome da A. Mas, afinal, o R., ciente da falta de razão que lhe assistia, antes da data designada para a audiência preliminar dos embargos de executado, veio a desistir do pedido, o que demonstra a sua má-fé ao longo de todo o processo. A A. ficou muito afectada por todo este processo, pois foi apontada como uma devedora e os seus clientes passaram a ter receio de a consultar. A A. viu assim posto em causa o seu bom-nome e ficou psicologicamente afectada, tendo toda esta situação provocado angústia e desgosto, que constituem danos não patrimoniais cujo ressarcimento pretende e avalia em 25.000.000$00. Pelos honorários devidos ao advogado que contratou para organizar a sua defesa, a A. terá também de pagar 400.000$00, mais IVA. Acresce ainda um prejuízo de cerca de 5.000.000$00, pelo tempo perdido, bem como pela perda de clientes e trabalho que deixou de aceitar. Finalmente, alegou que todo o comportamento do R. marido foi doloso e resultou duma actividade que serve de proveito comum ao casal, pelo que deveriam os R.R. ser condenados solidariamente.
Concluiu pela condenação dos R.R. a pagarem à A. 30.468.000$00 a título de indemnização, sendo o 1º R. de condenar como litigante de má-fé.

Citados R.R. vieram contestar, explicando que o origem das letras dadas à execução foi um contrato de empreitada para execução duma moradia, celebrado entre o Réu-marido e a M, Lda, da qual a A. e o seu marido são os sócios gerentes. Repetiu que desse contrato subsistia um crédito que foi assumido pela A. e pelo seu marido, o qual esta não poderá ignorar. Como nenhum dos interessados devedores se decidiu a pagar ao R., este instaurou uma acção destinada a cobrar o seu crédito, sendo que não aceita ter havido qualquer compensação por serviços jurídicos prestados pela A., porquanto sempre lhe pagou os honorários devidos. De resto, impugnou todos os danos alegados pela A. e concluiu pela improcedência da acção.

Notificada da contestação, a A. veio replicar impugnando todas as justificações dadas para a existência do alegado crédito do R. e reafirmando todos os serviços que prestou ao R. e tudo o que havia expedido da petição inicial.

Findos os articulados foi designada data para realização de audiência preliminar com o objectivo da conciliação das partes, a qual não logrou êxito. Proferiu-se despacho saneador, tal como consta a fls. 325 e segs. dos autos, onde se julgou absolver o réu da instância relativamente ao pedido de condenação como litigante de má fé e onde se elaborou base instrutória.
Foi proferido despacho saneador, que absolveu o 1º R. da instância relativamente ao pedido de condenação como litigante de má-fé. Foi feita a selecção da matéria de facto, da qual reclamou a A., sem êxito.

Procedeu-se a julgamento, respondendo-se à base instrutória, sem qualquer reclamação.
Seguiu-se a sentença que, julgando improcedente a acção, absolveu os RR. do pedido.
Recorreu a A. da sentença, vindo a ser proferido acórdão por esta Relação que, anulando a sentença, ordenou a repetição do julgamento, com vista à ampliação da matéria de facto, por forma a averiguar os factores subjectivos e a intenção com que o titular agiu, considerando-se relevante apurar se o Réu, ora Apelado, era credor da Apelante.

Assim, foi repetido julgamento, nos termos determinados e proferida nova sentença que, de novo, julgou improcedente a acção e, em consequência, absolveu os RR. do pedido formulado pela A.

Inconformada, veio a A., mais uma vez, apelar da sentença, tendo, no essencial, formulado as seguintes conclusões:
1. A sentença recorrida violou o disposto no art. 659° do Código de Processo Civil, por incorrecta apreciação e exame crítico dos factos que julgou provados e por inadequada e desajustada interpretação e aplicação das normas jurídicas correspondentes.
2. A sentença recorrida, no que respeita à apreciação da culpa do Apelado, ao julgar como erro desculpável a sua conduta, que definiu como ilícita por manifesto abuso de direito, violou, por errada interpretação, o disposto nos arts. 334° e 483º do Código Civil.
3. A sentença recorrida, classificando como mero erro desculpável o abusivo comportamento do Apelado, naquela execução, violou, por errada interpretação e aplicação, o que se mostra disposto nos arts. 1178°, n° 2, do Código Civil e art. 36° do Código de Processo Civil, posto que apurou tal desculpabilidade pela conduta e pela omissão quer do mandatário forense do Apelado quer do Senhor Magistrado titular da acção executiva.
4. A sentença recorrida, tendo julgado provados os danos sofridos pela Apelante e a sua decorrência directa e necessária da propositura da acção executiva contra ela indevidamente instaurada pelo Apelado, violou o disposto no art. 483° do Código Civil, por inadequada interpretação e não aplicação deste preceito, ao considerar inexistir nexo de causalidade entre o facto e os danos e desproporcionalidade na reacção da ora Apelante.
6. Deve ser revogada a sentença ora em recurso, substituída por outra que julgue procedente a acção e condene os Apelados no pedido formulado ou na indemnização que vier a ser liquidada em execução de sentença, se se julgar ainda não apurado o valor dos danos sofridos.

Não foram produzidas contra-alegações.

Corridos os Vistos legais,
Cumpre apreciar e decidir.

São as conclusões das alegações que delimitam o objecto do recurso e o âmbito do conhecimento deste Tribunal (arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do CPC), pelo que, está, mais uma vez, em discussão, essencialmente, a responsabilidade civil por facto ilícito, emergente da instauração de acção executiva contra pessoa que, no respectivo título executivo, não figurava como devedora.

II – FACTOS PROVADOS
1. A autora é advogada, portadora da cédula profissional .... (Factos assentes A).
2. A autora tem escritório e exerce advocacia em.... (Factos assentes B).
3. A autora foi citada em 20.03.98 para uma acção de execução que correu os seus trâmites na 16ª Vara Cível de Lisboa, no valor de esc: 5.200.000$00, mais juros. (Factos assentes C).
4. Na acção referida em C) era exequente V e executados a ora autora, o seu então companheiro e agora marido, MF, e a sociedade de que os dois são sócios, a "M, Lda". (Factos assentes D).
5. A acção referida em C) e D) terminou por sentença de homologação da desistência do pedido, tendo-se assim extinguido o direito que o exequente pretendia fazer valer. (Factos assentes E).
6. Por apenso à acção executiva a autora havia deduzido embargos de executado alegando não ser obrigada cambiária e nada dever ao exequente. (Factos assentes F).
7. As letras dadas à execução pelo sacador V estavam aceites apenas por MF. (Factos assentes G).
8. O réu V havia sido cliente da autora entre 1993 e 1996. (Factos assentes H).
9. A autora tem escritório aberto ao público em ... desde 1985. (Resp. facto controv. 1º).
10. Após a citação para a execução, e por causa dela, por ter sido citada como executada, a autora ficou com o sistema nervoso alterado. (Resp. facto controv. 2º).
11. Sem conseguir concentrar-se no trabalho. (Resp. facto controv. 3º).
12. Teve de recorrer a colegas para a ajudarem. (Resp. facto controv. 4º).
13. Passou noites sem dormir. (Resp. facto controv. 5º).
14. Deixou de aceitar clientes e trabalho por falta de condições psicológicas. (Resp. facto controv. 6º).
15. O réu trabalha em .... (Resp. facto controv. 7º).
16. No meio forense e no meio social em que a autora se movia em ... correu a fala que a autora deveria dinheiro a um construtor civil. (Resp. facto controv. 9º).
17. Houve alguns clientes da autora que souberam da acção mencionada em C) dos factos assentes e do referido em 9º.(Resp. facto controv. 10º).
18. Enquanto durou a acção executiva a autora andou com angústia e desgosto. (Resp. facto controv. 12º da base instrutória).
19. A autora sentiu o seu nome afectado no meio forense e no meio social em que se movia em.... (Resp. facto controv. 13º).
20. A autora ficou debilitada psicologicamente a ponto de não conseguir exercer o trabalho de defesa em causa própria. (Resp. facto controv. 14º).
21. Pelo referido na resposta ao facto controvertido 14º, a autora teve de recorrer a um advogado. (Resp. facto controv. 15º).
22. A autora despenderá esc: 400.000$00, mais IVA, com a contratação do advogado. (Resp. facto controv. 16º).
23. A autora perdeu clientes e trabalhos que lhe permitiram uma retribuição de valor não apurado. (Resp. facto controv. 17º).
24. O réu ganha a vida como construtor civil. (Resp. facto controv. 18º).

III – O DIREITO

1. O exercício abusivo do direito de acção
Alegou a A. que o 1º Réu praticou factos ilícitos culposos, ao intentar acção executiva contra aquela, sendo certo que não figurava como devedora nos títulos dados à execução, actos estes que lesaram o bom nome da A., causando-lhe danos, cujo ressarcimento pretende.
Está, portanto, em causa, a verificação cumulativa dos requisitos da responsabilidade civil.

No caso dos autos, ficou provado que o 1º R. intentou uma acção executiva para pagamento de quantia certa contra a A., contra MF, actualmente seu marido, e contra a sociedade de que os dois são sócios, "M, Lda".
Essa execução seguiu os seus trâmites na 16ª Vara Cível de Lisboa e visava a obtenção do pagamento da quantia de esc: 5.200.000$00, acrescida de juros, tendo por base três letras de câmbio, nas quais constava como sacador o 1º R., ora Apelado e, como aceitante, MF.
Portanto, a A./Apelante não tinha, efectivamente, assinado nenhuma das letras dadas à execução, pelo que contra a mesma não existia título executivo. Apesar disso, foi ordenada a sua citação para pagar, nomear bens à penhora e para, querendo, deduzir oposição.
Na sequência da referida citação, a aqui Apelante, por apenso à acção executiva, deduziu embargos de executado alegando não ser obrigada cambiária e ainda que nada devia ao exequente. Posteriormente, a acção executiva terminou por sentença de homologação da desistência do pedido formulado pelo exequente, aqui R./Apelado, findos os articulados e antes da realização da audiência preliminar.
Assim sendo, não restam dúvidas de que, com base em tais letras, não podia o Exequente, aqui R./Apelado, demandar na execução a aqui A./Apelante, para obter o pagamento por si pretendido.

1.1. O direito de acção está compreendido no direito fundamental de acesso aos tribunais consagrado no art. 20º da C.R.P., em conformidade, aliás, com o art. 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e com os arts. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e 14º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos.
Por sua vez, o art. 2º do CPC garante o acesso aos tribunais, atribuindo, por um lado, o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, a pretensão regularmente deduzida em juízo e, por outro, faz corresponder a todo o direito substantivo um direito de acção, salvo quando a lei diga o contrário (1).
O direito de acção judicial surge, portanto, como um direito potestativo, isto é, um direito de desencadear efeitos de Direito, mediante uma actuação do próprio titular.
O reverso do direito de acção é a sujeição à acção, que recai sobre os diversos sujeitos de direito, sujeição essa que é, em suma, o preço a pagar pelo direito de acção, pelo que é impossível restringir uma sem coarctar o outro.
Este direito de acção, não obstante a controvérsia quanto à sua natureza jurídica (2), pode considerar-se como um direito subjectivo autónomo e distinto do direito material que se pretende fazer actuar em juízo, como é hoje a concepção dominante (3). Uma coisa é o direito de poder provocar a actividade jurisdicional do Estado, para que este aprecie os direitos concretos ou incertos entre as partes, mediante uma decisão fundamentada, outra é o direito substantivo que, por exemplo, o autor se arroga contra o réu e pretende que lhe seja reconhecido pelo tribunal.

1.2. No entanto, uma acção judicial pode ser instaurada sem quaisquer fundamentos ou com alegações falsas, apenas para causar danos.
Há muito que deixou de se entender que o direito de acção funciona como uma causa de exclusão da ilicitude, isto é, que uma determinada actuação danosa não é responsabilizante se traduzir, meramente, o exercício do direito de acção.
A este respeito, refere Menezes Cordeiro (4) que uma ordem jurídica moderna não pode deixar de estar apetrechada para oferecer aos interessados vias de defesa e de compensação, nas hipóteses de indevido e danoso exercício do direito de acção judicial.
Por isso, apesar de o direito de acesso aos tribunais estar constitucionalmente garantido, o exercício de tal direito, como o de qualquer outro, pode não ser tolerado pela ordem jurídica, posto que se verifiquem os requisitos do artigo 334º do Código Civil.
De acordo com este preceito legal, é ilegítimo “o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”, assim se consagrando uma concepção objectiva do abuso do direito, o que significa que não é necessária a consciência de se excederem, com o exercício do direito, os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico; basta que se excedam esses limites.
A pedra de toque da figura do abuso do direito reside no uso ou utilização dos poderes que o direito concede para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deverá ser exercido (5). Com efeito, pode acontecer que um preceito legal, certo e justo perante situações normais, venha a revelar-se injusto na sua aplicação a uma hipótese concreta, por virtude das particularidades ou circunstâncias especiais que nela concorram.
O princípio do abuso do direito constitui um dos expedientes técnicos ditados pela consciência jurídica para obtemperar, em algumas dessas situações particularmente clamorosas, aos efeitos da rígida estrutura das normas legais. Ocorrerá abuso de direito quando um determinado direito, em si mesmo válido, seja exercido de modo que ofenda o sentimento de justiça dominante da comunidade social.
Na ponderação dos interesses em jogo, o que torna o exercício do direito ilegítimo é o manifesto excesso dos limites que são impostos por três princípios basilares: a boa fé, os bons costumes e o fim social e económico do direito.
Se para determinar os limites impostos pela boa e pelos bons costumes, há que atender, de modo especial, às concepções ético-jurídicas dominantes na colectividade, já a consideração do fim económico e social do direito apela de preferência para os juízos de valor positivamente consagrados na própria lei.
Em qualquer dos casos, pese embora a referida concepção objectiva consagrada no art. 334º do CCivil, não se podem excluir os factores subjectivos nem afastar-se a intenção com que o titular tenha agido, podendo a consideração destes factores relevar, quer para determinar se houve ofensa da boa fé ou dos bons costumes, quer para decidir se foi exorbitado o fim social ou económico do direito (6).

1.3. Da culpa in agendo
Embora possam ter áreas coincidentes, a litigância de má fé e o abuso do direito de acção distinguem-se, quer em termos processuais, quer em termos materiais.
Em termos processuais porque a litigância de má fé é apreciada imediatamente, na própria acção e pode sê-lo oficiosamente, enquanto o abuso de direito pode ser apreciado, salvo melhor opinião, em acção própria (7). Em termos materiais, o abuso não está sujeito à restrições da litigância de má fé, valendo qualquer violação de boa fé dolosa ou negligente, mas exigindo-se a existência de danos.
Independentemente da verificação de qualquer uma destas figuras - litigância de má fé ou abuso do direito de acção - o exercício do direito de acção pode envolver responsabilidade civil nos termos gerais, no âmbito da denominada culpa in agendo.
Qualquer direito subjectivo pode ser exercido de forma ilícita, por implicar a violação directa, necessária, eventual ou negligente de outras normas.
Como refere Menezes Cordeiro, o exercício do direito de acção pode implicar a violação contratual, a violação de direitos subjectivos, ou a violação de normas de protecção (8).
Na esteira de Menezes Cordeiro, afigura-se que, em regra, a responsabilidade pela acção é passível de se concretizar através de uma acção própria. Na verdade, muitas vezes, até por razões de ordem processual, não se mostra viável enxertar, numa acção em curso, matéria nova, que poderá implicar sujeitos diferentes e distintos pedidos e causas de pedir.
Ainda segundo este autor (9), importa ter presente que as hipóteses de concretização da culpa in agendo centram-se nos casos em que a actuação processual ilícita tenha efeitos que transcendam os autos em que o problema se coloque, de que são exemplo a culpa por danos patrimoniais prolongados ou por danos morais. Além disso, a culpa in agendo pressupõe que a acção em que foram praticados os actos danosos se mostre decidida por decisão transitada em julgado.
E, seja como for, há que conjugar os direitos do autor com o direito de fundo da outra parte, à luz das regras sobre colisão de direitos (art. 335º do CC).

2. Em concreto, a A. pretende que os RR. sejam condenados a pagar-lhe uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais por ela sofridos em virtude de o R./Apelado lhe ter movido a acção executiva supra referida.
Com interesse ficou provado o seguinte:
- A autora que é advogada e tem escritório e exerce advocacia em ..., desde 1985, foi citada em 20.03.98 para uma acção de execução que correu os seus trâmites na 16ª Vara Cível de Lisboa, no valor de esc: 5.200.000$00, mais juros.
- Nesta acção era exequente V e executados a aqui A./Apelante, o seu então companheiro e agora marido, MF e a sociedade de que os dois são sócios, a "M,Lda".
- As letras dadas à execução pelo sacador V estavam aceites apenas por MF.
- Por apenso à acção executiva a autora deduziu embargos de executado alegando não ser obrigada cambiária e nada dever ao exequente.
- Esta execução terminou por sentença de homologação da desistência do pedido, assim se extinguido o direito que o exequente pretendia fazer valer.

2.1. A acção executiva tem por base um título pelo qual se determinam o seu fim e limites (arts. 4º, n.º 3, e 45º, n.º 1, do CPC). A relevância especial do título executivo deriva da segurança tida por suficiente da existência do direito substantivo cuja reparação se pretende efectivar por via da acção executiva.
O fundamento substantivo da acção executiva é, pois, a própria obrigação exequenda, constituindo o título executivo o seu instrumento documental legal de demonstração, que é, para fins executivos, condição da acção executiva e a prova legal da existência do direito de crédito, assumindo, por isso, autonomia em relação à realidade que prova.

Os títulos executivos em que o Recorrido fundou a execução têm a estrutura formal de letras de câmbio, sendo certo que a Recorrente, não se vinculou ao seu pagamento, designadamente, por via do acto cambiário de aceite. Logo, o Apelado não podia exercer o seu direito cambiário contra a mesma.
Proferida uma primeira sentença que julgou a acção improcedente, por não provada, esta Relação, por acórdão de 9 de Abril de 2004, ordenou a repetição do julgamento com vista à ampliação da matéria de facto, considerando que não seria indiferente, “para o apuramento dos limites da má fé e do fim do direito de acção, o facto de o apelado ser credor da apelada, ainda que aquele não tenha escolhido o meio processual idóneo, para exigir, coercivamente, o seu eventual direito de crédito” (10).
Porém, ampliada a matéria de facto e realizada nova audiência de julgamento, não ficou provado, designadamente que a A. tenha assumido, conjuntamente com MF, o compromisso de pagar ao R. o preço da moradia que hoje usufruem e onde residem.
Igualmente não se provou que as letras dadas à execução nasceram do acordo estabelecido com a A. em 7 de Maio de 1996, destinadas a saldar as contas entre a A., MF e o R.
Portanto, os factos, agora, em apreço são exactamente os mesmos que estiveram em causa aquando da realização do primeiro julgamento e da prolação da sentença anulada.
Não foi assim feita a prova da existência daquele crédito.
Ainda assim e com base nos mesmos factos, o Tribunal recorrido continua a entender que a acção não poderia proceder. Desta feita, a sentença recorrida defendeu que o comportamento do R./Apelado, ao intentar a acção executiva contra a A./Apelante, sem título, deve ser qualificado como um mero erro desculpável.
Para o efeito argumenta que o erro de natureza jurídica praticado consubstancia um mero erro, devendo admitir-se que o mesmo é desculpável, na mesma medida em que não só o mandatário do Réu, com evidentes conhecimentos jurídicos, nele incorreu, como ainda no mesmo lapso caiu o titular do processo de execução em causa, que poderia logo ter indeferido liminarmente a petição inicial de execução, por ilegitimidade passiva da executada, aqui A./Apelante, nos termos do art. 811-A, no 1, al, b), do CPC, evitando-se, assim, a citação da executada, ora Apelante.
Refere o acórdão proferido por esta Relação, nos presentes autos, em 29.4.2004 que, para o apuramento dos limites da má fé e do fim do direito de acção, não seria indiferente, com vista à análise do comportamento do exequente, ora R/Apelado, ao intentar a execução contra a executada, aqui A./Apelante, apurar se era credor desta, ainda que não tivesse escolhido o meio processualmente idóneo, porquanto o erro no procedimento processual escolhido não equivale à inexistência do direito de crédito que se pretendeu fazer valer.
Mas, como se sabe, não ficou provado que o R. é credor da A., sendo certo que também não se provou o contrário, isto é que a A. nada deve ao Réu.
A falta de prova de que o Réu é credor da A. será suficiente para que se entenda que existiu, por banda do Réu, um exercício abusivo do direito de acção, como defende a A./Apelante?

3. A este respeito, o acórdão desta Relação, de 29 de Abril de 2004 limita-se a referir que o caso é susceptível de ter diferente julgamento conforme se prove ou não a referida materialidade invocada na contestação, para mais adiante considerar que não é indiferente, para apuramento dos limites da má fé e do fim do direito de acção, saber se o R./Apelado é ou não credor da aqui Apelante, o que deve ser entendido no sentido de que tinha interesse para clarificar a situação, apurar se o R. é credor da A.
É que, como também aí se escreve, o erro no procedimento processual escolhido, não equivale à inexistência do direito de crédito que se pretendeu fazer valer. Caso estivesse provada a existência do crédito, certamente, a decisão ficaria facilitada no sentido da improcedência desta acção (e podia, quiçá, justificar uma condenação em litigância de má fé por banda da A.).
Certo é que tal prova não foi feita.
Porém, o facto de não se ter provado que o R. é credor da A. também não significa o contrário, isto é, que não seja credor.
Efectivamente, o acórdão em causa não adianta uma solução para o caso de não se provar ser o R. credor da A., pelo que, não sendo indiferente para apuramento dos limites da má fé, não se pode, de todo, concluir que seria decisiva a prova de tal facto: ajudava a encontrar a solução, porque melhor se compreenderia o comportamento do executado e se este teria ou não ultrapassado os limites da má fé.
Clarificando a situação dir-se-á, portanto, que continua a ser viável a apreciação dos factos que se prendem com a análise do comportamento do Réu, sem que essa apreciação ofenda os limites objectivos do caso julgado material, formado pelo acórdão prolatado em Abril de 2004, tendo presente a posição dominante, no sentido de, considerando embora o caso julgado restrito à parte dispositiva da sentença, alargar a sua força obrigatória à resolução das questões que a sentença tenha tido necessidade de decidir como premissas da conclusão firmada" (11). São as questões e excepções suscitadas e solucionadas na sentença, por imperativo legal e conexas com o direito a que se refere a pretensão do autor, que estão compreendidas na expressão “… precisos limites e termos em que julga" (art. 673º do CPC) (12).

3.1. Face a tudo quanto exposto fica cabe averiguar se estão preenchidos, no caso, os pressupostos da responsabilidade civil, nos termos do art. 483º do CCivil.
Ora, no que se reporta à ilicitude, está essencialmente em causa a violação dos direitos de outrem, isto é, a tutela de direitos absolutos, visto que a A. invoca a lesão do seu bom nome, da sua integridade psicológica, que tem subjacente os direitos de personalidade (art. 70º do CCivil). E para um acto ser ilícito, a lesão desses direitos deve resultar de factos voluntários objectivamente contrários ao direito.
Não há dúvida de que o R./Recorrido, com as letras dadas à execução, somente assinadas por MF como aceitante, não podia demandar a A. para obter dela o pagamento pretendido.
Mesmo assim pode continuar a afirmar-se que, não tendo existindo fundamento para intentar a execução contra a aqui A./Apelante, isso não significa que não possa intentar acção declarativa contra a mesma, já que o R./Apelado invoca ser credor da A. e não se provou que o não fosse.
Admite-se, é certo, que o R./Apelado, ao intentar a execução em causa, contra a aqui A./Apelada, agiu de forma temerária. De facto, estava obrigado, querendo ver declarado o seu alegado direito de crédito, a intentar acção onde a existência desse direito fosse apreciada.
Se, ao invés de intentar a acção executiva, o aqui Apelado tivesse proposto acção declarativa contra a aqui Apelante, pedindo a sua condenação no mesmo valor, acção essa que, prosseguindo até final, viesse a ser julgada improcedente, isso, só por si, não era suficiente para considerar como abusivo o direito de intentar a acção.
Portanto, assistia ao A. o direito de acção, que se integra no direito de acesso aos tribunais e é considerado como um direito subjectivo autónomo e distinto do direito material que se pretende fazer valer, donde decorre que não pode confundir-se o direito de poder provocar as actividade jurisdicional do Estado com o direito substantivo a que a parte se arroga.
Ora, não pode deixar de entender-se que o aqui Apelado, poderia ter intentado acção judicial contra a aqui Apelante, com vista a obter a condenação no pagamento do alegado crédito.
Dir-se-á que a acção declarativa e a executiva são processos distintos, sendo certo, como se referiu, que no caso da execução o que se pretende é a prestação coerciva, não se discutindo, em princípio, a existência do direito, ao contrário do que sucede na acção declarativa. Porém, muitas das vezes, as consequências de uma acção declarativa podem ser mais gravosas que as da acção executiva. E no caso concreto, verifica-se que o exequente, aqui Apelado, veio desistir do pedido contra a executada, aqui Apelante, findos os articulados.
Em abstracto há sempre um certo grau de risco em todas as acções, podendo vir a ser julgadas procedentes ou improcedentes, e nem por isso, as mais das vezes, se põe, sequer como hipótese a existência de um exercício abusivo, ilegítimo do direito de acção.

3.2. Revisitando o caso dos autos, importa ter em consideração, ainda, os contornos particulares do caso dos autos, tendo presente que o R./apelado, que se saiba, não é jurista, sendo certo que, no caso, a invocada responsabilidade deriva do facto de ter sido intentada uma acção executiva. Porém, como é sabido, para instaurar a acção executiva, o aqui Apelado constituiu, para esse efeito, advogado, supostamente com conhecimentos para delinear a melhor estratégia jurídica destinada a obter o pagamento que era pretendido pelo seu cliente.
Sendo certo que estamos perante actos praticados em representação do Réu, (art. 258º do CCivil), não pode olvidar-se, também, que estamos perante um contrato de prestação de serviços que implica, como não podia deixar de ser, a autonomia técnica do mandatário forense.
Assim, a opção pela acção executiva, dificilmente pode ser imputada directamente ao R., por se referir a conhecimentos de carácter técnico que este, em princípio, não possui, pelo que se afigura que o erro de natureza estritamente jurídica praticados nestas condições não pode ser imputável ao R., sendo certo que, não só o seu mandatário nele incorreu, como ainda no mesmo lapso caiu o titular do processo de execução em causa, que poderia logo ter indeferido liminarmente a petição inicial de execução, por ilegitimidade passiva da executada, aqui A./Apelante de acordo com o art. 811-A n.º 1 al. b) do CPC, deste modo, evitando-se a citação da mesma e as subsequentes consequências desse acto.
Por tudo isto, é de concluir, como na sentença recorrida, que estamos perante um erro de natureza jurídica, ao deduzir acção executiva contra alguém que não figura no título executivo, erro esse que consubstancia mero erro desculpável.
Tal como salienta a sentença recorrida (e a anteriormente anulada) erros desta natureza podem suceder, e, infelizmente, acontecem com alguma frequência, mas acabam por ser oportunamente resolvidos, no âmbito dos respectivos processos, de forma mais ou menos expedita.
Pode dizer-se que foi isso que aconteceu no caso concreto, já que no âmbito da acção executiva, o exequente veio desistir do pedido e a esta conduta, ao desistir do pedido na acção executiva, não pode, obviamente, ser indiferente o direito, quando aprecia a sua culpa.
Em suma, só quando se excedem, de forma manifestamente relevante, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social do direito (art. 334º do CCivil), se pode concluir pela existência de um verdadeiro abuso de direito.
Ao instaurar a acção executiva, que pressupunha a existência necessária de um título executivo, em que a aqui A./Apelante figurasse como devedora (art. 55º, nº 1 do CCivil), ter-se-á que concluir, face ao exposto, que o aqui R./Apelado não violou um dever jurídico de abstenção de intentar acção judicial.
O recurso ao direito de acção pode traduzir um abuso, caso seja infringido, conscientemente, o dever de probidade. Nessa hipótese, o autor da acção pode constituir-se na obrigação de indemnizar o demandado, com fundamento em abuso de direito, se se configurarem os demais requisitos da responsabilidade civil, o que, como vimos, não ocorre no caso dos autos.
Por último, cabe referir, sem menosprezar as sequelas da propositura da execução, que, tal como a sentença recorrida afirma, a reacção da A./Apelante se afigura algo desproporcionada e até inesperada, pese embora o natural e compreensível desgaste, inconforto ou incomodidade por ser parte numa acção judicial.
Por tudo quanto fica exposto, conclui-se que não existiu abuso de direito por parte do R./Apelado, ao instaurar a acção executiva contra a A./Apelante, nas condições consideradas.

4. Da responsabilidade da Ré mulher
No que se reporta ao pedido de condenação da Ré mulher em que a Apelante insiste, tal pedido não pode deixar de ser julgado improcedente, como ficou decidido e com os argumentos constantes da sentença recorrida.
Na verdade, a A. não imputa directamente à Ré mulher qualquer facto ilícito, alegando que os factos praticados pelo 1º Réu são ilícitos e culposos e resultam da sua actividade enquanto construtor civil, cujo rendimento serve de sustento ao seu agregado familiar e, portanto, serve de proveito comum do casal.
Porém, como também se refere na sentença recorrida, só a co-autoria ou outra forma de comparticipação (arts. 483º e 490º do C.Civil) poderiam co-responsabilizar a 2ª Ré pelos, alegados prejuízos causados pelos mesmos actos.
Mostra-se inevitável concluir que a Ré mulher tem que ser absolvida do pedido, porquanto a dívida em causa não é comunicável.
Mostrando-se, nesta parte, a decisão sindicada correctamente estruturada e devidamente fundamentada, este Tribunal considera dever seguir a fundamentação, sem necessidade de reproduzir todos os raciocínios ou explanar mais convincentes argumentos, pelo que, nos termos do art. 713º, nº 5 do CPC, remete-se para os fundamentos da decisão impugnada, que, no essencial, se acolhem.

IV – DECISÃO
Termos em que se acorda em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelos Apelantes.
Lisboa, 8 de Fevereiro de 2007.
(Fátima Galante)
(Ferreira Lopes)
(Manuel Gonçalves)
_________________________________
1 Ac. RL de Lisboa, 16-12-03 (Arnaldo Silva), www.dgsi.pt/jtrl.
2 Ary de Almeida Elias da Costa e outros, Cód. Proc. Civil Anotado e Comentado, Vol. 1.º, Athena, Porto, 1972, págs. 64 e segs.
3 J. A. Reis, Processo de Execução , Vol. I, 2.ª Ed, Coimbra Editora, 1982, págs. 15 e segs. e J. Rodrigues Bastos, Notas ao Cód. Proc. Civil, Vol. I, 3.ª Ed., Lisboa – 1999, pág. 45.
4 Menezes Cordeiro, Litigância de Má Fé, Abuso do Direito de Acção e Culpa In Agendo, pág. 13.
5 Pires de Lima/Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. I, 3ª ed., págs. 296 e 297.
6 Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 2ª ed., págs. 423 e 424.
7 Neste sentido Menezes Cordeiro, “Litigância de Má Fé, Abuso do Direito de Acção e Culpa In Agendo, e Ac. RP de 13 de Julho de 2007, Deolinda Maria Fazendas Borges Varão; em sentido contrário, vide Acs. RL de 16-12-03 Arnaldo Silva e de 9 de Fevereiro de 2006 Manuel José Aguiar Pereira.
8 Menezes Cordeiro, Litigância de Má Fé, Abuso do Direito de Acção e Culpa “In Agendo”, pags. 138/139.
9 Menezes Cordeiro, Litigância de Má Fé, Abuso do Direito de Acção e Culpa “In Agendo”, pág. 145
10 Cfr. acórdão proferido em 29/4/2004, a fls. 549/553 dos autos.
11 Rodrigues de Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, vol. III, Lisboa, 1972, pag. 253.
12 Entre outros vide Acs. STJ de 27/01/2004, (Silva Salazar) e de 5 de Maio de 2005 (Araújo Barros), www.dgsi.pt/jstj