Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1407/11.3TJLSB.L1-7
Relator: ORLANDO NASCIMENTO
Descritores: ARRENDAMENTO URBANO
DECLARAÇÃO NEGOCIAL
FALTA DE CONSCIÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/10/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. Estando provado nos autos que a arrendatária foi vítima, em 1989, de hemorragia cerebral por rutura de aneurisma, o que determinou a respetiva reforma por invalidez em 1993 e afetou a sua capacidade de “compreensão, análise, interpretação, opção e decisão características do síndroma frontal impeditivas da sua responsabilização em opções e atos complexos ou elaborados”, deve declarar-se de nenhum efeito, por falta de consciência da declaração, nos termos do disposto no art.º 246.º do C. Civil, a aposição da sua assinatura, em 30/03/2011, num denominado “acordo de revogação de contrato de arrendamento urbano”.
2. Estando tais factos indiciados nos autos, deve nestes ser determinada a intervenção do Ministério Público, para efeitos de suprimento dessa verosimilhante incapacidade, uma vez que, nos termos do disposto no art.º 3.º, n.º 1, al. a) do Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei n.º 47/86, de 15 de outubro, é a esta Magistratura que compete a representação dos incapazes.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes que constituem o Tribunal da Relação de Lisboa.


1. RELATÓRIO.
Maria Júlia … propôs contra Emília Vieira …e marido, Victor …, esta ação declarativa constitutiva, sumária, pedindo que se declare nulo um denominado “acordo de revogação de contrato de arrendamento urbano”, relativo ao imóvel em que habita, por ausência de vontade da sua parte, em virtude de incapacidade física e mental de que padece, e ainda pelos artifícios e falsas promessas que os RR, donos do imóvel, e seus representantes, aproveitando-se da sua fragilidade, lhe fizeram.
Citados, contestaram os RR, impugnando os factos articulados pela A e pedindo a sua condenação como litigante de má fé, por alterar a verdade dos factos, e a absolvição do pedido. 
Realizada audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença, julgando a ação improcedente e absolvendo os RR do pedido.
Inconformada com essa decisão, a R dela interpôs recurso, recebido como apelação, pedindo a sua revogação e a procedência da ação, formulando as seguintes conclusões:
a) Provado nos autos – e, designadamente, quer através de prova documental, quer pela Matéria Assente, ou por via dos Factos dados com o Provados relativamente à Base Instrutória – que a ora Recorrente, arrendatária:
- Senhora de 74 anos de idade, vivendo sozinha e sem familiares;
- residia no imóvel em causa há cerca de 70 anos;
- tendo sido reformada por invalidez permanente desde 1993;
- por força de hemorragia cerebral, em consequência de rutura de aneurisma;
- o que lhe determinou a falta de compreensão, análise e interpretação na decisão, tudo impeditivo da sua responsabilidade em opções e atos complexos ou elaborados.
b) Factos, aliás, considerados na Sentença sob recurso.
c) A qual, ao decidir pela improcedência da ação, incorreu na nulidade prevista no n.º 1, alínea c), do art.º 615.º do Código de Processo Civil.
d) Decorre, ainda, dos Factos Provados que os Recorridos residiam, paredes-meias, no mesmo imóvel da arrendatária, ora Recorrente, (2º e rés – do - chão e 1º andares respetivamente) – cfr. moradas no doc. n.º 8 de fls. 11 e 12.
e) O que, face aos factos provados, implica, notoriamente, o seu completo conhecimento sobre a estado de incapacidade da Recorrente.
f) E até levou – facto também, considerado como provado na Sentença recorrida - que o “ Acordo de Revogação do Contrato de Arrendamento” (doc. de fls. 11 e 12) , só viesse a ser entregue à ora Recorrente “ cerca de dois meses depois da data da respetiva assinatura” !
g) O conhecimento dos Recorridos acerca da incapacidade da ora Recorrente, se manifestara e se evidencia na displicência com que o assunto foi tratado, tendo em vista a falta de assinatura de uma das partes contratantes (o Recorrido marido) constante do documento de fls. 11/12, entregue à ora Recorrente nas condições supra enunciadas.
h) O que, tudo, só por si, justifica a invocada nulidade prevista no art.º 615º n.º 1 alínea c) do Código de Processo Civil.
i) Todos os factos descritos são assim, nitidamente contraditórios com a Decisão recorrida, bem como a invocação inadequada do art.º 257.º do Código Civil, que na mesma Sentença se faz.

Os apelados apresentaram contra-alegações, pugnando pela confirmação da sentença recorrida.


2. FUNDAMENTAÇÃO.

A) OS FACTOS.

A. 1. O Tribunal a quo julgou provados os seguintes factos:
1) A A nasceu no dia 10 de abril de 1938, neta materna de Francisco José … (A) da Matéria Assente).
2) O prédio urbano sito na Rua da Junqueira, n.º …, em Lisboa, inscrito sob o artigo …º, na matriz predial urbana da freguesia de Santa Maria de Belém, concelho de Lisboa, está descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número …, da mesma freguesia e concelho – vd. certidão de fls. 133 e ss.
3) Por averbamento de 6-04-1976, a aquisição do prédio urbano referido foi registada a favor de António S.. e mulher, Leopoldina …., por sucessão testamentária de Maria Domingas … – vd. certidão de fls. 133 e ss.
4) Por averbamento de 28-06-1999, a aquisição do prédio urbano referido foi registada a favor de Maria Fernanda …, por sucessão testamentária de Leopoldina … – vd. certidão de fls. 133 e ss.
5) Por averbamento de 20-04-2009, a aquisição do prédio urbano referido foi registada a favor dos Réus, por legado de Maria Fernanda … – vd. certidão de fls. 133 e ss.
6) Em 30-03-2011, a A era arrendatária dos rés do chão e primeiro andar do prédio urbano sito na Rua da Junqueira, n.º …, em Lisboa, inscrito sob o artigo …, na matriz predial urbana da freguesia de Santa Maria de Belém, pelo qual pagava a renda mensal de € 12,35 (B) da Matéria Assente).
7) No dia 30-03-2011, os RR como primeiros outorgantes, e a A., como segunda outorgante, assinaram o documento de fls. 11 e 12, que tem como título “Acordo de Revogação de Contrato de Arrendamento Urbano – Fim Habitacional”, com o seguinte teor:
“CLÁUSULA PRIMEIRA
1. Os Primeiros e a Segunda Outorgante declaram revogar por mútuo acordo o Contrato de Arrendamento Para Fim Habitacional, referente ao rés do chão e 1º andar do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Rua da Junqueira, n.º 241, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o art. 55º da freguesia de Santa Maria de Belém.
2. A Segunda Outorgante obriga-se a deixar o locado livre e devoluto de pessoas e bens no prazo de um mês a contar da data da assinatura do presente acordo de revogação.
CLÁUSULA SEGUNDA
O presente Acordo de Revogação de Contrato de Arrendamento produz efeitos a partir da data da sua assinatura, momento em que se considera para todos os legais efeitos terem cessado todos e quaisquer direitos, deveres e garantias das partes, emergentes do referido contrato, devido a extinção do mesmo por vontade das partes” (C) da Matéria Assente).
8) Por averbamento de 27-05-2011, a aquisição do prédio urbano referido foi registada a favor de Valor …, S.A., por permuta dos Réus – vd. certidão de fls. 133 e ss.
9) A A enviou aos RR., que a receberam, carta datada de 16-06-2011, com o seguinte teor:
“Assunto: Acordo de revogação de contrato de arrendamento urbano – fim habitacional Rua da Junqueira, n.º … – r/c e 1º andar – Lisboa.
Ex.mos Senhores,
Serve a presente para informar V.Ex.ªs que, no denominado Acordo de Revogação em título, fui levada a subscrever uma declaração que, de todo, não corresponde à minha vontade real, tendo ocorrido manifesto erro da minha parte.
Aliás, devo acrescentar que para a obtenção da minha assinatura em tal documento, fui, também, sugestionada e vítima de artifícios fraudulentos por parte de representantes de uma empresa mediadora imobiliária, que identificarei em sede própria a que irei recorrer, os quais agiram em vossa representação.
Assim, queiram considerar nulo e de nenhum efeito o referido “Acordo de Revogação” com as inerentes consequências legais” (D) da Matéria Assente).
Mais se provou que:
10) A A reside há cerca de setenta anos no imóvel referido em 6) (ponto 1º da Base Instrutória).
11) Em data não concretamente apurada do primeiro trimestre do mês de março de 2011, a R. propôs à A. que esta lhe entregasse o locado, e se mudasse para outro local (ponto 2º da Base Instrutória).
12) Sofia Cabral…, em nome e por indicação da Ré, propôs à A. que ela escolhesse uma fração para arrendar cuja renda, se e no que excedesse € 400,00 por mês, seria suportada pelos Réus, durante dois anos (ponto 3º da Base Instrutória).
13) Os RR afirmaram à A. que suportariam os encargos com a transferência do recheio da A. para o novo locado (ponto 4º da Base Instrutória).
14) Sofia Cabral…afirmou à A. que promoveria a seleção e escolha de um fogo, para onde a mesma A se pudesse mudar (ponto 6º da Base Instrutória).
15) Na sequência do referido em 11º a 14º, a A. assinou o documento referido em 7) (ponto 7º da Base Instrutória).
16) Foi entregue à A. um exemplar do documento referido em 7), cerca de dois meses depois da data da respetiva assinatura (ponto 9º da Base Instrutória).
17) Sofia Cabral …, em nome e por indicação da Ré, propôs à A. a visita a algumas casas na zona, referindo que as rendas de tais fogos seriam suportadas pela A. (ponto 10º da Base Instrutória).
18) A A vive sozinha e foi vítima, em 1989, de hemorragia cerebral por rutura de aneurisma, o que determinou a respetiva reforma por invalidez em 1993 e afetou a sua capacidade de “compreensão, análise, interpretação, opção e decisão características do síndroma frontal impeditivas da sua responsabilização em opções e atos complexos ou elaborados” (pontos 12º e 13º da Base Instrutória).

A. 2. O mesmo Tribunal a quo julgou não provados os seguintes factos:

- Que os RR., por si ou por intermédio de outrem, tenham dito à A. que pagariam a renda mensal do locado para o qual esta escolhesse ir morar (ponto 3º da Base Instrutória).
- Que a partir da data referida em C), os RR passaram a afirmar que o fogo a escolher, a renda respetiva e os encargos com a transferência do recheio, seriam problema exclusivo da A. (ponto 8º da Base Instrutória).
- Que pelos fogos que os representantes dos Réus apresentaram para eventual e futuro arrendamento era pedida renda mensal nunca inferior a € 600,00 (ponto 11º da Base Instrutória).


B) O DIREITO APLICÁVEL.
O conhecimento deste Tribunal de 2.ª instância, quanto à matéria dos autos e quanto ao objeto do recurso, é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente como, aliás, dispõem os art.ºs 635.º, n.º 2 e 639.º 1 e 2 do C. P. Civil, sem prejuízo do disposto no art.º 608.º, n.º 2 do C. P. Civil (questões cujo conhecimento fique prejudicado pela solução dada a outras e questões de conhecimento oficioso).
Atentas as conclusões da apelação, supra descritas, a questão submetida ao conhecimento deste Tribunal pela apelante consiste, tão só, em saber se a sentença, ao decidir pela improcedência da ação, incorreu na nulidade prevista no art.º 615.º, n.º 1, al. c), do C. P. Civil (conclusão c)), uma vez que os factos descritos são nitidamente contraditórios com a decisão, sendo inadequada a invocação do disposto no art.º 257.º do C. Civil (conclusão i)).
Vejamos.
I. O conhecimento da apelação.
A questão da apelação, tal como suscitada pela apelante e agora descrita nesses precisos termos, a saber, se a sentença, ao decidir pela improcedência da ação, incorreu na nulidade prevista no art.º 615.º, n.º 1, al. c), do C. P. Civil, uma vez que os factos descritos são nitidamente contraditórios com a decisão, sendo inadequada a invocação do disposto no art.º 257.º do C. Civil, apresenta uma tríplice vertente, em que a primeira consiste na discordância com a improcedência da ação e na defesa da sua procedência – para a apelante a ação deveria ter sido julgada procedente – a segunda consiste na imputação de uma nulidade à sentença – para a apelante a sentença incorre em contradição entre os factos/fundamento e a decisão – e a terceira consiste na discordância de subsunção jurídica – a sentença reconduziu os factos ao disposto no art.º 257.º do C. Civil, sob a epígrafe “incapacidade acidental”, do que a apelante discorda.
Ora, não obstante tratar-se de questões suscetíveis de individualização, como acabamos de fazer, as mesmas encontram-se em estreita conexão e como tal as abordaremos, embora na sequência que lhes é própria, com inicio na vertente formal (a nulidade da sentença), prosseguindo em seguida com a apreciação de mérito, da procedência ou improcedência da ação, pela aplicação do direito à matéria de facto provada.
I. 1. Dispõe o art.º 615.º, n.º 1, al. c) do C. P. Civil, que:
É nula a sentença quando…
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
Ao imputar esta nulidade à sentença reporta-se a apelante à primeira parte desta previsão, ou seja, à oposição entre os fundamentos e a decisão.
Esta nulidade, antes prevista no art.º 668.º, n.º 1, al. c), do C. P. Civil, ocorre quando a decisão e os seus fundamentos, de facto e de direito, ao invés de se encontrarem numa sequência lógico-jurídica, se encontram em oposição, ou seja, quando aqueles fundamentos conduziam necessariamente a uma decisão e o juiz proferiu outra.
Este vício, que quebra a sequência lógica e racional entre o raciocínio fundamentador e a decisão que se lhe segue não abrange o erro de julgamento[1].
Trata-se de um “…vicio lógico na construção da sentença”, pois, querendo a lei processual que o juiz justifique a sentença, os fundamentos que este invoca para a sua decisão “…conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto[2].
Na síntese do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/02/1997[3], existe tal nulidade: “quando o raciocínio do Juiz aponta num sentido e no entanto decide em sentido oposto ou pelo menos em sentido diferente”.
Tendo em atenção esta configuração da nulidade invocada, podemos, desde já, afirmar que a mesma não ocorre nos autos, como tal, aproximando-se a questão do erro de julgamento, para o qual apontam as restantes vertentes da questão acima identificadas que, por isso, passamos a apreciar.
O cerne da questão suscitada pela apelante consiste, afinal, em saber se, perante os factos provados, a ação deve proceder, como ela pretende, ou improceder, como decidido pelo tribunal a quo.
O pedido e a causa de pedir da ação são constituídos, grosso modo, pelo pedido de declaração de nulidade de um denominado “acordo de revogação de contrato de arrendamento urbano”, relativo a um imóvel em que a apelante habita, por ausência de vontade da sua parte na outorga desse acordo, em virtude de incapacidade física e mental de que padece, exponenciada pelos artifícios e falsas promessas que os apelados, donos do imóvel na data desse ato, e seus representantes, aproveitando-se da sua fragilidade, lhe fizeram.
Ora, relativamente a uma tal fundamentação desse pedido, apurou-se em audiência de julgamento que a apelada: “…foi vítima, em 1989, de hemorragia cerebral por rutura de aneurisma, o que determinou a respetiva reforma por invalidez em 1993 e afetou a sua capacidade de “compreensão, análise, interpretação, opção e decisão características do síndroma frontal impeditivas da sua responsabilização em opções e atos complexos ou elaborados” (n.º 18 da matéria de facto).
Este facto, que nos seus próprios e exatos termos contém, afinal, três factos concretos, conexos mas distintos, diz-nos que:
1. Em 1989 a apelante sofreu uma hemorragia cerebral por rutura de aneurisma;
2. Essa lesão física afetou a sua capacidade de “compreensão, análise, interpretação, opção e decisão características do síndroma frontal…”;
3. Essa afetação da sua capacidade impede a apelante de agir com conhecimento e volição (…sua responsabilização…) em opções e atos complexos ou elaborados.
Em virtude desta incapacidade pessoal, a apelante foi, aliás, reformada por invalidez, o que constitui um quarto facto ainda, embora de natureza circunstancial e instrumental, também contido no n.º 18 da matéria de facto.
O tribunal a quo estruturou a sua decisão absolutória, no que respeita à aplicação do direito, no instituto da incapacidade acidental, previsto no art.º 257.º do C. Civil, concluindo que não estava reunida a totalidade dos seus pressupostos.
Ante a factualidade descrita, não restando dúvidas que a apelante se encontrava e encontra numa situação de incapacidade de agir, com conhecimento e vontade, em opções e atos complexos ou elaborados, não vislumbramos fundamento fáctico razoável para a invocada acidentalidade.
A incapacidade da apelante é permanente e não acidental.
O acordo em causa nos autos respeita à casa de habitação da apelante, que vive sozinha (n.º 18 da matéria de facto) de que é arrendatária, onde ela habita e sempre habitou desde há setenta anos (n.º 10 da matéria de facto), sendo certo que tem agora 76 anos (n.º 1 da matéria de facto).
O direito à habitação é direito tão importante no nosso ordenamento jurídico que tem assento constitucional direto, estando consagrado no art.º 65.º da Constituição da Republica Portuguesa.
Não obstante a situação pessoal da apelante e a importância nela própria, com a sua idade, do arrendamento habitacional em causa, esta aparece a subscrever um dito “acordo”, em que abdica do seu direito de arrendatária, em troca de “nada”, ou seja, sem qualquer contra prestação contratual, colocando-se ou sendo colocada, como melhor diremos, na situação de perder a casa onde habita e sem perspetivas de obtenção de nova habitação.
Trata-se, sem dúvida, de um ato complexo, importante, elaborado, que, de tão sem razão, nem este Tribunal da Relação o consegue perceber, nem os apelados o explicam na sua contestação, onde exararam uma defesa evasiva, comprometida e lateralizante, incapazes de enfrentar a “acusação” da autora quanto aos termos concretos do apelidado “acordo”, incluindo a sua ausência de vontade, cujo instrumento ficou na sua exclusiva posse, como se de um “troféu”, que não de um contrato, se tratasse (n.º 16 da matéria de facto).
Este complexo, rebuscado e tão importante ato exige uma capacidade de raciocínio e de resistência a vozes macias e malévolas, de ponderação, que a apelante não tem, por incapacidade, estando essa falta de vontade comprovada na assinatura de um “acordo”, só no interesse dos apelados, e tão relevante na sua vida pessoal que a deixa à mercê de outrem, o que é bem demonstrativo da incapacidade para gerir os seus atos.
O ato constante do n.º 15 da matéria de facto, a saber, a assinatura de um tal “acordo”, por falta de capacidade da apelante para o praticar, não tem, pois, qualquer valor, como estabelecido pelo art.º 246.º do C. Civil, segundo o qual: “A declaração não produz qualquer efeito, se o declarante não tiver a consciência de fazer uma declaração negocial…”.
A ausência de consciência da apelante, resultante da sua incapacidade, está claramente demonstrada nos autos.
Acresce que essa situação de incapacidade por parte da apelante foi ainda agravada pelos atos a ela dirigida pelos apelados e que, como consta sob o n.º 15 da matéria de facto, conduziram à assinatura do apelidado “acordo”.
Esses atos são os descritos sob os n.ºs 11) a 14) e 17) da matéria de facto supra, a saber:
11) … a R. propôs à A. que esta lhe entregasse o locado, e se mudasse para outro local…
12) Sofia Cabral …, em nome e por indicação da Ré, propôs à A. que ela escolhesse uma fração para arrendar cuja renda, se e no que excedesse € 400,00 por mês, seria suportada pelos Réus, durante dois anos …
13) Os RR afirmaram à A. que suportariam os encargos com a transferência do recheio da A. para o novo locado...
14) Sofia Cabral … afirmou à A. que promoveria a seleção e escolha de um fogo, para onde a mesma A se pudesse mudar…
17) Sofia Cabral …, em nome e por indicação da Ré, propôs à A. a visita a algumas casas na zona, referindo que as rendas de tais fogos seriam suportadas pela A.
Tais atos foram empreendidos pelos apelados, por si próprios e através de terceiros, constituindo autênticas manobras, dirigidas no seu próprio interesse, sem qualquer contrapartida para a apelante e a que esta se submeteu, passivamente, atenta a sua incapacidade.
Essas manobras, não constituindo as sugestões ou artifícios usuais a que se reporta o art.º 253.º, n.º 2, do C. Civil e que, nesta matéria de acordos de rescisão de contratos de arrendamento habitacional sempre deverão apresentar quaisquer vantagens também para o arrendatário, constituem não só um aproveitamento doloso da incapacidade da apelante (art.º 253.º, n.º 1, do C. Civil), mas também um agravar da sua objetiva incapacidade.
A situação da apelante é de tal modo frágil, do ponto de vista da cidadania e do ponto de vista do cidadão idoso, logo mais desprotegido, que, pelo menos na primeira vez que este processo foi presente ao juiz, deveria ter determinado a intervenção do Ministério Público nos autos, para efeitos de suprimento dessa verosimilhante incapacidade, em cumprimento do disposto no art.º 3.º, n.º 1, al. a) do Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei n.º 47/86, de 15 de outubro, uma vez que, sem prejuízo da ação pragmática da advocacia portuguesa em muitos semelhantes casos, é a esta Magistratura que compete a defesa dos interesses dos incapazes.
Uma tal intervenção apresentaria, desde logo, duas vantagens para a boa administração da justiça, sendo uma a proteção da incapaz pela entidade com tais atribuições e a outra a intervenção de perito na matéria que obnubilasse as dificuldades de subsunção jurídica dos factos apurados, patentes nos normativos invocados no art.º 23.º da petição, na decisão recorrida e ainda nas alegações e contra-alegações da apelação.
Essa intervenção não foi suscitada até este momento, mas não poderemos deixar de o fazer agora, em sede de sindicância da decisão por nós proferida e da defesa dos interesses da apelante, por ela não acautelados, devendo ordenar-se a abertura de vista ao Ministério Público para o efeito que for tido por conveniente.
Procede, pois, a apelação devendo declarar-se de nenhum efeito, por falta de consciência da declaração, nos termos do disposto no art.º 246.º do C. Civil, a aposição da assinatura a que se reporta o n.º 15 da matéria de facto, revogar-se a sentença recorrida e julgar-se a ação procedente.

C) EM CONCLUSÃO.
 1. Estando provado nos autos que a arrendatária foi vítima, em 1989, de hemorragia cerebral por rutura de aneurisma, o que determinou a respetiva reforma por invalidez em 1993 e afetou a sua capacidade de “compreensão, análise, interpretação, opção e decisão características do síndroma frontal impeditivas da sua responsabilização em opções e atos complexos ou elaborados”, deve declarar-se de nenhum efeito, por falta de consciência da declaração, nos termos do disposto no art.º 246.º do C. Civil, a aposição da sua assinatura, em 30/03/2011, num denominado “acordo de revogação de contrato de arrendamento urbano”.
2. Estando tais factos indiciados nos autos, deve nestes ser determinada a intervenção do Ministério Público, para efeitos de suprimento dessa verosimilhante incapacidade, uma vez que, nos termos do disposto no art.º 3.º, n.º 1, al. a) do Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei n.º 47/86, de 15 de outubro, é a esta Magistratura que compete a representação dos incapazes.

3. DECISÃO.
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida, declarando-se de nenhum efeito, por falta de consciência da declaração, nos termos do disposto no art.º 246.º do C. Civil, a aposição da assinatura a que se reporta o n.º 15 da matéria de facto e julgando-se a ação procedente.

Custas pelos apelados.

Recebidos os autos na primeira instância:
- Será aberta vista ao Ministério Público, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 3.º, n.º 1, al. a) do Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei n.º 47/86, de 15 de outubro, atenta a incapacidade da apelante;
- Será enviada certidão deste acórdão, com nota de trânsito, ao tribunal de execução e processo identificado a fls. 105 a 109 destes autos;
- Será enviada certidão ao Ministério Público junto do tribunal de execução identificado a fls. 105 a 109.

Lisboa, 10 de abril de 2014.

Orlando Nascimento

Dina Monteiro

Luís Espírito Santo

[1] Cfr. O Ac. S. T. J. de 21/05/1998, in Col. J. II, pág. 95.
[2] Prof. José A. Reis, C. P. Civil anotado, vol. V, pág. 141.
[3] BMJ, 464, pág. 525