Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
19741/12.3T2SNT.L1-4
Relator: ALVES DUARTE
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
DIREITOS INDISPONÍVEIS
CONVERSÃO DA ITA EM IPA PELO DECURSO DO TEMPO
DECLARAÇÃO DA ALTA
SUBSÍDIO DE ELEVADA INCAPACIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/14/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário: I- A conversão da ITA em IPA por virtude do decurso do tempo previsto no art.º 22.º da LAT confere ao sinistrado os mesmos direitos que resultariam da declaração da alta, quer porque a lei não distingue entre a alta convertida e a declarada, quer porque essa é a ratio legis da norma (que determina que a conversão seja da natureza da incapacidade, de temporária para permanente e, não, do grau da incapacidade.Can
II- Em consequência, assiste-lhe o direito a receber da seguradora um subsídio por situação de elevada incapacidade permanente (art.os 23.º, al. b) e 47.º, n.º 1, al. d) da LAT).
III- Os acidentes de trabalho respeitam a matéria subtraída à disponibilidade das partes (art.º 12.º da LAT); por isso, deve ser oficiosamente atribuída ao sinistrado a quantia que desembolsou com o seu transporte a juízo e que, tendo pedido na tentativa de conciliação, a seguradora aceitou pagar mas a sentença omitiu decisão sobre essa pretensão (art.os 23.º, al. a) e 25.º, n.º 1, al. f) da LAT, 608.º, n.º 2 do CPC e 74.º do CPT).
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


I-Relatório:


AA Companhia de Seguros, S. A. apelou da sentença que a condenou a pagar ao sinistrado BB a pensão anual e vitalícia no montante de € 9.186,11, acrescida de 10% da retribuição, referente à menor a cargo, no montante € 1.148,27, devidas desde o dia 13-01-2014, com as devidas actualizações, sem prejuízo da dedução de eventuais indemnizações pagas, por incapacidades temporárias, referentes a períodos posteriores ao dia 13-01-2014 e o de subsidio por elevada incapacidade no montante de € 5.533,68 acrescido de juros de mora desde a data da alta até integral pagamento, pedindo que a sentença proferida seja revogada na parte que condena a recorrente a pagar ao sinistrado o subsídio de elevada incapacidade, culminando as alegações com as seguintes conclusões:
A-A incapacidade permanente fixada, por força da conversão da incapacidade temporária nos termos do art.º 22 LAT, por não se tratar de uma incapacidade definitiva e real, mas tão só uma ficção legislativa que visa salvaguardar o sinistrado do excessivo protelamento do período de doença e do consequente constrangimento financeiro que tal acarreta, não confere o direito ao subsídio de elevada incapacidade previsto no art.º 67.º, n.º 1 do mesmo diploma legal;
B-Termos em que deverá a douta sentença recorrida ser revogada na parte que condena a recorrente a pagar ao sinistrado o subsídio de elevada incapacidade, com o que se fará a costumada Justiça!

Para tal notificado, o sinistrado contra-alegou, sustentando a manutenção da sentença recorrida, finalizando com as seguintes conclusões:

1.A R tenta confundir alta ficcionada com incapacidade temporária e constrói o conceito de. alta ficcionada como se fosse temporária versus alta definitiva.
2.Não há alta temporária, a alta é ficcionada, mas é definitiva, aliás tão definitiva como qualquer alta.
3.Infelizmente não é temporária porque como decorre dos autos o sinistrado vai ter que fazer fisioterapia e tratamentos até ao fim da vida.
4.Depois, porque dentro da certeza jurídica a situação do sinistrado juridicamente está definida como IPA.
5.Ou seja, não estamos a tratar de uma IT, mas sim de uma IP, neste caso uma IPA, que pode ser certamente alterada por requerimento de revisão da incapacidade, mas só por essa via.
6.Ou seja, a pensão do sinistrado é tão certa como qualquer outra pensão e é devida até ser feito requerimento de revisão, que bom seria fosse feito brevemente, pois era sinal que o sinistrado estava melhor.
7.Sendo a situação do sinistrado a mais grave, ou seja está há anos em tratamento e vai continuar anos em tratamento ... até ao fim da vida, é razoável que não tenha “constrangimentos” e não seja preterido e receba o valor de subsídio devido nos termos do artigo 67.º.
8.Sendo a situação do sinistrado a mais grave, ou seja está há anos em tratamento e vai continuar anos em tratamento ... até ao fim da vida, é razoável que não seja prejudicado face aos outros sinistrados. É este o ratio legis...
9.De facto, a interpenetração do artigo 67.º proposta pela R vai prejudicar aqueles sinistrados que pior estão, pois estão há longo tempo em tratamento, não podem trabalhar e por isso, por lhes estar a ser prestado o tratamento clínico necessário, que excede o máximo de 30 meses, a lei impõe que seja operada a conversão da incapacidade temporária em permanente com IPA.
10.Esta conversão é uma imposição ope legis a determinar pelo tribunal e sem a necessidade de junta medica e que visa beneficiar e não prejudicar o sinistrado.
11.Acresce que, na nosso modesta opinião e salvo melhor entendimento, a conclusão da R não tem qualquer fundamento na letra da lei e vai contra a ratio legis.

Admitido o recurso na 1.ª Instância, nesta Relação de Lisboa o relator proferiu despacho a conhecer das questões que pudessem obstar ao conhecimento do recurso, concluindo pela sua não verificação[1] e determinou que os autos fossem com vista ao Ministério Público,[2] o que foi feito tendo nessa sequência o Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto proferido o seguinte parecer:

Não parece que a situação mereça tratamento jurídico diferenciado conforme haja ou não cura clínica definitiva. Não é apenas em contexto laboral que estas situações ocorrem. Inúmeras vezes os tratamentos ficam longe do seu termo até sobrevir o momento em que o Estado é chamado a pronunciar-se sobre a responsabilidade de quem de direito. E não só na instância civil; mesmo na penal. Daí a necessária distinção entre cura clínica real ou in natura e legal, nas distintas semânticas forense e médica.

Quanto a saldo para o futuro, como argumenta a contra-alegação, bem sabido é que, a haver melhoras, é sempre possível a revisão.

Concluindo.
Não se vislumbra que a argumentação do recurso deva prevalecer, porquanto onde a lei não distingue também a jurisdição não deve distinguir.

Colhidos os vistos,[3] cumpre agora apreciar o mérito do recurso, cujo objecto, como pacificamente é considerado, é delimitado pelas conclusões formuladas pela recorrente, ainda que sem prejuízo de se ter que atender às questões que o tribunal conhece ex officio.[4] Assim, importa saber se:
• Em caso de conversão da IT em IP decorrente do decurso do prazo de 18 meses, prorrogado por igual período pelo Ministério Público, sobre a data do acidente de trabalho sem que ao sinistrado tivesse sido alta, não lhe assiste direito a perceber do responsável um subsídio de elevada incapacidade.
***

II-Fundamentos.

1. Factos julgados provados:
1.No dia 12/07/2011, em Sintra, quando exercia a sua profissão de vigilante, por conta de CC, S. A. o(a) sinistrado(a) sofreu um acidente o qual consistiu em acidente de viação.
2.Em consequência de tal acidente o Sinistrado sofreu fractura do fémur esquerdo ao nível do 1/3 médio complicada de pseudartrose e osteomilite não consolidada.
3.As lesões e sequelas descritas nos autos, que lhe determinaram que o Sinistrado se encontrasse numa situação de ITA desde o acidente.
4.Encontrando-se ainda em tratamentos.
5. Foi-lhe dada alta ao Sinistrado a 12-03-2015 nos termos do art.º 22.º, n.º 1 da LAT.
6.À data do acidente, o(a) sinistrado(a) auferia a remuneração anual de € 11.482,64 (641,93 x 14 - sal. Base + 125,18 x 11 - subsídio de alimentação + 93,22 x 12 - outras retribuições).
7.A entidade patronal tinha a responsabilidade emergente do acidente de trabalho transferida para a(s) seguradora(s) supra referida.
8.O Sinistrado recebeu as indemnizações até à data da alta.
9.O Sinistrado é pai da menor DD, nascida a 21 de Março de 2014.
10.O Sinistrado despendeu € 30,00 em transportes, com a deslocação a este Tribunal.
11.Por despacho de fls. 9,18, 25, o Ministério Publico deferiu a prorrogação do prazo para converter a incapacidade temporária em definitiva.

3.-O direito.

3.1.-O sinistrado sofreu o acidente de trabalho no dia 12-07-2011 e, encontrando-se ainda em tratamento, foi-lhe dada alta no dia 12-03-2015, em obediência ao disposto no art.º 22.º, n.º 1 da Lei dos Acidentes de Trabalho.[5]

De acordo com esse normativo, (1) "a incapacidade temporária converte-se em permanente decorridos 18 meses consecutivos, devendo o perito médico do tribunal reavaliar o respectivo grau de incapacidade" e (2) "verificando-se que ao sinistrado está a ser prestado o tratamento clínico necessário, o Ministério Público pode prorrogar o prazo fixado no número anterior, até ao máximo de 30 meses, a requerimento da entidade responsável e ou do sinistrado".

Destarte, considerando, por um lado, que o acidente de trabalho sofrido pelo sinistrado ocorreu no dia 12-07-2011 e que no dia 12-03-2015 o mesmo ainda se encontrava a receber tratamento e, por outro, que as lesões e sequelas descritas nos autos, determinaram que o se encontrasse numa situação de ITA desde o acidente, naturalmente que a incapacidade temporária absoluta para o trabalho se teria que converter em incapacidade temporária absoluta para o trabalho, como efectivamente foi decidido. E não sendo embora essa conversão automática, pelo menos quanto ao respectivo grau pois que "decorridos os prazos a que se alude no referido normativo sem que o sinistrado esteja curado, deve este ser submetido a exame pelo perito médico do Tribunal para que este reavalie o grau de incapacidade que o afecta, convertendo-se, então sim, a incapacidade resultante desta reavaliação médica em incapacidade permanente",[6] a verdade é que uma vez operada a conversão a lei não distingue os seus dos resultantes da incapacidade permanente absoluta para o trabalho resultante do normal decurso do processo, entre os quais se conta o direito à prestação de um subsídio por situação de elevada incapacidade permanente. E como bem sabemos, ubi lex non distinguit, nec nos distinguere debemus nec nos distinguire debemus.[7] Por outro lado, "também a ratio legis aponta no mesmo sentido. Se, como se afirmou, o que se converte é a natureza da incapacidade (de temporária para permanente), e não propriamente o grau da incapacidade (embora este possa coincidir em ambas as naturezas de incapacidade), e se feita a conversão da natureza da incapacidade e fixado o grau desta, qualquer posterior alteração terá que ser efectuada através do incidente de revisão da pensão, tal significa que não estamos perante uma incapacidade 'ficcionada' ou provisória mas sim uma incapacidade real, ainda que a mesma, tal como qualquer incapacidade permanente, possa vir a ser alterada através do incidente de revisão (desde que, naturalmente, para tanto se verifiquem os respectivos pressupostos).[8]

Daí que em conclusão se diga, com Carlos Alegre, em Regime Jurídico dos Acidentes de Trabalho e das Doenças Profissionais, Almedina, 2001, 2.ª edição, 2.ª reimpressão, página 225, que a conversão da incapacidade temporária em permanente produz "os mesmos efeitos da determinação da alta" e, por conseguinte, tendo o sinistrado direito a que se estabelecesse em seu benefício um subsídio por situação de elevada incapacidade permanente, naturalmente que o recurso não pode proceder, devendo, ao invés, confirmar-se a sentença recorrida.

3.2.-Por outro lado, o art.º 23.º, alínea a) da Lei dos Acidentes de Trabalho estabelece que "o direito à reparação compreende as seguintes prestações: a) Em espécie - prestações de natureza médica, cirúrgica, farmacêutica, hospitalar e quaisquer outras, seja qual for a sua forma, desde que necessárias e adequadas ao restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado e à sua recuperação para a vida activa". E o art.º 25.º, n.º 1, alínea f) esclarece que "as prestações em espécie previstas na alínea a) do artigo 23.º compreendem: (…) Os transportes para observação, tratamento ou comparência a actos judiciais". Sendo certo que os direitos decorrentes de acidentes de trabalho são indisponíveis para o sinistrado.[9]

Ora, o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação e não pode ocupar-se de outras, salvo se a lei lhe possibilitar ou impor o seu conhecimento oficioso,[10] o que designadamente ocorre nos casos de aplicação de preceitos inderrogáveis, em que a condenação pode até exceder ou ir além do pedido;[11] o mesmo acontecendo nos recursos, devendo então observar-se o contraditório, exceptuando em caso de manifesta desnecessidade.[12]

Volvendo ao caso sub iudicio, provou-se que "o sinistrado despendeu € 30,00 em transportes, com a deslocação a este Tribunal",[13] cujo reembolso reclamou, de resto, na tentativa de conciliação com a seguradora responsável e ora recorrente, que aceitou essa pretensão.[14] Acontece, porém, que essa questão não foi considerada na parte decisória da sentença, o que agora se deve fazer (sem necessidade de exercer o contraditório atendendo ao consenso das partes sobre a mesma). À qual acrescem juros de mora, à taxa legal de 4% ao ano, desde a data em que as despesas foram realizadas pelo sinistrado.[15]
***

III-Decisão.

Termos em que se acorda julgar improcedente o recurso e manter a sentença recorrida, à qual se acrescenta a condenação da recorrida a pagar ao sinistrado a quantia de € 30,00 (trinta euros) correspondente à que desembolsou nos transportes com a deslocação ao Tribunal, acrescida de juros de mora, à taxa de 4% ao ano, desde a sua realização até efectivo pagamento.
Custas pela recorrente (art.º 527.º, n.os 1 e 2 do Código de Processo Civil e 6.º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais).
***


Lisboa, 14-09-2016.


António José Alves Duarte
Eduardo José Oliveira Azevedo
Maria Celina de Jesus de Nóbrega


[1]Art.º 652, n.º 1 do Código de Processo Civil.
[2]Art.º 87.º, n.º 3 do Código de Processo do Trabalho.
[3]Art.º 657.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
[4]Art.º 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil. A este propósito, Abrantes Geraldes, Recursos no Processo do Trabalho, Novo Regime, 2010, Almedina, páginas 64 e seguinte. 
[5]Segundo o qual (1) "a incapacidade temporária converte-se em permanente decorridos 18 meses consecutivos, devendo o perito médico do tribunal reavaliar o respectivo grau de incapacidade" e (2)"verificando-se que ao sinistrado está a ser prestado o tratamento clínico necessário, o Ministério Público pode prorrogar o prazo fixado no número anterior, até ao máximo de 30 meses, a requerimento da entidade responsável e ou do sinistrado".
[6]Acórdão da Relação de Lisboa, de 19-09-2012, no processo n.º 3605/10.8TTLSB.L1-4, publicado em http://www.dgsi.pt. No mesmo sentido, vd. o da Relação do Porto, de 19-04-2004, no processo n.º 0411917, publicado em http://www.dgsi.pt.
[7]Art.os 23.º, alínea b) e 47.º, n.º 1, alínea c) da Lei dos Acidentes de Trabalho. Neste sentido, os acórdãos da Relação de Lisboa, de 15-12-2004, no processo n.º 1074/2005-4 e da Relação de Évora, de 14-02-2012, no processo n.º 0411917, publicado em http://www.dgsi.pt.
[8]Citado acórdão da Relação de Lisboa, de 19-09-2012, no processo n.º 3605/10.8TTLSB.L1-4, publicado em http://www.dgsi.pt.
[9]Art.º 12.º da Lei dos Acidentes de Trabalho.
[10]Art.º 608.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
[11]Art.º 74.º do Código de Processo do Trabalho.
[12]Art.º 3.º, n.º3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil.
[13]Facto provado enumerado em 10.
[14]Folhas 105 e seguintes dos autos.
[15]Portaria n.º 291/2003 de 8 de Abril.