Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4450/2008-2
Relator: EZAGÜY MARTINS
Descritores: ACTO MÉDICO
CONSENTIMENTO
CULPA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/26/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADO O JULGAMENTO
Sumário: I- Em matéria de acto médico só o consentimento devidamente esclarecido permite transferir para o paciente os riscos que de outro modo serão suportados pelo médico.
II- A ilicitude contratual, nesta sorte de obrigações (de meios), está equiparada à omissão da mais elevada medida de cuidado exterior – ou seja dos melhores cuidados possíveis, de acordo com as leis da arte e da ciência médica.
III- Ainda quando se deva entender que a presunção de culpa do art.º 799º, n.º 1, do Código Civil, não opera nesta área, ponto também é que, dadas as dificuldades da realização da prova, nesta matéria, a chamada prova de primeira aparência assume importância determinante, no que respeita à culpa e ao nexo de causalidade.
IV- Por isso, se a falta de cuidado interior presente na culpa diz respeito às circunstâncias intelectuais e emocionais do espírito do agente, a sua prova, quanto às violações destas obrigações a basear-se-á, por via de regra, num juízo de aparência ou probabilidade a partir do comportamento exteriormente adoptado.
(E.M.)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª Secção (cível) deste Tribunal da Relação

I- «Sociedade Gestora do Hospital das Descobertas, S.A.», intentou acção declarativa, com processo comum sob a forma ordinária, contra (E), pedindo a condenação da Ré a pagar à A. de € 13.715,49, acrescidos de juros de mora, à taxa legal anual supletiva, para os créditos de que sejam titulares empresas comerciais, vencidos, no montante liquidado, até 20-05-2005, de € 3.598,34, e vincendos até efectivo e integral pagamento.

Alegando, para tanto e em suma, que prestou assistência médica e hospitalar à R., a pedido desta, no seu estabelecimento de saúde denominado «Hospital Cuf Descobertas», no valor de € 35.715,49.

Sendo que a Ré, instada, em 2003-02-10, a pagar o saldo em dívida, procedeu apenas ao pagamento de € 22.000,00.

Contestou a Ré, por impugnação, no tocante à extensão e valor dos serviços prestados.

Mais dizendo, em reconvenção, que tendo sido submetida no hospital da Ré a cateterização da veia femural esquerda, acto este sem qualquer relação com a patologia inicial da Ré, foi aquele executado de forma negligente e grosseira, o que obrigou a nova operação para reparação do erro assim praticado pelo corpo clínico da A. e que pôs em sério risco de vida a Ré.

Em consequência do referido acidente e intervenção reparadora, o estado de saúde da Ré agravou-se drástica e significativamente, ocasionando tal sucessão de factos um profundo sofrimento e angústia, que lhe provocaram uma forte e acrescida debilidade.

Vindo a Ré a ser transferida – por recearem os seus familiares pela sua vida, face ao definhamento e enfraquecimento diários, encontrando-se num estado de confusão e alheamento – para o Hospital Amadora-Sintra, onde permaneceu internada até 15-10-2002.

Sendo posteriormente sujeita a novos internamentos, no Hospital Curry Cabral, e no Centro Lisgeri, de onde saiu em 03-07-2003, permanecendo desde então em casa, apenas saindo para ir a consultas médicas.

Tendo suportado despesas com o seu internamento naquele Centro, no montante de € 10.528,49, para além das inerentes às sessões de fisioterapia a que teve de se submeter e ainda com medicamentos, em quantia não inferior a € 2.500,00.

Vivendo, ainda hoje, com dores constantes na perna esquerda, amargurada e angustiada, e tendo constantes pesadelos, sofrendo de inquietação.

Não fora o apontado erro médico, que provocou a laceração da artéria femural, e a Ré encontrar-se-ia em condições de ter alta hospitalar das instalações da A./Recorrida cerca de 48 horas após a desconexão do apoio ventilatório, em 17 de Setembro de 2002.

Pelo erro e negligência apontado sendo solidariamente responsáveis os elementos do corpo clínico da A. que assistiu à Ré, os Drs. (F), (M), (L) e (S).

Deduzindo a Ré o incidente de intervenção principal provocada dos referidos clínicos e rematando com a improcedência da acção e a procedência da reconvenção, condenando-se a A. e os Chamados, solidariamente, no pagamento à Ré de uma indemnização no valor de € 38.028,49 – sendo € 13.028,49 a título de danos patrimoniais e € 25.000,00 a título de danos não patrimoniais – acrescidos de juros à taxa legal, desde a citação, até efectivo e integral pagamento.

Replicou a A., concluindo como na p. i.

Em despacho pré-saneador, a folhas 116-117, convidou-se a A. a vir aos autos apresentar nova p. i. em que “concretize, alegando factos materiais, jurídicos, concretos, donde resultem perfeitamente identificados (incluindo as respectivas datas e montantes) os serviços que alega ter prestado à Ré”.

Ao que correspondeu a A., nos termos que de folhas 160 a 197 se alcançam.

E respondendo a tal aperfeiçoamento, comentou a Ré tratar-se apenas da transposição para o art.º 2º do novo articulado, da “vasta listagem constante do documento n.º 1 junto com a anterior petição e já impugnado…”.

Concluindo nos termos já formulados na anterior contestação/reconvenção.

Por despacho de folhas 203-204, foi aprazada audiência preliminar, tendo por expresso fim, e além do mais legal, suprir as já assinaladas deficiências, que se entendeu manterem-se “na nova petição inicial”, nos mesmos exactos termos em “que foram apontadas à inicialmente apresentada.”.

Por despacho proferido na referida audiência, foi concedido novo prazo à A. para apresentação de nova p.i. “devidamente corrigida e completada…”.

Vindo aquela a apresentar esse novo articulado, alegando a absoluta necessidade da cateterização da veia femural e constituir a punção da artéria femural, na circunstância, uma situação frequente e um risco absolutamente normal da tal intervenção.

Procedendo à discriminação dos tratamentos, intervenções, meios complementares de diagnóstico empregues, medicamentos administrados, materiais utilizados, diárias hospitalares e ocupação de salas de cirurgia, nos termos que daquele se alcançam.

E novamente contestou a Ré, continuando a sustentar o negligente do comportamento da A., mais que não seja por após a perfuração votar a Ré a dois dias de abandono, a sangrar.

Para além de nunca ter solicitado qualquer quarto individual nas instalações da A., como esta pretende nas despesas apresentadas.

Renovando, no mais, o já alegado na anterior contestação.

Replicou, uma vez mais, a A., opondo-se ao chamamento requerido pela Ré.

E treplicou a Ré.

Indeferida a requerida intervenção principal provocada, prosseguiu o processo seus termos, com saneamento e condensação, sendo deduzida reclamação pela A., contra a Base Instrutória, totalmente desatendida.

Vindo, realizada que foi a audiência final, a ser proferida sentença que julgou a acção improcedente, por não provada, absolvendo a Ré do pedido, e a reconvenção parcialmente procedente, condenando a A. a pagar à Ré a quantia de € 3.000,00, acrescida de juros de mora, vencidos desde a data da notificação da reconvenção à A., à taxa supletiva legal de 4% ao ano, vencidos e vincendos, até efectivo e integral pagamento.

Inconformada, recorreu a A., formulando, nas suas alegações, as seguintes conclusões:

1. A pedido do tribunal, nas PIs que foi apresentando, a A. discriminou exaustiva e fastidiosamente todos os serviços prestados à R, a saber: os meios complementares de diagnóstico e terapêuticas empregues, os materiais utilizados, o pessoal envolvido, os gastos inerentes à estadia da R. na Unidade de Cuidados Intensivos Polivalentes e no quarto individual para o qual foi posteriormente transferida, os gastos inerentes às cirurgias a que foi submetida e ao transporte em ambulância para outra unidade hospitalar;

2. A A. cumpriu, assim, o ónus que lhe competia, indo muito para além do que é usual nas muitas milhares acções de cobrança existentes nos nossos Tribunais;

3. A R, por seu turno, demonstrou, nos termos referidos no corpo das presentes alegações, ter exacto conhecimento de tudo quanto lhe foi prestado e dos respectivos preços, sendo que só assim poderia proceder às contas que constam dos arts. 14.º a 16.º da sua Contestação, notificada à A., em 18.09.2006;

4. Tratando-se de factos pessoais da R. (os serviços foram prestados a si, leia-se na sua própria pessoa), a afirmação do seu desconhecimento, plasmada no art. 3.º da sua Contestação, equivale, nos termos do art. 490.º, n.º3 do C.P.C., à sua confissão;

5. Ainda que assim não se entendesse, dos depoimentos das testemunhas melhor transcritos/identificadas no corpo das alegações, ficou patente o perfeito conhecimento da R. sobre os serviços que lhe foram prestados e os valores a que os mesmos ascenderam e, bem assim, o exaustivo sistema de cômputo empregue pela A;

6. Assim sendo, não há como não considerar apenas provado o art.º 1.º da Base Instrutória, como faz a sentença ora recorrida, “(…) apenas o que já consta da al. O) da matéria de facto assente”, mas sim a totalidade do mesmo artigo;

7. O que o Meritíssimo Juiz a quo parece ter pretendido era que se fizesse prova individual das centenas de itens mencionados naquela factura (cada par de luvas e cada gaze empregue pelos funcionários do Hospital da Cuf) algo que, como é fácil perceber, está fora dos limites do razoável, não sendo, por isso, possível efectuá-la, nem lhe corresponde, tão pouco, qualquer tipo de utilidade, já que a Ré admitiu tudo conhecer nos termos já vistos.

8. No campo da responsabilidade civil por acto médico, a obrigação a que este se encontra vinculado é praticamente sempre uma obrigação de meios e não de resultado (aliás, nem poderia ser de outra forma), uma vez que o devedor está adstrito à obrigação de prestar ao doente os melhores cuidados, em conformidade com as leges artis e os conhecimentos científicos actualizados e comprovados, mas não a cura (cfr nesse sentido o recentíssimo Acórdão do S.T.J., datado de 11.07.2006, in www.dgsi.pt, de onde se efectuaram as transcrições  relevantes no corpo das alegações, bem como a generalidade da jurisprudência e doutrina);

9. Deste modo, ao contrário do que é defendido pelo Meritíssimo Juiz a quo, a presunção de culpa constante do art. 799.º do C.C., deve afastar-se em situações de responsabilidade por acto médico, uma vez que esta é uma obrigação de meios e não de resultado. Logo, não sendo possível exigir ao devedor um resultado, tão pouco se lhe pode imputar uma presunção de culpa por falha ou inatingibilidade do resultado.

10.       Mas mesmo que assim não se entenda, o que apenas se concebe como hipótese lógica e por mera cautela de patrocínio, sempre se dirá que, no caso da responsabilidade civil contratual, mesmo recaindo sobre o devedor/médico a presunção prevista no art. 799.º do C.C., sobre este já não impenderá qualquer outra presunção legal, devendo por isso o credor/paciente provar e alegar todos os outros pressupostos da responsabilidade civil contratual (ilicitude, dano e nexo causal), o que manifestamente não foi feito no caso concreto (cfr AC do S.T.J., de 18.09.2007);

11. Deveria, assim, a Ré - Reconvinte ter alegado e provado que o médico não realizou os actos que normalmente se traduziriam numa assistência ou patrocínio diligentes (cfr. Antunes Varela, in “Das Obrigações Em Geral”, Volume II, Ed. Almedina, pp. 101) e alegar, bem assim, em que consistiria, naquele caso, uma assistência ou patrocínio diligentes.

12. Além do mais, a Ré-Reconvinte deveria ter alegado e provado, se assim o entendesse, que o resultado da actuação dos médicos não se conteria no risco admissível da mesma.

13. Salvo o devido respeito, foi o Meritíssimo Juiz a quo que, arvorado em especialista médico, tomou sobre os seus ombros, a tarefa de considerar a actuação do médico como sendo “incompetente, negligente e reveladora de imperícia” (cfr. pág. 14 da Sentença), sem que tivesse adiantado, sequer, os fundamentos em que alicerçou a sua convicção, desconsiderando, em absoluto, o depoimento de três médicos (os únicos apresentados, diga-se) que explicaram até à exaustão (nos termos constantes do corpo das alegações) a absoluta correcção de tudo quanto foi efectuado, bem como o facto unanimemente apontado de ter sido salva a vida da R., por duas vezes, facto que lamentavelmente foi (apenas) esquecido na hora de pagar o remanescente em dívida;

14. Os três médicos ouvidos foram, aliás, peremptórios ao afirmar que a punção acidental de uma artéria, em lugar de uma veia, é uma situação comum, não tendo nenhum deles estabelecido qualquer vínculo entre uma pretensa actuação negligente ou inepta com a punção acidental daquele vaso;

15. No tocante à responsabilidade contratual por acto médico, o nexo de causalidade obriga o paciente a provar que certo tratamento ou intervenção foram omitidos ou que os meios utilizados foram deficientes ou errados (determinação dos actos que deviam ter sido praticados e não foram, do conteúdo do dever de prestar). Ora, no caso sub judice, a R. nada logrou provar neste campo, bem como nem sequer elencou quais os concretos deveres de cuidado que foram omitidos;

16. Quanto à indemnização, também nada se provou que a pudesse sustentar. Para o Meritíssimo Juiz a quo, o facto de a R. ter sofrido choque hipovolémico, descida significativa da hemoglobina, insuficiência renal aguda oligúrica e ter sido submetida a cirurgia vascular para suturação da artéria perfurada, tendo sofrido, no período que medeia entre a realização da punção e a 2.ª cirurgia, um período de agitação justificam, só por si, a condenação da A. no pagamento de uma indemnização, sem que existam quaisquer elementos nos autos que possam sugerir, como já se viu, ilicitude, culpa ou nexo de causalidade.

17. Em síntese e conforme se depreende do corpo das alegações, a A, de acordo com o disposto no art. 690.º A do C.P.C., considera incorrectamente julgados os pontos 1.º, 5.º, 6.º e 7.º da Base Instrutória, pois dado os depoimentos das testemunhas (R), (S), (L), (F), (H)e(HM), bem como os documentos juntos aos autos, o tribunal a quo deveria ter proferido decisão diversa sobre aqueles pontos, nos termos já exaustivamente elencados nestas alegações.

18. Independentemente de se saber se a presunção de culpa se pode ou deve aplicar às obrigações de meios (o que a ora recorrente não aceita de modo algum), o certo é que o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo não terá, salvo o devido respeito e melhor opinião, percebido suficientemente a diferença entre ilicitude e culpa, entendendo, ao que parece, que a presunção seria não apenas relativa à culpa, como à ilicitude, sem atentar no facto que a culpa releva da censurabilidade do acto (possibilidade de agir de forma diferente).

19. Mas ainda que assim fosse, agiu o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo por forma a impedir a prova que entendia competir à A.. Com efeito, e tendo a A. reclamado do despacho saneador, pugnando pela inclusão da matéria dos arts. 10.º, 12.º, 13.º, 14.º, 16.º, 17.º e 18.º, indeferiu o Meritíssimo Juiz este pedido alegando que a base instrutória conteria toda a matéria de facto que, de acordo com as regras de repartição do ónus da prova, se mostra relevante para a decisão da causa (sic) vindo, afinal, na sentença a considerar que não foi apresentada qualquer prova da ausência de culpa por parte da A, ora Recorrente.

20. Ainda assim, foram apresentadas como testemunhas três médicos que depuseram longamente sobre todos os aspectos relevantes da prestação da assistência em questão, pelo que deveria o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo ter aproveitado tais depoimentos, providenciando pela ampliação da base instrutória, de acordo com o seu entendimento sobre a culpa, em lugar de os ignorar completamente, como o fez, em prejuízo manifesto para a descoberta da verdade material;

21. Foram assim violados os arts. 264.º, n.º2, 265.º, n.º 3, 511.º, n.º 1, 650.º, n.º 1, f), 660.º, n.º 2 do CPC e 798.º e 799.º do Código Civil.”.

Requer a revogação da sentença recorrida, condenando-se a Ré no pedido principal e absolvendo-se a A. do reconvencional, ou, caso assim se não entenda, seja ampliada a base instrutória nos termos requeridos no corpo das alegações.

Contra-alegou a Recorrida, pugnando pela manutenção do julgado.

II- Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

Face às conclusões de recurso, que como é sabido, e no seu reporte à fundamentação da decisão recorrida, definem o objecto daquele – vd. art.ºs 684º, n.º 3, 690º, n.º 3, 660º, n.º 2 e 713º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil – são questões propostas à resolução deste Tribunal:

- se é de alterar a decisão da 1ª instância quanto à matéria de facto, nos termos pretendidos pela Recorrente, retirando, a ser esse o caso, as consequências em sede de mérito da acção quanto à Recorrente.

- em qualquer caso, se não estão reunidos os pressupostos da responsabilidade civil, por parte da A.

- se é de ampliar a matéria de facto, de forma a abranger o alegado pela A. nos arts. 10.º, 12.º, 13.º, 14.º, 16.º, 17.º e 18º, da p. i.

*

Considerou-se assente, na 1ª instância, a factualidade seguinte:

“1 – A autora prestou assistência médica e hospitalar à ré, no seu estabelecimento de saúde denominado «HOSPITAL CUF DESCOBERTAS» – (A);

2 – A ré foi admitida naquele estabelecimento em 5 de Setembro de 2002 e ali permaneceu até 3 de Outubro de 2002, quer na unidade de cuidados intensivos polivalentes, quer em quarto individual – (B);

3 – A ré foi internada com um quadro de oclusão intestinal na sequência de um episódio de gastroenterite aguda - (C);

4 – Na altura em que foi admitida de urgência no estabelecimento identificado em 1., a ré apresentava-se em estado de choque hipovolémico, destacando-se a presença de volumosa hérnia inguinal esquerda, irredutível - (D);

5 – A ré foi de imediato submetida a intervenção cirúrgica com achados de herniação do transverso, com isquémia, tendo-lhe sido efectuada “ressecção” segmentar do transverso e correcção da hérnia - (E);

6 – No pós-operatório foi necessário sujeitar a ré a suporte ventilatório por insuficiência respiratória global durante alguns dias - (F);

7 – Após rápido restabelecimento do trânsito intestinal a ré iniciou alimentação entérica - (G);

8 – O que fez mediante assistência e monotorização pós-operatório por parte da ré - (H);

9 – Em 17.09.2002, na sequência de tentativa de cateterização da veia femural esquerda foi puncionada a artéria femural com quadro hemorrágico importante - (I);

10 – O que condicionou choque hipovolémico - (J);

11 – E descida significativa de hemoglobina - (K);

12 – E insuficiência renal aguda oligúrica - (L);

13 – Em 19.09.2002 a ré foi submetida a nova intervenção cirúrgica no estabelecimento hospitalar referido em 1., por cirurgia vascular, para suturação da veia perfurada, com observação de laceração da artéria femural, arteriorragia (para correcção da punção arterial) e drenagem do hematoma, ao mesmo tempo que efectuou exposição da artéria radial, não caracterizada por lesão ateromatosa e exposição da artéria umeral direita, canalizada para monotorização e colheitas - (M);

14 – Em 20.09.2002 a ré foi desconectada e extubada, continuando a ser-lhe prestada a assistência necessária à sua situação clínica, após o que foi transferida do estabelecimento hospitalar identificado em 1. - (N);

15 – Em 26.11.2002 a autora emitiu e enviou à ré a factura nº 116254, cuja cópia constitui o documento de fls. 6 a 69. no montante global de € 35 715,49 - (O);

16 – Em 10.02.2003 a autora instou a ré para proceder ao pagamento da quantia referida em 15., tendo esta entregue àquela a quantia de € 22 000,00 - (P);

17 – Em 3 de Outubro de 2002 a autora foi transferida para o Hospital Amadora-Sintra, acamada e de ambulância, acompanhada por uma médica do corpo clínico da autora, Drª (P) - (Q);

18 – Entre a realização da punção referida em 9. e a intervenção cirúrgica referida em 13., a autora permaneceu prostrada, com momentos de profunda agitação e convulsão, sem falar ou reconhecer quem quer que fosse – (5º e 6º);

19 – A ré correu risco de vida durante todo o período em que esteve internada no estabelecimento da autora identificado em 1. da matéria de facto assente – (7º);

20 – A ré permaneceu no hospital referido em 17. durante cerca de duas semanas – (8º);

21 – Após ter alta do hospital referido em 17., a ré permaneceu oito dias em casa, findos os quais foi internada no Hospital Curry Cabral, devido a uma infecção urinária, onde permaneceu vários dias – (9º e 10º);

22 – Após ter alta do Hospital Curry Cabral, a ré ingressou no Centro Lisgeri, actualmente denominado Centro dos Olivais, em Lisboa, aí lhe tendo sido prestada assistência médica e fisioterapêutica – (11º a 14º);

23 – A ré permaneceu no Centro referido em 22. durante vários meses – (15º);

24 – Em despesas de internamento e em consumíveis no Centro identificado em 22., a ré despendeu a quantia de € 10 528,49 – (16º);

25 – À data em que foi internada no estabelecimento referido em 1., a ré era uma pessoa jovial, auto-suficiente e activa – (24º).”.

*

Vejamos:

II-1- - Da impugnação da decisão da primeira instância quanto à matéria de facto.

1. Pretende a Recorrente que deveria ter sido considerada integralmente provada a matéria do art.º 1º da Base Instrutória; e, quanto as respostas aos art.ºs 5º, 6º e 7º da mesma base – tanto quanto é possível alcançar das suas conclusões que remetem, nesta parte, para um “corpo das alegações” que não é claro no reporte aos art.ºs da B.I. – que aquelas carecem de sentido, de rigor, sendo imprecisas…face aos esclarecimentos prestados pelos médicos que testemunharam neste processo.

.

Pelo que à matéria do art.º 1º concerne, invoca a Recorrente a confissão dos correspondentes factos, pela Ré, no art.º 3º da sua contestação, considerando tratarem-se, aqueles, de factos pessoais, de que a mesma tinha conhecimento, como resulta das “contas” que constam dos art.ºs 14º a 16º da sua contestação.

E, quando assim se não entenda, apela então, tal como quanto à matéria dos art.ºs 5º, 6º e 7º, aos depoimentos das testemunhas da A., (R) e(S), e das testemunhas da Ré, (H) e (HM).

Fundamentando-se a decisão da matéria de facto, e quanto ao segmento assim em causa, nos termos seguintes:

“Para responder à matéria de facto vertida na base instrutória tal como acaba de o fazer, teve o Tribunal em consideração:

- Quanto ao quesito 1°, nenhuma prova consistente foi produzida nos autos de modo a permitir ao Tribunal considerar provado, quanto a este quesito, qualquer além do que já consta da alínea O) da matéria de facto assente; os depoimentos das testemunhas arroladas pela autora, (R) e (S) nada esclarecerem quanto à matéria vertida neste quesito; a primeira é responsável pela tesouraria e cobranças da autora desde há cerca de 34 anos, imitando-se a confirmar o valor da factura pela mesma junta aos autos, não dispondo, no entanto, de conhecimentos para afirmar se toda a assistência médica e hospitalar e todos os medicamentos nela referidos foram ou não, por aquele efectivamente prestados; a segunda, é funcionária da autora há cerca de cinco anos, por conta de quem exerce a sua actividade profissional de médica, na especialidade de "medicina interna", integrando a equipa da unidade de cuidados intensivos da mesma, razão pela qual tomou conhecimento da situação clínica da ré desde em que foi admitida no Hospital "CUF Descobertas" até à data em que teve alta do mesmo; nada de concreto afirmou acerca da matéria vertida no quesito 1°.

(…)

- Quanto aos quesitos 5° e 6°, o depoimento da testemunha (H), as demais testemunhas arroladas pela ré e indicadas a deporem à matéria vertida nestes quesitos não visitaram a ré entre a realização da punção referida em 1) e a intervenção cirúrgica referida em M), ambas da matéria de facto assente;

- Quanto ao quesito 7°, os depoimentos das testemunhas(S), (L) e(F), os quais explicaram a situação clínica da autora desde a data em que deu entrada no estabelecimento da autora identificado em A) da matéria de facto assente até ao momento em que saiu do mesmo;

(…).”.

2. Perguntava-se, no art.º 1º da B. I., se “O custo total da assistência médica e hospitalar prestada pela autora à ré, assim como dos medicamentos que lhe foram ministrados e dos materiais dispendidos naquela assistência, ascendeu à importância total referida em O?”, a saber, € 35.715,49.

Correspondendo tal matéria ao alegado nos art.ºs 1º e 17º - este com reporte aos anteriores art.ºs 11º a 16º - da p. i. por último apresentada.

Sendo que no art.º 3º da sua contestação, alegou a Ré que “desconhece, por não ter obrigação de saber, se os serviços prestados e reclamados pela Autora correspondem à verdade e se foram, objectivamente, prestados os serviços prestados e ministrados os medicamentos discriminados nos art.ºs 11º, 13º, 14º, 15º e 16º da nova e douta p. i. que ora se contesta, que vão expressamente impugnados”.

Mais tendo alegado, no art.º 21º do mesmo articulado, que “A Ré não estava em condições de poder determinar ou acompanhar a A. nos serviços que lhe foram supostamente prestados, nos seus valores, quantificação e respectiva duração”.

Ora, desde logo, sendo certo que nos termos do art.º 490º, n.º 3, do Código de Processo Civil, “Se o réu declarar que não sabe se determinado facto é real, a declaração equivale a confissão quando se trate de facto pessoal ou de que o réu deva ter conhecimento e equivale a impugnação no caso contrário.”…ponto é que a Ré…como visto…impugnou expressamente, no citado art.º 3º da sua contestação, a factualidade que assim levada foi ao art.º 1º da B.I…

…Com salvaguarda do provado da matéria atinente a intervenções cirúrgicas e internamento, carreada para o elenco dos “Factos Assentes”.

E, diga-se ainda, conquanto, na circunstância, apenas marginalmente, que não se tratam os factos assim em causa – no que respeita ao detalhe das concretas intervenções médico-hospitalares e ao custo das mesmas – de factos pessoais da Ré, nem de factos de que esta devesse ter conhecimento.

A circunstância de tais intervenções terem lugar na presença e relativamente à pessoa da Ré, não sustenta a presunção de ter aquela tomado conhecimento, a um tal nível.

Não é de supor que a Ré permanecesse em estado de vigília durante todas essas intervenções…que tivesse formação na área médica, ou simplesmente de enfermagem, permitindo-lhe aperceber-se da extensão e significado das intervenções realizadas e da medicação efectivamente feita, nem que, sequer, o corpo clínico a fosse mantendo esclarecida quanto ao exacto tipo de intervenção e medicação.

E o alegado nos art.ºs 15º e 16º da contestação, fazendo corresponder o tal “remanescente” a serviços que não foram contratados e a intervenções não autorizadas, não prejudica o alcance impugnatório do art.º 3º da contestação.

3. Descartada aquela 1ª linha de fundamentação da deduzida impugnação da decisão da 1ª instância quanto à matéria de facto, está aqui assim em causa a hipótese contemplada no art.º 712º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil, a saber, ter ocorrido gravação dos depoimentos prestados, sendo impugnada, nos termos do art.º 690º-A, a decisão que, também com base neles, proferida foi.

Isto posto:

4. Quanto ao art.º 1º.

1- A testemunha (R) – funcionária da A. há 34 anos, sendo Chefe “da parte de Tesouraria e Cobranças” da Recorrente, e que depôs, do aqui em causa, apenas ao art.º 1º – confirmou corresponder o montante de € 35.715,49, à totalidade da facturação.

Dizendo, quanto aos termos da elaboração da factura junta aos autos: “Oh Sr. Dr., isto é assim, há uma folha de enfermagem que é diariamente preenchida pela enfermeira ou pelo médico, conforme os gastam são introduzidos, mediante depois o que está introduzido a facturação puxa, faz, segue portanto a tabela dos preços que temos e é daí que dá depois origem à factura”.

É certo que essa testemunha não verificou a correspondência dos elementos assim introduzidos no computador com a realidade.

Confirmando que a sua função se resume ao procedimento, mediante as folhas que são introduzidas no computador.

Folhas essas – elaboradas diariamente pelo médico ou pelo enfermeiro – que, diz, são guardadas pelo Hospital.

Sendo que, como também anota a Recorrida nas suas contra-alegações, tais folhas, a existirem, não foram apresentadas nem sequer aludidas, nos articulados da A.

Como igualmente não foi oferecido o depoimento das pessoas que, in casu, tivessem procedido ao preenchimento daquelas.

Ponto sendo, porém, que assim demonstrado o iter percorrido para a elaboração da factura – pressupondo momentos anteriores de prescrição, utilização, elaboração/preenchimento de “folha”, e seu lançamento contabilístico, em momento algum foi suscitada a falsidade dos elementos lançados pelo pessoal médico ou de enfermagem.

Nada sendo substanciadamente questionado quanto à razoabilidade – em termos de proporcionalidade e adequação clínica, em vista das intervenções definitivamente assentes, cfr. alíneas A a N, da matéria de facto assente – das despesas incluídas na mesma factura.

Como, a propósito do depoimento da testemunha seguinte, se exemplificará.

2- A testemunha (S) – médica, de medicina interna, trabalhando para a A., no hospital CUF Descobertas, preferencialmente na UCIP, há cinco anos, e que depôs a toda a matéria assim em causa, confirmou a entrada da Ré no hospital, a 1ª intervenção a que aquela foi sujeita e a subsequente transferência para a UCIP e a realização da 2ª intervenção, como tudo estava já assente.

Recordando-se de não ter sido ela quem “puncionou a senhora”, embora estivesse presente no espaço que é o da UCIP, e “se calhar” até tendo sido ela quem terminou o cateter.

E que a Ré fez um hematoma na zona onde ocorreu a perfuração da artéria.

Determinando a necessidade de fazer uma 2ª intervenção para sutura da artéria.

Concedendo – embora manifestando alguma “dificuldade” quanto aos termos utilizados no art.º 5º da B. I. – que “de qualquer modo não há dúvida que o prolongar de qualquer situação de doença nos enfraquece…”.

Não se recordando se nesse mesmo período, a Ré esteve em estado de confusão e alheamento, mas referindo não lhe ser “estranho admitir que qualquer doente, qualquer doente, numa doença grave…numa UCI tem frequentemente períodos de confusão mental e de alheamento, do que quiser…”.

“Se isso esteve em relação de causalidade com o puncionar, não me recordo” – anota-se ter sido possível perceber a parte final deste segmento do depoimento assim transcrito, não obstante a presteza do mandatário da A. em “atalhar”, “sobrepondo” nova pergunta: “já agora…”.

 Não sabendo qual o montante correspondente ao custo dos serviços prestados à Ré, como é aliás natural.

Mas referindo que na altura da D.ª (E)– pois agora é tudo informático – havia uma folha (diária) de prescrição terapêutica com a qual há um novo registo “que é a transcrição para a folha de trabalho do enfermeiro.”, que depois a encaminha para a contabilidade.

Resultando a incapacidade desta testemunha, em explicar cabalmente, a instância do mandatário da Ré, o débito de 144 ampolas de cloreto de potássio, de 750 ml – expressamente alegado na contestação da Ré – mais que compreensível.

Pois não se lobriga onde foi buscar aquele causídico um tal número, e certo apenas se ter encontrado, analisando a mesma factura, o n.º de 10 ampolas de cloreto de potássio, para o dia 16-09-2002…e o de 19 ampolas para o dia 23-09-2002, sendo o total de tais ampolas, durante o internamento, no n.º de 101.

De resto, mais confundiu o mesmo advogado aquela testemunha – e concede-se que o não haja feito deliberadamente – quando, nessa mesma sede de instância, refere que “logo no dia seguinte são debitadas mais 11 ampolas, agora 9% de dez ml, e depois continua, portanto, admito que o potássio fosse necessário todos os dias…”, assim pretendendo que no dia 17-09-2002, se debitaram mais 11 ampolas de cloreto de potássio…quando como na própria contestação inicial se referiu, tratou-se de 11 ampolas…de cloreto de sódio.

Retirando-se do depoimento desta testemunha a mesma tramitação já anteriormente referida quanto ao processamento da facturação, desde a anotação por médicos em folha própria, cujos elementos depois são incluídos no tal formulário preenchido por enfermeiros, e que depois dá entrada na contabilidade.

Nada permitindo pôr em causa, seriamente, a correspondência da factura com os elementos assim consignados pelo corpo médico – de que a testemunha faz parte – e de enfermeiros, nem a verdade daqueles, sendo que a justeza do preçário praticado pelo Hospital não é thema decidendum.

 

Também não impressionando a circunstância de não haverem sido apresentadas as “folhas” referidas, nem arroladas todas as pessoas que nelas intervieram.

A decisão quanto à prova a apresentar, é da própria parte, que poderá entender bastante uma opção menos alargada, tendo, porventura, razões práticas – v.g. relativas a custos económicos de tal apresentação, às dificuldades de localização de testemunhas ou decorrentes de sistema de arquivo – para não proceder dessa outra forma.

Sem que tal deva necessariamente implicar a insuficiência da prova mais “restrita” apresentada, ou, muito menos, funcionar como presunção da inverdade do alegado.

3- A testemunha (H) – reformada, afilhada de casamento da Ré, por quem foi criada, e com quem vive, que oferecida apenas à matéria dos art.ºs 2º a 24º da base instrutória, depôs em termos que efectivamente interessam também a matéria do art.º 1º – assentiu quanto a ter acompanhado todo o “processo” desde início.

Esclarecendo que a Ré deu entrada no Hospital da Ré de urgência, tendo ficado internada e sendo logo submetida a uma operação.

Indo a testemunha visitar a Ré todos os dias ao hospital.

Sendo informada pelo Sr. Dr. (F) que a operação tinha corrido bem, o que “notava-se” aliás.

Depois, porque um funcionário exigisse mais um cheque de caução, e “como aquilo estava a ser incomportável, não é, monetariamente, eu falei com ele (o referido doutor) a pedir a transferência…disse-me que sim”. Isto “uns diazinhos após a operação à tal dita hérnia”.

Ou seja, a testemunha foi tendo conhecimento dos custos que iam acrescendo…

E a questão da transferência da Ré colocou-se…face à incomportabilidade desses custos.

Sendo por si representada antes do segundo cheque.

E mais tarde, foi informada pelo Dr. (F) que tinha havido uma cateterização mal sucedida.

Referindo a posterior (2ª) intervenção em “cirurgia vascular” e a permanência nos cuidados intensivos.

 

Quanto à testemunha (HM) – Directora de marketing, filha da anterior testemunha, vivendo com a Ré – o seu depoimento, confirmando o que era já matéria assente no tocante a todo o percurso da Ré, desde a sua entrada nos serviços de urgência da A., também não põe em crise a verdade dos custos de facturação.

Confirmando estarem – ela e sua mãe – conscientes dos custos que (o internamento da Ré) ia ter, e que “não era tão pouco como isso, como é óbvio, era um hospital privado”.

Tendo solicitado a transferência da Ré para um hospital público da área, 3 ou 4 dias após a 1ª intervenção, porque o custo era muito elevado.

Estando ciente de que “a despesa da CUF Descobertas são cerca de 37 mil ou 38 mil euros” (sic).

5. Quanto aos art.ºs 5º, 6º.

Desde logo, não é verdade que, como pretende a Recorrente – vd. n.º 88 das alegações de recurso – o “tribunal recorrido” não faça “qualquer menção do meio ou meios probatórios que levaram à prova efectuada”.

E, poupando-nos a novas transcrições, diremos que o depoimento da testemunha da Ré, a referida (H) – expressamente citado, e como visto, em sede de motivação da decisão da 1ª instância quanto à matéria de facto, neste particular da “resposta” aos art.ºs em referência – é bastante, pelo que com toda a credibilidade refere quanto a tais definhamento, enfraquecimento, estado de confusão e alheamento.

Certo a propósito ser a própria testemunha da A.,(S), e como visto, a conceder – embora manifestando alguma “dificuldade” quanto aos termos utilizados no art.º 5º da B. I. – que “de qualquer modo não há dúvida que o prolongar de qualquer situação de doença nos enfraquece…”.

Referindo não lhe ser “estranho admitir que qualquer doente, numa doença grave…numa UCI tem frequentemente períodos de confusão mental e de alheamento…”.

E em nada se estranhando que a testemunha (H), vivendo com a Ré, na mesma casa, logo detectasse, nas visitas quotidianamente feitas àquela nesse ambiente hospitalar, tal evoluir físico e psicológico.

Nada de tal modo impreciso que obste à apreensão do seu alcance essencial, tendo aqueles termos, na linguagem comum.

Apenas se assinalando que definhamento significa, de acordo com o dicionário Houaiss,[1] para além de “enfraquecimento paulatino”, “abatimento, emagrecimento”.

6. Quanto ao art.º 7º.

Pretende a Recorrente que a correspondente “resposta” é “imprecisa” quando confrontada com os depoimentos prestados pelos médicos por si arrolados…dos quais decorreria só ser possível afirmar que a Ré correu risco de vida, não só durante o seu internamento, mas também no período prévio aquele…posto o que deveria ter sido considerado “seria que a Ré deu entrada em risco de morte e saiu do hospital com a situação totalmente estabilizada”.

Para além de o aditamento reclamado transcender claramente o âmbito do art.º, ponto é que, como se nos afigura óbvio, a comprovada admissão “de urgência” da Ré, no estabelecimento hospitalar da A., com submissão daquela, “de imediato” a intervenção cirúrgica, a que se seguiu a sua permanência em unidade de cuidados intensivos – vd. alíneas B), D) e E) dos factos assentes – apenas é compatível, de acordo com a normalidade das coisas – e certo nada questionar a Ré a propósito, neste particular – com um quadro de risco de vida.

Não ocorrendo pois erro de julgamento que importe corrigir. 

*

Procedendo deste modo a deduzida impugnação da decisão da 1º instância quanto à matéria de facto apenas no tocante ao art.º 1º da Base Instrutória.

Relativamente à qual – e, repete-se, na ausência de questionar sério quanto à correspondência da factura junta aos autos com os elementos fornecido, por médicos e enfermeiros, à contabilidade da A., e quanto à efectividade das intervenções e à adequação das medicações, discriminadas na mesma factura – se não considera exigível outra e mais pontual prova.

Aditando-se um n.º 1-A, à matéria de facto considerada assente, com o teor seguinte:

“O custo total da assistência médica e hospitalar prestada pela autora à ré, assim como dos medicamentos que lhe foram ministrados e dos materiais dispendidos naquela assistência, ascendeu à importância total de € 35 715,49.”.

Com prejuízo, assim e desde já, da ampliação da matéria de facto, para inclusão da matéria dos art.ºs 10º, 12º, 13º, 14º, 16º, 17º e 18º, supostamente da p. i.

Aliás, a matéria do art.º 10º…foi carreada para al. N.º) dos factos assentes…a do art.º 12º…está compreendida, designadamente, na al. A) daqueles…e a do art.º 18º foi carreada para a al. P) dos mesmos Factos Assentes. 

II-2- A alteração assim introduzida no elenco dos factos assentes não permite contudo, por si só, passar ao conhecimento de fundo do objecto do recurso.

1- É que no custo global da assistência prestada pela A. à Ré incluem-se os custos parcelares correspondentes à cateterização da veia femural esquerda e às consequências da punção da artéria femural – ocorrida aquando de tentativa da referida cateterização – no plano do internamento, medicação e subsequente intervenção cirúrgica “correctora”.

Sendo, e por um lado, que a Ré alegou, na sua contestação, ter a dita cateterização sido levada a cabo sem o seu consentimento ou mesmo o seu conhecimento ou dos seus “familiares” que a acompanhavam.

Ao que contrapôs a A. tratar-se, aquela, de intervenção absolutamente necessária, por ter que ver com a avaliação da situação clínica pós-operatória, designadamente o funcionamento da prótese ventilatória, servindo também para determinar a existência de gases no sangue, bem como para efectuar tratamentos.

2- Ora é no plano do dever de informação prévia do médico ao paciente que a doutrina tem sobretudo elaborado.

E, assim, consagrando inclusive o dever de resposta às questões colocadas pelo paciente.

Partindo-se da consideração de que a medicina, como é consabido, é uma actividade de risco.

E, por outro lado, de que, como refere André Gonçalo Dias Pereira,[2] “afirmado que está o primado da dignidade humana, a impor um princípio de autodeterminação e do respeito pela integridade física e moral do paciente, só o consentimento devidamente esclarecido permite transferir para o paciente os riscos que de outro modo serão suportados pelo médico”.

Sendo que, na insuficiência de tal informação (maxime sobre os riscos) o consentimento é inválido e a intervenção médica ferida de ilicitude.

Com a consequente responsabilidade do médico pelos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes da intervenção arbitrária.

Sem que, no entanto, é dito, se deva concluir automaticamente que, no caso de informação insuficiente, o médico deva responder por todas as consequências negativas da intervenção. “Isso seria transformar a responsabilidade por violação do consentimento informado numa forma, algo camuflada, de criar responsabilidade objectiva pelo dano iatrogénico. Ora tal opção...quando assumida em alguns ordenamentos jurídicos passou pelo crivo do legislador e importou uma decisão política estrutural...”.[3]

E de acordo com a teoria dos riscos significativos, quanto mais necessária for a intervenção, mais flexível pode ser a informação a propósito dos riscos.

Sem que, no entanto, encontremos na doutrina e jurisprudência nacionais uma resposta unívoca quanto à compreensividade de tal dever de informação.

Como quer que seja, sempre se imporá, que a sua omissão integre violação de dois bens jurídicos, a saber, a liberdade e a integridade física e psíquica, sendo que, estabelecido o nexo de causalidade, apenas os danos ocasionados que caiam no âmbito de protecção do dever de esclarecer merecem ser indemnizados.[4]

E sem prejuízo de, sendo leve a violação de dever de informar, ser de admitir a figura do consentimento hipotético, excluidor ou limitativo da indemnização pelos danos resultantes da violação da integridade física e psíquica.[5]

3- Por outro lado, considerou a Ré, naquele mesmo articulado, que a tal cateterização foi executada de modo negligente e grosseiro, e por isso que lhe foi lacerada a artéria femural esquerda, que não a veia, provocando-lhe forte hemorragia, com choque hipovolémico, descida significativa de hemoglobina e insuficiência renal aguda oligoanúrica.

Sendo que apenas ao cabo de dois dias foi a Ré submetida a intervenção cirúrgica vascular, com drenagem do hematoma entretanto formado e arteriorragia para correcção da punção arterial.

Matéria esta logo levada, no essencial, ao elenco dos factos assentes, cfr. alíneas I a M.

Na sentença recorrida, considerando-se embora que “na responsabilidade por acto médico, não há razões que levem a afastar a regra (geral) consagrada no art.º 799º, n.º 1, do C.C., que faz recair sobre o devedor uma presunção de culpa”, concluiu-se mesmo pela negligência efectiva do médico ao serviço da A., face à sobredita factualidade apurada.

Ora a A. na sua réplica, alegou factos que reportados à demonstração de não ter ocorrido negligência de banda do médico que procedeu à cateterização, interessarão também, e desde logo, à desconfiguração do incumprimento defeituoso e à exclusão do nexo de causalidade entre o errado puncionamento e as lesões subsequentes.

Assim sendo que, diz, “o facto de se ter puncionado a artéria no lugar da veia femural constitui uma situação frequente, devido ao trajecto anatómico paralelo dos dois vasos sanguíneos, representando um risco absolutamente normal no âmbito dessa intervenção”, cfr. art.º 12º.

E, “A punção venosa não pretendida origina tão-só um hematoma, de cura espontânea, que no geral não tem consequências”, Vd. art.º 13º.

“Deste modo, entendeu-se esperar o tempo necessário e normal para a respectiva cura, em lugar de se proceder a nova intervenção de cirurgia vascular com vista à correcção da ferida arterial, a que se recorre apenas em última instância…”, art.º 14º.

Para além de “a Ré padecer de lesões de arteriosclerose, o que terá também contribuído para a laceração do vaso sanguíneo não pretendido, dada a existência das placas de arteroma”, cfr. art.º 16º.

  4- Na consideração de ser a obrigação que recai sobre o médico, em regra, uma obrigação de meios, que não de resultado, tem uma parte da doutrina e da jurisprudência recusado aplicabilidade à regra sobre o ónus da prova do art.º 799º, n.º 1, do Código Civil à responsabilidade contratual por actos médicos.[6]

De responsabilidade contratual se tratando a assacada pela Ré à A., em via reconvencional, e por isso que emerge do incumprimento de contrato de prestação de serviços médicos, celebrado entre a Ré/paciente e uma instituição hospitalar.[7]

Julgamos porém desenhar-se uma tendência jurisprudencial maioritária, que, seguindo aquele outro sector doutrinal representado por Vaz Serra,[8] Henriques Gaspar,[9] Sinde Monteiro,[10] Ferreira de Almeida,[11] André Gonçalo Dias Pereira,[12] e Carneiro da Frada,[13] se tem mostrado favorável à aplicação de tal regra.

Podendo citar-se, como representativos daquela, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 22-05-2003, proc. 03P912;          de 27-11-2007, proc. 07A3426; de 18-09-2007, proc. 07A2334; e desta Relação, de 23-01-2007, proc. 6307/2006-7.[14]

5- No supracitado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 04-03-2008, considerou-se existir incumprimento, nesta matéria, “se é cometida uma falta técnica, por acção ou omissão dos deveres de cuidado, conformes aos dados adquiridos da ciência, implicando o uso de meios humanos ou técnicos necessários à obtenção do melhor tratamento.”.

O que aparentemente vai no sentido do acolhimento da tese da equiparação da ilicitude contratual, nesta sorte de obrigações, à omissão da mais elevada medida de cuidado exterior – ou seja dos melhores cuidados possíveis, de acordo com as leis da arte e da ciência médica.[15]

Mas, a existir incumprimento/cumprimento defeituoso, de banda da A., no que toca às manobras de cateterização – como, sem a consideração do que nesta sede contraposto foi pela A., resulta de conceder, ao menos em via de prova de primeira aparência, e atenta a circunstância da punção de artéria em vez de veia – temos que não poderá proceder, sem mais, a pretensão daquela no tocante à cobrança de despesas hospitalares relacionadas com tal defeito de prestação, e designadamente com a “reparação”, do mesmo.

Como também não procederá, e desde logo – incluída a parte relativa à própria cateterização – quando não se demonstrando ter a Ré ou os seus familiares, autorizado, ou tido conhecimento prévio, da intervenção para cateterização, se não demonstre igualmente o absolutamente necessário, no momento, de tal intervenção, na circunstância da paciente.

Para além disso, ainda quando se deva entender que a presunção de culpa do art.º 799º, n.º 1, do Código Civil, não opera nesta área, ponto também é que, dadas as dificuldades da realização da prova, nesta matéria, natural é que a aludida prova de primeira aparência, e como refere Manuel Rosário Nunes,[16]  “assuma importância determinante, no que respeita à culpa e ao nexo de causalidade, uma vez que, se o paciente sofre uma lesão na sua saúde após a sujeição a determinado acto médico (v.g. cirúrgico), será de presumir que, em princípio, aquela intervenção foi adequada à produção daquele dano e que, segundo a “normalidade das coisas”, “a experiência comum” o dano provavelmente não teria ocorrido se acaso fossem observadas todas as regras técnicas, de acordo com o estádio actual dos conhecimentos médico-científicos aplicáveis ao caso.”.

Ou, nas palavras de Carneiro da Frada,[17] “se a falta de cuidado interior presente na culpa diz respeito às circunstâncias intelectuais e emocionais do espírito do agente, a sua prova basear-se-á, por via de regra, num juízo de aparência ou probabilidade a partir do comportamento exteriormente adoptado.”. 

Impondo-se pois, como resulta meridiano – na perspectiva do conhecimento do mérito da acção, como também em ordem a aquilatar da “subsistência” dos verificados pressupostos da obrigação de indemnização, que a Ré pretende actuar, pelo que ao conhecimento da reconvenção respeita – o prévio apuramento de toda a matéria de facto alegada pela A., no sentido da “frequência”, “normalidade” e abrangência pelos riscos próprios da intervenção, da punção da artéria “ao lado”…

Bem como, e desde logo, do também alegado pela A., relativamente à autorização ou conhecimento prévio pela Ré, da intervenção para cateterização e à absoluta necessidade desta.

Certo a propósito que independentemente do que as testemunhas da A. hajam a propósito referido em audiência de julgamento, não teve lugar a ampliação da base instrutória em termos de englobar os factos assim referenciados, submetendo-os a cabal contraditório.

Reiterando aqui que ainda quando se não enfileire com Ribeiro de Faria[18] – quando este afirma que os critérios da ilicitude e da culpa na responsabilidade contratual pelo não cumprimento de obrigações de meios coincidem: o critério da tipicidade e da ilicitude encontrar-se-ia na inobservância do dever geral de cuidado ou diligência e o critério da culpa também – sempre tal incumprimento contratual, referido aos meios, traduzido na tal omissão da ars legis, o nexo de causalidade e a culpa, seriam de deduzir – sem prejuízo do seu afastamento pela prova dos referenciados factos – do apurado puncionamento de artéria “ao lado” da veia que deveria ser puncionada, e da manutenção da Ré “em espera”, durante dois dias…até se decidir a A. por nova cirurgia remediadora.

*

            Sendo assim que, visto o disposto no art.º 712º, n.º 4, do Código de Processo Civil, é caso de anulação da sentença, devendo, na 1ª instância, ampliar-se a matéria de facto, de molde a abranger o, referenciadamente, alegado pela A., na sua réplica.

Não abrangendo a repetição do julgamento o já decidido no confronto da inicial base instrutória, sem prejuízo de tal ampliação poder implicar a apreciação de outros pontos da matéria de facto, com o fim exclusivo de evitar contradições na decisão, cfr. citado art.º 712º, n.º 4, parte final.

*

III – Nestes termos, acordam em, julgando parcialmente procedente a impugnação da decisão da 1ª instância quanto à matéria de facto, que alteram nos termos que se deixaram definidos, anular a sentença recorrida, ordenando a repetição do julgamento, em ordem à definida ampliação da matéria de facto.

Custas pelo vencido a final.

Lisboa, 2008-06-26

(Ezagüy Martins)

(Maria José Mouro)

(Neto Neves)

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[1] Tomo VI, pág. 2659.
[2] In “O Dever de Esclarecimento e a Responsabilidade Médica”, Centro de Direito Biomédico, 11, “Responsabilidade Civil dos Médicos”, Coimbra Editora, 2005, págs. 436 (439-440) e seguintes.
[3] Idem, pág. 458, citando-se os casos da Nova Zelândia, Países escandinavos e, em certa medida, em França.
[4] Idem, pág. 496.
[5] Idem, pág. 497.
[6] Assim, João Álvaro Dias, in “Procriação assistida e responsabilidade médica”, 1966, Coimbra, pág. 225; Ribeiro de Faria, “Da prova na responsabilidade civil médica – Reflexões em torno do direito alemão”, in “Revista da Faculdade De Direito da Universidade do Porto”, 2004, págs. 115-195 (115) e Teixeira de Sousa, “Sobre o ónus da prova nas acções de responsabilidade civil médica”, in Direito da Saúde e Bioética, AAFDUL, Lisboa, 1996, pág. 140, e Manuel Rosário Nunes, in “O Ónus da prova nas acções de responsabilidade civil por actos médicos”, Almedina, 2007, págs. 46 e seguintes. Vd. também o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05-07-2001, in CJAcSTJ, 2001, tomo II, págs. 166-170. No Acórdão deste mesmo Tribunal, de 04-03-2008, proc. 08A183, também se considerou quanto à obrigação de prestação de serviços médicos, contratualmente assumida, que quando se trate aquela de uma obrigação de meios, não será de aplicar a regra sobre o ónus da prova do art.º 799º, n.º 1, do Código Civil. Mas ressalvou-se que o contrato de prestação de serviços médicos pode implicar para o médico uma obrigação de resultado ou uma obrigação de meios, consoante importe ou não apenas uma ínfima margem de risco.
[7] Vd. Miguel Teixeira de Sousa, in op. cit., pág. 127.
[8] In “Encargo da prova em matéria de impossibilidade ou de cumprimento imperfeito e da sua imputabilidade a uma das partes”, in BMJ n.º 47, pág. 99.
[9] In “Da Responsabilidade Civil do Médico”, in CJ, 1978, tomo I, págs. 344-345.
[10] In “Da Responsabilidade Médica em Portugal”, in BMJ n.º 332, pág. 46.
[11] “Os contratos civis de prestação de serviço médico”, in “Direito da Saúde e Bioética”, Ed. da AAFDUL, Lisboa, 1996, pág. 117.
[12] In “O consentimento informado na relação médico-paciente”, dissertação de mestrado em ciências jurídico-civilísticas apresentada na FD da UC, em Março de 2003, págs. 263-264.
[13] In “Contrato e deveres de protecção”, Separata do vol. XXXVIII do Suplemento ao Boletim da FDC, Coimbra, 1994, pág. 193.
[14] Todos in www.dgsi.pt.
[15] Cfr. Nuno Manuel Pinto Oliveira, in op. cit., pág. 242-243, citando Sinde Monteiro.
[16] In op. cit., pág. 58.
[17] In op. cit., pág. 194.
[18] Citado por Nuno Manuel Pinto Oliveira, in op. cit., pág. 239. Note-se que também André Dias Pereira, citado por Manuel rosário Nunes, in op. cit., pág. 50, levanta a questão da complexidade da destrinça entre ilicitude e culpa no domínio da responsabilidade civil médica.