Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4133/2007-6
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: EMBARGO DE OBRA NOVA
EXPROPRIAÇÃO
VISTORIA AD PERPETUAM REI MEMORIAM
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/12/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: I - O embargo de obra nova, seja o embargo de obra nova judicial ou extrajudicial, tem em vista suspender provisoriamente uma obra, cuja execução ofenda o direito de propriedade, singular ou comum, qualquer outro direito real de gozo ou a posse do requerente e cause ou esteja na iminência de lhe causar prejuízos.
II - A vistoria ad perpetuam rei memoriam consubstancia uma diligência de produção antecipada de prova obrigatória nos processos de expropriação urgentes, que se insere na fase administrativa do processo expropriativo, anterior à fase da arbitragem, destinada a fixar os elementos de facto susceptíveis de desaparecerem e cujo conhecimento seja de interesse ao julgamento do processo (artigos 15º nº 2 e 20º nº 1 al. c) do citado Código das Expropriações).
III - Este auto de vistoria ad perpetuam rei memoriam mune a expropriante do poder de “utilizar” a parcela expropriada para os fins da expropriação, lavrando o auto de posse administrativa e dando início aos trabalhos.
IV - A natureza meramente declarativa do registo predial não permite radicar o juízo relativo à integração ou não de uma parte do edifício na parcela expropriada, no confronto da descrição predial relativa ao prédio, só parcialmente expropriado, com a inscrição subsequente à expropriação.
F.G.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
1. Relatório:
J e outros intentaram, no Tribunal Judicial de Sintra, o presente procedimento cautelar de ratificação judicial de embargo de obra nova contra CACÉMPOLIS - SOCIEDADE PARA O DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA POLIS NO CACÉM, S.A., com fundamento em que procederam ao embargo extrajudicial da obra de demolição de parte do 1º andar do prédio implantado numa parcela de terreno dos requerentes J e mulher, Maria, e Maria E e marido, parcialmente abrangida pela declaração de utilidade pública, com carácter de urgência, da expropriação de um conjunto de parcelas identificadas na Planta Parcelar de Expropriações – 3ª fase da CacémPolis, S.A. publicada no D.R., II Série, n°.176, de 28 de Julho de 2004, constituindo a parcela aí identificada sob o n°84.1, a qual, segundo alegam, não abrange aquele prédio, sendo que a parte do mesmo que a requerida se propõe demolir foi cedida à requerente E, Lda., pelo que procederam ao embargo extrajudicial da obra de demolição em causa, pretendendo obter respectiva a ratificação judicial.
Citada a requerida, alegou que a parcela de terreno em causa se encontra incluída na parcela identificada sob o n°84.1 na Planta Parcelar de Expropriações – 3ª fase da CacémPolis, S.A., cuja propriedade lhe foi adjudicada no âmbito do processo de expropriação, incluindo a parte do edifício principal identificada pelos requerentes.

Produzida a prova, foi proferida decisão que, julgando procedente o procedimento cautelar, ratificou o embargo extrajudicial de obra nova realizado no dia 11 de Janeiro de 2006 pelo requerente J e por C, na qualidade de representante da requerente E, Lda.

Inconformada agravou a requerida.
Alegou e formulou a seguinte síntese conclusiva:
1ª Mal andou a douta decisão recorrida ao desconsiderar elementos documentais que comprovam que através da expropriação da parcela n.° 84.1"(…) será também afectado parte do edifício principal nomeadamente o 1 0 andar sob a passagem inferior entre esta parcela e a parcela n.° 82 (…)"o que, aliás, encontra-se expressamente delimitado no mapa de expropriações e planta parcelar para que remete o despacho judicial de adjudicação da propriedade à entidade expropriante CacémPolis, SA, ora recorrente.
2ª Sendo que, a caracterização e composição da parcela expropriada ficou igualmente descrita no depoimento da testemunha E (…).
3ª Razão pela qual, devia tal factualidade ter sido considerada indiciariamente assente, o que não sucedeu.
4ª Assim, deve a factualidade indiciariamente julgada assente ser aditada reproduzindo quanto à caracterização e composição da parcela expropriada o resultante da documentação junta aos autos a saber, do acórdão arbitrai, do despacho de adjudicação da parcela e planta de expropriações, do relatório de avaliação e do relatório da vistoria "ad perpetuam rei memoriam" bem como, do depoimento da testemunha E os quais comprovam que a edificação com 15 m2 de área, localizada sobre o túnel de passagem para o Largo D. Maria II, faz parte integrante da parcela n.° 84.1.
5ª Atendendo a que a requerida, ora recorrente, na sua oposição impugnou os factos alegados pela requerente nos artigos 11° a 17° do requerimento cautelar e face à prova testemunhal produzida, não se afigura correcto julgar indiciariamente assente a factualidade constante da alínea t) da douta decisão recorrida porquanto, o objectivo da reunião havida não foi explicar que "(a.) havia expropriado a parcela n.o 82 e que a demolição do edifício ai implantado causaria a queda da construção localizada sobre a passagem inferior para o Largo D. Maria II, pelo que se mostrava necessário demolir esta construção".
6ª Com efeito, a integração daquela construção na parcela n.° 84.1 foi desde início ponto assente, conforme decorre dos depoimentos das testemunhas e da testemunha P.
7ª Pelo que, deve a alínea t) da matéria de facto indiciariamente considerada assente ser corrigido para:
"t) na reunião referida em s), os representantes da requerida informaram os requerentes de que era necessário concretizar a desocupação da parte da parcela expropriada identificada com o n.o 84,1 que correspondia à parte da edificação ao nível do 10 andar confinante com a parcela n.o 82 e sita sobre o túnel de passagem para o Largo D. Maria II "
8ª As correcções que se impõem à matéria de facto são relevantes para a decisão do mérito da causa, pois é notório que, a terem-se em consideração os factos nos termos ora indicados, seria inevitável a improcedência da providência, tendo em conta os fundamentos de Direito seguidamente aduzidos.
9ª Considerando que na parcela n.° 84.1 se integra a parte do edifício principal nomeadamente, o primeiro andar, sobre a passagem inferior para o Largo D. Maria II, cuja propriedade foi adjudicada à ora recorrente por despacho judicial datado de 10 de Novembro de 2005, temos que não se verifica o primeiro dos requisitos legalmente exigidos para a realização de embargo de obra a saber, a ofensa de direito real e consequentemente para sua ratificação.
10ª Pelo que, mal andou a douta decisão recorrida ao considerar que se verificavam todos os requisitos para o decretamento da providência cautelar requerida.
Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e em consequência deve ser revogada a douta decisão recorrida indeferindo-se a ratificação judicial de embargo requerida.

Os requerente contra alegaram, pugnando pela confirmação do julgado.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2. Fundamentos:
2.1. De facto:
Na 1ª instância julgaram-se indiciariamente assentes os factos seguintes:
a) os autos de expropriação litigiosa por utilidade pública que constituem o processo principal, em que é expropriante CACÉMPOLIS – SOCIEDADE PARA O DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA POLIS NO CACÉM, S.A., e são expropriados MARIA e marido e J e mulher, respeitam a uma parcela de terreno com a área de 1053m2 a desanexar do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Agualva – Cacem sob o n"3810, parcela essa identificada sob o n°84.1 na Planta Parcelar de Expropriações – 3ª fase da CacémPolis.
b) por despacho do Ministro das Cidades, Ordenamento do Território e Ambiente de 5 de julho de 2004, publicado no Diário da República, 2' série, n`-'176, de 28.07.2004, foi declarada a utilidade pública, com carácter urgente, da expropriação das parcelas de terreno identificadas no mapa e na planta parcelar de expropriações – 3' fase, necessárias à execução do Plano de Pormenor da Área Central do Cacém, ratificado pela Resolução do Conselho de Ministros n944/2003, de 26 de Março, a favor de CacémPolis – Sociedade para o Desenvolvimento do Programa Polis no Cacém, S.A.;
c) encontra-se identificada sob o n°84.1 no mapa e na planta parcelar de expropriações – 3á fase da CacémPolis, S.A. uma parcela de terreno com a área de 1.053m2, pertencente ao prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Agualva Cacém sob o nº 3810, inscrito na matriz predial urbana sob os artigos 3136° e 3137° da freguesia do Cacém;
d) encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Agualva – Cacém sob o n°03810 o prédio urbano composto por "a) casa de r/c e 1" andar, 130m2 dependência 38m2 e logradouro 350m2; e b) casa de r/c e 1' andar, 109m2 e pátio, 300m2", situado no Cacém, no Largo D. Maria II, n°s.12, 13, 14, 15, 16, 17 e 18, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Agualva - Cacém sob os artigos 3136 e 3137°;
e) através da apresentação 50/790822, foi inscrita a aquisição do direito de propriedade sobre o prédio identificado em d) por J (…).
f) encontra-se inscrito na matriz predial urbana da freguesia do Cacém, concelho de Sintra, sob o artigo 3136°, o prédio descrito como prédio com r/c e 19 andar, superfície 13m2, dependências 38m2, páteo 350m2, localizado no Largo D. Maria II, n°s.15, 16, 17 e 18, no Cacém;
g) encontra-se inscrito na matriz predial urbana da freguesia do Cacém, concelho de Sintra, sob o artigo 3137°, o prédio descrito como prédio com r/c e 19 andar, superfície 109m2, páteo 350m2, localizado no Largo D. Maria II, n°s.12, 13 e 14, no Cacém;
h) no dia 27 de Setembro de 2004, foi realizada vistoria "ad perpetuam rei memoriam" à parcela n984.1, conforme auto junto ao processo principal a fls.19-34, do qual consta, além do mais, o seguinte:
"(...)5. CARACTERIZAÇÃO
Parcela de terreno que constitui logradouro e quintal, situado nas traseiras de edifício habitacional e comercial, de rés-do-chão e 1º andar. O prédio tem acesso ao Largo D. Maria II, a Rua Elias Garcia e á Rua Eduardo Augusto Cortês, sendo que a parcela tem também acesso às três vias. Será também afectado parte do edifício principal, nomeadamente o 1° andar, sobre a passagem inferior entre esta parcela e
a parcela n°82.
Trata-se de uma expropriação parcial.
A área a expropriar é de 1053m2
6.BENFEITORLAS
Pela expropriação serão afectadas as seguintes benfeitorias:
a) Parte do edifício de habitação de um só piso, com paredes de alvenaria rebocadas e pintadas — área de 15 m2.
b) (...).";
i) no dia 4 de Janeiro de 2005, a CacémPolis — Sociedade para o Desenvolvimento do Programa Polis no Cacém, S.A. tomou posse da referida parcela nº 84.1, conforme auto de posse administrativa constante de fis.17-18 do processo principal;
j) por despacho de fis.148-149 do processo principal, datado de 10 de Novembro de 2005, foi adjudicada à expropriante a propriedade da parcela a expropriar;
k) a CacémPolis - Sociedade para o Desenvolvimento do Programa Polis no Cacém, S.A. subscreveu e enviou à requerente Maria E, que a recebeu, a carta cuja cópia se encontra junta aos autos a fls.16, datada de 22.12.2005, da qual consta, além do mais, o seguinte.
"(...) Exmo. Senhor
A CacémPolis tomou posse administrativa da parcela 84.1, em 4 de Janeiro de 2005, já demoliu a maior parte das benfeitorias, mas falta demolir a parte construída sobre a passagem para o Largo D. Maria II, n°18.
Assim, vimos pela presente notificar V. Exas. da demolição da referida construção, a ter lugar no próximo dia 4 de Janeiro de 2006, pelas 8.00 horas, e solicitar a respectiva desocupação antes desta data (..)";
l) a CacémPolis — Sociedade para o Desenvolvimento do Programa Polis no Cacem, S.A. subscreveu e enviou à requerente Maria E e ao requerente J, que as receberam, as cartas cujas cópias se encontram junta aos autos a fls.17 e 18, respectivamente, datadas de 06.01.2005, das quais consta, além do mais, o seguinte:
"(...) Exmo. Senhor
Na sequência dos contactos que temos vindo a manter com V. Exas e com o Advogado que vos representa, vimos pela presente notificar V. Exas. da demolição das benfeitorias da parcela 84.1, a ter lugar no próximo dia 11 de Janeiro de 2006, pelas 11.00 horas, e solicitar a respectiva desocupação antes desta data (...)";
m) no dia 11 de Janeiro de 2006, o requerente J e C, na qualidade de representante da requerente E, Ldª., acompanhados por duas testemunhas, procederam ao embargo extrajudicial constante de fls.19 dos presentes autos, do qual consta o seguinte:
"Nos termos do artigo 412° do Código de Processo Civil, ordena-se a suspensão imediata da demolição da parte do 1' andar do edifício principal sita sobre a passagem para o Largo D. Maria II, por a mesma não se encontrar abrangida na área da parcela 84.1, cuja utilidade pública urgente foi publicada no Diário da República, It Série, n°176, de 28 de Julho de 2004.
Mais se declara que o presente embargo será ratificado judicialmente no prazo de 5 dias.
Adverte-se, desde já, a entidade expropriante, na pessoa que a representa, que o incumprimento da referida ordem a fará incorrer em responsabilidade civil e criminal.";
n) o edifício principal do prédio urbano identificado em d) é constituído por rés-do-chão e 1º andar;
o) parte do edifício principal do prédio em causa encontra-se construída, ao nível do 1° andar, sobre uma passagem inferior para o Largo D. Maria II;
p) a construção referida em o) confina com um edifício implantado na parcela identificada sob o 1182 na Planta Parcelar de Expropriações 3á fase da CacémPolis, S.A.;
q)o edifício referido em p), implantado na parcela 11"82, serve de sustentação à construção referida em o);
r)a requerida iniciou os trabalhos de demolição do edifício referido em p), implantado na parcela 11°82;
s} no dia 22 de Junho de 2005, ocorreu nas instalações da requerida uma reunião na qual participaram o requerente J, acompanhado por C e António, na qualidade de gerente da 2 requerente, bem como, em representação da requerida, P e T;
t) na reunião referida em s) os representantes da requerida informaram de que era necessário concretizar a desocupação da parte da edificação ao nível do 1º andar confinante com a parcela nº 82 e sita sobre o túnel de passagem para o Largo D. Maria II; Alterada a redacção deste ponto da matéria de facto, conforme se decidirá infra, sendo a seguinte a redacção primitiva:
t) na reunião referida em s), os representantes da requerida explicaram que esta havia expropriado a parcela 11°82 e que a demolição do edifício aí implantado causaria a queda da construção localizada sobre a passagem inferior para o Largo D. Maria li, pelo que se mostrava necessário demolir esta construção”.
u) a utilização do 1° andar referido em n), abrangendo a construção localizada sobre a passagem inferior para o Largo D. Maria Il, foi cedida à requerente E, Lda.;
v) a requerente E, Lda. explora um centro de explicações no local referido em u), encontrando-se colocada na fachada principal do edifício uma placa identificadora da aludida firma;
w) no dia 26 de Dezembro de 2005, os 19 requerentes comunicaram à requerida que na área expropriada não se encontrava abrangido o 1º andar do edifício principal e que nesse 1º andar funcionava a requerente E, Lda.;
x) a requerida não comunicou à requerente E, Lda., a demolição da construção localizada sobre a passagem inferior para o Largo D. Maria II.

2.2. De direito:
Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões da alegação da requerida, ora agravante, colocam-se como questões essenciais a apreciar, saber:
- se deve alterar-se a decisão sobre a matéria de facto;
- se ocorrem os pressupostos de que depende o decretamento da providência cautelar requerida.

2.2.1. Vigora no nosso ordenamento jurídico o princípio da liberdade de julgamento ou da prova livre (artigo 655º do Código de Processo Civil), segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção que tenha firmado acerca de cada facto controvertido, salvo se a lei exigir para a existência ou prova do facto jurídico qualquer formalidade especial, caso em que esta não pode ser dispensada. Segundo este princípio, que se opõe ao princípio da prova legal, as provas são valoradas livremente, sem qualquer grau de hierarquização, nem preocupação do julgador quanto à natureza de qualquer delas.
Além deste princípio, que só cede perante situações de prova legal - prova por confissão, por documentos autênticos, por certos documentos particulares e por presunções legais -, vigoram ainda os princípios da imediação, da oralidade e da concentração, pelo que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão de 1ª instância sobre a matéria de facto, ampliados pela reforma processual operada pelo DL nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, com as alterações introduzidas pelo DL nº 180/96, de 25 de Setembro, deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados.
À luz do disposto no artigo 712º nº 1 do Código de Processo Civil a decisão sobre a matéria de facto, por princípio inalterável pela Relação, pode ser alterada em sede de recurso se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690º-A, a decisão com base neles proferida (al. a)), se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas (al. b)) ou ainda se o recorrente apresentar documento novo superveniente, que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a resposta assentou.
No caso vertente, insurge-se a agravante contra a decisão sobre a matéria de facto, defendendo estar indiciariamente provado, face à prova documental produzida e ao depoimento das testemunhas Euclides Soares Teixeira e Paula Natividade Gomes, parcialmente transcritos, que a parte do 1º andar do edifício principal construída sobre a passagem inferior que dá acesso ao largo D. Maria II faz parte integrante da parcela 84.1, tendo, consequentemente, sido objecto de expropriação, pelo que deve tal facto ser aditado aos factos assentes.
Salvo o devido respeito, não lhe assiste razão.
Constitui questão nuclear neste recurso determinar o objecto da expropriação, mais concretamente, saber se a aludida parte do 1º andar do edifício principal construída sobre a passagem inferior que dá acesso ao Largo D. Maria II faz parte integrante da parcela 84.1 expropriada, a desanexar do prédio urbano descrito na Conservatória do registo Predial de Agualva-Cacém sob o nº 3810, e, por conseguinte, se é licito à agravante, na qualidade de expropriante, demoli-la ou se podem os agravados obstar a tal demolição através do embargo de obra nova judicialmente ratificado.
Assim, colocada a questão, afigura-se que não pode tal facto não pode resultar de depoimento testemunhal, devendo os elementos identificadores da parcela expropriada extrair-se dos termos da declaração de utilidade pública, em conformidade com o disposto no artigo 17º nºs 3 e 4 do Código das Expropriações aprovado pela Lei nº 168/99, de 18 de Setembro, eventualmente integrada pelo auto de vistoria ad perpetuam rei memoriam.
Nesta linha de pensamento, entende-se que também não pode manter-se a redacção que consta da alínea a) dos factos assentes no segmento em que se afirma que a parcela expropriada “abrange o logradouro e dependência referidos em a) e o pátio referido em b), inscrito na matriz predial urbana sob os artigos 3136° e 3137" da freguesia do Cacém, mantendo-se no prédio original ambas as casas de r/c e 1º andar mencionadas em a) e b) da referida descrição” predial, uma vez que respeita ao teor da descrição predial e o registo, no que ora releva, tem natureza declarativa, não constituindo direitos, como o afirmam, aliás, os agravados na sua contra alegação ao dizerem que “a composição da parcela decorre da prova documental e sua interpretação”.
Como tal, esse segmento tem de eliminar-se, o que se decide ao abrigo do disposto no artigo 712º nº 1 al. a) do Código do Processo Civil.
No que concerne à alínea t) dos factos assentes, considera-se pertinente o reparo da agravante.
Efectivamente, tanto quanto a audição dos registos da prova testemunhal produzida permite concluir, dadas as limitações que encerra relativamente à percepção das reacções das testemunhas que ajudam na formulação de um juízo sobre a credibilidade dos depoimentos, as testemunhas (…), cujos depoimentos a agravante transcreveu parcialmente sem qualquer reparo dos agravados, são claros no sentido de que a reunião referida na alínea s) visou concretizar a desocupação da parte do 1º andar do edifício principal construída sobre a passagem inferior que dá acesso ao Largo D. Maria II, que confina com a parcela 82 também expropriada, por ser entendimento da agravante que essa construção estava expropriada, integrando a parcela 84.1. E os depoimentos das testemunhas (…) não são de molde a infirmar tal convicção.
Assim e em conclusão, não se adita qualquer facto aos que resultaram indiciariamente provados, elimina-se da alínea a) o segmento referido e altera-se a redacção da alínea t), da mesma passando dela a constar que “na reunião referida em s) os representantes da requerida informaram de que era necessário concretizar a desocupação da parte da edificação ao nível do 1º andar confinante com a parcela nº 82 e sita sobre o túnel de passagem para o Largo D. Maria II”.

2.2.2. Considerando estas alterações na matéria de facto, importa agora averiguar se ocorrem, no caso, os requisitos exigidos para a providência pedida.
O embargo de obra nova pode ser requerido por quem se julgue ofendido no seu direito de propriedade, em qualquer direito real de gozo ou na sua posse, por obra, trabalho ou serviço novo que cause ou ameace causar prejuízo, contanto que o requeira no prazo de trinta dias a contar do conhecimento do facto (artigo 412º do Código de Processo Civil).
Esta providência, seja o embargo de obra nova judicial ou extrajudicial, tem em vista suspender provisoriamente uma obra, cuja execução ofenda o direito de propriedade, singular ou comum, qualquer outro direito real de gozo ou a posse do requerente e cause ou esteja na iminência de lhe causar prejuízos.
Pretendendo tutelar especificamente direitos de conteúdo material ligados aos direitos reais ou equiparados, a providência cautelar de embargo de obra nova exige, assim, à luz do disposto no nº 1 do artigo 412º, a verificação cumulativa de três requisitos essenciais: que o embargante seja titular de um direito; que se considere ofendido nesse direito em consequência da obra, trabalho ou serviço novo; que tal obra, trabalho ou serviço lhe cause ou ameace causar prejuízo. Cfr. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, IV vol., 2ª ed., pág. 238, e Ac. RE de 26.04.90, BMJ 396-456.
No caso vertente, os requerentes J e C, aqui agravados, embargaram extrajudicialmente, no dia 11 de Janeiro de 2006, a obra de demolição “da parte do 1º andar do edifício principal sita sobre a passagem para o Largo D. Maria II”, para obstarem ao seu prosseguimento por, alegadamente, “a mesma não se encontrar abrangida na área da parcela 84.1, cuja utilidade pública urgente foi publicada no Diário da República II Série, de 28 de Julho de 2004”.
Saber se tal construção faz ou não parte da parcela expropriada é, como se referiu, a questão nuclear a decidir.
Os autos evidenciam que por despacho do Ministro das Cidades, Ordenamento do Território e Ambiente de 5 de Julho de 2004, publicado no Diário da República, 2ª Série, nº 176, de 28.07.2004, foi declarada a utilidade pública, com carácter urgente, da expropriação de 76 parcelas de terreno identificadas no mapa e na planta parcelar de expropriações – 3ª fase, necessárias à execução do Plano de Pormenor da Área Central do Cacém, ratificado pela Resolução do Conselho de Ministros n944/2003, de 26 de Março, a favor de CacémPolis – Sociedade para o Desenvolvimento do Programa Polis no Cacém, S.A.
Uma dessas parcelas, a identificada sob o n° 84.1 no mapa e na planta parcelar de expropriações – 3ª fase, tem a área de 1.053m2 e fazia parte do prédio urbano pertencente aos agravados J e mulher, Maria E e marido, descrito na Conservatória do Registo Predial de Agualva Cacém sob o nº 3810, composto por “a) casa de r/c e 1º andar, 130m2 dependência 38m2 e logradouro 350m2; e b) casa de r/c e 1º andar, 109m2 e pátio, 300m2”.
No dia 27 de Setembro de 2004 foi realizada a vistoria ad perpetuam rei memoriam, tendo-se consignado no respectivo auto, quanto à caracterização da parcela 84.1 em causa, o seguinte:
Parcela de terreno que constitui logradouro e quintal, situado nas traseiras de edifício habitacional e comercial, de rés-do-chão e 1º andar. O prédio tem acesso ao Largo D. Maria II, à Rua Elias Garcia e á Rua Eduardo Augusto Cortês, sendo que a parcela tem também acesso às três vias. Será também afectado parte do edifício principal, nomeadamente o 1° andar, sob a passagem inferior entre esta parcela e a parcela n° 82.
E no tocante às benfeitorias, consignou-se: “Pela expropriação serão afectadas as seguintes benfeitorias:
a) Parte do edifício de habitação de um só piso, com paredes de alvenaria rebocadas e pintadas -Área de 15 m2.
b) (...)".
A vistoria ad perpetuam rei memoriam consubstancia uma diligência de produção antecipada de prova obrigatória nos processos de expropriação urgentes, que se insere na fase administrativa do processo expropriativo, anterior à fase da arbitragem, destinada a fixar os elementos de facto susceptíveis de desaparecerem e cujo conhecimento seja de interesse ao julgamento do processo (artigos 15º nº 2 e 20º nº 1 al. c) do citado Código das Expropriações).
Este auto de vistoria ad perpetuam rei memoriam, que, tanto quanto os autos o evidenciam, não foi objecto de reclamações, muniu a expropriante do poder de “utilizar” a parcela expropriada “ para os fins da expropriação, lavrando o auto de posse administrativa e dando início aos trabalhos…”, auto de investidura que, no caso, foi lavrado em 4 de Janeiro de 2005.
Ora, a declaração de utilidade pública integrada pelo auto de vistoria ad perpetuam rei memoriam, que contém, além da descrição pormenorizada do local, planta da parcela nº 84.1em questão, como impõe o disposto no artigo 21º nº 3 als. a) e c) do referido Código das Expropriações, permite concluir, num juízo ainda que meramente indiciário, único que é exigível neste procedimento cautelar, que a parte do edifício principal construído, ao nível do 1º andar, sobre (e não sob, como por lapso manifesto se escreveu naquele auto) uma passagem inferior para o Largo D. Maria II, confinante com um edifício implantado na parcela identificada sob o nº 82 também expropriada, integra a parcela nº 84.1 que foi expropriada e desanexada do prédio descrito sob o nº 3810.
A natureza meramente declarativa do registo predial não permite, ao contrário do que se entendeu na decisão recorrida, radicar o juízo relativo à integração ou não daquela parte do edifício na parcela expropriada no confronto da descrição predial relativa ao prédio, só parcialmente expropriado, com a inscrição subsequente à expropriação.
Aqui chegados, tem de concluir-se que não está verificado o primeiro dos requisitos enunciados, ou seja, os agravados, requerentes da providência, não lograram demonstrar sumariamente ser titulares do direito que invocaram, indispensável para o decretamento da providência pedida.
Termos em que procede o núcleo essencial das conclusões da alegação da agravante.

3. Decisão:
Nesta conformidade, acorda-se em conceder provimento ao agravo e, consequentemente, revogar a decisão recorrida, julgando-se improcedente o procedimento cautelar de ratificação judicial de embargo de obra nova.
Custas, nas duas instâncias, pelos agravados.

12 de Junho de 2007
(Fernanda Isabel Pereira)
(Maria Manuela Gomes)
(Olindo Geraldes)
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1 Alterada a redacção deste ponto da matéria de facto, conforme se decidirá infra, sendo a seguinte a redacção primitiva:
t) na reunião referida em s), os representantes da requerida explicaram que esta havia expropriado a parcela 11°82 e que a demolição do edifício aí implantado causaria a queda da construção localizada sobre a passagem inferior para o Largo D. Maria li, pelo que se mostrava necessário demolir esta construção”.
2 Cfr. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, IV vol., 2ª ed., pág. 238, e Ac. RE de 26.04.90, BMJ 396-456.