| Decisão Texto Integral: | ACORDAM OS JUIZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
I A, SA e ANTÓNIO intentaram contra G, SA, acção declarativa com processo ordinário pedindo a sua condenação: a) no pagamento das quantias de 446.580 Euros à primeira Autora e de 100.000 Euros ao segundo Autor, quantias essas acrescidas dos juros desde a citação; b) na indemnização a favor da primeira Autora, a liquidar em execução de sentença, pelos lucros cessantes decorrentes do facto ilícito praticado; c) a transmitir ao banco de Portugal, em prazo a fixar pelo Tribunal, que a informação transmitida era falsa e, consequentemente, deve ser eliminada da base de dados da Central de Riscos daquele banco e, para a hipótese de não cumprir tal obrigação, em sanção pecuniária compulsória no valor de 3.000 Euros por cada dia de atraso na comunicação àquele banco; d) pede ainda a remessa da cópia da decisão proferida ao banco de Portugal para os efeitos tidos por convenientes.
Alegaram para o efeito e em síntese que o segundo Autor é administrador da primeira Autora e ainda administrador da sociedade E, SA, sendo que a Ré transmitiu ao Banco de Portugal em Abril de 2001 a existência de um contencioso com esta sociedade e tal comunicação veio a ser registada e objecto de inserção na base de dados de utilizadores de crédito com risco por aquela instituição bancária, e porque a informação prestada era falsa, os Autores vieram a sofrer prejuízos vários, nomeadamente a não concessão de um financiamento à primeira Autora.
A final veio a ser proferida sentença em que se absolveu a Ré do pedido, por não se verificarem os pressupostos da responsabilidade civil contratual.
Inconformada com esta decisão, recorreram os Autores apresentando as seguintes conclusões:
- A matéria de facto deduzida pela R. na sua contestação, não integra matéria de excepção, mas sim impugnação directa dos factos constantes da p. i.
- Tal é o sentido inequívoco da impugnação expressa decorrente do artigo 110° da contestação da Recorrida.
- Mas mesmo que se entenda que a matéria da contestação não é impugnação directa, por outra conclusão decorrer da sua leitura global, a mesma sempre constituirá impugnação indirecta ou motivada.
- Em consequência, os factos alegados na contestação que não estão suportados por documentos não impugnados, não devem ser levados aos Factos Assentes, mas sim à Base Instrutória.
- E mesmo que se entendesse que a matéria da contestação integra matéria de excepção, ao não deduzir tal excepção de forma separada, em violação do comando contido no artigo 488° do CPC, a Recorrida tem de sofrer a consequência da inoperância do disposto no artigo 505° do CPC.
- A Recorrida nunca poderá beneficiar da prova decorrente da omissão de impugnar a matéria de excepção que, por culpa sua, a contraparte não entendeu como tal.
- Em consequência, a reclamação apresentada pelas AA. deveria ter sido julgado procedente e, por via de tal procedência, excluídos dos Factos Assentes, os factos alegados pela R., neles apenas cabendo os factos admitidos por acordo e os factos decorrentes dos documentos não impugnados.
- O facto alegado pelas AA no artigo 9° da p.i. deveria ter sido considerado nos Factos Assentes, por não ter havido impugnação do mesmo.
- Só após ter sido citada nos presentes autos é que a Recorrida veio deduzir, noutros autos, pedido reconvencional contra a E.
- A Recorrida manteve-se entre Dezembro de 1997 e Março de 2003 na mais completa inércia processual, não existindo qualquer contencioso, nem podendo ser equivalente a uma situação de contencioso o estar um dossier nos serviços de contencioso da Recorrida, nada fazendo estes.
- Ao comunicar um facto que não era verdadeiro e não tendo a R. impugnado sequer os documentos juntos pelas AA. em 29.03.2004, dos quais decorre que já não existe a menção a processo em contencioso, o que só pode acontecer através de comunicação ao Banco de Portugal e por iniciativa da Recorrida, em absoluta contradição com a posição assumida no processo pendente na 10ª Vara, a R. pratica actos dos quais decorrem prejuízos para terceiros, e, designadamente para as AA.
- As condutas da Recorrida, e designadamente a comunicação ao Banco de Portugal, traduzem actos de efeitos duradouros e permanentes, que vêm, mais tarde a causar prejuízos às AA., pelo que existe claro e directo nexo causal entre a conduta da Recorrida e os prejuízos sofridos pelas recorrentes.
- Da prova de todos os factos alegados pelas Recorrentes decorreria o preenchimento de todos os requisitos essenciais da responsabilidade civil extracontratual.
Nas contra alegações a Ré pugna pela manutenção da sentença.
II A sentença recorrida deu como assentes os seguintes factos:
……………………………….
1. A admissibilidade de se terem dados como assentes os factos constantes da contestação da Ré.
Decorre da acta da audiência preliminar que teve lugar nos presentes autos que foi proferido o seguinte despacho inicial «tendo em conta a posição assumida pela Ré na sua contestação parece-nos que a mesma, para além de impugnar os factos invocados pelos Autores, alega ainda matéria com o fim de justificar a licitude do seu comportamento no que respeita à comunicação feita ao banco de Portugal, factos esses que não foram objecto de impugnação e que como tal, a nosso ver, terão de considerar-se assentes por confissão já que configuram matéria de excepção e ainda porque, no caso de alguns, resultam de documentos juntos aos autos também não impugnados.
Tais factos são os que constam dos artigos 1 a 4, 5 (com excepção da data e valor aí indicado), 6 e 7 da petição inicial e 7 a 24, 26 a 39, 41 a 56, 58 a 65, 67, 76, 77 e 80 da contestação.
Assim, após análise dos factos que o Tribunal considera já assentes, e porque considera que, perante os mesmos, é já possível conhecer do pedido….faculta-se ás partes a discussão de facto e de direito em conformidade.».
Na sequência deste despacho os Autores formularam a sua reclamação, pugnando pela inserção dos factos assentes na base instrutória, uma vez que os mesmos constituíam, no seu entender, matéria de impugnação directa, tendo mantido esta tese em sede de alegações de recurso.
A causa petendi nesta acção baseia-se na circunstância de a Ré ter eventualmente fornecido ao banco de Portugal uma informação falsa sobre a existência de um contencioso com a empresa E, da qual o 2º Autor é Administrador, e que por via dessa informação a primeira Autora deixou de poder obter financiamento bancário, o que lhe acarretou, bem como ao segundo Autor, prejuízos vários.
Na contestação, a Ré veio alegar factos concretos em que contradita directamente a versão apresentada pelos Autores, maxime, que existia efectivamente um crédito seu para com a E no seu departamento de contencioso, o que motivou aquela comunicação ao banco de Portugal.
Quer dizer, a Ré, impugnou directa e especificadamente os factos alegados pelos Autores, não se vislumbrando a existência de qualquer defesa por excepção, pois a justificação da comunicação feita mais não é do que a afirmação de que o facto comunicado correspondia à verdade não podendo, dessa sorte, produzir o efeito jurídico pretendido por aqueles, cfr artigo 477º, nº2, primeira parte, do CPCivil.
In casu, os Autores baseiam o seu petitório numa conduta culposa da Ré e esta, para além de ter procedido a uma defesa directa e especificada, apresenta, globalmente, uma versão manifestamente contraposta à dos Autores (sendo que, além do mais, está em total oposição com a tese dos Autores apreciada no seu conjunto), tendo cumprido o ónus imposto pelo normativo inserto no artigo 490º, nº1 e 2 do CPCivil, veja-se a propósito Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre O Novo Processo Civil, 290.
Mas, mesmo que por mera hipótese de raciocínio assim não se entendesse, veja-se que em parte alguma da contestação da Ré se vislumbra qualquer especificação de que a sua defesa é feita em termos indirectos (por excepção) e directos (por impugnação), tendo violado, desta feita, o preceituado no artigo 488º do CPCivil.
Na sua redacção primitiva, esse dispositivo predispunha que «Na contestação deve o réu individualizar a acção e expor separadamente os factos, as razões de direito e as conclusões da defesa», sendo que, com as alterações introduzidas pelo artigo 1º do DL 242/85, de 9 de Julho a mesma passou a ser a seguinte «Na contestação deve o réu individualizar a acção, expor as razões de facto e de direito por que se opõe à pretensão do autor e, no final, especificar os factos contidos no articulado que considera provados e aqueles cuja prova se propõe fazer.»
Na reforma processual de 1995, o citado artigo passou a ter a seguinte redacção: «Na contestação deve o réu individualizar a acção, expor as razões de facto e de direito por que se opõe à pretensão do autor, especificando separadamente as excepções que deduza e formular no final as conclusões da defesa.», passando a sua redacção definitiva a ser a seguinte, por força do DL 180/96, de 25 de Setembro « Na contestação deve o réu individualizar a acção e expor as razões de facto e de direito por que se opõe à pretensão do autor, especificando separadamente as excepções que deduza.».
O citado normativo impõe, hoje em dia, um ónus, isto é, não se trata de um mero enunciado de como elaborar a contestação, mas é antes uma disposição injuntiva, cfr neste sentido Lebre de Freitas, in Código De Processo Civil Anotado, vol 2º, 293, aliás citado pelos Apelantes.
Daqui resulta que, a inobservância do ónus aí consignado não pode dar lugar à cominação inserta no artigo 505º do CPCivil, porque se assim fosse, ficariam sem qualquer conteúdo os princípios estruturantes do processo civil, maxime os da cooperação e boa fé processuais e a este propósito leia-se a explanação de motivos no preâmbulo do DL 329-A/85 de 12 de Dezembro «…em matéria de contestação, por razões de clareza e em concretização do principio da boa fé processual, estabeleceu-se que o réu deverá conduzir especificada e discriminadamente a matéria relativa às excepções deduzidas e formular, a final, e em correspectividade com a exigência formal de dedução do pedido que é feita ao autor, as conclusões da sua defesa.» (acentue-se que esta última parte deixou de fazer sentido face à nova redacção do preceito).
Queremos nós dizer, o preceituado no artigo 505º só tem razão de ser, se a parte omitiu um articulado, vg uma resposta à contestação ou uma réplica, quando o articulado a que se deveria responder obedecia aos requisitos legais aplicáveis, salvo nos casos de conhecimento oficioso das excepções pelo Tribunal ou naqueles em que a dedução de excepção, pela parte, é de tal forma evidente, que não possam restar dúvidas algumas acerca da mesma, sob pena de poder vir a ser beneficiada, se eventualmente no meio da sua contestação «en passant» aduzir factos que possam consubstanciar uma defesa indirecta e que assim passem despercebidos à contraparte.
Por outra banda, também se poderão admitir determinadas situações, em que a parte (Réu) se defende por excepção, sem que tenha a consciência de que assim o esteja a fazer, não invocando em parte alguma do seu articulado que os factos alegados se destinem a impedir, modificar ou extinguir o direito invocado.
Repugna-nos admitir que o sentido das aludidas normas não seja assim encarado, como também nos repugna que a parte que não cumpre devidamente aquele ónus, pelo menos de forma explicita e sem margem para quaisquer dúvidas, possa vir a ser condenada como litigante de má fé, tal como entende Lopes do Rego, in Comentários Ao Código De Processo Civil, 1999, 327 (no mesmo sentido cfr o AC STJ de 4/11/99, CJ Ano VII, tomo 3/73) ou que não haja lugar a qualquer cominação (cfr Ac RP de 12/5/03, CJ 2003, tomo 3/166), aliás porque o seu incumprimento poderá ser devido a uma mera negligência inconsciente, e se assim for, a mesma é insuficiente para caracterizar a litigância de má fé, que pressupõe, face à redacção do artigo 456º do CPCivil, o dolo e/ou a negligência grave.
E, do nº 2 de tal normativo resulta que constituem actuações ilícitas da parte: a) a dedução de oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) a apresentação de uma versão dos factos, por acção ou omissão, em violação do dever de verdade; c) omissão grave do dever de colaboração; d) o uso reprovável do processo ou de meios processuais, com o fim de conseguir um objectivo ilegal ou de impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério a acção da justiça.
No caso sub judice, se efectivamente se entendesse que a Ré/Agravada havia deduzido uma defesa por excepção sem a especificar, ter-se-ia de integrar o seu comportamento, quiçá, na hipótese prevenida na alínea c), isto é, teria agido com omissão grave do dever de cooperação inserto no artigo 266º, nº 1 do CPCivil - «Na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litigio.».
«Este dever (trata-se na realidade de um poder dever ou dever funcional), desdobra-se para esse órgão, em dois deveres essenciais: um é o dever de esclarecimento ou consulta, isto é, o dever de o tribunal esclarecer junto das partes as eventuais dúvidas que tenha sobre as suas alegações ou posições em juízo, de molde a evitar que a sua decisão tenha por base a falta de esclarecimento de uma situação e não a verdade sobre ela apurada; outro é o dever de prevenção ou de informação, ou seja, o dever de o tribunal prevenir as partes sobre eventuais deficiências ou insuficiências das suas alegações ou pedidos e de as informar sobre aspectos de direito ou de facto que por elas não foram consideradas (porque, por exemplo, o tribunal enquadra juridicamente a situação de forma diferente daquela que é a perspectiva das partes ou porque o tribunal pretende conhecer oficiosamente certo facto relevante para a decisão da causa)…A utilização deste poder funcional pelo tribunal em nada contende com a disponibilidade das partes sobre o processo, porque, como é claro, embora o tribunal tenha o dever de se esclarecer perante as partes ou de as prevenir quanto às eventuais deficiências das suas alegações ou pedidos, aquelas conservam a liberdade de esclarecer ou não o juiz e de suprir ou não as deficiências detectadas. O que decorre da concessão daquele poder-dever e do respectivo uso pelo tribunal é que a essa disponibilidade acresce a consciência das consequências dos actos praticados ou omitidos em processo…», Miguel Teixeira de Sousa in ROA, 1995, II/362, citado por Abílio Neto no CPCivil Anotado, 18ª edição, 355.
No caso sub judice, o Tribunal em sede de audiência preliminar advertiu as partes que havia considerado a defesa da Ré também como indirecta (o que a Ré não havia especificado em parte alguma da sua contestação) e que, face à falta de réplica, iria considerar confessados determinados factos que no seu entender eram determinantes para a decisão do pleito, fazendo assim aplicar o disposto no artigo 490º do CPCivil, ex vi do artigo 505º do mesmo diploma (o que, como apontamos supra, não se verificava in casu).
Todavia, para que o Tribunal pudesse utilizar deste poder-dever, não poderia de modo algum ignorar os ónus que impendem sobre as partes, maxime, no que tange aos de alegação e afirmação, bem como às consequências que da sua omissão pudessem igualmente advir, já que o princípio do dispositivo faz impender sobre aquelas um outro principio que é o da sua auto responsabilização.
Ora, recaindo sobre o Réu o ónus de deduzir a sua defesa de forma clara e inequívoca, quer no que se refere à matéria de excepção, quer no que se refere à matéria da impugnação e tendo omitido tal ónus, nunca poderia vir a beneficiar da «cominação» imposta ao Autor pela ausência da respectiva réplica, a que alude o artigo 505º do CPCivil, pois como já se referiu, este segmento normativo pressupõe a existência de articulados conformes às exigências legais, o que se não verificou no caso em apreço.
Por outra banda, mesmo que se admitisse que dela pudesse vir a beneficiar, nunca o Tribunal poderia imediatamente decidir sobre a matéria de excepção, não invocada como tal, sem que tivesse antes feito cumprir o preceituado no nº3 do artigo 3º do CPCivil, dando às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre a questão, por forma a evitar-se uma decisão surpresa.
Por último, entendendo-se que o legislador não previu qualquer cominação para a falta de observância do preceituado no artigo 488º do CPCivil, também não se poderá reconduzir a mesma a uma situação de litigância de má fé, a qual sempre pressuporia a alegação e prova dos factos que a consubstanciassem, isto é, no que à economia do processo concerne, que a Ré não teria identificado a excepção deduzida por negligência grave, negligência essa que de forma alguma será legítimo presumir sem mais.
Nos termos do artigo 712º, nº4 do CPCivil, este Tribunal pode anular mesmo oficiosamente o julgamento desde que, além do mais, repute deficiente a matéria de facto.
Ora, estando impugnada a tese explanada pelos Autores, óbvio se torna que prematuramente se decidiu a presente acção, procedendo, por aqui, as conclusões de recurso.
2. Da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil.
Face à posição supra explanada, torna-se evidente que de igualmente se aplicam nesta sede todas as considerações feitas, não se podendo concluir pela existência ou inexistência dos pressuposto que poderão conduzir á responsabilização da Ré/Apelada, sem que se apurem, previamente, os factos em que assenta a acção.
III Destarte, julga-se procedente a Apelação e em consequência anula-se a sentença proferida, devendo o processo prosseguir com a elaboração da base instrutória.
Custas pela parte vencida a final.
Lisboa, 2 de Dezembro de 2004
(Ana Paula Boularot)
(Lúcia de Sousa)
(Luciano Farinha Alves)
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