Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
851/12.3TASXL.L1-3
Relator: A. AUGUSTO LOURENÇO
Descritores: CRIME DE INFIDELIDADE
PRONÚNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/25/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: PROCESSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: 1. Para a verificação do crime de infidelidade p. e p. pelo artº 224º do cód. penal, tem de existir um prejuízo patrimonial “importante”, causado “intencionalmente” e com “grave violação dos deveres que lhe incumbem”, por parte daquele a foi confiado, por lei ou por acto jurídico, o encargo de administrar ou fiscalizar o património alheio.
2. Tomando como ofendidos apenas os titulares dos interesses que a lei quis proteger, (artº 68º nº 1 al. a) do cód. procº penal) manteve-se consagrado o conceito estrito de ofendido que a doutrina e a jurisprudência formularam sem divergências de maior no domínio do cód. procº penal de 1929.
3. Neste conceito de ofendido não cabem, por isso, o titular de interesses mediata ou indirectamente protegidos, o titular de uma ofensa indirecta ou o titular de interesses morais. Podem estes ser lesados e nessa qualidade sujeitos processuais como partes civis mas não constituir-se assistentes.
4. No caso do crime de infidelidade, o bem protegido é o património e o património que o arguido enquanto gerente estava encarregado de administrar, era o da sociedade e não o seu património pessoal, pelo que não se podiam constituir assistentes, os dois sócios desavindos, que são reciprocamente queixosos e arguidos.
5. Uma vez que as sociedades por quotas detêm personalidade jurídica autónoma da dos sócios, há que concluir que no crime de infidelidade são os interesses da sociedade que a lei quis imediatamente proteger e por consequência, só esta tinha legitimidade para se constituir assistente nos autos.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes da 3ª Secção
Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO

            No âmbito do inquérito nº 851/12.3TASXL, que corre termos no Tribunal de Instrução Criminal de Almada, em que é assistente Husete, Empresa de Trabalho Temporário, Ldª, e arguido João, (e outros) o Ministério Público, determinou o arquivamento do inquérito relativamente aos crimes de infidelidade, p. e p. pelo artº 224º nº 1 e 2 do cód. penal, por entender que da prova recolhida não resultaram indícios suficientes da prática, de factos susceptíveis de indiciar matéria criminal.

            A queixosa Husete, Ldª requereu a constituição como Assistente nos autos, e requereu, a abertura de instrução, (cfr. fls. 1326 a 1356).

                        O arguidoJoão, que era simultaneamente arguido e queixoso, veio também a constituir-se assistente e requereu igualmente a abertura de instrução, (cfr. fls. 1.401 a 1417).


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                        Após a realização do debate instrutório, veio o Sr. Juiz de Instrução a proferir despacho de não pronúncia do arguido e determinar o arquivamento dos autos, (cfr. fls. 1522 a 1532).

*

                        Inconformada com tal decisão, a assistente, Husete Empresa de Trabalho Temporário, Ldª interpôs o recurso de fls. 1557 a 1578, concluindo nos seguintes termos:

            «1.      Na sentença[1] de 1 de Junho de 2015 onde a Exmª Senhora Juiz de Direito "a quo" escreveu João .... e João deve passar a constar uniformementeJoão.

            2.         Na sentença de 1 de Junho de 2015 onde a Exmª Senhora Juiz de Direito "a quo" considera que a Husete, Ldª, tem como sócios e gerentes a assistente Rosalina e o arguidoJoãodeve passar a considerar que a Husete, Ldª, tem como sócios a assistente Rosalina e o arguidoJoãoe tem como gerente apenas a assistente Rosalina,

            3.         Na sentença de 1 de Junho de 2015 onde a Exmª Senhora Juiz de Direito "a quo" considera que os 660.000,00 €, que o arguido tirou para si, 900.000,00 €, que o arguido tentou tirar para si, e os montantes utilizados nas duas linhas de crédito que o arguidoJoãoencerrou, uma na Caixa Geral de Depósitos, SA, e outra no Banco BPI, SA, deve passar a considerar que tais quantia constituem prejuízo patrimonial importante para a recorrente nos termos do disposto no nº 1 do artigo 224º do código penal.

            4.         Os sócios da Husete - Empresa de Trabalho Temporário, Ldª, no seu contrato de sociedade confiaram ao arguidoJoãoo encargo de dispor e administrar os interesses patrimoniais da Husete - Empresa de Trabalho Temporário, Ldª,

            5.         O prejuízo causado pelo arguidoJoãoà Husete - Empresa de Trabalho Temporário, Ldª, com a retirada de 660.000,00 €, com a tentativa de retirar mais 900.000,00 € e com a liquidação de duas linhas de créditos PME Investe na Caixa Geral de Depósitos, SA, por cerca de 500.000,00 €, e no Banco BPI, SA, foi patrimonial e muito importante e perdura por há mais de três anos e continua,

            6.         O prejuízo patrimonial muito importante que o arguidoJoãocausou a Husete - Empresa de Trabalho Temporário, Ldª, foi claramente intencional,

            7.         O prejuízo patrimonial muito importante e intencional que o arguidoJoãocausou a Husete - Empresa de Trabalho Temporário, Ldª, ocorreu com grave violação dos deveres que incumbiam ao arguido João, designadamente os de cautela, de administração de património e principalmente de lealdade,

            8.         A sentença de 1 de Junho de 2015 violou o disposto nos números 1, 2 e 4 do artigo 224º do código penal, no número 1 do artigo 1.677º-B do código civil, na alínea b) do artigo 202º do código penal, no número 1 do artigo 64º e no número 1 do artigo 72º do código das sociedades comerciais, pelo que

            9.         Deve ser revogada e substituída por outra que julgue indiciados - pelo menos indiciados - os crimes que a recorrente imputa ao arguidoJoãoe que o pronuncie pela prática de quatro crimes de infidelidade, previstos e punidos nos números 1, 3 e 4 do artigo 224º do código penal, sendo três na forma consumada e um na forma tentada, para que seja submetido a julgamento e posteriormente condenado como de direito, assim se fazendo Justiça!»


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            O Ministério Público, em 1ª instância, respondeu ao recurso nos termos de fls. 1582 a 1584, defendendo a improcedência do recurso, nos seguintes termos:

«a)      O despacho judicial de não pronúncia, não merece reparo.

b)        Como não merecia reparo o despacho de arquivamento formulado pelo Ministério Público, no final do inquérito.

c)         Não foram violadas quaisquer normas legais.

d)        Observaram-se bem os ditames da jurisprudência e da doutrina sobre a matéria.

e)         O despacho em apreço deve ser mantido nos seus precisos termos.

                        Assim se fará a costumada Justiça.»


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                        O assistente, João, respondeu ao recurso interposto pela assistente, (cfr. fls. 1638 a 1678), tendo concluído nos seguintes termos:

            «a)      Em sede de inquérito e de Instrução não foi produzida qualquer prova;

            b)        Aliás, em sede de inquérito e instrução resultou claramente, não haver quaisquer indícios da prática pelo Recorrido, dos factos que a Recorrente lhe imputa;

            c)         A HUSETE - Empresa de Trabalho Temporário, Ldª, como o próprio nome indica é uma empresa de trabalho temporário, é uma sociedade comercial por quotas, constituída em 07 de Setembro de 1992, cujo objecto consiste na cedência temporária de trabalhadores para utilização de terceiros utilizadores, recrutamento e selecção de pessoal, formação profissional, não tendo como objecto social a compra e venda de imóveis;

            d)        Eram seus sócios, à data, como já se referiu, Rosalina com uma quota do valor nominal de 62.349,74 € e, Joãocom uma quota de igual valor nominal de 62.349,74 € e desde a constituição da sociedade até 20 de Março de 2012 o Assistente exerceu as funções de gerente, altura em que renunciou à mesma.

            e)         No dia 28 de Fevereiro de 2012, e mais concretamente, no espaço de 15 dias a sócia Rosalina retirou das contas da HUSETE, a quantia aproximada de € 2.000.000,00 (dois milhões de euros), sem que para tanto tenha sido convocada qualquer assembleia geral geral, a qual era obrigatória, nem dada qualquer autorização para efectuar aqueles negócios, razão pela qual, veio o Recorrido a renunciar à gerência e apresentar queixa crime;

            f)         Tais quantias também não serviram para pagar salários, nem fornecedores, nem obrigações legais, tal astronómico montante não se destinou á prossecução do objecto social da recorrente.

            g)        Nestes termos, estavam a ser praticados pela Sócia gerente da Recorrente HUSETE,Rosalina uma série de actos e contratos que comprometiam seriamente a actividade e sobrevivência da sociedade, enquanto sociedade de boa saúde financeira e até lucrativa, os quais se iriam traduzir necessariamente como prejuízos sérios e graves para a HUSETE e naturalmente para o outro sócio, o ora recorrido na proporção da sua quota, porque não os queria, nem os autorizou.

            h)        Existindo ainda o justo receio por parte do Recorrido que faltasse liquidez de tesouraria e meios financeiros para prover ao normal exercício da actividade da sociedade

            i)         Motivo pelo qual, se intentou um processo com vista a inquérito judicial que correu os seus termos, no 2º Juízo do Tribunal de Comércio de Lisboa, com o nº de Proc. 1128/13.2TYlSB, do qual foi junta aos autos cópia da sentença datada de 26.05.2014,

            j)         Donde resultou que: - Em 26.05.2014 se decidiu por sentença: determinar a realização de inquérito judicial à sociedade.

            k)        O ora Recorrido tomou conhecimento no dia 25/09/2013 depois de ter requerido uma certidão permanente ao registo comercial, que se encontrava registada a amortização da sua quota por menção em depósito requerida pela sócia gerente Rosalina e com base numa Acta avulsa nº 22 (existindo livro de Actas para o efeito), que não foi assinada pelo Assistente com deliberações que não correspondem á verdade, nem á realidade dos factos ocorridos na Assembleia Geral.

            l)         Foi instaurado pelo ora recorrido um Procedimento cautelar especificado para suspensão da referida deliberação social, com o nº 1823/13.6TYlSB -A que correu os seus termos no 4º juízo do Tribunal de Comércio de Lisboa, cuja a decisão foi a seguinte:

            -           “Em face do exposto, julgando o presente procedimento cautelar procedente, por provado, decreto a suspensão das deliberações tomadas na Assembleia Geral da sociedade comercial por quotas HUSETE - Empresa de Trabalho Temporário, Ldª, matriculada na Conservatória do Registo Comercial do Sintra com o número único de matrícula e de pessoa colectiva 502 888 113, ocorrida no dia 20 de Setembro de 2013, e relatada no livro de Actas sob o nº 22 ... "

            m)       O Relatório e Contas do exercício de 2012 que acabou por ser enviado ao recorrido, em Setembro de 2013, não foi aprovado em Assembleia Geral, nem a deliberação da amortização da quota do Assistente foi deliberada e aprovada, nem o relatório e contas do exercício de 2012 foi aprovado.

            n)        Quanto aos 3 erros notórios alegados no recurso da recorrente:

            -          O primeiro deve-se um lapso de escrita porque se encontram muito bem identificadas as partes, em todo o processo, não existindo qualquer dúvida quanto á identificação do arguido/assistente/ recorrido, a acrescer que a recorrente Husete sempre teve apenas 2 sócios que foram casados, entre si e que depois da dissolução do casamento adoptaram novamente o nome de solteiros.

            o)        O segundo "erro" prende-se com a gerência e os períodos em que foi exercida, e sobre a mesma não existe qualquer dúvida, nem poderia existir uma vez que está junta aos autos a certidão do registo comercial da recorrente, nem poderá a recorrente baralhar este douto tribunal alegando algo que nunca foi dito pela Mmª juiz "a quo".

            p)        A Mmª Juiz “a quo” na sua decisão conhece perfeitamente quem eram os sócios gerentes, até porque eram só dois e deixou muito claro que o ora recorrido, após a actuação desastrosa e sem autorização da outra sócia renunciou á gerência, mas que à data dos factos em apreço, era sócio gerente.

            q)        Quanto ao enunciado em recurso, como terceiro "erro", trata-se de uma tentativa clara de "diminuir" o douto tribunal "a quo" tentando fazer crer que a Mmª Juiz "a quo" não considerou o valor de 660.000,00 € de valor muito importante, descontextualizado as suas afirmações.

            r)         O que a Mmª Juiz “a quo” refere é que o prejuízo patrimonial deve ser "importante" e efectivo demonstrável através de factos concretos, o que não aconteceu.

            s)         A Recorrente limitou-se a trazer 2 testemunhas aos autos que porque não sabiam, nem podiam saber, conhecer da saúde financeira da recorrente, não fizeram qualquer prova desse prejuízo patrimonial importante, como era necessário para preencher o tipo legal de crime exigido.

            t)         Assim, de concreto, quanto à contabilidade, tesouraria e vida financeira, as testemunhas apresentadas nada acrescentaram, nem o podiam fazer uma vez que, não tinham conhecimentos para tal, um porque trabalhava num dos bancos onde a Recorrente tinha conta, entre outros Bancos, tais como o Millenium Bcp e o Banco Popular e o outro porque as suas funções na Empresa eram de "consultor comercial" , ou seja, apenas r podia fazer prova ou não, dos salários em atraso e a prova que fez, foi que nunca teve os salários em atraso

            u)        E muito menos conseguiram fazer prova do dolo exigido pelo tipo.

            v)        A sócia gerente da Recorrente,Rosalina, após a renúncia á gerência do Recorrido, poderia, se quisesse e a ser verdade todo o alegado, ter requerido uma Auditoria às contas e facilmente, a ser verdade, que não é, teria provado o prejuízo patrimonial muito importante e intencional com grave violação dos deveres que incumbiam ao gerente, nomeadamente o de lealdade.

            w)       Ademais, a recorrente quando enuncia a exigência da presença de diversos elementos cuja verificação é indispensável, tais como a confiança no agente por lei ou acto jurídico, do encargo de dispor ou de administrar, não refere, porque se "esquece" ou propositadamente que também tem o encargo, de fiscalizar.

            x)        Ora, o recorrido por ter sido diligente, zeloso, e por ter fiscalizado é que teve de actuar em conformidade, por forma a evitar a delapidação de todo o património da Recorrente e evitar prejuízos patrimoniais importantes, intentou processos cíveis e criminais, tendo inclusivamente renunciado à gerência.

            y)        E o próprio tribunal que expressamente refere que não existe nenhuma obrigação para o ora Recorrido no que concerne ao dinheiro, que justificasse a constituição de depósito à ordem do presente processo.

            z)        Resultou da investigação que face aos elementos probatórios recolhidos nos autos não se mostraram verificados os elementos objectivos e subjectivos dos ilícitos de infidelidade, pelo que se arquivaram os autos.

            aa)      Da análise da prova recolhida em sede de instrução não resultou minimamente indiciado que a Recorrente tenha ficado em dificuldades financeiras.

            bb)      O crime de infidelidade exige a presença de um elemento subjetivo perfeitamente vincado que aqui em concreto não existe e resultou da instrução não existirem nenhuns indícios do recorrente ter actuado com dolo exigido pelo tipo.

                        Termos em que, nos melhores de direito e com o sempre mui douto suprimento de vossas excelências, deve o recurso apresentado pela assistente/recorrente ser considerado improcedente, confirmando­-se assim a douta sentença recorrida, e com isso o arguido não ser pronunciado com as legais consequências, fazendo-se assim acostumada Justiça!»


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                        Neste Tribunal, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta não emitiu qualquer parecer, limitando-se à aposição de “visto”, nos termos do artº 416º nº 1 do cód. procº penal, (cfr. fls. 1683). 

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O recurso foi tempestivo, legítimo e correctamente admitido.

                        Colhidos os vistos, cumpre decidir.


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FUNDAMENTOS

            O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões, extraídas pelo recorrente, da respectiva motivação[2], que, no caso "sub judice", se circunscreve à apreciação do despacho de “não pronúncia“ e consequente arquivamento dos autos, impondo-se também apreciar a legitimidade dos sócios da empresa se poderem constituir assistentes quando está em causa o crime de infidelidade, p. e p. pelo artº 224º do cód. penal.


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                        TRANSCRIÇÃO INTEGRAL DO DESPACHO RECORRIDO

                        «O Ministério Público encerra o inquérito com despacho de arquivamento relativamente à queixa-crime apresentada pela Husete- Empresa de Trabalho Temporário, Ldª contra João ....

                        Os assistentes Husete - Empresa de Trabalho Temporário, Ldª eRosalina deduzem acusação particular contra o arguido João ... (cfr. fls. 1099) imputando-lhe a prática de um crime de infidelidade p. e p. pelo artigo 224º, do código Penal.

                        Por sua vez o arguido, João ... constituiu-se assistente e deduziu acusação particular contraRosalina (cfr. fls. 966), imputando-lhe a prática de três crimes de infidelidade p. e p. pelo artigo 224º, do código Penal.

                        Por despacho de fls. 1192, o Ministério Público não acompanha nenhuma das acusações particulares.


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                        A Husete - Empresa de Trabalho Temporário, Ldª veio requerer a abertura da instrução (cfr. fls. 1199) contra o arguido João ... pugnando pela sua pronúncia pela prática de quatro crimes de infidelidade p. e p. pelo artigo 224º, nº 1 e 2, do Código Penal, sendo um deles na forma tentada. Para tal alega, em suma, que o arguido procedeu a um levantamento de 660.000,00 euros da conta da Husete na qualidade de sócio gerente de tal empresa. Mais, o arguido fez cessar os contratos de mútuo com juro bonificado de que a Husete usufruía. Além disso, tentou fazer pagar da conta da empresa um cheque no valor de 900.000,00 euros para uma sua conta particular. Em consequência dessa actuação a Husete ficou em difícil situação financeira e sem dinheiro para pagar os salários.

                        O assistente/arguido João ... veio apresentar requerimento de abertura da instrução requerendo a sua não pronuncia quanto à acusação particular contra si deduzida pelas assistentes Husete - Empresa de Trabalho Temporário, Ldª eRosalina. Para tal, alega, em suma, que a transferência dos 900.000,00 euros da conta da Husete para uma conta sua tinham como finalidade evitar que esse valor fosse dissipado pela assistente/arguida Rosalina que, no seu entender, estava a fazer uma gestão ruinosa da Husete. O pagamento do cheque de tal montante foi recusado pelo banco pelo que não tem em seu poder o dinheiro. O que deu origem a tal procedimento foi o facto de a assistente/arguida Rosalina ter emitido dois cheques no valor de 417.000,00 euros cada desconhecendo o motivo de tais movimentos de dinheiro. A arguida/assistente Rosalina fez vários contratos-promessa de compra e venda de bens imóveis sendo certo que tal actividade não cabia dentro do âmbito de actividade da Husete.

                        Com o levantamento dos 660.000,00 euros e a tentativa de levantar mais 900.000,00 euros tinha em vista salvaguardar o património da empresa e assegurar que as obrigações daquela, nomeadamente as fiscais, seriam cumpridas. Considera que, na sua qualidade de administrador da empresa Husete não se encontrava impedido de fazer tais movimentações de dinheiro as quais tinham como única finalidade a salvaguarda da liquidez da empresa. Acrescenta ainda que manifestou nos autos o propósito de disponibilizar as quantias que retirou a fim de que as mesmas ficassem depositadas à ordem do Tribunal, o que demonstra que não teve qualquer intenção de prejudicar e empresa e muito menos de dissipar os bens desta.

                        Invoca ainda a nulidade da acusação particular deduzida pela assistente Husete uma vez que, quanto a ela, o crime não tem natureza particular. Por outro lado, invoca a intempestividade da apresentação da acusação particular apresentada pela assistente rosalina por estar excedido o prazo de dez dias.


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                        O Tribunal é competente.

                        Antes de mais cumpre analisar as questões levantadas pelo arguido/assistente João ... quanto à acusação particular deduzida pela assistente/arguida, Rosalina e pela assistente/arguida Husete.

                        Alega o arguido/assistente João ... a nulidade da acusação particular deduzida pela assistente/arguida Husete uma vez que o crime de infidelidade não é de natureza particular.

                        Cumpre apreciar e decidir.

                        O crime de infidelidade tem natureza semi-pública.

                        Quando ocorra alguma das situações previstas no artigo 207º, nº 1, al. a) do Código Penal, o crime contínua a ter natureza semi-pública sendo certo que a lei apenas faz depender o procedimento criminal de acusação particular no caso de o agente ser cônjuge, ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao 2º grau da vítima, ou com ela viver em condições análogas às dos cônjuges.

                        Era nesta situação que se encontravam os arguidos Rosalina e João ... que ainda eram legalmente casados.

                        Quanto à sociedade Husete - Empresa de Trabalho Temporário, Ldª, o crime tem natureza semi-pública, uma vez que não se verifica qualquer situação concreta que seja abrangida pelo regime especial previsto no artigo 207º do Código Penal. Aqui o procedimento criminal apenas depende de queixa incumbindo ao Ministério Público, findo o inquérito, a prolação de despacho de arquivamento ou de acusação.

                        Assim, a Husete - Empresa de Trabalho Temporário, Ldª, não podia apresentar acusação particular imputando ao arguido/assistente João ... a prática de vários crimes de infidelidade.

                        Analisando os autos, verifica-se que o Ministério Público, encerrou o inquérito com um despacho de arquivamento quanto aos factos constantes da queixa crime apresentada pela Husete - Empresa de Trabalho Temporário, Ldª, contra o arguido João ... (cfr. fls. 952 e seguintes) pronunciando-se sobre a prova recolhida no decurso do inquérito.

                        O Ministério Público fez as diligências que entendeu e, findas as mesmas, decidiu arquivar os autos quanto a queixa apresentada pela Husete.

                        Ora, sendo o crime de infidelidade, um crime de natureza semi-pública, compete ao Ministério Público a dedução de acusação não podendo o assistente vir deduzir acusação particular.

                        Nestas circunstâncias, ao assistente apenas resta conformar-se ou requerer a abertura da instrução.

                        A Assistente Husete veio assim indevidamente apresentar acusação particular a qual não pode, legalmente, produzir qualquer efeito jurídico.

                        Assim, considerando que as assistentes Rosalina e Husete apresentaram, em conjunto, no mesmo articulado a acusação particular, considera-se sem qualquer efeito, a apresentada pela segunda por não ter cabimento legal.


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                        Quanto à extemporaneidade da apresentação de acusação particular, compulsados os autos verifica-se que a prova de depósito referente à notificação do despacho de arquivamento e do despacho que ordenou a notificação nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 285º nº 1, do cód. procº penal foi remetida à arguida/assistente Rosalina em 07.11.2014, tendo a respectiva prova de depósito sido depositada na caixa postal da arguida em 11.11.2014 (cfr. fls. 960 e 962).

                        Nos termos do disposto no nº 3 do artigo 113º, do cód. procº penal a notificação considera­-se efectuada no quinto dia posterior ao da data de depósito pelo que, considerando a data de aposta na prova de depósito e a data da entrada em juízo da acusação particular, a mesma é tempestiva.


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                        Não existem excepções, nulidades, questões prévias ou incidentais de que se possa desde já conhecer e que obstem ao conhecimento do mérito da acção penal.

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                        Durante a fase instrutória foram inquiridas as testemunhas Vera, J.Serra e António Banha.

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                        Procedeu-se à realização de debate instrutório, com observância do formalismo legal.

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                        Nos termos do disposto no artigo 286º nº 1, do cód. procº penal a instrução tem como finalidade a comprovação judicial da dedução de acusação ou do arquivamento do inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

                        Esta fase processual, tem por fim a formulação de um juízo seguro sobre a suficiência dos indícios recolhidos relativos à verificação dos pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (cfr. artigos 308º, nº 1 do cód. procº penal), isto é, se há indícios suficientes fortes de que o arguido tenha praticado o crime pelo qual vem acusado em ordem a submete-lo a julgamento.

                        Conforme resulta do disposto no artigo 308º nº 1 do cód. procº penal:

            -           "Se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uina pena ou de urna medida de segurança o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos, caso contrário, profere despacho de não pronúncia".

                        Do nº 2, do art. 283º do cód. procº penal, resulta que se consideram suficientes os indícios quando deles resulte uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em audiência de julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.

                        Tal fórmula acolheu a orientação da doutrina e jurisprudência seguidas no domínio do cód. procº penal de 1929 que não definia o que era indícios suficientes para a acusação.

                        Considerava-se que os indícios eram suficientes quando se verificasse um conjunto de elementos que, depois de analisados de forma crítica e conjunta, permitisse concluir que o arguido praticou os factos que lhe são imputados.

                        Para sustentar um despacho de pronúncia, embora não seja preciso uma certeza da realidade dos factos e do seu autor, é necessário, que haja factos indiciários suficientes para que, analisados de forma integrada e conjunta, se possa concluir pela culpabilidade do arguido (cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 31/3/93 in C.J. Ano XVIII, Tomo II, pág. 65; Ac. do Tribunal da Rel. Lisboa de 28/2/64 in IR. Ano 10 pág. 117).

                        ''Na fase da instrução, porque não se tem por objectivo alcançar a demonstração da realidade dos factos, mas tão só um juízo sobre a existência de indícios, sinais, de que um crime foi cometido por determinado arguido, as provas recolhidas não constituem pressuposto da decisão de mérito, mas de mera decisão processual quanto à prossecução do processo, até à fase do julgamento” [Germano Marques da Silva, Lições de Processo Penal., vol. III, pág. 178].

                        A simples sujeição de alguém a julgamento, mesmo que a decisão mal culmine numa absolvição, acarreta para o arguido incómodos, despesas, além dos aspectos de ordem emocional.

                        A este respeito escreve o Prof. Figueiredo Dias [Direito Processual Penal, Volume I, 1981, pág. 133-] que, "O Ministério Público (e/ou o assistente) ( ... ) tem de considerar que já a simples dedução de acusação representa um ataque ao bom nome e reputação do acusado, o que leva a defender que os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição. ( .. ) A alta probabilidade, contida nos indícios recolhidos, de futura condenação tem de aferir­ se no plano fáctico e não no plano jurídico (...)".

                        "Daí que no juízo de quem pronuncia deva estar presente a necessidade de defesa da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade de protecção contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos, designadamente as salvaguardadas no art. 30º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e que entre nós mereceram consagração constitucional art. 20 da D.U.D.H. e art. 27º da C.R. P." [Ac. da Relação do Porto de 20 de Outubro de 1993, C.J. Ano XVIII, Tomo IV, pág. 261].

                        Consequentemente, o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos forma sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido [Germano Marques da Silva in ob. cit. pág. 179].

                        Assim, finda a instrução, se o Juiz de instrução concluir pela suficiência dos indícios recolhidos proferirá despacho de pronúncia, caso contrário, o despacho será de não pronúncia.

                        Na base da não pronúncia do arguido, para além da insuficiência de indícios necessariamente consubstanciada na inexistência de factos, na sua não punibilidade, na ausência de responsabilidade do arguido ou na insuficiência da prova para a pronúncia, poderão estar ainda motivos de ordem processual, ou seja, a inadmissibilidade legal do procedimento ou vício de acto processual.

                        Passando à análise do caso concreto, vejamos então qual é a decisão a proferir.

                        Ambos os assistentes/arguidos pretendem que o tribunal pronuncie o outro pela prática de um crime de infidelidade.

                        Estabelece o artigo 224°, do Código Penal que:

            -           "1. Quem, tendo-lhe sido confiado, por lei ou por acto jurídico, o encargo de dispor de in'teresses patrimoniais alheios ou de os administrar ou fiscalizar, causar a esses interesses, intencionalmente e com grave violação dos deveres que lhe incumbem, prejuízo patrimonial importante é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.

                        2. A tentativa é punível.

                        3. O procedimento criminal depende de queixa."

                        No caso concreto verifica-se que os arguidos/assistentes vieram deduzir acusações particulares um contra o outro.

                        Estão aqui em causa, não os bens pessoais de qualquer dos arguidos/assistente, mas os bens da empresa Husete que tem como sócios gerentes os dois arguidos.

                        Ora desde logo se questiona a legitimidade dos sócios da empresa para se constituírem assistentes nos processos em que a ofendida é a sociedade. De facto, os bens aqui em causa, o dinheiro que foi levantado da conta da sociedade, era propriedade desta e não da propriedade pessoal de qualquer dos arguidos/assistentes.

                        Uma coisa é Husete, outra são os seus sóciosRosalina e Francisco Coelhoso. A sociedade é uma entidade diferente da dos seus sócios. Não se podem confundir os interesses patrimoniais da sociedade com o dos seus sócios que só indirectamente poderão vir a ser prejudicados pelo crescimento ou decréscimo económico da sociedade.

                        No crime de infidelidade relativamente a interesses patrimoniais de sociedade, é o património desta o bem jurídico protegido e, consequentemente, é o interesse desta e não dos seus sócios gerentes, que é protegido pela norma legal, independentemente dos danos que poderão reproduzir-se na esfera patrimonial de cada um dos sócios.

                        No entanto, os sócios gerentes da empresa foram ambos admitidos a intervir nos autos na qualidade de assistentes pelo que, o supra exposto, não tem agora relevância nesta sede uma vez que agora já não se poderá questionar a sua legitimidade para intervirem nos autos nessa qualidade processual.

                        Como se disse acima, ambos os arguidos/assistentes pretendem a pronúncia do outro e a sua própria não pronuncia pela prática de um crime de infidelidade, (sendo certo que o Ministério público arquivou os autos relativamente à queixa apresentada pela Husete contra o arguido João ..., mas foram este e a sóciaRosalina admitidos a intervir na qualidade de assistente e a deduzir acusação particular imputando ao outro a prática do crime de infidelidade).

                        Assim, havendo reacção contra o despacho de arquivamento do Ministério Público e tendo este convidado os assistentes a deduzirem acusação particular pelo crime de infidelidade, o que foi feito, cumpre analisar a prova indiciária recolhida nas fases de inquérito e de instrução.

                        Durante o inquérito foi ouvida, como testemunhaRosalina que confirmou o relatado na queixa crime por si apresentada nada constando dos autos que os confirme a não ser os extractos bancários e a cópia do cheque nº 9827896779.

                        O arguido/assistente João confirma que procedeu a transferências no valor de 660.000,00 euros da conta da sociedade arguida para um conta pessoal e procurou proceder ao levantamento de um cheque no valor de 900.000,00 euros para depositar numa conta dele e do filho, com vista a garantir a viabilidade financeira da empresa em face da gestão que estava sendo feita pela arguida/assistente Rosalina. Disse ainda que tal dinheiro estava disponível para pagamento de quaisquer despesas da empresa Husete, nomeadamente dívidas fiscais.

                        A testemunha Ricardo confirmou a versão do arguido/assistente João ... esclarecendo que a transferência de tal montante teve como finalidade salvaguardar algum do dinheiro da empresa pois a mãe, a assistente/arguida Rosalina, tinha levantado dinheiro da conta da sociedade cujo destino desconhece.

                        Durante o inquérito foram inquiridas as testemunhas ... que nada sabem de concreto quanto aos factos que eventualmente caberia aqui esclarecer.

                        Resulta da documentação junta aos autos queRosalina e João ... eram ambos sócios gerentes da sociedade Husete e que a conta bancária da empresa poderia ser movimentada com a assinatura de qualquer deles não sendo necessária a assinatura de ambos.

                        Em sede de instrução foram ouvidas três testemunhas.

                        A testemunha António, consultor comercial, trabalhou na Husete disse que os sócios desta se desentenderam e que o arguido/assistente João dizia que a empresa era dele e que fazia o queria e lhe apetecia.

                        Quanto à situação da Husete disse que a empresa sempre pagou os salários.

                        Pontualmente, poderia haver atrasos, mas nunca superiores a um ou dois dias e nunca depois do dia 31. A partir de determinada altura houve um decréscimo ode produtividade porque alguns clientes passaram para a Global Tempo, outra empresa do grupo.

                        A testemunha J.Serra, bancário, coordenava uma equipa de gestores que acompanhava as empresas dos arguidos/assistentes incluindo a Husete.

                        Em 2012 os dois sócios da Husete desentenderam-se. Houve uma ordem de amortização de produtos financeiros dada pelo sócio João ..., os quais tinham uma taxa de juro bastante abaixo da média.

                        Foi feito uma transferência da conta da Husete para a conta do sócio João ... na ordem dos 600.000,00 euros.

                        Posteriormente, soube que a arguida/assistente Rosalina não tinha conhecimento de tais operações financeiras.

                        O arguido/assistente João ... tentou ainda proceder ao levantamento de um cheque no valor de várias centenas de milhar de euros mas a conta da Husete estava a descoberto e só lhe poderiam pagar o cheque recorrendo a linhas de crédito.

                        Comunicaram com a arguida/assistente Rosalina e ela disse que não autorizava. Perante tal situação, o banco não pagou o cheque.

                        Mais tarde começou a vir dinheiro para a conta da Husete a qual ficou novamente aprovisionada.

                        Tem ideia de que a retirada de dinheiro e o cancelamento das linhas de crédito ocorreram no mesmo mês.

                        A testemunha Vera nada acrescentou de novo a não ser o facto de o arguido/assistente João ... se ter dirigido ao banco com o filho, muito enervado acusando a testemunha J.Serra de "andar metido com a mulher", insistindo para que pagassem o cheque de 900.000,00 euros sobre a conta da Husete para o dinheiro ser depositado numa sua conta particular.

                        Disse ainda de relevante que através da conta da Husete era movimentado muito dinheiro sendo que, devido ao cliente que era, mesmo que a conta estivesse a descoberto teriam pago o cheque se não fossem os desentendimentos entre os sócios, pois havia sempre linhas de crédito activas.

Da análise da prova recolhida, não resulta minimamente indiciado que e a empresa Husete tenha ficado em dificuldades financeiras tanto é assim que continuou e continua em funcionamento não transparecendo do depoimento das testemunhas que tal tenha acontecido.

                        O crime de infidelidade exige a presença de um elemento subjectivo perfeitamente vincado que, aqui em concreto, não existe.

                        No caso concreto, e pese embora o processo esteja ainda na fase de instrução, entende-se que não existem nenhuns indícios de que qualquer um dos arguidos/assistentes tenha actuado com o dolo exigido pelo tipo.

                        Também não é pelo facto de o arguido/assistente ter transferido os 660.000.00 euros e tentado levantar o cheque de 900.000,00 euros da conta da empresa da qual também era sócio gerente que automaticamente faz preencher o tipo legal supra referido.

                        O prejuízo patrimonial deve ser "importante" e efectivo demonstrável através de factos concretos, o que não aconteceu uma vez que a empresa continuou a laborar e não houve atraso no pagamento de salários.

                        Mais se afigura que a divergência entre os arguidos/assistentes quanto aos bens da Husete deverá ser dirimida no foro cível e não no criminal.

                        Assim, analisando os indícios recolhidos nos autos, os mesmos fazem antever que, caso os presentes autos seguissem para a fase de julgamento haveria uma fortíssima possibilidade de os mesmos serem absolvidos pelo que, se entende, ser de proferir despacho de não pronúncia.


*

                        Decisão

                        Pelo exposto, o Tribunal não pronuncia, para julgamento em processo comum singular, os arguidos/assistentes Rosalina e João pela prática dos factos que lhes foram imputados na acusação particular nem pela prática de quaisquer outros.

Custas a cargo dos assistentes, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) Ucs para cada um deles.

                        Notifique (artigo 113º, nº 9 do cód. procº penal).»


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                        DO DIREITO
         Em causa, no recurso interposto pela Husete, Ldª, está a decisão de não pronúncia do arguidoJoãopela imputação de 4 crimes de infidelidade, p. e p. pelo artº 224º nº 1 do cód. penal, conforme pretensão da assistente, tendo o Tribunal “a quo” entendido, tal como o Ministério Público em sede de inquérito, que não existem indícios suficientes da prática dos crimes apontados. Por outro lado, questionou a legitimidade dos sócios se constituírem assistentes neste caso.
  Vejamos a matéria controvertida, tendo em conta as conclusões da recorrente.
     Importa desde já salientar que a primeira questão suscitada nas conclusões 1 e 2, referente ao nome correcto do arguido em que referiu, “onde a Exmª Senhora Juiz de Direito "a quo" escreveu João ... e João deve passar a constar uniformementeJoão ... C”, é na verdade uma observação irrelevante, inócua e sem qualquer repercussão no mérito do recurso, alheio à questão fundamental, dado que o pormenor do arguido ser designado pelo apelido “Correia” de casado ou “Coelhoso” de divorciado, é insuscetível de gerar qualquer confusão quanto à identidade do sujeito em causa.  
*
      Já quanto à existência ou não de indícios, o recorrente vem alegar que o Tribunal recorrido fez uma incorrecta interpretação e apreciação da prova recolhida e constante dos presentes autos – quer de inquérito, quer de instrução ao caso sub judice.
                        Na sua perspectiva, não deveriam subsistir dúvidas quanto à indiciação dos crimes de infidelidade atentas as provas apresentadas, considerando os factos mencionados no requerimento integradores dos crimes referidos.
Nas suas conclusões, refere que os elementos do crime que imputa se consubstanciam nos seguintes factos:

            -          “(…) considera que os 660.000,00 €, que o arguido tirou para si, 900.000,00 €, que o arguido tentou tirar para si, e os montantes utilizados nas duas linhas de crédito que o arguidoJoãoencerrou, uma na Caixa Geral de Depósitos, SA, e outra no Banco BPI, SA, deve passar a considerar que tais quantia constituem prejuízo patrimonial importante para a recorrente”, (cls. 3).

                        Que ”os sócios da Husete - Empresa de Trabalho Temporário, Ldª, no seu contrato de sociedade confiaram ao arguidoJoãoo encargo de dispor e administrar os interesses patrimoniais da Husete - Empresa de Trabalho Temporário, Ldª”, (cls. 4).

            -          “O prejuízo causado pelo arguidoJoãoà Husete - Empresa de Trabalho Temporário, Ldª, (…) foi patrimonial e muito importante e perdura por há mais de três anos e continua”, (cls. 5). e “foi claramente intencional”, (cls. 6).

            -          “O prejuízo patrimonial muito importante e intencional que o arguidoJoãocausou a Husete - Empresa de Trabalho Temporário, Ldª, ocorreu com grave violação dos deveres que incumbiam ao arguidoJoão, designadamente os de cautela, de administração de património e principalmente de lealdade”, (cls. 7).

            -          “A sentença de 1 de Junho de 2015 violou o disposto nos números 1, 2 e 4 do artigo 224º do código penal, no número 1 do artigo 1.677º-B do código civil, na alínea b) do artigo 202º do código penal, no número 1 do artigo 64º e no número 1 do artigo 72º do código das sociedades comerciais”, (cls. 8). pelo que, ”deve ser revogada e substituída por outra que julgue indiciados - pelo menos indiciados - os crimes que a recorrente imputa ao arguidoJoãoe que o pronuncie pela prática de quatro crimes de infidelidade, previstos e punidos nos números 1, 3 e 4 do artigo 224º do código penal, sendo três na forma consumada e um na forma tentada, (…),(cls. 9).»

                        O Tribunal recorrido decidiu-se pela falta de indícios suficientes que justificassem levar a julgamento o denunciado. E, quanto a nós bem, face aos elementos constantes dos autos, (ou falta deles) e ao circunstancialismo específico de estar em causa um conflito entre os dois sócios da mesma sociedade “Husete, Ldª”, Rosalina eJoãoque apresentaram queixa um contra o outro, sendo simultaneamente “queixosos e arguidos” e que foram casados um com o outro, resultando das diligências feitas e da prova carreada para o processo, muito difícil descortinar quem prejudicou quem ou melhor, quem na verdade lesou a sociedade Husete, Ldª.

                        Nos termos do disposto no artigo 286º nº 1, do cód. procº penal a instrução tem como finalidade a comprovação judicial da dedução de acusação ou do arquivamento do inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento. A finalidade da instrução, é a formulação de um juízo seguro sobre a suficiência dos indícios recolhidos relativos à verificação dos pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (cfr. artigos 308º, nº 1 do cód. procº penal), isto é, se há indícios suficientemente fortes de que o arguido tenha praticado algum crime ou crimes em ordem a submete-lo a julgamento.

                        Conforme resulta do disposto no artigo 308º nº 1 do cód. procº penal:

            -          "Se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uina pena ou de urna medida de segurança o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos, caso contrário, profere despacho de não pronúncia".

                        Do nº 2, do art. 283º do cód. procº penal, resulta que se consideram suficientes os indícios quando deles resulte uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em audiência de julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.

                        Dos factos relatados na queixa pelaRosalina, apenas se confirmou o teor dos extractos bancários e da cópia do cheque nº 9827896779.

                        Como se refere no despacho recorrido, o arguido/assistente João confirmou que procedeu a transferências no valor de 660.000,00 euros da conta da sociedade arguida para um conta pessoal e procurou proceder ao levantamento de um cheque no valor de 900.000,00 euros para depositar numa conta dele e do filho, com vista a garantir a viabilidade financeira da empresa em face da gestão que estava sendo feita pela arguida/assistente Rosalina. Disse ainda que tal dinheiro estava disponível para pagamento de quaisquer despesas da empresa Husete, nomeadamente dívidas fiscais.

                        A testemunha Ricardo confirmou a versão do arguido/assistente João ... esclarecendo que a transferência de tal montante teve como finalidade a salvaguarda do dinheiro da empresa pois a mãe, a assistente/arguida Rosalina, tinha levantado dinheiro da conta da sociedade cujo destino desconhece.

                        As testemunhas .... nada souberam explicar de concreto e que corroborasse a queixa apresentada contra o arguido João.

                        Resulta da documentação junta aos autos queRosalina e João ... eram ambos sócios gerentes da sociedade Husete e que a conta bancária da empresa poderia ser movimentada com a assinatura de qualquer deles não sendo necessária a assinatura de ambos.

                        Em sede de instrução foram ouvidas três testemunhas, que nada adiantaram de consistente em relação aos factos denunciados.  

                         Em 2012 os dois sócios da Husete desentenderam-se e seguem-se algumas operações financeiras de parte a parte, que aparentam ser pouco transparentes, mas os elementos indiciários colhidos não permitem sequer a formulação de um juízo de probabilidade forte para ser pronunciado o arguido pelo crime de infidelidade previsto no artº 224º do cód. penal.

                        Da análise da prova recolhida, não resultou indiciado que e a empresa Husete tenha ficado em dificuldades financeiras, continuando em funcionamento.

                        Mesmo que se admita a existência de algumas movimentações financeiras menos claras, feitas quer pelo arguido João ..., quer pela sóciaRosalina, as mesmas são insuficientes para nos conduzir à indiciação do elemento subjectivo do crime de infidelidade p. e p. e pelo artº 224º do cód. penal.

                        O facto de o arguido/assistente ter transferido os 660.000.00 euros e tentado levantar o cheque de 900.000,00 euros da conta da empresa da qual também era sócio gerente, não preenche, por si só, o tipo legal de crime.

                        Nos termos do artº 224º, do cód. penal:

            -          "1. Quem, tendo-lhe sido confiado, por lei ou por acto jurídico, o encargo de dispor de interesses patrimoniais alheios ou de os administrar ou fiscalizar, causar a esses interesses, intencionalmente e com grave violação dos deveres que lhe incumbem, prejuízo patrimonial importante é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.

                        2. A tentativa é punível.

                        3. O procedimento criminal depende de queixa".

                        Tem de existir um prejuízo patrimonial “importante”, causado “intencionalmente”, com “grave violação dos deveres que lhe incumbem”, elementos que na verdade não parecem indiciados.

                         O juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos, formule uma convicção séria de que existe uma probabilidade forte de que o mesmo tenha cometido o crime e seja possível vir a aplicar-lhe uma pena.

                        No caso concreto esses indícios não são suficientemente fortes para poder haver pronúncia. 


*

                        Finalmente, embora não seja objecto de recurso, mas que oficiosamente não podemos deixar de abordar, uma questão de ordem formal cumpre aqui apreciar. Com efeito, além da sociedade Husete, Ldª, ambos os sócios (que são simultaneamente queixosos e arguidos) se constituíram assistentes, e deduziram, um contra o outro, acusações particulares que o Ministério Público não acompanhou.

                        Foram admitidos como assistentes, embora, em nosso entender erradamente.

                        Nos termos do art. 68 nº 1 al. a) cód. procº penal podem constituir-se assistentes em processo penal, além das pessoas a quem leis especiais conferirem esse direito, os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos.

                        Tomando como ofendidos apenas os titulares dos interesses que a lei quis proteger, manteve-se consagrado o conceito estrito de ofendido que a doutrina e a jurisprudência formularam sem divergências de maior no domínio do cód. procº penal de 1929 (cfr. V.g. na doutrina Beleza dos Santos, "Partes Particularmente Ofendidas em Processo Criminal", RLJ, ano 57, Figueiredo Dias, "Direito Processual Penal", 1° voI., p.505-506 e 512-513; Cavaleiro de Ferreira, "Curso de Processo Penal", I, p. 129; com significado, na jurisprudência, o Ac. do STJ de 66.1.5, BMJ 153-133).
                       
Neste conceito de ofendido não cabem, por isso, o titular de interesses mediata ou indirectamente protegidos, o titular de uma ofensa indirecta ou o titular de interesses morais. Podem estes ser lesados e nessa qualidade sujeitos processuais como partes civis mas não constituir-se assistentes[3].
                        Esta circunstância, desde logo afastaria a possibilidade dos sócios Francisco e Rosalina se terem constituído assistentes, dado que em causa, não estão os bens pessoais de qualquer dos arguidos/assistente, mas os bens da empresa Husete, Ldª que tem como sócios gerentes os dois arguidos.

                        Esta questão não é nova e tem merecido abordagens quer a nível da doutrina quer da jurisprudência dos nossos tribunais.

                        Da leitura do artº 68º do cód. procº penal ressalta que a lei não confere o direito de constituição de assistente a qualquer pessoa que possa de forma mediata ter sido afectada com a conduta em causa nos autos, mas apenas aquelas pessoas cujos interesses sejam imediatamente protegidos pela norma.

                        Esta interpretação tem sido reflectida quer na doutrina quer na jurisprudência. Nas palavras do Prof. Figueiredo Dias[4], a nossa lei parte “do conceito restrito de ofendido na determinação do círculo de pessoas legitimadas para intervir como assistente em processo penal”.

                        No Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/2003 de 16/1/2003, in DR nº49, Série I-A, de 27/2/2003, na sua fundamentação veio afirmar-se que “«especial» não significa «exclusivo», mas sim «particular» e que só um tipo legal pode proteger mais do que um bem jurídico, questão a resolver face, ao mesmo tempo, ao caso concreto e ao recorte do tipo legal interessado.”

                        Mas daqui não se concluir que esse interesse particular protegido não continue a ser um interesse imediato, e que o conceito de ofendido passe a abarcar todos os titulares de interesses meramente mediatos. Pelo contrário afigura-se que aí se afirma a imediatismo dos interesses protegidos ao  escrever-se que “(...)a circunstância de ser aí protegido um interesse de ordem pública não afastou, sem mais a possibilidade de, ao mesmo tempo, ser também imediatamente protegido um interesse susceptível num concreto portador (..)”.

                        Pinto de Albuquerque, refere que “a constituição de assistente não pode ser excluída em função da natureza pública do bem protegido pela incriminação, antes ela se há-de admitir sempre que esse bem jurídico puder ser encabeçado num portador concreto (...)”[5].

                        No caso do crime de infidelidade o bem protegido é o património e o património que o arguido enquanto gerente estava encarregado de administrar, era o da sociedade Husete, Ldª e não o seu património pessoal.

                        Como tal e uma vez que as sociedades por quotas detêm personalidade jurídica autónoma da dos sócios, há que concluir que no crime de infidelidade são os interesses da sociedade que a lei quis imediatamente proteger. E se assim é, só esta tinha legitimidade para se constituir assistente nos autos, não obstante a lesão daqueles interesses também possa afectar de forma mediata os interesses dos sócios[6].

                        Serve isto para dizer que, no processo que nos foi apresentado nem aRosalina, nem o Francisco deveriam ter sido admitidos como assistentes.

                        Sobre a questão em análise escreveu o Professor Figueiredo Dias[7]:        -         “Quando se tome o conceito de ofendido na sua acepção mais estrita, parece que a ideia de que o ente colectivo é dotado de personalidade jurídica conduzirá a encabeçar nele, antes que nos seus membros, a lesão dirigida contra os interesses jurídicos de que é o verdadeiro titular. Ele será, como pessoa jurídica distinta dos seus membros, o titular único dos interesses jurídicos violados, e portanto a única pessoa imediatamente ofendida, enquanto os seus membros – por mais consideráveis que sejam os prejuízos sofridos – serão atingidos nos seus interesses pelo crime apenas de maneira indirecta e mediata: e tanto basta para que não possam constituir-se assistentes em processo penal pelo crime dirigido contra a sociedade.”[7]
           
            Quanto à jurisprudência, tem-se pronunciado de forma quase unânime, no sentido de que os sócios de uma sociedade não comercial não têm legitimidade para se constituírem assistentes num processo crime em que é ofendida a sociedade[8].

                        Esta interpretação mereceu também acolhimento do Tribunal Constitucional no Ac. nº 15/2006 de 22/2 publicado no Diário da República, II série de 3/4/2006.

                        Embora estivesse em causa analisar apenas a consistência ou não de indícios para pronunciar o arguido Francisco Coelhoso, não podíamos deixar de salientar alguns vícios formais que afectaram o percurso do processo, sem reconhecer que a recorrente, Husete, Ldª, essa sim, tinha legitimidade para requerer a instrução, se constituir assistente e recorrer.
                        O recurso improcede.

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DECISÃO
Nestes termos, acordam os Juízes da 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto, confirmando a decisão recorrida.
*
                        Custas a cargo da recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC,                (quatro unidades de conta).
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Lisboa 25 de Novembro de 2015


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(A. Augusto Lourenço)[9]

______________________
(Ana Paula Grandvaux)


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[1] - Pensamos que só por lapso se poderá denominar a decisão instrutória de “sentença”.
[2] - Cfr. Ac. STJ de 19/6/1996, BMJ 458, 98.
[3] - Neste sentido cfr. Ac. Trib. Rel. Lisboa de 22.09.2005 – relatado por Cid Geraldo, disponível em www.dgsi.pt
[4] - Cfr. Direito Processual Penal, 1º vol. pág. 512, Coimbra editora 1974.
[5] - Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, á luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3ª edição actualizada, Universidade Católica 2009, pág.206.
[6] - Cfr. Ac. do Trib. Rel. do Porto de 02.03.2011, disponível em www.dgsi.pt
[7] Figueiredo Dias in Da legitimidade do sócio de uma sociedade por quotas para se constituir assistente em processo crime cometido contra a sociedade. Revista de Direito e Estudos Sociais, Ano XII, nº1 e 2, pág. 140 a 163.

[8] - Cfr. Ac. do Trib. Relação de Lisboa de 05/02/2004 proferido no processo 53/64/2003-9; de 22/09/2005, proferido no processo 7063/2005-9; de 20/06/2007, proferido no processo 4721/2007-3; de 16/1/2008, proferido no processo 5567/2007-3; e do Trib. Rel. Porto de 02.03.2011 disponíveis em www.dgsi.pt.
[9] - Acórdão elaborado e revisto pelo relator, sendo da sua responsabilidade a não aplicação do acordo ortográfico.