Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
| Processo: |
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| Relator: | ANA CRISTINA CARDOSO | ||
| Descritores: | ABERTURA DE INSTRUÇÃO FACTOS CRIMES | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 12/02/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | PROVIDO | ||
| Sumário: | Sumário: I - A lei não impõe que o arguido requerente da instrução deva pôr em crise todos os factos ou todos os crimes que lhe são assacados na acusação, podendo fazê-lo quanto a apenas alguns desses factos ou crimes. II - A faculdade de o arguido requerer a abertura de instrução pode assentar numa diferente perspetiva de facto ou numa diferente visão do direito. | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes Desembargadores da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa: RELATÓRIO Da decisão I. No processo de instrução nº 964/23.6GBMFR do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo de Instrução Criminal de Sintra, Juiz 1, foi proferida decisão, em 04.07.2025, que rejeitou liminarmente, por inadmissibilidade legal, o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo arguido AA. Do recurso II. Inconformado, recorreu o arguido AA, rematando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição): «1. Vem o presente recurso interposto de douto despacho do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste – Juízo de Instrução Criminal de Sintra – Juiz 1, proferido a 4 de Julho de 2025 e que rejeitou liminarmente, por inadmissibilidade legal, o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo arguido. 2. O Ministério Público acusou o arguido da prática (em autoria material e, em concurso real) de um crime de desobediência, dois crimes de injúrias e de um crime de resistência e coação sobre funcionário, previstos e punidos, respectivamnete, pelos artigos 69º nº 1 alínea c), 348º nº 1 alínea a), 181º nº 1, 184º e 347º, todos do Código Penal. 3. O recorrente requereu a abertura de instrução alegando que não lhe podiam ser imputados os dois crimes de injúrias de que vem acusado, por não se encontrar verificado o elemento objectivo do tipo de ilícito em causa, pugnando pela sua não pronúncia relativamente a tais crimes. 4. O tribunal a quo rejeitou liminarmente o requerimento de abertura de instrução, por inadmissibilidade legal. 5. O recorrente considera errada a decisão de rejeitar o requerimento de abertura de instrução, por legalmente inadmissível impugnante expressamente a decisão acerca da matéria de direito. 6. O entendimento que o tribunal a quo deu às normas do nº 1 do artigo 286º e nº 3 do artigo 287º do CPP, foi no sentido de que, uma vez que o arguido aceita ser submetido a julgamento por dois dos crimes de que vem acusado, o processo prosseguiria para julgamento e, nessa medida, a instrução seria inútil face à sua finalidade, ou seja, a de evitar a submissão da causa a julgamento. 7. O recorrente não concorda com a interpretação legal que o tribunal a quo levou a cabo, sendo que a ratio da fase instrutória não é saber se os autos devem prosseguir para a fase de julgamento, mas apreciação, por um Juiz, do mérito da acusação o do arquivamento proferido pelo Ministério Público (após a fase investigatória que caracteriza o inquérito), sendo esse o mesmo entendimento que tem sido adoptado por essa Relação – vide recente Acordão do TRL, de 10-07-2025, Relator Alda Tomé Casimiro. 8. A tese vertida na decisão ora recorrida, a ser acolhida pela jurisprudência, é susceptível a levar a que um arguido se veja obrigado a impugnar toda uma acusação, ainda que intimamente se conforme com parte dela, apenas porque pretende que seja apreciada uma parte dela. 9. O recorrente poderia ter requerido a abertura de instrução relativamente a todos os crime de que vem acusado, ainda que, intimamente, apenas pretendesse a não pronúncia relativamente aos crimes de injúrias e se conformasse com a pronúncia relativamente aos restantes crimes. 10.O recorrente não aceita a acusação dos dois crimes de injúrias que lhe são imputados, pois tem plena consciência de que os factos , tal como descritos na acusação pública, não constituem crime. 11.O tribunal recorrido não permitiu que o arguido contraditasse a decisão do Ministério Público de o acusar pela prática de dois crimes de injúrias e obter a confirmação judicial dessa decisão, assim como também não permitiu ao arguido fazer uso dos direitos que lhe assistem, como sendo o de ser ouvido pelo juiz de instrução e o de intervir na instrução (artigo 61º nº 1 alíneas b) e g) do CPP). 12.Com o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido, o mesmo pretendia a averiguação judicial da decisão de o acusar quanto aos dois crimes de injúrias e, tendo o mesmo cumprido com os requisitos formais do requerimento de abertura de instrução, conforme estipulado no nº 2 do artigo 287º do CPP, deveria o tribunal a quo ter declarado aberta a instrução. 13.Ao não proceder em conformidade, foram assim violadas pelo tribunal a quo as normas constantes dos artigos 61º nº 1 alíneas b) e g), 286º nº 1, 287 nº 3 e 290 nº 1, todos do Cód. de Processo Penal. 14.A decisão proferida pelo tribunal a quo não pode manter-se, devendo ser declarada aberta a instrução, para que seja (ou não) comprovada a acusação, relativamente aos dois crimes de injúrias de que vem acusado o arguido». Da admissão do recurso III. Admitido o recurso, foi determinada a sua subida imediata, em separado, e com efeito devolutivo. Da resposta IV. Notificado para tanto, respondeu o Ministério Público, concluindo nos seguintes termos (transcrição): «1. O arguido foi acusado da prática de um crime de desobediência, dois crimes de injúrias e um crime de resistência e coacção sobre funcionário; e, 2. Requereu a abertura de instrução por discordar apenas da imputação relativa aos dois crimes de injúrias, entendendo que a expressão proferida não preenche o elemento objectivo do tipo; no entanto, 3. A Senhora Juiz de Instrução rejeitou liminarmente o requerimento de abertura de instrução, por considerar que esta fase apenas é admissível quando visa evitar o julgamento na sua totalidade, numa interpretação restritiva do artigo 286º do C.P.P.; contudo, 4. A lei não exige que o requerimento de abertura de instrução abranja a totalidade dos factos constantes da acusação; já que, 5. Deacordo com o artigo287.º, n.º 1, alíneaa), do CPP, o arguido poderequerer aabertura de instrução relativamente a factos pelos quais o Ministério Público deduziu acusação — não se impondo que o faça relativamente à acusação global; 6. Os fundamentos da rejeição do requerimento estão taxativamente enunciados no artigo 287º do C.P.P.; sendo que, 7. A fase facultativa de instrução no processo penal tem por finalidade a apreciação judicial da decisão acusatória, podendo, portanto, ter como objecto apenas parte dos factos, desde que autonomizáveis, como sucede no caso concreto; o que, 8. Está de acordo com a jurisprudência recente da Relação de Lisboa (Ac. de 10.07.2025, Rel. AldaToméCasimiro), entreoutros, no qual se afirma expressamente quenão existe fundamento legal para exigir ao arguido que impugne toda a acusação para poder requerer a instrução. 9. A interpretação restritiva adoptada na decisão recorrida esvazia a função constitucional decontrolo judicial daacusação (art. 32.º, n.º 1 da CRP), transformando ainstrução num mecanismo de tudo ou nada, sem suporte legal; e, 10. Assim, o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido deveria ter sido admitido, por preencher os requisitos formais e substanciais legalmente exigidos; pelo que; 11. Entende também o Ministério Publico que, no despacho que indeferiu por inadmissibilidade legal o requerimento de abertura de instrução do arguido, foram violados os artigos 286º e 287º do C.P.P. e o artigo 32º da CRP; pelo que, 12. Revogando a decisão recorrida e determinando a sua substituição por outra que admita o requerimento de abertura de instrução do arguido e declare aberta a instrução». Do parecer nesta Relação V. Neste Tribunal da Relação de Lisboa foram os autos ao Ministério Público tendo sido emitido parecer que, aderindo à posição do Ministério Público junto da primeira instância, concluiu pela procedência do recurso. Da resposta ao parecer VI. Cumprido o disposto no art.º 417.º/2 do Código de Processo Penal, nada foi acrescentado. VII. Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência. OBJETO DO RECURSO O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição deste tribunal, delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º/2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995). São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respetiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar. Desta forma, tendo presentes tais conclusões, a questão a decidir é indagar da admissibilidade legal da instrução quando o arguido, seu requerente, apenas pretenda questionar alguns dos factos de que foi acusado. DA DECISÃO RECORRIDA Da decisão recorrida consta o seguinte (transcrição): «Requerimento de abertura de instrução: Na sequência do despacho de acusação proferido pelo Ministério Público em que foi imputado ao arguido AA a prática de um crime de desobediência, dois crimes de injúria e um crime de resistência e coação sobre funcionário, veio o mesmo apresentar requerimento de abertura da instrução. Para o efeito, alegou, em síntese, que não praticou os crimes de injúria de que vem acusado, por não estar verificado o elemento objetivo do tipo de ilícito em causa, pugnando pela sua não pronúncia relativamente a tal crime. Cumpre apreciar e decidir da admissibilidade legal do articulado ora apresentado. * Tal como estipula o artigo 286.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, “a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento” e tem carácter facultativo. Ao arguido é conferida a possibilidade de requerer a abertura de instrução relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação (cfr. artigo 287.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal). Apesar de o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido não estar sujeito a formalidades especiais, do mesmo deve constar “em súmula, as razões de facto e de direito, de discordância relativamente à acusação (…), bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar (...)” (cfr. artigo 287.º, n.º 2 do Código de Processo Penal). Deste modo, o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo arguido deve contar um conjunto de razões de onde resulte a não submissão da causa a julgamento, ou seja, sendo atendidas tais razões a causa é arquivada, não haverá julgamento e o processo findará. * No caso em apreço, e analisado o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido, verifica-se que o mesmo aceita ser submetido a julgamento pela prática dos crimes de desobediência e resistência e coação sobre funcionário, conformando-se assim com a acusação, discordando apenas do enquadramento jurídico que foi dado pelo Ministério Público à factualidade descrita na parte final do artigo 5.º da acusação, por entender que não consubstancia qualquer crime de injúrias, não visando obter assim despacho de não pronúncia no seu todo, mas tão-somente quanto a tal ilícito criminal, ou seja, o processo terá sempre de prosseguir para a fase subsequente, haverá sempre um julgamento. Ora, como se pode ler no sumário do Acórdão da Relação de Évora datado de 08/05/20121, “(…) III-O critério da submissão ou não da causa a julgamento diz respeito, como a literalidade do preceito impõe, um juízo sobre todo o processo e não quanto a fragmentos do mesmo; IV – A diferente qualificação jurídica dos factos como único fundamento da instrução só a poderá legalmente sustentar se tiver como resultado almejado a não pronúncia quanto a todos os crimes acusados.” No mesmo sentido se pronunciou o Acórdão da Relação de Évora de 06.12.20162, em cujo sumário se pode ler que: “I - Se a finalidade da instrução, determinada no artigo 286.º, nº 1, do C. P. Penal, é a decisão acerca da submissão (ou não) dos arguidos a julgamento, o requerimento para abertura da instrução apresentado pelos arguidos não pode, obviamente, exorbitar dessa finalidade, sob pena de, fazendo-o, ser legalmente inadmissível. II - A esta luz, não sendo os arguidos eximidos ao julgamento, face aos próprios termos constantes do requerimento para abertura da instrução apresentado pelos mesmos, deve, logo à partida, ser rejeitado pelo juiz de instrução o requerimento para abertura da instrução assim apresentado.” Em face do exposto, há que concluir que o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido é legalmente inadmissível pois o mesmo aceita ser submetido a julgamento por dois dos crimes de quem vem acusado, querendo apenas que o tribunal profira despacho de não pronúncia relativamente a um dos ilícitos que lhe foi imputado por entender que os factos respetivos não consubstanciam crime. O mesmo é dizer que a causa terá sempre de avançar para a fase subsequente pois os fundamentos que o arguido invoca no seu requerimento de abertura de instrução, limitados a um dos crimes, não impedem a prossecução da causa para a fase de julgamento, sendo certo que, como vimos, a finalidade da instrução é a de comprovar a decisão do Ministério Público de submeter ou não a causa a julgamento. A instrução é uma fase processual facultativa que se justifica quando existe a possibilidade de extinguir o processo, evitando o julgamento pois, se assim não for, a mesma não integra o escopo estrutural da instrução nos exatos termos previstos pela lei: precisamente o de evitar um julgamento (neste sentido acórdão supra citado de 08.05.2012). Face ao regime legal vigente, a fase processual da instrução tem natureza comprovativa (e não investigativa) da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento, não sendo um complemento da investigação nem podendo também representar a antecipação da ulterior fase processual de julgamento. As razões invocadas pelo arguido relacionam-se com o mérito da causa, e a sede própria para a apreciação do ora invocado no requerimento de abertura de instrução será a ulterior fase processual de julgamento, sendo a contestação a que alude o artigo 311.º-B do CPP, o meio processual idóneo para o fazer. Nesta conformidade, ao abrigo do disposto nos artigos 286.º, nº 1, 287.º, n.ºs 1, alínea a) e 2 a contrario, e 3, ambos do Código de Processo Penal, rejeito liminarmente, por inadmissibilidade legal, o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo arguido AA. Notifique. Oportunamente, remeta os autos à distribuição para julgamento». INCIDÊNCIAS PROCESSUAIS COM RELEVO PARA A DECISÃO Da análise da certidão e da consulta do processo eletrónico, contata-se que: 1. No processo principal, o Ministério Público deduziu acusação, em 18.05.2025, contra o recorrente, imputando-lhe a prática, em autoria material e, em concurso real de: -um crime de desobediência p. e p. pelos artigos 69º nº 1 al c), 348º nº 1 al a) ambos do CP, com referência ao artigo 152º nºs 1 al a) e 3 do Código da Estrada; - dois crimes de injurias p. e p. , cada um, pelos artigos 181º nº 1 e 184º com referência ao artigo 132º nº 2 al l) do CP; e -um crime de resistência e coação sobre funcionário p. e p. pelo artigo 347º do CP. 2. Imputa-se ao recorrente, no que para aqui importa, após ter sido intercetado por militares da GNR quando conduzia um veículo automóvel na via pública, ter-lhes dito “eu não faço mais nenhum teste, vão para o caralho”. Mais se diz na acusação que o recorrente “ao proferir as expressões que proferiu querendo eximir-se à sua detenção, sabia que eram idóneas a ofender a honra e consideração dos militares da GNR devida pelo exercício das suas funções, o que conseguiu”. 3. O recorrente requereu a abertura de instrução, em 11.06.2025 concluindo pela «não pronúncia do arguido pela prática, em autoria material e na forma consumada, de dois crimes de injúria p. e p., cada um, pelos artºs 181º nº 1 e 184º com referência ao art. 132º nº 2 alínea l) do CP». 4. A argumentação do recorrente, expressa no requerimento de abertura de instrução, é, em suma, a de que as expressões proferidas, “apesar de grosseiras e indubitavelmente desagradáveis, não são susceptíveis de ferir a dignidade dos visados, designadamente a sua honra e consideração pessoal, (…) pois que não correspondem à imputação de qualquer facto nem apresentam um cariz vexatório”. FUNDAMENTAÇÃO 1. Da admissibilidade legal da instrução quando o arguido, seu requerente, apenas pretenda questionar alguns dos factos de que foi acusado. Nos termos do artº 286º, nº 1 do CPP, “a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”. A abertura da instrução, pode ser requerida pelo arguido, “relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação” – vide artº 287º, nº 1, al. a), do CPP. No caso dos autos, o recorrente pretende ser não pronunciado por dois dos quatro crimes pelos quais foi acusado, mais exatamente pelos dois crimes de injúrias. Pode fazê-lo? Não se olvida que, nesta 5ª secção, com data de 10.07.2025, foram lavrados dois acórdãos em sentido diverso, ambos publicados na dgsi: a) Um, relatado por Manuel Advínculo Sequeira, numa reclamação para a conferência (processo 26/21.0TELSB-W.L1), em cujo sumário se lê “É legalmente inadmissível a instrução sequente a acusação que apenas vise alguns dos crimes acusados, seguindo-se necessariamente a fase de julgamento mesmo na procedência do requerimento de abertura de instrução”. Na fundamentação pode ler-se que «é manifesto que não obstante ter requerido a abertura da instrução, o arguido pretende ser submetido a julgamento, nomeadamente por crimes de branqueamento. O legislador ao instituir esta fase processual pretendeu que a mesma fosse determinante para a ponderação da sujeição ou não a julgamento de um arguido. Pode ocorrer que, findo o debate instrutório e proferida decisão, se venha a concluir que o objecto do requerimento de abertura de instrução é totalmente improcedente ou até apenas parcialmente procedente, não sendo, na prática, a fase de instrução uma forma de obviar ao julgamento. No entanto, é necessário que, para que a instrução tenha utilidade ao que não é indiferente o princípio da proibição dos actos inúteis, artigo 130.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 4.º do Código de Processo Penal, em abstracto, a fase ab initio fosse capaz de gerar a hipótese de alternativa à sujeição do arguido a julgamento. (…) No caso, pretende-se que o arguido apenas seja sujeito a julgamento por alguns dos crimes de que se encontra acusado. E tanto basta para que caia sobre aquele entendimento, já que a seguir aquela pretensão a instrução funcionaria como uma parcial antecipação do julgamento, sendo o requerimento de abertura de instrução uma espécie de contestação deslocada e relativa apenas a indícios e tendo em vista a finalidade primeira da instrução em casos semelhantes (não submissão a julgamento) uma pura inutilidade. Se é claramente perceptível para a comunidade a valia e o empenho de meios na fase judicial de instrução que vise evitar a sujeição a julgamento de um dos seus membros, já será de todo incompreensível a pretensão de para tanto servir apenas quanto a parte daquele, posto que o principal escopo daquela não é, de todo, passível de ser atingido. De resto, é indubitavelmente essa a finalidade daquele género de actividade processual nas palavras da lei – “a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação... em ordem a submeter ou não a causa a julgamento” – nº 1 do artº 286º do Código de Processo Penal». b) Outro, relatado por Alda Tomé Casimiro no recurso penal com o nº 645/23.0JAPDL-A.L1, que concluiu que “o nº 1 do art. 286º do Cód. Proc. Penal não exige que o arguido, requerente da instrução, questione a totalidade dos factos por que vem acusado para que o respetivo requerimento de abertura de instrução seja legalmente admissível. Nem se antevê razão para uma interpretação restritiva de tal norma”. Neste citado aresto, argumentou-se nos seguintes moldes: «Cremos, contudo, que a ratio da fase instrutória não é saber se os autos devem prosseguir para a fase de julgamento, mas a apreciação, por um Juiz, do mérito da acusação ou do arquivamento proferido pelo Ministério Público (após a fase investigatória que caracteriza o inquérito) relativamente aos factos investigados. Repare-se, para o que agora importa, que nos termos da alínea a) do nº 1 do art. 287º do Cód. Proc. Penal, a instrução pode ser requerida pelo arguido relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação. A remissão expressa que a norma faz a factos, tem sido fundamento para considerar inadmissível um requerimento de abertura de instrução em que o arguido apenas pretenda, por exemplo, que lhe seja aplicada a suspensão provisória do processo ou apenas pretenda discutir a liquidação do património incongruente. Mas já não se intui, da redacção do preceito, que a instrução tenha que ser, necessariamente, relativa a todos os factos pelos quais tenha sido deduzida acusação, sob pena de ser legalmente inadmissível – como defende o despacho recorrido. Afirma Pedro Soares de Albergaria (Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo III, p. 1199 e 1200) que “a possibilidade de o arguido requerer a abertura de instrução configura um direito de defesa do mesmo sustentado na CRP (art. 32º) em termos de poder sujeitar a comprovação por um terceiro imparcial (o JI) a acusação que contra ele foi deduzida. A mais de ter por pressuposto essencial a dedução de uma acusação (do MP ou do assistente) e de por força dirigir-se ao escrutínio dela, a factualidade de o arguido requerer a abertura da instrução está expressamente limitada à hipótese de, pela procedência da pretensão, o feito não vir a ser introduzido em juízo (art. 286º) – do que decorre que o requerimento de instrução que não seja autossuficiente neste desiderato não será admissível (…) é permitido ao arguido requerer a abertura da instrução para com ela obter a rejeição apenas de parte da acusação – mas parece então que essa possibilidade há de limitar-se às situações em que, ocorrendo conexão objectiva de vários ilícitos, se pretenda apenas a rejeição por um ou alguns deles”. Ora esta referência à rejeição por um ou alguns deles apenas pode reportar-se a uma rejeição por um ou alguns desses ilícitos, pelo que a conexão objectiva a que se alude tem de ser necessariamente entendida como conexão entre ilícitos objectivamente autonomizáveis. Tal como Pedro Daniel dos Anjos Frias (“Com o Sol e a Peneira: um olhar destapado sobre o conceito de inadmissibilidade legal da instrução”, in Revista Julgar, 19, Jan.-Abr. 2013, p. 124 e 125), entendemos que “quando o requerimento apresentado pelo arguido não contenha um conjunto de razões vinculadas de discordância com raízes no inquérito e no que aí ocorreu fica irremediavelmente impossibilitada a concretização das finalidades legais da instrução. Tal sucederá (…) quando o requerimento se esgota na negação pura e simples dos factos vertidos na acusação (contestação simples) seja quando se resume a uma mera versão ou contraversão factual (contestação motivada), seja quando se limite à alegação de factualidade exógena ou exterior que apenas por meio de requerimento entra no procedimento em curso. Em qualquer destas situações, tal requerimento não é apto à realização das finalidades da instrução”. Coisa diversa é a imposição de que o arguido tenha que requerer a abertura de instrução sobre o bloco da acusação, nomeadamente naqueles casos em que a decisão de acusar seja cindível em episódios perfeitamente autonomizáveis. De facto, não é exigível que estando em causa uma multiplicidade de factos e de crimes, o arguido esteja impedido de requerer a abertura de instrução quanto a um ou alguns deles, só porque, por exemplo, houve uma apensação de inquéritos, ainda que tal lhe fosse permitido se o Ministério Público tivesse optado por fazer a investigação autonomamente em processos distintos e com diversas acusações. A tese vertida nos autos, a ser acolhida pela jurisprudência, é susceptível a levar a que um arguido venha a impugnar toda uma acusação, ainda que intimamente se conforme com parte dela, apenas porque pretende que seja apreciada uma parte determinada. Ou seja, sendo verdade que a teleologia da instrução é evitar a submissão do caso a julgamento, esse desiderato também se alcança nos casos em que o arguido vê reduzido o objeto do julgamento por via de uma decisão de não pronúncia quanto a uma parte dos crimes pelos quais foi acusado. Não se defende, com esta interpretação, que o arguido tenha sempre direito a não ser submetido a julgamento sem que previamente tenha havido uma completa e exaustiva verificação da existência de razões que indiciem a sua presumível condenação. Como supra referimos, casos há em que a instrução, mesmo que formalmente admissível, não o é materialmente. Mas já não se pode conceder que se diga que uma instrução não é apta à finalidade legal de evitar a submissão da causa a julgamento quando o RAI apresentado pelo arguido não sindique todos os crimes constantes da acusação. O estipulado no nº 1 do art. 286º do Cód. Proc. Penal não exige que o arguido, requerente da instrução, questione a totalidade dos factos por que vem acusado para que o respetivo requerimento de abertura de instrução seja legalmente admissível. Nem se antevê razão para uma interpretação restritiva de tal norma». Subscrevemos a argumentação deste último acórdão. Efetivamente, no artigo 286º, nº 1, do CPP, diz que “a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”. Não diz toda a causa. E o artigo 287º, nº 1, al a), do CPP, refere que o arguido pode requerer a instrução “relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação”. Não exige que o faça quanto a todos os factos de que está acusado. O contrário levaria a requerimentos de abertura de instrução em que o requerente, que até no seu íntimo aceitava parte dos factos que lhe eram imputados, viria artificialmente questionar toda a factualidade para dela poder ver excluída a parte de que verdadeiramente discordava. Isso sim – requerer, participar e decidir-se uma instrução que parcialmente era aceite pelo seu interessado - seria trabalho inútil. A lei não impõe que o arguido requerente da instrução deva pôr em crise todos os factos ou todos os crimes que lhe são assacados na acusação, podendo fazê-lo quanto a apenas alguns desses factos ou crimes. Mais ainda, a faculdade de o arguido requerer a abertura de instrução pode assentar numa diferente perspetiva de facto ou numa diferente visão do direito. Neste sentido aponta muito claramente Pedro Soares de Albergaria, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo III, 2ª edição, Coimbra, Almedina, 2022, página 1248, anotações 5ª e 7ª ao artigo 287º. Nesta última mencionada anotação, entre várias hipóteses que adianta, refere precisamente o caso de se discutir se “certas palavras escritas num jornal são ofensivas da honra do visado”, hipótese esta na linha do caso dos autos. É, assim, admissível a instrução requerida pelo recorrente para discutir se os factos subjacentes a dois dos quatro ilícitos penais de que foi acusado integram a prática de dois crimes de injúrias ou se apenas constituem o uso de uma linguagem grosseira e desadequada. Daqui resulta a procedência do recurso. DECISÃO Nestes termos, e face ao exposto, acordam os juízes desembargadores deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar provido o recurso interposto pelo arguido AA, revogando o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que determine o prosseguimento dos autos, declarando aberta a instrução. O presente acórdão foi integralmente processado a computador e revisto pela signatária relatora, seguindo-se a nova ortografia excetuando na parte em que se transcreveu texto que não a acolheu, estando as assinaturas de todos os Juízes apostas eletronicamente – art. 94º, nº 2, do CPP. Lisboa, 2 de dezembro de 2025 Ana Cristina Cardoso Alexandra Veiga Paulo Barreto _______________________________________________________ 1. Disponível em www.dgsi.pt, relator: Juiz Desembargador Edgar Valente. 2. Disponível em www.dgsi.pt, relator: Juiz Desembargador João Amaro. |