Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
18327/17.0T8LSB.L1-4
Relator: DURO MATEUS CARDOSO
Descritores: INDEFERIMENTO LIMINAR
LEGITIMIDADE
ORDEM DOS ENFERMEIROS
INTERESSES COLECTIVOS/INDIVIDUAIS
PRINCÍPIO DE TRABALHO IGUAL SALÁRIO IGUAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/06/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário: I O regime geral das associações públicas profissionais não proíbe a defesa de interesses materiais dos seus associados (Lei nº 2/2013 de 10/1) desde que sejam de ordem geral (art. 5º-1-b)) e que não sejam excepcionados nos Estatutos concretos de cada associação.

II A autora está impedida de exercer ou de participar em atividades de natureza sindical ou que se relacionem com a regulação das relações económicas ou profissionais dos seus membros.

III Fundando-se os pedidos de simples apreciação formulados pela autora na existência de discriminação laboral salarial, “trabalho igual/salário igual”, quer por via de prestação de trabalho qualitativamente idêntico, quer por diferença do número de horas trabalhado, decorre do art. 10º-2-3-a) do CPC/2013 que os mesmos visam obter a declaração da existência de um direito em concreto.

IV Não pode peticionar-se a declaração de um direito geral hipotético e incerto, não se sabendo nem indicando em concreto, quais são os enfermeiros que estão a ser discriminados, nem apontando nenhuma forma de tal ser averiguado.

V A verificação da discriminação por violação da obrigação de pagamento de salário igual a trabalho igual exige análise casuística, implicando a verificação individual da situação laboral de cada um dos associados da autora que estejam em tal posição, por referência ao direito à retribuição de cada um deles, confrontando-a com a do outro ou outros trabalhadores a quem se quer comparar.

VI Não existem situações genéricas ou gerais de violação do princípio de trabalho igual/salário igual, só concretas.

(Sumário elaborado pelo relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa.

Relatório:

AAA, intentou no Juízo de Trabalho de Lisboa a presente acção declarativa de simples apreciação, com processo comum, CONTRA,

ESTADO PORTUGUÊS,
ADMINISTRAÇÃO CENTRAL DO SISTEMA DE SAÚDE, IP,
CENTRO HOSPITALAR BARREIRO MONTIJO, EPE,
CENTRO HOSPITALAR COVA DA BEIRA, EPE,
CENTRO HOSPITALAR DE ENTRE DOURO E VOUGA, EPE,
CENTRO HOSPITALAR DE LISBOA NORTE, EPE,
CENTRO HOSPITALAR DE LISBOA OCIDEFNTAL, EPE,
CENTRO HOSPITALAR DE S. JOÃO, EPE,
CENTRO HOSPITALAR DE SETÚBAL, EPE,
CENTRO HOSPITALAR DE TRÁS-OS-MONTES E ALTO DOURO, EPE,
CENTRO HOSPITALAR DE VILA NOVA DE GAIA/ESPINHO, EPE,
CENTRO HOSPITALAR DO ALGARVE, EPE,
CENTRO HOSPITALAR DO BAIXO VOUGA, EPE,
CENTRO HOSPITALAR DO MÉDIO AVE, EPE,
CENTRO HOSPITALAR DO PORTO, EPE,
CENTRO HOSPITALAR E UNIVERSITÁRIO DE COIMBRA, EPE,
CENTRO HOSPITALAR LEIRIA, EPE,
CENTRO HOSPITALAR LISBOA CENTRAL, EPE,
CENTRO HOSPITALAR MÉDIO TEJO, EPE,
CENTRO HOSPITALAR PÓVOA DO VARZIM/VILA DO CONDE, EPE,
CENTRO HOSPITALAR TÂMEGA E SOUSA, EPE,
CENTRO HOSPITALR TONDELA VISEU, EPE,
CENTRO HOSPITALAR DA SENHORA DA OLIVEIRA GUIMARÃES, EPE,
HOSPITAL DE MAGALHÃES LEMOS, EPE,
HOSPITAL DE SANTARÉM, EPE,
HOSPITAL DISTRITAL FIGUEIRA DA FOZ, EPE,
HOSPITAL ESPÍRITO SANTO DE ÉVORA, EPE,
HOSPITAL GARCIA DE HORTA, EPE,
HOSPITAL PROFESSOR DOUTOR FERNANDO DA FONSECA, EPE,
HOSPITAL SANTA MARIA MAIOR-BARCELOS, EPE,
INSTITUTO PORTUGUÊS DE ONCOLOGIA DE COIMBRA FRANCISCO GENTIL (IPO), EPE,
INSTITUTO PORTUGUÊS DE ONCOLOGIA DE LISBOA FRANCISCO GENTIL (IPO), EPE,
INSTITUTO PORTUGUÊS DE ONCOLOGIA DO PORTO FRANCISCO GENTIL (IPO), EPE,
UNIDADE LOCAL DE SAÚDE DE MATOSINHOS, EPE,
UNIDADE LOCAL DE SAÚDE DO NORTE ALENTEJANO, EPE,
UNIDADE LOCAL DE SAÚDE DO ALTO MINHO, EPE,
UNIDADE LOCAL DO BAIXO ALENTEJO, EPE,
UNIDADE LOCAL DE SAÚDE DA GUARDA, EPE,
UNIDADE LOCAL DE SAÚDE DE CASTELO BRANCO, EPE,
UNIDADE LOCAL DE SAÚDE DO NORDESTE, EPE,
UNIDADE LOCAL DE SAÚDE DO LITORAL ALENTEJANO, EPE.

IIPEDIU que se declare:
a)- Que os enfermeiros contratados em regime de contrato individual de trabalho, nomeadamente os vinculados aos 3º a 41º Réus, têm, ocorrendo idêntica natureza, qualidade e quantidade do trabalho prestado, direito a auferir remuneração idêntica à dos enfermeiros em regime de contrato de trabalho em funções públicas;
b)- Que, estando tais enfermeiros contratados em regime de contrato individual de trabalho vinculados a uma jornada de trabalho mais alargada (in casu, mais 5 horas de trabalho por semana), têm direito a um acréscimo de remuneração proporcional às horas que laboram a mais.

IIIALEGOU, em síntese, que:
- Muitos milhares de enfermeiros/as são objecto de uma iníqua e intolerável discriminação, ostensivamente violadora do princípio constitucional de que “para trabalho igual, salário igual”;
- Tais enfermeiros, trabalhando lado a lado com colegas que exercem funções da mesma natureza, qualidade e quantidade, vêm a sua prestação de trabalho pior paga que a desses colegas, sem que exista razão substancial que o justifique;
- Estando em causa basicamente a circunstância de serem titulares de um contrato individual de trabalho e não de um contrato de trabalho em funções públicas;
- Essa discriminação afecta a dignidade profissional, o que redunda em prejuízo para a eficiência do Serviço Nacional de Saúde e é susceptível de afectar a qualidade dos serviços de saúde prestados aos cidadãos.
- A AAA tem legitimidade para a propositura desta acção pois é uma associação pública que tem como desígnio fundamental a defesa dos interesses da profissão, cabendo-lhe zelar pelo cumprimento das normas legais e regulamentares do seu exercício, conforme art. 3º do seu Estatuto;
- São atribuições da AAA, zelar pela função social, dignidade e prestígio da profissão de enfermeiro, bem como regular o acesso e prestígio da profissão de enfermeiro, cabendo-lhe representar os enfermeiros junto dos órgãos de soberania e colaborar com o Estado e demais entidades públicas sempre que estejam em causa matérias relacionadas com a prossecução das suas atribuições.
- No caso dos autos existe um interesse geral dos enfermeiros, em particular dos enfermeiros titulares de contratos individuais de trabalho, que estão a ser objecto de discriminação que afecta a dignidade do exercício da profissão e é susceptível de lesar a eficiência e a qualidade da prestação dos serviços devidos à população.

IV Por despacho de fols. 68 a 75 a petição inicial foi liminarmente indeferida por a autora carecer de legitimidade processual e substantiva para propor a presente acção, ali se escrevendo:

“A AAA, aqui Autora, é uma pessoa colectiva de direito público, que se rege pela Lei nº 2/2013, de 10 de Janeiro (regime jurídico das associações públicas profissionais), pelo respectivo Estatuto, constante do D.L. nº 104/98, de 21 de Abril, com a redacção conferida pela Lei nº 150/2015, de 16 de Setembro, e subsidiariamente pelo Código do Procedimento Administrativo e princípios gerais de direito administrativo (art. 4º da Lei nº 2/2013). Está sujeita ao regime do direito público no desempenho das suas atribuições e no exercício dos poderes públicos que lhe forem conferidos.
É pacificamente aceite na doutrina que as associações profissionais integram um dos três grandes ramos da Administração Pública – a administração autónoma do Estado – a par da administração Directa e indirecta do Estado, caracterizando-se como refere o prof. Doutor Jorge Bacelar Gouveia (in “As Associações Públicas Profissionais no Direito Português”), por um conjunto de regras com assento constitucional:
«a)- Limitação da criação das associações públicas “à satisfação de necessidades específicas”; (…)
b)- Impossibilidade do exercício de “funções próprias das associações sindicais” – as associações públicas, no seu recorte conceptual por relação com as actividades que devem executar, não podem dobrar as funções constitucionalmente atribuídas aos sindicatos, nomeadamente quanto à defesa dos direitos dos trabalhadores subordinados;
c)- “Organização interna baseada no respeito dos direitos dos seus membros”;(…)
d)- “Formação democrática dos seus órgãos”; (…)». (sobre a temática v. Prof. Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, I, 2º ed., Coimbra, 1994, pp. 393 e ss.; Vital Moreira, Administração Autónoma e Associações Públicas, Coimbra, 1997, pp. 104 e ss.).

Relativamente às atribuições a prosseguir (conteúdo material) as mesmas estão constitucionalmente consagradas por via positiva e negativa:
- Numa dimensão positiva, indexando-se a criação das associações públicas à satisfação das necessidades específicas; A este propósito, como salienta o prof. Marcelo Rebelo de Sousa (Lições, I, pg. 313 ss) exige-se mais do que um mero princípio da especialidade das pessoas colectivas. No mesmo sentido, Jorge Miranda (As associações Públicas, pp. 26 e ss) faz referência ao princípio da proporcionalidade – não está em causa apenas o desenvolvimento dos poderes adequados às respectivas finalidades, exige-se que a criação da Associação Pública Profissional cumpra um juízo de necessidade em função da realidade existente; Diferentemente das demais associações, e como se afirma no Ac. do TC nº 46/1984, a criação das associações públicas e particularmente as associações profissionais nunca depende da iniciativa privada, sendo – antes e sempre – um acto de autoridade; os fins da associação são sempre a satisfação de certos interesses gerais;
- Na dimensão negativa, estabelecendo uma limitação/proibição de as associações públicas profissionais actuarem no campo das atribuições das associações sindicais;
Está, pois, afastada/vedada ao conteúdo material das atribuições públicas profissionais a defesa dos interesses sócio-profissionais de certas categorias de pessoas – finalidade atribuída aos sindicatos no quadro constitucional português, como repetidamente tem sido afirmado pela jurisprudência do Tribunal Constitucional.
Como refere o prof. Jorge Miranda, as Ordens Profissionais prosseguem interesses públicos traduzidos na garantia de confiança nos exercícios profissionais, que envolvem especiais exigências de natureza científica, técnica e deontológica.
Resulta do regime jurídico geral das associações públicas profissionais que as respectivas atribuições são essencialmente de natureza reguladora e disciplinar, estando-lhe vedado o exercício ou participação “em actividades de natureza sindical ou que se relacionem com a regulação das relações económicas ou profissionais dos seus membros” – art. 5º nº 1 e 2 da lei 2/2013.

Revertendo ao caso dos autos, dispõe o art. 3º do Estatuto da AAA, sob epígrafe “Fins e Atribuições” que:
«1. A AAA tem como desígnio fundamental a defesa dos interesses gerais dos destinatários dos serviços de enfermagem e a representação e defesa dos interesses da profissão.
2. A AAA tem por fins regular e supervisionar o acesso à profissão de enfermeiro e o seu exercício, aprovar, nos termos da lei, as normas técnicas e deontológicas respectivas, zelar pelo cumprimento das normas legais e regulamentares da profissão e exercer o poder disciplinar sobre os membros.
3. São atribuições da AAA: a)- Zelar pela função social, dignidade e prestígio da profissão de enfermeiro, promovendo a valorização profissional e científica dos seus membros;
(…)
4. Incumbe ainda à AAA representar os enfermeiros junto dos órgãos de soberania e colaborar com o Estado e demais entidades públicas sempre que estejam em causa matérias relacionadas com a prossecução das atribuições da Ordem, designadamente nas acções tendentes ao acesso dos cidadãos aos cuidados de saúde e aos cuidados de enfermagem.
5. A AAA está impedida de exercer ou de participar em actividades de natureza sindical ou que se relacionem com a regulação das relações económicas ou profissionais dos seus membros (sublinhado nosso)».
A questão que se coloca nos autos, em função da causa de pedir invocada e dos pedidos formulados, é a de saber se a Autora, na qualidade de Ordem Profissional, tem legitimidade processual para intentar a presente acção cujo objecto é a apreciação de uma pretensão relativa às diferenças remuneratórias e de horário de trabalho entre trabalhadores vinculados em regime de contrato individual de trabalho e trabalhadores em regime de contrato de trabalho em funções públicas.
A ilegitimidade “ad causam” constitui excepção dilatória nominada, cognoscível “exofficio”, conducente à absolvição do réu da instância (art. 278º nº 1 d), 576º nº 1 e 2, 577º e) e 578º do CPC de 2013).
A legitimidade “ad causam” do autor afere-se pelo seu interesse directo, consubstanciado na utilidade adveniente da procedência da acção, em demandar. (art. 30º nºs 1 e 2 do CPC).
Os sujeitos da relação jurídica material controvertida são, salvo disposição legal em contrário, os titulares do interesse relevante para efeitos de legitimidade “ad causam” (art. 30º nº 3 do CPC).
Todavia, a referida relação jurídica não é a efectiva ou real, mas aquela que o autor invoca na petição inicial, nos seus precisos termos (art. 30º nº 3 CPC).
A ressalva constante do nº 3 do art. 30º reporta-se aos casos em que a lei, excepcionalmente, reconhece ou atribui legitimidade a quem não é sujeito (ou só o é em parte) da relação material controvertida objecto da acção (a denominada legitimidade indirecta), conferindo-lhe o direito de acção.
Conforme refere Anselmo de Castro, o fenómeno de ampliação do direito de acção verifica-se sempre que o objecto da acção se apresente como algo de prejudicial em relação às pretensões de outros sujeitos (relações conexas) ou afecte interesses públicos (Direito Processual Civil Declaratório, Vol. II, Almedina, 1982, pg 169).
Como se afirmou no Ac. do TRL de 17.01.2012 (proferido no proc. 9814/03.9 TVLSB, publ. in www.dgsi.pt), “nos casos em que é atribuída legitimidade processual a quem é titular de um interesse indirecto, surge um fenómeno de substituição processual: a acção é deduzida em nome e no interesse próprio, mas sobre relação jurídica de outrem”.
Tal como vem sendo salientado pela doutrina, a figura da substituição processual da representação.
O representante judicial exerce o direito de acção em nome e por conta do representado, não sendo parte na causa. O substituto processual actua em nome próprio e é ele a parte no processo.

Relativamente à legitimidade indirecta, Miguel Teixeira de Sousa (BMJ nº 331, pg. 51 e 52) distingue duas subespécies:
- legitimidade substitutiva, no caso de existência de um interesse próprio na tutela processual de uma situação subjectiva alheia (actuação em nome próprio);
- legitimidade representativa, no caso e existência de um interesse alheio na tutela adjectiva de uma situação subjectiva alheia.
No caso dos autos, conforme decorre dos pedidos formulados e da posição expressamente assumida pela Autora, esta propôs a acção em nome próprio e não em representação dos seus associados (não se apresentando, assim, ao abrigo do instituto da representação).
A questão da legitimidade da Autora nos autos, depende, pois, da natureza dos interesses que pretende defender, ou seja, dos direitos que pretende ver reconhecidos por via da acção.
Dos pedidos formulados – Que os enfermeiros contratados em regime de contrato individual de trabalho, nomeadamente os vinculados aos 3º a 41º Réus, têm, ocorrendo idêntica natureza, qualidade e quantidade do trabalho prestado, direito a auferir remuneração idêntica à dos enfermeiros em regime de contrato de trabalho em funções públicas; Que, estando tais enfermeiros contratados em regime de contrato individual de trabalho vinculados a uma jornada de trabalho mais alargada (in casu, mais 5 horas de trabalho por semana), têm direito a um acréscimo de remuneração proporcional às horas que laboram a mais – resulta, de forma evidente, estar em causa o direito à retribuição, que em todas as suas dimensões tem, como sabemos, natureza individual, integrando o núcleo de matérias atinentes às relações económico-profissionais dos membros da AAA, relativamente aos quais a Autora está impedida de actuar (art. 3º nº 5 do Estatuto e art. 5º nº 2 da Lei nº 2 /2013, de 10 de Janeiro.
Ainda que se entendesse, o que não é o caso, estar em causa, um interesse colectivo (a noção de interesse colectivo não advém de estarem em causa interesses de muitas ou poucas pessoas, embora, na generalidade dos casos ocorra tal coincidência, mas sim da transindividualidade e indisponibilidade do bem jurídico tutelado e que se contrapõe aos direitos individuais homogéneos ou também denominados “direitos acidentalmente colectivos”), inexiste qualquer norma legal ou estatutária que atribua à Autora – como Ordem Profissional que é – legitimidade para propor a presente acção porquanto não constitui uma estrutura representativa de trabalhadores, não beneficiando, por isso, da legitimidade excepcional conferida pelo Artigo 5º do CPT às estruturas de representação colectiva de trabalhadores.
A representação da classe profissional em causa - trabalhadores vinculados ou profissionais autónomos - a que a Autora se arroga para sustentar a sua legitimidade para propor a presente acção não se confunde com a representação dos trabalhadores enfermeiros. A Autora não dispõe do direito de representação dos enfermeiros trabalhadores por conta de outrem em matéria laborais.
Por conseguinte, não dispondo de nenhum interesse directo porquanto não é titular das relações materiais controvertidas das quais fez emergir os pedidos formulados na acção e inexistindo qualquer norma legal ou estatutária da qual resulta a sua legitimidade activa (por verificação de um interesse indirecto), temos que concluir pela sua falta de legitimidade.
Não está em causa, como vimos, nenhuma situação em que a lei reconheça à Autora representação legal nem esta intenta a acção por via do instituto da representação voluntária.
Por último, cumpre ainda referir que a situação dos autos também não consubstancia qualquer tutela de interesses difusos, pelo que está fora da previsão do art. 31º do CPC.
De todo o exposto, decorre, necessariamente, a conclusão de que a Autora carece de legitimidade processual e substantiva para propor a presente acção.
Por conseguinte e sem necessidade de outras considerações, decide-se indeferir liminarmente a petição inicial por verificação da excepção dilatória insuprível da ilegitimidade da Autora (art. 590º CPC de 2013).
Custas pela Autora.
Registe e Notifique.”

Desse despacho, a autora interpôs recurso de Apelação (fols. 81 a 95), apresentando as seguintes conclusões:
A. A sentença coloca bem o problema da legitimidade (ou falta dela) da Autora, quando sustenta que esta depende da natureza dos interesses que a mesma pretende defender, ou seja, dos direitos que pretende ver reconhecidos por via desta acção. Porém, e salvo o devido respeito, dá a resposta errada.
B. A Autora exerce um direito próprio na tutela de uma situação subjectiva alheia – a dos enfermeiros contratados pelos RR., no quadro definido na p.i. –, ou seja, a sua posição processual situa-se no âmbito da legitimidade substitutiva.
C. Qual é o interesse próprio da Autora? É a defesa da dignidade do exercício da profissão, a qual se encontra ameaçada por causa de uma discriminação arbitrária e injusta, que interfere na definição do estatuto do enfermeiro e se repercute na qualidade dos cuidados de saúde prestados à população.
D. Tal interesse próprio vem definido no Estatuto da AAA, aprovado pela Lei n.º 156/2015, de 16 de Setembro, que a consagra como uma associação pública profissional, representativa dos que exercem a profissão de enfermeiro, cabendo-lhe a representação e defesa dos interesses da profissão, muito particularmente zelando pela sua dignidade – cfr. arts. 1.º, n.º 1 e 3.º, n.ºs 1 e 3, a), do referido Estatuto.
E. Esse interesse próprio repercute-se assim na esfera subjectiva dos enfermeiros portugueses, que só podem exercer a profissão se estiverem inscritos na sua Ordem, nos termos do art. 6.º do referido Estatuto.
F. A situação que se pretende acautelar com esta acção tem precisamente a ver com uma discriminação arbitrária e injusta de que, em termos gerais, estão a ser vítimas os enfermeiros contratados em regime de contrato individual de trabalho, mormente os que se encontram vinculados aos 3.º a 41.º RR., a qual se quer ver cessada.
G. Estamos por isso no âmbito de uma legitimidade substitutiva da Autora, que exerce um direito próprio de tutela dos interesses dos enfermeiros que se encontram nas condições que, a propósito, foram definidas na p.i..
H. Não pode ser posto em causa que a AAA tem funções de representação e defesa dos interesses profissionais dos enfermeiros, porque é esse o regime geral das associações públicas profissionais, nos termos da Lei n.º 2/2013, de 10 de Janeiro, cujo art. 5.º lhes confere atribuições na representação e defesa dos interesses gerais da profissão, bem como o quadro legal definido para a AAA, cujo art. 3.º dos respectivos Estatutos lhe acomete, como desígnio fundamental, a representação e defesa dos interesses da profissão.
I. Assim sendo, julgamos que podemos, com segurança, sustentar que à AAA cabe a representação e defesa dos interesses (quer morais, quer materiais) da profissão de enfermeiro.
J. A única limitação legal e constitucional é a de que lhe está vedado participar em actividades de natureza sindical ou outras que se relacionem com a regulação das relações económicas ou profissionais dos seus membros, como resulta do art. 267.º, n.º 4 da C.R.P., do art. 5.º, n.º 2 da Lei n.º 2/2013 e do art. 3.º, n.º 5 do Estatuto da AAA.
K. Não há qualquer dúvida que há actividades específicas que a lei reserva às associações sindicais, como seja o recurso à greve (cfr. art. 531.º do C.T.) ou o direito a celebrar convenções colectivas de trabalho, enquanto estruturas de representação colectiva dos trabalhadores (cfr. art. 56.º da C.R.P. e art. 443.º do C.T.).
L. Porém, in casu, a Autora não se está a intrometer em nenhuma área que esteja reservada às associações sindicais, nem pretende regular as concretas relações económicas dos seus membros.
M. Com efeito, aquilo que, in casu, determina a actuação da Autora é o combate a uma discriminação arbitrária e injusta num estatuto legal – aquele que presentemente diferencia os enfermeiros contratados em regime de contrato individual de trabalho e aqueles outros que se encontram em regime de contrato de trabalho em funções públicas –, a qual afecta a dignidade e o prestígio da profissão, repercutindo-se na qualidade dos cuidados de saúde prestados à população, uma vez que interfere nas relações dos enfermeiros entre si e com as demais classes profissionais que prestam actividade no Serviço Nacional de Saúde, bem como com a população que recorre aos seus cuidados de saúde.
N. A presente acção não visa regular a situação económica e profissional de cada enfermeiro que, sob a égide de um contrato individual de trabalho, presta serviço aos RR. desta acção, pelo que a mesma não se dirige à situação do direito individual de cada uma dessas pessoas.
O. Não se está a discutir a situação individual de cada enfermeiro contratado em regime de contrato individual de trabalho, mas tão somente a pedir que cesse uma discriminação arbitrária entre os enfermeiros contratados em regime de contrato individual de trabalho e os que se encontram sob a égide de contrato de trabalho em funções públicas, quando ocorra idêntica natureza, qualidade e quantidade do trabalho prestado.
P. É por isso que a presente acção é de simples apreciação, destinada unicamente a obter uma declaração que tem em vista fazer cessar uma discriminação que, em geral, existe, mas sem pretender condenar as RR. no que quer que seja.
Q. Sendo uma acção cuja causa de pedir assenta na defesa da dignidade da profissão de enfermeiro, ela tem uma vocação eminentemente simbólica, pedagógica e de ordenação social, pedindo aos tribunais que declarem que, entre os trabalhadores em regime de contrato individual de trabalho e os que estão sob a égide de contrato de trabalho em funções públicas, ocorrendo idêntica natureza, qualidade e quantidade do trabalho prestado, não pode, nem deve haver discriminação no estatuto remuneratório.
R. Refere a sentença recorrida que o C.P.T. não estabelece uma competência específica para a AAA agir no âmbito desta acção, uma vez que o seu art. 5.º apenas confere legitimidade às associações sindicais para assegurar a representação colectiva dos trabalhadores.
S. Mas, salvo o devido respeito, não tem razão, porque tal regra processual tem a ver com um direito de acção das associações sindicais no âmbito de uma legitimidade representativa dos seus associados. Porém, no caso presente, não é essa representação (de natureza individual) que a AAA pretende salvaguardar, mas a tutela do seu interesse próprio na definição da existência de um estatuto legal que, em termos gerais, proíba uma discriminação que ofende o princípio constitucional de que para trabalho igual, salário igual “de forma a garantir uma existência condigna” (sic) – in art. 59.º, n.º 1, a), da C.R.P..
T. O Código de Processo de Trabalho – ou qualquer outra lei – não veda à Ordem dos Enfermeiros o direito a propor acções que defendam interesses materiais dos enfermeiros.
U. Por outro lado, a todo o direito – excepto quando a lei determine o contrário – corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, nos termos do art. 2.º, n.º 2, do C.P.C.. Excepto quando a lei determine o contrário, o que aqui não acontece.
V. Deste modo, a AAA é titular de um interesse próprio relativo à defesa da dignidade da profissão de enfermeiro, razão pela qual, não havendo proibição legal, lhe cabe o direito a propor a acção destinada a fazê- lo reconhecer em juízo.
W. Ademais, o entendimento normativo dado ao art. 5.º do C.P.T. a contrario, no sentido de que à Autora, como ordem profissional, está vedado o direito a propor uma acção de simples apreciação destinada a salvaguardar a dignidade da profissão do enfermeiro, com vista a fazer cessar uma discriminação arbitrária e injusta relativa a um estatuto remuneratório nos termos descritos, é inconstitucional, por violação do princípio de que a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais, tal como consagrado no art. 20.º, n.º 1 da C.R.P., o que se deixa arguido.
X. Pelo exposto, a sentença recorrida julgou erroneamente a Autora como parte ilegítima nesta acção.
Termos em que o recurso deve ser julgado procedente, reconhecendo-se a A. como parte legítima nesta acção.

Algumas das rés contra-alegaram validamente (fols. 190, 204, 268, 288, 302, 314, 339, 372, 376, 383, 399 e 414), todas defendendo a improcedência total da apelação.

Correram os Vistos legais.

V A factualidade com interesse para a decisão a proferir é a que consta do relatório supra.

VI Nos termos dos arts. 635º-4, 637º-2, 608º-2 e 663º-2, todos do CPC/2013, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação; os tribunais de recurso só podem apreciar as questões suscitadas pelas partes, salvo se importar conhecê-las oficiosamente.

Atento o teor das conclusões das alegações apresentadas pela apelante, a questão que fundamentalmente se coloca no presente recurso é a de saber se a autora tem legitimidade para intentar a presente acção declarativa de simples apreciação.

VIIDecidindo.
A apelante considerou que apesar de lhe estar vedado estatutariamente participar em actividades que tenham a ver com a regulação, em concreto, das relações económicas ou profissionais dos seus membros, nesta acção está em causa um interesse geral dos enfermeiros titulares de contratos individuais de trabalho, para além que esta acção não visa a condenação dos réus no pagamento de qualquer quantia a qualquer enfermeiro, individual ou colectivamente considerados, não se dirigindo, portanto, à situação do direito individual de cada um dos enfermeiros.

Mais considera que não se está perante um caso de legitimidade representativa mas de legitimidade substitutiva em que a autora exerce um direito próprio na tutela de uma situação subjectiva alheia, ou seja, a defesa da dignidade do exercício da profissão que interfere na definição do estatuto de enfermeiro e se repercute na qualidade dos cuidados de saúde prestados à população.

Entende ainda que o regime geral das associações públicas profissionais permite a defesa de interesses materiais, sendo que o estatuto da OE não restringe a defesa de interesses materiais da profissão de enfermeiro, não estando também a autora a intrometer-se em área de actuação reservada das associações sindicais.

Por fim sustenta que o art. 5º do CPT não veda à OE o direito de propor acções que defendam interesses materiais dos enfermeiros e o entendimento de que o referido artigo impede as ordens profissionais de propor acções judiciais dentro das suas competências estatutárias está ferido de vício de inconstitucionalidade, por violação do direito de acesso aos direito e aos tribunais, consagrado no art. 20º-1 da CRP.

Já a decisão recorrida entendeu, aqui em concordância com a autora, que esta intentou a presente acção em nome próprio e não em representação dos seus associados, mas evidenciando estarem em causa o direito à retribuição dos trabalhadores com natureza individual.

Acrescenta-se ainda no decidido que, mesmo que se entendesse estar em causa um interesse colectivo, a OE não beneficiava da legitimidade excepcional prevista no art. 5º do CPT, só atribuídas às associações sindicais e de empregadores.

O despacho recorrido já discorreu sobre pertinentes entendimentos doutrinais e jurisprudenciais, gerais, relativos à problemática da legitimidade activa, também no que toca às associações profissionais e respectivas atribuições a prosseguir, pelo que nos escusamos de estar aqui a repetir, desnecessariamente, as mesmas considerações gerais, antes nos concentrando nos pontos concretos, agora mais relevantes.

Ora, tal como a autora sustenta, temos também como certo que o regime geral das associações públicas profissionais não proíbe a defesa de interesses materiais dos seus associados (Lei nº 2/2013 de 10/1) desde que sejam de ordem geral (art. 5º-1-b)) e, naturalmente, que não sejam excepcionados nos Estatutos concretos de cada associação.

O art. 5º-2 do Regime Jurídico de Criação, Organização e Funcionamento das Associações Públicas Profissionais prevê que “As associações públicas profissionais estão impedidas de exercer ou de participar em atividades de natureza sindical ou que se relacionem com a regulação das relações económicas ou profissionais dos seus membros.”

Também decorre do art. 3º-5 dos Estatutos da AAA (Lei nº 156/2015 de 16/9) que “A AAA está impedida de exercer ou de participar em atividades de natureza sindical ou que se relacionem com a regulação das relações económicas ou profissionais dos seus membros.”

Mister é, pois, definir-se se os pedidos formulados nestes autos se enquadram nas regulações económicas ou profissionais dos seus membros, como se sustenta no despacho recorrido, ou não, como defende a autora.

Acompanhamos, no essencial, o já decidido.

Vejamos porquê.

Os dois pedidos de simples apreciação formulados pela autora têm por base a imputada existência de discriminação laboral salarial fundada na conhecida máxima de “trabalho igual/salário igual”, quer por via de prestação de trabalho qualitativamente idêntico, quer por diferença do número de horas trabalhado.

Como decorre do art. 10º-2-3-a) do CPC/2013, têm por fim “obter unicamente a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto”, ou seja aqui, a existência de um direito em concreto.

Porém, o que a autora faz, é peticionar a declaração de um direito geral hipotético e incerto logo à nascença: “Que os enfermeiros contratados em regime de contrato individual de trabalho, nomeadamente os vinculados aos 3º a 41º Réus, têm, ocorrendo idêntica natureza, qualidade e quantidade do trabalho prestado, direito a auferir remuneração idêntica à dos enfermeiros em regime de contrato de trabalho em funções públicas” (sublinhado e realce nosso).

Ou seja, a autora formula os seus dois pedidos não sabendo, em concreto, quais são os enfermeiros que estão a ser, segundo diz, discriminados, nem aponta nenhuma forma de tal ser averiguado em concreto.

E sabendo-se que a verificação da discriminação por violação da obrigação de pagamento de salário igual a trabalho igual exige a análise casuística, trabalhador a trabalhador, das condições laborais próprias de cada um deles em termos de qualidade e quantidade, incluindo horários, em relação ao outro ou outros trabalhadores a quem se quer comparar, está bom de ver que o peticionado não só não tem viabilidade da forma como a acção foi estruturada como, manifesta e necessariamente, implica a verificação individual da situação laboral de cada um dos associados em questão, por referência ao direito à retribuição de cada um deles.

Só em relação aos casos concretos de cada associado tal se poderá aquilatar.

Não existem situações genéricas ou gerais de violação do princípio de trabalho igual/salário igual. Só concretas, e os tribunais devem funcionar para resolver proficuamente as questões, também concretas, que lhes são legitimamente colocadas e não para proporcionar inútil divagação jurídico-intelectual no plano das hipóteses.

Por isso, não se pode deixar de se concordar com o despacho recorrido quando nele se concluiu que o peticionado integra “o núcleo de matérias atinentes às relações económico-profissionais dos membros da AAA, relativamente aos quais a autora está impedida de actuar.”

Quanto à questão da inaplicabilidade à autora do disposto no art. 5º do CPT e da inconstitucionalidade de tal interpretação por violação do art. 20º-1 da CRP, importa notar que a decisão recorrida apenas abordou o assunto para o caso de se entender que se estava perante um interesse colectivo, o que foi afastado expressamente, ficando deste modo arredada qualquer problema de hipotética inconstitucionalidade interpretativa.

Já nós, se tivéssemos entendido que estávamos perante defesa de interesse colectivo, o que também não foi o nosso caso, como se viu, acompanhar-se-ia a apelante no sentido de que o art. 5º do CPT não afasta ou exclui a legitimidade das associações públicas profissionais, mas tão só assegura expressamente a legitimidade das associações sindicais e de empregadores naquelas situações pelo que a questão de inconstitucionalidade suscitada não se coloca.

A apelação da autora improcede assim totalmente, sendo de confirmar o despacho recorrido.

VIII Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se o despacho recorrido.
Custas em ambas as instâncias a cargo da autora/apelante.


Lisboa, 6 de Junho de 2018.


DURO CARDOSO

LEOPOLDO SOARES

EDUARDO SAPATEIRO