Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3579/21.0T8LRS.L1-2
Relator: LAURINDA GEMAS
Descritores: CONTRATO DE COMODATO
RESTITUIÇÃO DE IMÓVEL
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/14/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROVIMENTO
Sumário: I - Sendo manifesto que a Apelante, ao impugnar a decisão da matéria de facto, não especificou os concretos pontos de facto (do elenco dos factos provados e/ou do elenco dos factos não provados) que porventura considera incorretamente julgados, impõe-se rejeitar uma tal impugnação (cf. art. 640.º do CPC).
II - A lei não exige, mormente no art. 1137.º, n.º 2, do CC, aplicável ao caso, que a interpelação por parte do(s) comodante(s) no sentido da cessação do contrato de comodato de imóvel tenha de ser reduzida a escrito. De qualquer modo, tendo a Ré, comodatária, sido citada na presente ação para restituir o imóvel em apreço, é óbvio que foi, também por essa via, interpelada para o efeito, estando obrigada a restitui-lo aos Autores [cf. art. 1135.º, al. h), do CC], cujo direito de propriedade não questionou.
III - Provando-se que, no ano de 2016, em data posterior a 6 de setembro, foi a Ré interpelada, pelo Autor para entregar a casa, há que reconhecer que, quando o contrato findou, pelo menos no fim desse ano, a partir de 31-12-2016, incorreu em mora no cumprimento daquela obrigação, com a inerente obrigação de indemnizar os Autores, que se viram impedidos de procederem à venda do imóvel, como pretendiam fazer (cf. 804.º e 805.º do CC).
IV - Sendo o crédito indemnizatório em apreço ilíquido, fundando-se, nos termos decididos na sentença, em responsabilidade civil por facto ilícito (qualificação que a Ré não questionou), é de concluir, ante o disposto nos artigos 805.º e 806.º do CC, que, quanto à obrigação de indemnizar, a Ré se constituiu em mora com a sua citação, vencendo-se juros desde essa data sobre as quantias mensais fixadas na sentença, retificada quanto ao lapso de cálculo do n.º total de meses a considerar.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados

I - RELATÓRIO
IS, Ré na ação declarativa que, sob a forma de processo comum, foi intentada por MG e JG, interpôs o presente recurso de apelação da sentença que julgou a ação parcialmente procedente.
Os autos tiveram início em 23-04-2021, com a apresentação de Petição Inicial, em que os Autores peticionaram que fosse:
(A – Pedido principal)
- declarado que são proprietários e legítimos possuidores do “prédio urbano” identificado no artigo 1.º da petição inicial e a Ré condenada a reconhecer isso mesmo e a abster-se da prática de quaisquer atos perturbadores da posse e do direito de propriedade daqueles sobre o referido imóvel;
- condenada a Ré a restituir, de imediato, aos Autores o “prédio urbano” identificado no artigo 1.º da petição inicial, completamente livre de pessoas e de bens e em bom estado de conservação;
- condenada a Ré a pagar aos Autores a importância global de 23.400 €, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento;
- condenada a Ré a pagar aos Autores a importância correspondente ao valor locativo, utilidade, fruição ou enriquecimento sem causa de que continuará a beneficiar pela detenção do referido prédio urbano desde 27-03-2021 até à data em que o restitua aos Autores completamente livre e devoluto de pessoas e bens, no montante mensal de 450 € por cada mês e o que, a este título, se vier a liquidar;
(B – Pedido subsidiário)
Caso assim não se entenda, que fosse:
- decretada a resolução do contrato de arrendamento (eventualmente) celebrado com os Autores;
- condenada a Ré a despejar imediatamente o imóvel e a entregá-lo aos Autores, completamente livre e devoluto de pessoas e bens e em bom estado de conservação;
- condenada a Ré a pagar aos Autores as rendas vencidas e não pagas, desde dezembro de 2016 até 27-03-2021, no montante de 23.400 €, bem como as rendas vincendas até à data em que restitua o imóvel aos Autores, completamente livre e devoluto de pessoas e bens, a liquidar em “Execução de Sentença”, acrescida de juros legais desde a data da citação até integral e efetivo pagamento, ou, caso assim não se entenda quanto às rendas vincendas, a indemnização, a liquidar, correspondente ao valor locativo do prédio por cada mês que decorrer desde a data em que transitar em julgado a sentença que decretar a resolução deste (eventual) contrato de arrendamento até à data em que a Ré restitua o prédio aos Autores completamente livre e devoluto de pessoas e bens, acrescida de juros legais desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.
Alegaram os Autores, para tanto e em síntese, que:
- O “prédio rústico” sito na Quinta do ..., Rua …, Vivenda ..., Bairro das ..., inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Camarate sob o artigo n.º … e descrito na Conservatória do Registo Predial de Camarate com o n.º …, encontra-se registado em nome de EG, na proporção de 2/10;
- Sobre esse “prédio rústico” foi construído um edifício, de génese ilegal (AUGI), destinado à habitação, com dois pisos, composto de rés-do-chão e primeiro andar;
- O referido registo do direito de propriedade do prédio rústico/urbano, em nome de EG, foi efetuado pela apresentação n.º 47 de 26/3/1980, na Conservatória do Registo Predial de Camarate;
- EG faleceu em 23 de dezembro de 2004, tendo-lhe sucedido como únicos e universais herdeiros, os Autores;
-   Desde há dezassete anos que utilizam, como se coisa sua se tratasse, o referido prédio, à vista de toda a gente, sem violência ou oposição de quem quer que seja, pagando a água, luz e gás e respetivos impostos, com a convicção de que exercem um direito próprio;
- Concordaram os Autores que a Ré fosse residir no primeiro piso do prédio, por tempo nunca superior a um ano, a fim de a mesma organizar a sua vida e arranjar casa própria;
- Em setembro de 2016, decidiram proceder à venda desse imóvel, pelo que interpelaram a Ré para entregá-lo ou adquiri-lo;
- Apesar das diversas interpelações, a Ré, contra a vontade dos Autores, continua a ocupar o primeiro andar do imóvel;
- O valor locativo mensal do prédio, caso fosse arrendado ou afetado a qualquer outro fim, não é inferior a 450,00 €, considerando a sua localização, composição e utilidade imobiliária;
- Caso se entenda existir um contrato de arrendamento, o mesmo é nulo, por falta de forma, e, consequentemente, deve a Ré restituir, aos Autores, o mencionado prédio urbano, bem como pagar-lhes, a título de indemnização pela fruição, desde dezembro de 2016, pelo menos, uma importância correspondente ao respetivo valor locativo;
- A não se entender assim, igual solução decorre do instituto do enriquecimento sem causa.
A Ré IS foi pessoalmente citada em 08-06-2021. Juntou aos autos comprovativo do pedido de apoio judiciário e, posteriormente, apresentou Contestação, em que se defendeu por impugnação, de facto e de direito, e por exceção perentória (embora sem identificar a defesa por exceção), pugnando pela improcedência da ação.
Alegou, em síntese, que:
- desde meados do ano de 2012, os Autores cederam-lhe a utilização do primeiro piso do prédio, para sua habitação e sem estipulação de qualquer prazo, tendo assim sido celebrado entre as partes um contrato de comodato, por tempo indeterminado;
- nunca os Autores interpelaram a Ré para que saísse do imóvel, pelo que não está obrigada a restitui-lo enquanto continuar a utilizá-lo para a sua habitação;
- não se verificam os requisitos do instituto do enriquecimento sem causa.
Realizou-se audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador (tabelar) e despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.
Realizou-se audiência de julgamento, com a prestação de declarações de parte (pela Ré e pela Autora) e a produção de prova testemunhal.
Após, em 09-11-2022, foi proferida a sentença (recorrida) cujo segmento decisório tem o seguinte teor:
“Nestes termos e com os fundamentos expostos, julga-se a presente acção parcialmente procedente, por parcialmente provada e, consequentemente, decide-se:
a. Declarar que os autores MG e JG são titulares do direito de 2/10 sobre o prédio rústico sito em ..., com a área total de 5270 m2, composto por uma parcela de terreno para fins hortícolas, confrontando a norte com caminho público e JS, a sul com caminho público, a nascente com JS e a poente com caminho público, descrito sob o nº …, na 2ª Conservatória do Registo Predial de Loures, freguesia de Camarate.
b. Declarar que os autores MG e JG são proprietários e legítimos possuidores da edificação “Vivenda ...”, inscrita na matriz predial urbana da freguesia de Camarate, concelho de Loures, como “prédio urbano destinado à habitação”, sito na Quinta do ..., Vivenda ..., Bairro das ..., Camarate, composto por “rés-do-chão, com três (3) divisões, cozinha e casa de banho; e primeiro andar com quatro (4) divisões, cozinha e casa de banho; com a superfície coberta de 90m2 e o logradouro com 910m”, a confrontar a norte com Rua …, a sul com LC, a nascente com AS e a poente com EV.
c. Condenar a ré IS a reconhecer os direitos dos autores MG e JG referidos nas alíneas a) e b) e a se abster da prática de quaisquer actos perturbadores da posse e do direito de propriedade sobre a edificação “Vivenda ...”, identificada na alínea b).
d. Condenar a ré IS a restituir, de imediato, aos autores MG e JG, o primeiro piso da edificação “Vivenda ...”, identificada na alínea b), completamente livre de pessoas e de bens.
e. Condenar a ré IS a pagar, aos autores MG e JG, a título de indemnização devida pela ocupação do primeiro piso da edificação “Vivenda ...”, identificada na alínea b), a quantia de €180,00 (cento e oitenta euros) por mês, desde o mês de Dezembro de 2016 e até à data da entrega efectiva do primeiro piso da edificação “Vivenda ...”, determinada na alínea d), perfazendo o montante de €12.780,00 (doze mil, setecentos e oitenta euros), até à presente data, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4% (cf. Portaria n.º 291/2003 de 8/04; e arts. 805.º, n.º 3, 806.º e 559.º do Código Civil), vencidos desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.
É Absolver a ré IS, dos demais pedidos deduzidos pelos autores.
Custas da presente acção a cargo dos autores e da ré, na proporção do respectivo decaimento, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário concedido a esta (artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Registe e notifique.”
Inconformada com esta decisão, veio a Ré interpor o presente recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
1) a aqui Recte após ter ficado sem habitação, por ter deixado de pagar as prestações à instituição bancária falou com a irmã, aqui Recda no sentido de ir morar para o piso onde se encontrava sua mãe, tendo a Recda acordado sem nunca lhe ter referido que seria temporário.
2) Em Agosto de 2016 a irmã, aqui Recda decide ir para Alenquer ficando a aqui Ré a residir sozinha na edificação “Vivenda ...” sempre com o conhecimento e autorização dos irmãos aqui Recdos.
3) A Recte, passou desde então a viver, até à presente data, nesta vivenda com os animais sendo quem suportava por sua conta e risco todas as despesas da edificação “Vivenda ...”, inclusive, as obras de manutenção.
4) o Tribunal “a quo” não considerou esta prova apenas relevando o facto de não ter junto aos autos o comprovativo de pagamento quando na verdade se dúvidas houvessem poderia ter requerido a junção aos autos por parte da Recte de tais comprovativos.
5) Em tempo algum a aqui Recte foi interpelada por escrito por qualquer dos seus irmãos, para sair desta vivenda,
6) Pelo que não se compreende como a douta Sentença proferida pelo Tribunal “a quo” condena a Recte a restituir de imediato o primeiro piso da edificação “vivenda ...”
7) Sem que tenha havido qualquer interpelação por escrito à Recte,
8) Fixando o Tribunal “a quo” a data de 2016, para calcular a indemnização pela ocupação do primeiro piso sem que haja prova documental relativamente a esta mesma interpelação, pelo que, se entende que o Tribunal “a quo” fez uma errada apreciação dos factos!
9) Logo não deve proceder o valor da indemnização proferido pelo Tribunal “a quo”
10) Nunca foi referido pelos Recdos à Recte. o pagamento de quaisquer importâncias, uma vez que, os Recdos bem sabiam que quem mantinha o pagamento das despesas daquela habitação era a Recte, motivo pelo qual em tempo algum pediram o pagamento de qualquer valor,
11) Pelo que não deve proceder a indemnização proferida pelo Tribunal “a quo” nem tampouco o cálculo de juros de mora porquanto não está provado nos autos que a Ré tenha sido interpelada por escrito em 2016 para que saísse desta habitação,
12) Sendo que tais juros somente poderão ser exigidos após a sua interpelação pelo não cumprimento por parte da Recte!
Terminou a Apelante requerendo que seja considerado procedente o presente recurso, sendo alterada a decisão proferida pelo Tribunal a quo conforme alegado.
Não foi apresentada alegação de resposta.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***
II - FUNDAMENTAÇÃO
Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido (artigos 608.º, n.º 2, parte final, ex vi 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.º 1, do CPC).
Identificamos as seguintes questões a decidir:
1.ª) Se o Tribunal devia ter considerado outra prova e/ou errou ao considerar/ou não considerar certos factos como provados / não provados;
2.ª) Se a Ré não está obrigada a restituir o imóvel em apreço sem ter havido uma interpelação por escrito nesse sentido;
3.ª) Se a Ré não está obrigada a pagar aos Autores uma indemnização pela ocupação do imóvel, calculada desde 2016, e respetivos juros (vencidos desde a citação), sem ter sido interpelada por escrito para restituir o imóvel, nem interpelada a pagar uma qualquer importância.
Factos provados
Na sentença foram considerados provados os seguintes factos:
1- EG faleceu em 23 de dezembro de 2004, no estado de divorciado, sem deixar testamento ou qualquer outra disposição de sua última vontade, tendo-lhe sucedido como únicos e universais herdeiros, os filhos MG e JG, ora Autores.
2 - Pela apresentação n.º 47 de 26/3/1980, foi registada, em nome de EG, a aquisição de 2/10 sobre o prédio rústico sito em ..., com a área total de 5270 m2, composto por uma parcela de terreno para fins hortícolas, confrontando a norte com caminho público e JS, a sul com caminho público, a nascente com JS e a poente com caminho público, descrito sob o n.º …, na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Loures, freguesia de Camarate.
3 - O prédio urbano destinado à habitação, concluído em 3/8/1987, sito na Quinta do ..., Vivenda ..., Bairro das ..., Camarate, composto por rés-do-chão, com três (3) divisões, cozinha e casa de banho; e primeiro andar com quatro (4) divisões, cozinha e casa de banho; com a superfície coberta de 90m2 e o logradouro com 910m2, sendo a área total do terreno de 100,0000 m2 e a área de implantação do edifício de 90,0000 m2, a área bruta privativa total de 180,0000 m2 e a área de terreno integrante de 0,0000 m2, a confrontar a norte com Rua …, a sul com LC, a nascente com AS e a poente com EV, encontra-se inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Camarate, concelho de Loures, sob o artigo n.º ….
4 - O prédio urbano, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Camarate, concelho de Loures, sob o artigo n.º … consta como verba n.º 1 do ativo (bens imóveis) da herança aberta por óbito de EG.
5 - O prédio urbano, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Camarate sob o artigo no …, encontra-se construído na área do prédio rústico, descrito sob o n.º …, na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Loures, freguesia de Camarate.
6 - Os Autores, há dezassete anos, pelo menos, que utilizam, como se coisa sua se tratasse, o prédio identificado no ponto 3, à vista de toda a gente, sem violência ou oposição de quem quer que seja e com a convicção de que são co-proprietários do mesmo.
7 - Aquando do falecimento de EG, pai dos Autores, a Autora MG, já residia no rés-do-chão do prédio identificado no ponto 3, situação que se verificava desde 2001, pelo menos.
8 - Aquando do seu falecimento, o pai dos Autores residia no primeiro piso da Vivenda .... Após o falecimento de EG, a mãe da Autora permaneceu no primeiro piso do prédio identificado no ponto 3, até junho de 2016.
9 - A Ré deixou de cumprir as prestações mensais para amortização de empréstimo contraído para aquisição da sua habitação e, nessa sequência, esse imóvel veio a ser entregue à instituição bancária.
10 - Nesse contexto e por forma a permitir, à Ré, reorganizar a sua vida e arranjar um espaço para habitar, a Autora, com a anuência do Autor, concedeu-lhe autorização, em data não concretamente apurada do ano de 2009, para residir no primeiro piso do prédio identificado no ponto 3, juntamente com a sua mãe, o que efetivamente sucedeu.
11 - Requerido o processo de inventário para partilha da herança aberta por óbito de EG cujos termos correm sob o n.º …/…, no Cartório Notarial de Loures, e realizada a conferência de interessados, no dia 6/9/2016, foi “ordenada a adjudicação do acervo hereditário por negociação particular”, tendo os Autores acordado proceder à venda do prédio identificado no ponto 3, incluído na relação de bens como pertencente ao acervo hereditário, para posterior divisão do produto resultante da sua venda.
12 - Nessa sequência, ainda no ano de 2016, em data posterior a 6 de setembro, foi a Ré interpelada, pelo Autor JG, para entregar o primeiro piso do prédio identificado no ponto 3.
13 - Apesar de diversas interpelações, efetuadas em data posterior a 6 de setembro de 2016, a Ré continua a ocupar o primeiro andar do imóvel identificado no ponto 3, contra a vontade dos Autores.
14 - Desde que ocupa o imóvel até à presente data, a Ré nunca pagou, aos Autores, qualquer importância como contrapartida do gozo do primeiro piso do prédio identificado no ponto 3.
15 - O valor patrimonial atual do prédio identificado no ponto 3 é de 117.320,00 € (cento e dezassete mil, trezentos e vinte euros).
16 - No mercado de arrendamento, um prédio, na localidade e com a composição do prédio inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … da freguesia de Camarate, pode proporcionar uma renda não inferior à quantia de 500,00 € (quinhentos euros) mensal.
17 - A Ré reside, desde 2009, de forma permanente, no primeiro piso do imóvel identificado no ponto 3, sendo aí que efetua as suas refeições, pernoita, recebe a sua correspondência e efetua a sua higiene.
18 - Quando foi concedida autorização para a Ré residir no primeiro piso do prédio mencionado no ponto 3, não lhe foi exigido o pagamento de qualquer quantia como contrapartida.
Da modificação da decisão de facto
Conforme previsto no art. 662.º, n.º 1, do CPC, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Dispõe o artigo 640.º do CPC, sobre o ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, que:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.”
É conhecida a divergência jurisprudencial que existiu a respeito da aplicação deste normativo e da sua conjugação com o disposto no n.º 1 do art. 639.º do CPC, atinente ao ónus de alegar e formular conclusões, vindo o STJ a firmar jurisprudência no sentido do “conteúdo minimalista” das conclusões da alegação, conforme espelhado no acórdão do STJ de 06-12-2016 - Revista n.º 2373/11.0TBFAR.E1.S1 - 1.ª Secção, sumário citado na compilação de acórdãos do STJ, “Ónus de Impugnação da Matéria de Facto, Jurisprudência do STJ”, disponível em www.stj.pt, bem como o acórdão do STJ de 01-10-2015, no processo n.º 824/11.3TTLRS.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
Nesta linha, conclui-se resultar da conjugação do disposto nos artigos 635.º, 639.º e 640.º do CPC que o ónus principal a cargo do recorrente exige que, pelo menos, sejam indicados nas conclusões da alegação do recurso, com precisão, os concretos pontos de facto da sentença que são objeto de impugnação, sem o que não é possível ao tribunal de recurso sindicar eventuais erros no julgamento da matéria de facto.
Já a alínea a) do n.º 2 do citado art. 640.º do CPC consagra um ónus secundário, cujo cumprimento, quanto aos invocados erros de julgamento das concretas questões de facto, não tendo de estar refletido nas conclusões da alegação recursória, deverá igualmente ser observado, sob pena de rejeição do recurso, na parte respetiva. Assim, a título exemplificativo, veja-se o acórdão do STJ de 16-12-2020, no processo n.º 8640/18.5YIPRT.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt, citando-se, pelo seu interesse e clareza, as seguintes passagens do respetivo sumário:
“I - No âmbito do recurso de apelação visando a impugnação da decisão de facto podem distinguir-se dois ónus que incidem sobre o recorrente:
Um ónus principal, consistente na delimitação do objecto da impugnação (indicação dos pontos de facto que considera incorrectamente julgados) e na fundamentação desse erro (com indicação dos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação que impunham decisão diversa e o sentido dessa decisão) – Art.º 640º nº 1 do CPC;
E
Um ónus secundário, consistente na indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados – art.º 640º nº 2 al. a) do CPC.
II - Este ónus secundário não visa propriamente fundamentar e delimitar o recurso, mas sim facilitar o trabalho da Relação no acesso aos meios de prova achados relevantes.
III - O controlo do cumprimento deste ónus secundário deve ser feito pela Relação em termos funcionalmente adequados e em conformidade com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.”
Ora, face ao teor das conclusões da alegação de recurso, admitimos que a Apelante pretenderá ver alterada a decisão da matéria de facto.
No entanto, é manifesto que não especificou os concretos pontos de facto (do elenco dos factos provados e/ou do elenco dos factos não provados) que porventura considera incorretamente julgados.
Além disso, no conjunto da alegação de recurso, não foi indicada, pelo menos de forma inteligível, a decisão que, no entender da Apelante, deveria ter sido proferida a esse respeito (por exemplo, terem sido dados como provados factos que deviam ter sido considerados não provados), muito menos foram especificados os concretos meios probatórios constantes do processo que impunham uma decisão diferente.
Limitou-se a Apelante a fazer algumas considerações em que confunde questões de facto com questões de direito, sem respeitar o disposto no art. 640.º do CPC, tudo para vir, a final, requerer que seja “alterada a decisão proferida” pelo Tribunal a quo.
Logo, se a sua pretensão foi impugnar a decisão da matéria, não pode deixar de ser rejeitada, o que se decide.
Da obrigação de restituição da casa
Na sentença recorrida, o Tribunal a quo começou por qualificar a ação intentada como uma ação de reivindicação, indicando como pressupostos da mesma que o autor prove ser o proprietário e que o réu possui a coisa, e ainda a identidade da coisa que se reclama com a que é possuída pelo réu.
Quanto à questão do reconhecimento do direito de propriedade exclusiva dos Autores, fundamentou-se o decidido designadamente nos seguintes termos:
“Assim, no que tange ao reconhecimento do direito de propriedade, com base na presunção derivada do registo da propriedade contrariamente ao alegado pelos autores, nos artigos 1º, 2º e 3º da petição inicial, a presunção resultante do registo predial decorrente da inscrição pela apresentação nº 47 de 26/3/1980, não respeita a uma parcela concreta do prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº …, nem é extensiva ao prédio urbano que se encontra inscrito na matriz predial sob o artigo ….
Na ausência dos pressupostos legais da divisão - o regime relativo ao processo de reconversão urbanística de área urbana de génese ilegal que se mostra estabelecido pela Lei n.º 91/95, de 02.09, com as alterações que lhe foram introduzidas pelas Leis n.ºs 165/99, de 14.09, 64/2003, de 23/08, 10/2008, de 20.02, 79/2003, de 26.12 e 70/2015, de 16.07 -, forçoso se torna concluir pela inviabilidade de pretensão dos autores quanto ao direito de propriedade sobre a parcela do prédio rústico na qual está construída a edificação urbana inscrita na matriz predial urbana sob o nº ….
Invocam, ainda, os autores, actos de posse com as características e longevidade suficientes para fundamentar a aquisição do direito de propriedade exclusiva sobre uma parcela concreta do prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº … (cfr. artigos 4 º e 5º da petição).
(…) Nos presentes autos, mostra-se inviabilizada a discussão jurídica quanto à aquisição por usucapião por parte dos autores do direito de propriedade sobre uma parcela concreta do prédio rústico considerando que não se encontram na acção todos os comproprietários, sendo que o efeito jurídico (útil) pretendido sobre a ré centra-se sobre a titularidade da edificação e não sobre a parcela de terreno, à qual o interesse da ré em contradizer é nenhum. Ou seja, a pretensão jurídica sobre a parcela diz respeito aos contitulares do terreno rústico, situando-se à margem da relação jurídica discutida nos autos.
Assim, encontra-se demonstrada aquisição, pelos autores, da quota ideal de 2/10 sobre o prédio rústico descrito sob o nº … da 2ª Conservatória do Registo Predial de Loures, freguesia de Camarate, e não mais do que isto.
Invocam os autores o direito de propriedade sobre a edificação construída o prédio urbano inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … da freguesia de Camarate, concelho de Loures.
Conforme já se referiu, este prédio encontra-se omisso na Conservatória do Registo Predial, pelo que não beneficiam os autores da presunção resultante do registo predial.
(…) Face ao exposto, encontra-se demonstrada a aquisição da propriedade, por usucapião, da edificação que se encontra inscrita na matriz predial urbana da freguesia de Camarate, concelho de Loures, sob o artigo nº …, sita na Quinta do ..., Vivenda ..., Bairro das ..., Camarate, composta por rés-do-chão com 3 divisões, cozinha e casa de banho; e primeiro andar com 4 divisões, cozinha e casa de banho; com a superfície coberta de 90m2 e o logradouro com 910m2.
Procede, assim, parcialmente, este pedido.”
A Ré não questiona no presente recurso o assim decidido, nem, aliás, que vem ocupando a parte do prédio reivindicada. Antes parece defender, se bem se percebe a sua alegação recursória (e não é fácil perceber), que tem título para continuar a ocupar tal parte do prédio, uma vez que o contrato de comodato que as partes celebraram só poderia ter cessado mediante uma interpelação escrita, a qual não ficou provada.
A este respeito, teceram-se na sentença recorrida as seguintes considerações (citamos, para melhor compreensão, parte da fundamentação de direito; sublinhado nosso):
«Da ocupação ilegítima do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … e consequente obrigação, da ré, de proceder à entrega do mesmo, aos autores, livre de pessoas e de bens.
Resulta da matéria de facto provada que tendo sido entregue à instituição bancária a habitação onde a ré residia, os autores, por forma a permitir-lhe reorganizar da sua vida e arranjar um espaço para habitar, concederam-lhe autorização, em data não concreta do ano de 2009, para residir no primeiro piso da Vivenda ..., juntamente com a sua mãe, o que efectivamente sucedeu, pelo que face à vontade manifestada pelas partes mostra-se subsumido o figurino típico do contrato de comodato, identificado no artigo 1129º do Código Civil como “o contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir”.
Trata-se de um contrato real quod constitutionem, que só se completa pela entrega da coisa e que reveste as características da temporalidade e da gratuitidade. Da temporalidade, porque não se tolera um comodato que deva subsistir indefinidamente, seja por falta de prazo, seja por estar associado a um uso genérico ou de duração incerta. No segundo caso, porque não há, a cargo do comodatário, prestações que constituam o equivalente ou correspetivo da atribuição efetuada pelo comodante, muito embora o comodante possa impor certos encargos ao comodatário, sem natureza correspetiva (cláusulas modais).
Trata-se de um contrato meramente consensual em que há uma simples atribuição do uso da coisa, dentro da função normal das coisas da mesma natureza.
Dispõe o artigo 1137º do Código Civil que:
“1. Se os contraentes não convencionaram prazo certo para a restituição da coisa, mas esta foi emprestada para uso determinado, o comodatário deve restituí-la ao comodante logo que o uso finde, independentemente de interpelação.
2. Se não foi convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, o comodatário é obrigado a restituí-la logo que lhe seja exigida.”
A obrigação de restituição é normalmente sujeita a prazo, findo o qual a coisa deve ser restituída ao comodante. Mesmo não sendo convencionado prazo certo para a restituição, vale como convenção nesse sentido a determinação do uso da coisa, pelo que o comodatário fica vinculado a ter que restituir logo que o uso finde, independentemente de interpelação. Apenas se não for estipulado prazo para a restituição, nem determinado o uso da coisa, é que a obrigação de restituição constituirá uma obrigação pura, caso em que o comodatário só será obrigado a restituir a coisa quando tal lhe for exigido, não podendo considerar-se como determinado o uso de certa coisa, se não se souber por quanto tempo vai durar, se foi concedido por tempo indeterminado. A determinação do uso envolve a delimitação da necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, não podendo considerar-se estando determinado o uso de certa coisa, quando aquele uso vise apenas a prática de actos genéricos de execução continuada, por quanto tempo vai durar, isto é, se for concedido por tempo indeterminado. No caso de um imóvel para habitação, o uso não está igualmente determinado, quando o uso convencionado se reconduzir tão só à habitação, sem qualquer índice de especificação que se destaca do acto de habitar.
Em anotação ao nº2 do artigo 1137º do Código Civil, escrevem os Professores Pires de Lima e Antunes Varela, em “Código Civil Anotado”, vol. II, pág. 596, “No nº 2 prevê-se o caso de não ter sido estipulado prazo, nem ter sido fixado o uso da coisa”, referindo a situação em que alguém deixa outrem “instalar-se gratuitamente num prédio urbano, sem se fixar prazo nem delimitar a necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, para atribuir ao comodante o direito de exigir, nesta hipótese, em qualquer momento, a sua restituição”.»
Na sentença, consta ainda a citação de diversos acórdãos, designadamente o acórdão da Relação de Évora de 19-11-2020, proferido no proc. n.º 1564/19.0T8BJA.E1, e o acórdão do STJ de 26-11-2020, proferido no proc. n.º 3233/18.0T8FAR.E1.S1, disponíveis em www.dgsi.pt, afirmando-se depois o seguinte:
«Transpondo tais princípios para os presentes autos, resulta da matéria de facto provada que a autorização para a ré residir no primeiro piso da Vivenda ... está conexa com a situação pela mesma, à data, vivenciada, ou seja, o não cumprimento de prestações pecuniárias referentes ao empréstimo contraído e a consequente entrega do imóvel/habitação à instituição bancária. Nesta circunstância, a ré teve autorização, dos autores, para residir no primeiro piso da Vivenda ..., com um propósito específico: permitir-lhe reorganizar a sua vida e arranjar um espaço para residir. Não tendo sido estabelecido prazo certo, nem determinado o tempo durante o qual foi concedida autorização para a ré residir no primeiro piso da Vivenda ..., por força do disposto no artigo 1137º, nº2, do Código Civil, esta fica obrigada a restituir o imóvel quando tal lhe for exigido pelos autores, o que sucedeu em data não concretamente apurada do ano de 2016, mas posterior a 6 de Setembro.
Não tendo a ré procedido à entrega do imóvel, constituiu-se em mora, sendo esta responsável pelos danos causados aos comodantes, no âmbito dos quais se inclui a privação do uso da coisa comodada.
Argumenta a ré que os autores cederam-lhe a utilização do primeiro piso do prédio, para sua habitação e sem estipulação de qualquer prazo, rejeitando a obrigação de restituir o bem comodado enquanto o mesmo continuar a ser utilizado para esse fim, sustentando a sua posição no entendimento perfilhado no Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Junho de 2018, proferido no processo nº 1281/13.5TBTMR.E1.S1.
Com o devido respeito por entendimento contrário, entende este tribunal que não assiste razão à autora. Desde logo porque está subjacente ao contrato de comodato, a natureza temporária da cedência da coisa. Em segundo lugar, conforme se referiu, o “uso determinado» a que se alude no artigo 1137º do CC pressupõe uma delimitação da necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, não constituindo comodato para uso determinado o mero empréstimo do espaço para habitação. A ré tem conhecimento que a ocupação do imóvel foi-lhe permitida por familiares, gratuitamente e com o propósito de a auxiliarem, num momento preciso, face ao contexto pela mesma vivenciado e, consequentemente cedência com caráter temporário. Omite a ré que a utilização temporária do imóvel como habitação que lhe foi autorizada visava conceder-lhe o apoio que então necessitava, naquele momento. Este elemento foi decisivo para a autorização, concedida pelos autores, à ré para ocupar o primeiro piso da Vivenda ..., em conjunto com a mãe dos autores que aí habitava. Não lhe foi concedida a utilização do imóvel para aí constituir a sua casa de morada de família. Pretende, agora, a ré permanecer no imóvel, sem qualquer limitação temporal e que passe a ficar na sua esfera a decisão de restituir ou não o bem que lhe foi cedido pois, no entendimento por si perfilhado, o direito a permanecer na habitação estender-se-ia até à sua decisão de cessar a habitação naquele espaço que pode ser até ao termo da sua vida, entendimento que desrespeita “...a função social preenchida por este contrato, cuja causa é sempre uma gentileza ou favor, não conciliável com o uso muito prolongado do imóvel ...” (Rodrigues Bastos, in Notas ao Código Civil, Vol. IV, Almedina, págs. 251 e 252). Ensina Rodrigues Bastos que “... Um comodato muito prolongado de um imóvel converter-se-ia em doação (indirecta) do gozo da coisa, ou, se fosse para durar toda a vida da outra parte, o comodato caracterizar-se-ia em direito de uso e habitação...”.
Em conclusão, encontra-se demonstrado que a ré não dispõe de título para a ocupação do imóvel que legitime a sua recusa de entrega aos autores que são os titulares do direito pleno de gozo, uso e fruição do imóvel, por força do seu direito de propriedade.
Face ao exposto, interpelada a ré, no ano de 2016, em data posterior a 6 de Setembro, e não tendo restituído, aos autores, o primeiro piso da Vivenda ..., procede o pedido por estes deduzido de condenação da ré na obrigação de restituir o bem comodado.
Procede o pedido, nesta parte.»
Esta fundamentação da sentença não enferma do erro de julgamento invocado pela Ré-Apelante, pois, contrariamente ao que defende, a lei não exige, mormente no citado art. 1137.º, n.º 2, do CC, aplicável ao caso, que a interpelação por parte do(s) comodante(s) tenha de ser reduzida a escrito.
Aliás, estranho seria que, não estando o contrato de comodato sujeito a forma escrita, mesmo quando respeite a bens imóveis, a declaração para o fazer cessar tivesse de ser reduzida a escrito.
Sobre a cessação do contrato de comodato, destacamos, a título exemplificativo, o acórdão do STJ de 27-05-2008, na Revista n.º 1071/08 - 7.ª Secção, em particular a seguinte passagem do respetivo sumário, disponível em www.stj.pt:
“IV - Não sendo estipulado prazo para a restituição nem delimitada a necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, o comodatário terá de restituir a coisa ao comodante logo que este lha exija (art. 1137.º, n.º 2, do CC). 
V - O facto de o comodante ter emprestado o imóvel ao comodatário para este nele habitar com a sua família, aí centrando toda a sua vida familiar, e pese embora a circunstância dessa ocupação perdurar ao longo de cerca de 28 anos, não pode ser entendido como configurando, em concreto, uma cedência vitalícia, mas antes por um período razoável até o comodatário conseguir obter uma alternativa em melhores condições a esta temporária situação.”
Bem como o referido acórdão do STJ de 26-11-2020, proferido no proc. n.º 3233/18.0T8FAR.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário se afirma que: “Um contrato de comodato como o dos autos em que o tipo de uso da coisa não está temporalmente definido nem limitado, é de considerar como sendo um contrato de duração indeterminada, sujeito à regra da cessação ad nutum prevista n.º 2 do art. 1137.º do CC”.
De qualquer modo, tendo a Ré sido citada na presente ação para restituir o imóvel em apreço, é óbvio que foi, também por essa via, interpelada para o efeito.
Assim, não há dúvida que a Ré-Apelante está obrigada a restituir o imóvel em apreço aos Autores-Apelados [cf. art. 1135.º, al. h), do CC], improcedendo as conclusões da alegação de recurso neste particular.
Da obrigação de indemnizar
Questão diferente, que importa agora apreciar, é a de saber se para a Ré incorrer na obrigação de indemnizar era indispensável, além da referida interpelação escrita para restituir o imóvel, que tivesse sido interpelada para pagar uma importância pela ocupação que vem fazendo do mesmo.
Vejamos o que considerou o Tribunal recorrido a respeito desta questão (omitimos na citação as notas de rodapé):
«Pretendem os autores a condenação da ré no pagamento de indemnização pela privação do uso do primeiro andar da Vivenda ..., como dano autónomo de natureza patrimonial.
A não entrega voluntária do imóvel pela ré que consabidamente não lhe pertence e sem que tenha título para tanto, configura uma violação ilícita do direito de propriedade dos autores. Interpelada no ano de 2016, em data não concretamente apurada mas posterior a 6 de Setembro de 2016, e não tendo procedido à entrega do imóvel, ao inviabilizar a sua fruição pelos autores, únicos titulares de direito que confere esse benefício, designadamente privando-a dos frutos que o imóvel poderia produzir por via de arrendamento, não pode a ré deixar de saber que causa àqueles os prejuízos inerentes ao não percebimento dos proventos que os mesmos poderiam auferir correspondentes a uma renda mensal, o que constitui esta na obrigação de indemnizá-los pelos danos decorrentes dessa violação, atento o notório nexo de causalidade entre a sua actuação ilícita e os ditos danos (cfr. artº 483º CCivil).
Não é unívoca, nem na doutrina, nem na jurisprudência, a resposta à questão da ressarcibilidade da privação do uso, existindo duas concepções antagónicas:
a. A primeira, no sentido de que a indemnização exige que o lesado prove a concreta existência de prejuízos decorrentes da não fruição do bem, v.g. pela demonstração das utilidades concretas do bem privado que cessaram de ser aproveitadas ou o não recebimento de rendas que o imóvel lhe poderia ter proporcionado, caso o mesmo não estivesse ocupado;
b. A segunda, assente no pressuposto de que a simples privação ilegal do uso já integra um prejuízo de que o proprietário deve ser compensado, em última análise, com recurso às regras da equidade.
Na primeira corrente, a resposta que tem sido dada parte basicamente da aplicação da teoria da diferença. Quando a indemnização é negada invoca-se a falta de prova de uma diferença patrimonial entre a situação constatada no momento da decisão e a que existiria se não ocorresse o evento.
Para a segunda corrente, a admissibilidade da indemnização, é sustentada, como explica António Santos Abrantes Geraldes, pela “constatação naturalística de que a privação do uso de uma coisa, inibindo o proprietário ou detentor de exercer sobre a mesma os inerentes poderes, constitui uma perda que deve ser considerada, tudo se resumindo à detecção do método mais adequado para a quantificação da indemnização compensatória”.
Conclui António Santos Abrantes Geraldes que “provado que a indisponibilidade do bem foi causa directa da redução ou perda de receitas ou da perda de oportunidade de negócios, não se questiona o direito de indemnização atinente aos lucros cessantes”. Mas, mesmo que nada se apure a respeito da utilização ou do destino que seria dado ao bem, os argumentos anteriormente aduzidos a respeito da indemnização pela privação do uso de veículos automóveis justificam, “mutatis mutandis”, a atribuição de uma compensação monetária ao lesado pelo período correspondente ao impedimento ou à redução dos seus poderes de fruição ou de disposição.
(…) Maria da Graça Trigo, em “Responsabilidade Civil, Temas Especiais”, identifica, na jurisprudência posterior a 2007, três correntes distintas no que à reparabilidade do dano de privação de uso enquanto tal concerne:
1. A corrente que mantém a necessidade de prova concreta dos prejuízos efectivamente sofridos em consequência da privação;
2. A corrente que entende suficiente a mera privação do uso, sem necessidade de demonstração de prejuízos concretos, podendo o dano ser calculado de acordo com a equidade (artigo 566º, nº 3, do Código Civil);
3. A terceira corrente, de alguma forma intermédia entre as duas antecedentes, que parte da exclusão da reparação do dano em abstracto mas, num segundo nível admite como suficiente a prova da ocorrência de danos concretos com base numa presunção.
Para Maria da Graça Trigo, “a certeza e segurança do direito são adequadamente alcançadas através da via intermédia ...: presunção da existência de danos concretos a partir da prova do uso regular da viatura”.
Pronunciando-se sobre a questão, decidiu o Tribunal da Relação de Lisboa, no Acórdão de 25/2/2021, proferido no processo nº 00/18.0T8LRS.L1-6 (consultável em www.dgsi.pt):
 (...) Por este tribunal é perfilhado igual entendimento. Contra a admissibilidade da indemnização do dano da privação do uso invoca-se frequentemente a sua natureza abstracta, contraposta ao facto de a responsabilidade civil exigir a produção de um dano concreto cuja medida serve para quantificar a indemnização. É um facto que só os danos concretos merecem ser ressarcidos. Todavia, isso não significa que o chamado "dano da privação do uso" deva incluir-se na categoria do dano abstracto, sob pena de se afrontarem juízos assentes em padrões de normalidade. Esta integração é contrariada pela simples verificação de que a impossibilidade de fruição de um bem próprio, em consequência de uma actuação ilícita de outrem, determina um corte temporal no legítimo direito de fruição, conforme acima referido. Reportando-se a privação a um determinado período e sendo o direito de propriedade também integrado pelo direito de fruição, aquela traduz-se, em termos práticos, num corte temporalmente definido e naturalmente irrecuperável nesse poder de fruição.
Quanto às dificuldades suscitadas pela adopção da teoria da diferença, como critério determinativo da indemnização, podem ser superadas se se evidenciar que o plano da quantificação não deve confundir-se com o da ressarcibilidade em que, por ora, nos situamos. No percurso metodológico da aplicação da lei este situa-se a montante, sendo reflexo da mera perda, ainda que temporária, dos poderes de fruição; já a quantificação comporta uma mera operação material, situada a jusante, destinada a avaliar, em termos pecuniários, o desequilíbrio patrimonial causado pela privação.
A simples invocação das regras da experiência quando se estabelece a comparação entre a situação do proprietário que manteve intacto o seu poder de fruição e a de um outro que dele seja privado temporariamente permite concluir que não existe entre ambas uma equivalência substancial.
(…) Verificando-se uma lacuna de natureza patrimonial, correspondente à fatia de poderes de que o proprietário ficou privado, é com naturalidade que deve ser encarada a atribuição de uma compensação monetária, face à constatação de que o simples reconhecimento da ilegitimidade da privação e a condenação na restituição do bem são insuficientes para repor a situação do lesado no estado em que se encontraria caso não tivesse existido tal privação.
Uma vez que o sistema atribui ao lesado o direito à reconstituição natural da situação, a recomposição da situação danosa reclama que, pela única via então possível, ou seja, pela atribuição de um equivalente pecuniário, o lesado consiga ser reintegrado. Dito de outro modo, se a privação do uso do bem durante um determinado período origina a perda das utilidades que o mesmo era susceptível de proporcionar e se tal perda não pode ser reparada mediante a forma natural de reconstituição, impõe-se que o responsável compense o lesado na medida equivalente.
A prova da ocorrência de danos concreta e directamente imputáveis à privação é solução que se justifica quando o lesado pretenda obter o ressarcimento dos lucros cessantes, pelos “benefícios que deixou de obter”, nos termos do art. 564.º, n.º 1, do Código Civil. Porém, não se esgotam aí as possibilidades de ressarcimento que abarca também, com os danos emergentes, no segmento normativo referente ao “prejuízo causado”, a privação do uso.
(…) Transpondo tais princípios para os presentes autos, da matéria de facto provada resulta que a edificação Vivenda ..., inscrita na matriz predial sob o artigo …; composta por rés-do-chão, com três divisões, cozinha e casa de banho; e primeiro andar com quatro divisões, cozinha e casa de banho; com a superfície coberta de 90m2 e o logradouro com 910m2; é propriedade dos autores. A ré ocupa o primeiro piso dessa edificação e não logrou demonstrar a existência de um vínculo jurídico que lhe permita tal ocupação desde final de 2016. Foi a ré interpelada, no ano de 2016, em data não concretamente apurada mas posterior a 6 de Setembro de 2016, para proceder à entrega do imóvel, o que não sucedeu até à presente data. A ré nunca pagou, aos autores, qualquer quantia a título de retribuição ou compensação pela fruição do primeiro piso da Vivenda .... No mercado de arrendamento, um prédio, na localidade e com a composição do prédio inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …, pode proporcionar uma renda não inferior à quantia de €500,00 (quinhentos euros) mensal.
Assim, assiste aos autores o direito a serem indemnizados/ressarcidos, nos termos dos artºs 562º, 564º, e 566º do CC., do dano patrimonial autónomo, enquanto proprietários da edificação Vivenda ... e impedidos, pela ré, de usar o primeiro piso, deixando de poder dispor e gozar livremente, desse espaço, nos termos consagrados no art.º 1305º do Código Civil, ou seja, com violação do respectivo direito de propriedade.
No que tange à quantificação da indemnização, dispõe o artigo 566º do Código Civil:
(…) Não sendo de todo possível a reconstituição natural e mostrando-se prejudicado o recurso à teoria da diferença, nos termos do nº2, do artº 566º, do Código Civil, o ressarcimento apenas poderá ter lugar mediante a atribuição de uma compensação em dinheiro, nos termos do nº 3 do mesmo artigo 21.
Na fixação equitativa do dano de privação do uso, tomar-se-á, como referência, o valor locativo do imóvel, valor que vem sendo considerado pela Jurisprudência em sede de ressarcimento do dano pela privação do uso e fruição de fracção.
(…) A propósito do montante indemnizatório aferido pelo valor que os autores/lesados poderiam receber se, sem tal ocupação, pudessem ter dado de arrendamento o espaço ilicitamente ocupado, pronunciou-se também o Tribunal da Relação de Lisboa, no Acórdão de 25/2/2021 (proferido no processo nº 400/18.0T8LRS.L1-6, acessível em www.) no sentido de que o valor mensal de arrendamento “... não corresponde de todo ao valor líquido do lucro cessante do autor na qualidade de potencial senhorio, pois que, àquele importa descontar o montante dos encargos tributários que correspondem inelutavelmente à pretendida utilização do prédio, então, porque não proporcional e adequado às concretas circunstâncias do caso, vedado está enveredar pela quantificação do dano sofrido através de uma operação equivalente à mera soma aritmética do valor das rendas correspondentes a um valor locativo médio do prédio/fracção ocupada.
Transpondo tais princípios para os presentes autos, na fixação da indemnização, nos termos do artigo 566º, nº3, do Código Civil, tomar-se-á em consideração, como limite máximo da fixação equitativa dos danos patrimoniais, o valor locativo do prédio e as demais circunstâncias concretas apuradas.
Assim, considerando que:
_ no mercado de arrendamento, um prédio, na localidade e com a composição do prédio inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …, pode proporcionar uma renda não inferior à quantia de €500,00 (quinhentos euros) mensal, valor que inclui os dois pisos e logradouro;
_ o “prédio urbano” inscrito na matriz predial sob o artigo …, é composto por rés-do-chão, com 3 divisões, cozinha e casa de banho; e primeiro andar com 4 divisões, cozinha e casa de banho; com a superfície coberta de 90m2 e o logradouro com 910m2, sendo área total do terreno de 100,0000 m2;
_ a ré ocupa apenas o primeiro piso desse prédio e a quantia de €500,00 acima mencionada respeita à utilidade de todo o prédio;
_ o “prédio urbano” inscrito na matriz predial sob o artigo …, foi construído em 1987, desconhecendo-se as condições de habitabilidade em que se encontra o primeiro piso;
_ os encargos tributários que, em termos de imposto sobre rendimentos prediais, tivessem que ser suportados pelos autores.
Ponderando todas estas circunstâncias, considera-se justo e equitativo fixar o montante indemnizatório no valor de €180,00 (cento e oitenta euros), por mês, adstrito ao piso ocupado pela ré, devido desde Dezembro de 2016 (cfr. pedido deduzido), perfazendo o montante de €12.780,00 (doze mil, setecentos e oitenta euros), até à presente data (Dezembro de 2016 até Novembro de 2021= 71 meses x €180,00), acrescida da quantia de €180,00 por mês até à entrega efectiva, pela ré, aos autores, do primeiro piso da Vivenda ....»
A Ré-Apelante limita-se, no tocante a esta decisão, a questionar o seu acerto por não ter sido interpelada por escrito para sair da habitação, nem interpelada para proceder ao pagamento de qualquer valor.
Vejamos.
Prevê o art. 1135.º, al. h), do CC, entre outras obrigações do comodatário, a de restituir a coisa findo o contrato.
Ora, conforme vimos e resulta do ponto 12., o contrato cessou, em data que não foi possível apurar, situada entre 6 de setembro de 2016 e 31 de dezembro de 2016, estando provado que, ainda no ano de 2016, em data posterior a 6 de setembro, foi a Ré interpelada, pelo Autor JG, para entregar o primeiro piso do prédio identificado no ponto 3.
A Ré não entregou a casa quando o contrato de comodato cessou, pelo menos no fim desse ano, a 31 de dezembro de 2016. Logo, incorreu em mora no cumprimento dessa obrigação, inexistindo base legal que suporte a tese daquela no sentido da necessidade de uma interpelação escrita; daí que, sem necessidade de qualquer outra interpelação, se tenha constituído na obrigação de obrigação de indemnizar os Autores, que se viram impedidos de procederem à venda do imóvel, como pretendiam fazer (cf. ponto 11), não colhendo a parca argumentação da Ré em ordem a eximir-se da sua responsabilidade civil (cf. 804.º e 805.º do CC). Nesta linha de pensamento, veja-se, por exemplo:
- o acórdão do STJ de 05-06-2001, na Revista n.º 1618/01 - 6.ª Secção, conforme se alcança da seguinte passagem do respetivo sumário, disponível em www.stj.pt: “Comprovando-se nas instâncias que os autores, em finais de 1985, acolheram o réu, acolhimento logo definido como temporário, no andar, permitindo-lhe a utilização da um quarto, com serventia de sala, da cozinha e da casa de banho, tendo ainda ficado acordado que os autores manteriam o livre acesso ao andar, aí podendo permanecer sempre que entendessem, e que o réu restituir-lho-ia quando tal lhe fosse solicitado, a circunstância de ter ficado provado que o réu pagou despesas do condomínio do andar e que entregou aos autores, com periodicidade variável, através de cheques, o equivalente a 20.000$00 mensais não é suficiente para caracterizar o contrato como de arrendamento urbano para habitação. VI - Se o réu, solicitado a entregar o prédio aos autores, não o faz, a ocupação do mesmo passa a ser ilegítima, porque não titulada, incorrendo na obrigação de indemnizar o autor independentemente da comprovação de danos, nos termos do enriquecimento sem causa.”
- o acórdão da Relação de Lisboa de 14-07-2022, proferido no proc. n.º 3123/18.6T8LSB.L1-2, relatado pela ora Relatora, disponível em www.dgsi.pt, em que se considerou que, numa ação de reivindicação de fração autónoma em que o réu não lograra provar os factos em que se baseava a exceção invocada (isto é, que a autora, proprietária, havia celebrado celebrou com ele um contrato de comodato vitalício), estando o réu obrigado a restituir à Autora tal fração, por não ter demonstrado dispor de título que legitimasse a ocupação que vinha fazendo da mesma, era devida indemnização, afirmando-se, conforme consta do respetivo sumário, que “Quando, devido à ocupação do seu prédio por terceiro, o proprietário de um imóvel está a ser privado de o usar, inferindo-se dos factos provados que, não fora essa circunstância, o pretenderia fazer, do mesmo retirando quaisquer utilidades, tal configura um dano que deve ser indemnizado (por aquele ocupante), podendo na sua quantificação recorrer-se à equidade.”
Quanto ao montante mensal fixado pela 1.ª instância, a Ré não questiona verdadeiramente o critério utilizado, mas apenas que tenha sido considerada pelo Tribunal a quo “a data de 2016” para calcular a indemnização sem estar provada (por documento) uma interpelação escrita, objeção que não pode proceder.
Constata-se, todavia, que está errado o cálculo que foi feito na sentença.
Com efeito, afirma-se aí que o período a considerar é de dezembro de 2016 (leia-se 31 de dezembro de 2016, ou seja, na prática, 1 de janeiro de 2017) até novembro de 2021 (data da prolação da sentença), mas veio a concluir-se que esse período corresponde a 71 meses, quando, na verdade, corresponde a apenas 59 meses, tendo, pois, sido indevidamente considerado, por manifesto erro de cálculo, um ano a mais (59 + 12 ꞊ 71 meses). Portanto, o período em questão equivale a 12 meses × 4 anos (2017, 2018, 2019 e 2020 - isto é, 48 meses) + 11 meses ((jan. a novembro de 2021), o que perfaz um total de 59 meses.
Dos juros
Resta apreciar a questão dos respetivos juros de mora.
Na sentença fundamentou-se o assim decidido nos seguintes termos:
“Peticionaram, ainda, os autores que a ré seja condenada a pagar juros, contados à taxa legal supletiva, desde a data da citação até integral pagamento.
Atento o disposto no art. 805.º, n.ºs 1 e 3, e 806ºdo Código Civil, aos autores assiste o direito aos juros legais, contados desde a citação, à taxa legal de 4% - cf. Portaria n.º 291/2003 de 8/04 – arts. 805.º, n.º 3, 806.º e 559.º do Código Civil.
Procede, assim, parcialmente o pedido, nesta parte.”
A Ré defende não serem devidos juros, argumentando não ter sido interpelada para pagar qualquer quantia.
Vejamos.
Nos termos do art. 806.º, n.º 1, do CC, na obrigação pecuniária a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora. Por sua vez, preceitua o art. 805.º do CC, sob a epígrafe, “Momento da constituição em mora”, que:
“1. O devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir.
2. Há, porém, mora do devedor, independentemente de interpelação:
a) Se a obrigação tiver prazo certo;
b) Se a obrigação provier de facto ilícito;
c) Se o próprio devedor impedir a interpelação, considerando-se interpelado, neste caso, na data em que normalmente o teria sido.
3 - Se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor; tratando-se, porém, de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o devedor constitui-se em mora desde a citação, a menos que já haja então mora, nos termos da primeira parte deste número.”
Ora, o crédito indemnizatório em apreço é ilíquido, fundando-se, nos termos decididos na sentença, em responsabilidade civil por facto ilícito (qualificação que a Ré não questionou), razão pela qual se deverá entender que, quanto à obrigação de indemnizar, a Ré se constituiu em mora com a sua citação, sendo devidos juros moratórios a contar daí, que, naturalmente, quanto às “parcelas mensais vincendas” se contabilizam desde o vencimento de cada uma, não merecendo censura a decisão recorrida que, assim interpretada, tal entendeu.
Assim, sem necessidade de mais considerações, conclui-se que improcedem as conclusões da alegação de recurso, ao qual será negado provimento, sendo apenas caso para corrigir o assinalado lapso de cálculo.
Vencida a Ré, é responsável pelo pagamento das custas processuais (artigos 527.º e 529.º, ambos do CPC). No entanto, não será condenada no pagamento das custas da sua responsabilidade, uma vez que beneficia do apoio judiciário, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo (conforme ofício junto aos autos a 04-11-2021) – cf. artigos 1.º e 16.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, e artigos 20.º, 26.º e 29.º do RCP.

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III - DECISÃO
Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso, mantendo-se, em consequência, a sentença recorrida, com a retificação do lapso de cálculo acima indicado, de modo a que:
- onde se lê “perfazendo o montante de €12.780,00 (doze mil, setecentos e oitenta euros), até à presente data (Dezembro de 2016 até Novembro de 2021= 71 meses x €180,00)” passe a constar “perfazendo o montante de €10.620 (dez mil, seiscentos e vinte euros), até à presente data (Dezembro de 2016 até Novembro de 2021= 59 meses x €180,00)”;
- onde se lê «e. Condenar a ré IS a pagar, aos autores MG e JG, a título de indemnização devida pela ocupação do primeiro piso da edificação “Vivenda ...”, identificada na alínea b), a quantia de €180,00 (cento e oitenta euros) por mês, desde o mês de Dezembro de 2016 e até à data da entrega efectiva do primeiro piso da edificação “Vivenda ...”, determinada na alínea d), perfazendo o montante de €12.780,00 (doze mil, setecentos e oitenta euros)» passe a constar «e. Condenar a ré IS a pagar, aos autores MG e JG, a título de indemnização devida pela ocupação do primeiro piso da edificação “Vivenda ...”, identificada na alínea b), a quantia de €180,00 (cento e oitenta euros) por mês, desde o mês de Dezembro de 2016 e até à data da entrega efectiva do primeiro piso da edificação “Vivenda ...”, determinada na alínea d), perfazendo o montante de €10.620,00 (dez mil, seiscentos e vinte euros)»
Não se condena a Ré no pagamento das custas da sua responsabilidade atento o apoio judiciário de que beneficia.
D.N.

Lisboa, 14-09-2023
Laurinda Gemas
Paulo Fernandes da Silva
Vaz Gomes