Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
41/06.4TCFUN-C.L1-7
Relator: GRAÇA AMARAL
Descritores: GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
IVA
PRIVILÉGIO CREDITÓRIO
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
PENHORA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/06/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I - O princípio da confiança constitucionalmente garantido tem por subjacente a protecção de um mínimo de certeza e segurança nos direitos dos cidadãos e nas expectativas jurídicas que lhes foram criadas, pelo que ocorrerá a sua violação quando por via legislativa ou de interpretação da norma ocorra uma alteração demasiado onerosa e inconsistente numa relação ou situação jurídica já antecedentemente constituída, alteração com a qual os cidadãos e a comunidade não poderiam, razoável e fundadamente, contar.
II - Admitir-se que o credor comum possa ser preterido por créditos inexistentes à data da penhora, a sua expectativa de confiança na ordem jurídica e na actuação do Estado mostra-se desfavorável e intoleravelmente afectada porque arbitrária e excessivamente onerosa em face daquele mínimo de certeza e segurança que a sociedade e o direito têm de respeitar.
III – Consequentemente, o n.º 1 do art.º 736 do Código Civil, deve ser interpretado no sentido de que o privilégio mobiliário geral do Estado por créditos de imposto indirecto tem como limite que o mesmo se constitua ou seja referente até à data da penhora.
IV – Viola o princípio constitucional da confiança ínsito no art.º 2, da Constituição da República Portuguesa, a interpretação do art.º 736, n.º1, do Código Civil, no sentido de não estabelecer qualquer limite temporal (designadamente a data da penhora) para a existência de crédito privilegiado do Estado por imposto indirecto.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa,

I - Relatório

1. Nos autos de execução que L… instaurou contra O..LDA, o MINISTÉRIO PÚBLICO veio reclamar, em representação da Fazenda Nacional créditos referentes ao IVA dos anos de 2007, 2008 e 2009.

2. Cumprido o art.º 866, n°2, do CPC, a Exequente impugnou parcialmente a reclamação entendendo que tais créditos, reportando-se a dívidas posteriores ao arresto convertido em penhora, deveriam ser graduados posteriormente ao seu crédito.

3.A sentença julgou improcedente a impugnação, graduando o crédito exequendo após os créditos reclamados pelo MP.
 
4. A Exequente interpôs recurso concluindo nas respectivas alegações:
A) O arresto constitui um direito real de garantia;
B) A penhora reporta-se à data do arresto, ou seja, a 21 de Julho de 2006;
C) O crédito do Estado, por dívidas de I.V.A, constituiu-se, respectivamente, nos anos de 2007, 2008 e 2009;
D) O Estado tem privilégio mobiliário geral para garantia dos créditos por impostos indirectos constituídos no ano da data da penhora e em todos os anos anteriores àquela;
E) O n.º 1 do art. 736.º do C.C. deve ser interpretado no sentido de que o privilégio mobiliário geral do Estado por créditos de imposto, quer directo quer indirecto, tem como limite que se constitua ou seja inscrito para cobrança até ao ano da data da penhora/arresto;
F) Por ser a única interpretação compatível com o princípio da segurança jurídica ínsita à Constituição da República Portuguesa;
G) Ao decidir de outro modo, a sentença recorrida violou as disposições conjugadas do n.º 2 do art. 735.º com o n.º 1 do art. 736.º, ambos do Código Civil; os arts. 622.º, n.º 2, e 822.º do mesmo Código; e ainda o princípio da confiança ínsito no princípio do Estado de direito democrático previsto no artigo 2.º da C.R.P.
H) Devendo, por isso, ser revogada e substituída por outra que gradue o crédito exequente à frente do crédito do Estado, reclamado com referência aos anos de 2007, 2008 e 2009.

5. Em contra alegações o MP pugna pela manutenção da decisão.


II - Apreciação do recurso
Os factos:
De acordo com os elementos disponíveis no processo há que considerar apurado o seguinte factualismo com relevância para o conhecimento do recurso:
1. Nos autos de execução que L… moveu contra O..LDA, encontram-se penhorados bens móveis que, em 21 de Julho de 2006, foram objecto de arresto a favor da Exequente;
2. …arresto que foi convertido em penhora em 20 de Novembro de 2010.
3.  O Ministério Público, em representação da Fazenda Nacional, veio, por requerimento de 7 de Dezembro de 2010, reclamar os seguintes créditos provenientes de não pagamento de IVA: a) 1.496,40 euros, acrescidos dos juros de mora a contar de 28-05-2009, referentes ao ano de 2007; b) 1.496,40 euros, acrescidos dos juros de mora a contar de 22-10-2010, referentes ao ano de 2008; c) 1.496,40 euros, acrescidos dos juros de mora a contar de 04-11-2010, referentes ao ano de 2009.

O direito
Questão a conhecer (delimitada pelo teor das conclusões do recurso e na ausência de aspectos de conhecimento oficioso – art.ºs 690, n.º1, 684, n.º3, 660, n.º2, todos do CPC)
Ø Da preferência do Estado por créditos decorrentes de não pagamento de imposto indirecto (IVA) posterior à data da penhora

A decisão recorrida graduou o crédito da Exequente após os créditos reclamados pelo MP referentes ao não pagamento do IVA dos anos de 2007, 2008 e 2009, tendo por subjacente o entendimento de que tais créditos gozam de privilégio mobiliário geral não sujeito a limite temporal anterior ou posterior à penhora.
            Insurge-se a Exequente contra tal decisão propondo uma interpretação (restritiva) do art.º 736, n.º1, do Código Civil, no sentido de limitar a garantia dos créditos do Estado por não pagamento de impostos indirectos constituídos no e até ao ano da data da penhora. Defende que só esta interpretação permite assegurar os princípios constitucionais da segurança jurídica (efectiva tutela jurisdicional do direito do credor com garantia real) e da confiança, bem como o direito a um processo equitativo, conforme impõe o art.º 6, da Declaração Europeia dos Direitos do Homem.
            Em causa nos autos de execução está a penhora de bens móveis do Executado e a existência de créditos do Estado referentes a datas posteriores à penhora (a data da penhora reporta-se ao ano de 2006, tendo presente o art.º 822, n.º2, do Código Civil, sendo que os créditos reclamados dizem respeito aos anos de 2007, 2008 e 2009).
            Prescreve o art.º 601, do Código Civil, que pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora, fazendo consignar o princípio da responsabilidade ilimitada do devedor. Por sua vez o art.º 604, do mesmo Código, dispõe que, na falta de qualquer causa legítima de preferência, os credores têm o direito de ser pagos proporcionalmente pelo preço dos bens do devedor, quando ele não chegue para integral satisfação dos débitos.
            Como resulta do n.º2, do mesmo preceito, o privilégio creditório constitui uma das causas de preferência, funcionando como um desvio ao princípio da paridade de tratamento dos credores, pois que pela sua atribuição concede-se a certos credores a faculdade de, independentemente de registo, serem pagos com preferência a outros, tendo em atenção as causas dos respectivos créditos – cfr. art.º 733, do Código Civil.
            Para além disso e ao contrário do que acontece com outras garantias reais, os privilégios creditórios não se encontram sujeitos a registo, o que constitui uma excepção à regra da publicidade e do registo através da qual se determina a antiguidade e a constituição da garantia.
            O Estado, de acordo com o art.º 736, n.º1, do Código Civil, goza para garantia dos seus créditos decorrentes do não pagamento de impostos (directos e/ou indirectos, nestes últimos se inclui o imposto sobre o valor acrescentado – IVA) de privilégio mobiliário geral[1], sendo que, ao invés do que acontece com os impostos directos, a lei é omissa quanto ao limite temporal relativamente aos créditos por impostos indirectos.
            A questão que se coloca é a de saber se com tal atribuição – de o Estado ser pago preferentemente ao credor comum por dívidas de imposto indirecto (no caso de não pagamento de IVA) sem qualquer limite temporal, designadamente a data da penhora - ocorre ofensa a algum princípio constitucional, nomeadamente o da igualdade e o da confiança e segurança jurídica, uma vez que com tal preferência o credor que não goze de garantia real (credor comum), vê frustrada a sua garantia – penhora (e a possibilidade de pagamento do seu crédito) – sem qualquer possibilidade de tomar conhecimento prévio da existência de tais créditos privilegiados, designadamente porque constituídos posteriormente à penhora.
            Não há dúvida de que as características inerentes à preferência decorrente do privilégio creditório – com derrogação do princípio da publicidade e da prioridade do registo - podem constituir uma ameaça à segurança do comércio jurídico na medida em que são susceptíveis de causar prejuízo a todos que contratem com o devedor e desconheçam a existência de tais créditos.
Na sequência do que tem vindo a ser considerado pelo Tribunal Constitucional (e bem assim pelo Supremo Tribunal de Justiça[2]) em várias decisões que se têm debruçado acerca da questão das garantias dos créditos tributários, a consagração de um privilégio creditório não representa, sem mais, uma arbitrariedade do legislador, no sentido de se mostrar destituído de fundamento material, porquanto se entende como justificado um reforço de garantia de cumprimento relativamente a débitos originados pela falta de pagamento de impostos (que constituem a fonte principal das receitas do Estado e com as quais este visa satisfazer as necessidades públicas), sobretudo porque o privilégio mobiliário geral não incide sobre bens concretos do devedor e não pretere outros direitos reais de garantia. Ou seja, na medida em que o privilégio mobiliário geral do Estado é desprovido de sequela e prevalência oponível a credores que disponham de garantias ou direitos reais sobre os bens penhorados, apenas sendo oponível aos credores comuns, não se evidencia qualquer excesso ou desproporção intolerável na consagração de uma tal garantia – violadora dos princípios da igualdade e da confiança – pois que a mesma se sustenta nas finalidades subjacentes ao sistema fiscal[3].
Porém, a questão que está em aberto no recurso é a de saber qual a interpretação a dar ao art.º 736, n.º1, do Código Civil, no que se reporta à determinação do limite temporal dos créditos do Estado pelo não pagamento de impostos indirectos de forma a se achar conforme aos princípios constitucionais, particularmente ao princípio da confiança e da segurança jurídica.
Conforme decorre da fundamentação da sentença recorrida, nela se sufragou o entendimento segundo o qual o privilégio creditório de que goza o crédito de IVA vigora independentemente da data da sua constituição, isto é, quer seja anterior ou posterior à penhora[4].
Por sua vez a Recorrente considera que se impõe interpretar o citado artigo 736º, do Código Civil, no sentido de que a data da penhora constitui o limite temporal do privilégio creditório do Estado pelo não pagamento de impostos indirectos (no caso o IVA).
Consideramos que tem razão.
Nos termos do disposto no art.º 822º, do Código Civil, o exequente adquire pela penhora, salvo nos casos especialmente previstos na lei, o direito de ser pago com preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior. Assim, os credores, na ausência de outra causa de preferência, concorrem em pé de igualdade à execução e só a data da penhora[5] estabelece um critério de prioridade entre eles.
Acresce que de acordo com o já citado art.º 604, n.º1, do Código Civil, os credores têm o direito de ser pagos proporcionalmente pelo preço dos bens do devedor, quando ele não chegue para satisfação integral dos débitos.
Se, como vimos, se encontra justificado, à luz dos princípios constitucionais,[6] que em processos executivos comuns ao Estado seja atribuído um direito preferencial sobre os bens penhorados, o certo é que já ultrapassará os limites da razoabilidade e, bem assim, se evidencia como algo carecido de fundamento material necessário (em termos de motivo constitucionalmente justificado) a consagração de créditos privilegiados sem qualquer limitação temporal.
O princípio da confiança constitucionalmente garantido tem por subjacente a protecção de um mínimo de certeza e segurança nos direitos dos cidadãos e nas expectativas jurídicas que lhes foram criadas, pelo que ocorrerá a sua violação quando por via legislativa ou de interpretação da norma ocorra uma alteração demasiado onerosa e inconsistente numa relação ou situação jurídica já antecedentemente constituída, alteração com a qual os cidadãos e a comunidade não poderiam, razoável e fundadamente, contar.
Nesta perspectiva, configura-se-nos como intolerável a consagração de uma garantia especial da obrigação de cumprimento dos impostos indirectos[7] que na execução o credor comum, ao ter confiado que o bem penhorado é suficiente para o pagamento da quantia exequenda, seja surpreendido com uma graduação de créditos que dá prevalência ao pagamento de (futuros[8]) créditos que beneficiam de privilégio mobiliário geral, quando, de todo, lhe era impossível saber da sua existência (porque ainda não constituídos à data da penhora), por forma a tomar a adequada e proporcional decisão relativamente à estratégia a utilizar com vista ao ressarcimento do seu crédito.
            Entendemos pois que admitir-se que o credor comum possa ser preterido por créditos inexistentes à data da penhora, a sua expectativa de confiança na ordem jurídica e na actuação do Estado mostra-se desfavorável e intoleravelmente afectada porque arbitrária e excessivamente onerosa em face daquele mínimo de certeza e segurança que a sociedade e o direito têm de respeitar.
            Nestes termos, o n.º 1 do art.º 736 do Código Civil, deve ser interpretado no sentido de que o privilégio mobiliário geral do Estado por créditos de imposto indirecto tem como limite que o mesmo se constitua ou seja referente até à data da penhora.
Mostra-se, por isso, violadora do princípio constitucional da confiança ínsito no art.º 2, da Constituição da República Portuguesa, a interpretação do art.º 736, n.º1, do Código Civil, no sentido de não estabelecer como limite temporal para a existência de crédito privilegiado do Estado por imposto indirecto a data da penhora.
            Consequentemente, reportando-se os créditos reclamados aos anos 2007, 2008 e 2009, são os mesmos posteriores à penhora e, como tal, não gozam, neste caso, de qualquer privilégio mobiliário geral de forma a poderem ser pagos preferentemente ao crédito da exequente.

III – Decisão

Nestes termos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente a apelação pelo que revogam a sentença recorrida e, em consequência, não admitem a reclamação do Estado.
            Sem custas.
     
Lisboa, 6 de Dezembro de 2011

Graça Amaral
Orlando Nascimento
Ana Maria Resende
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[1] Os privilégios mobiliários são gerais abrangendo o valor de todos os bens móveis existentes no património do devedor à data da penhora ou acto equivalente – art.º 735, n.º2, do Código Civil. 
[2]Cfr. Acórdão do STJ de 27-03-2007, acessível através das Bases Documentais do ITIJ.
[3] Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional de 17 de Abril de 2002, que decidiu não julgar inconstitucional a norma da primeira parte do n.º1 do art.º 736 do Código Civil, que atribui ao Estado um privilégio mobiliário geral para garantia de créditos fiscais provenientes de IVA e respectivos juros compensatórios.
[4] No mesmo sentido se pronunciou esta Relação no Acórdão de 13-10-2009, processo n.º 451-F/1993.L1-7, acessível através das Bases Documentais do ITIJ.
[5] Ainda que, em rigor, a penhora não assuma a natureza de uma efectiva garantia real, antes traduzindo-se num acto processual consubstanciado na apreensão jurídica de bens do devedor ou de terceiro com vista à realização do fim da acção executiva, que é a satisfação do direito do credor/exequente.
[6] Partindo do pressuposto de que as múltiplas funções do Estado exigem como medida adequada uma cobrança rápida e segura das receitas provenientes de impostos para cobrir as despesas públicas com constante aumento.
[7] Aliás, não se vislumbra a existência de um motivo ou fundamento constitucionalmente válido a distinção de tratamento dos créditos do Estado provenientes de impostos directos e impostos indirectos, na interpretação do art.º 736, do Código Civil, que defende que o privilégio creditório relativo aos créditos por impostos indirectos não se encontra sujeito a qualquer limite temporal anterior ou posterior à penhora.
[8] No sentido de inexistirem à data da penhora, entendida esta enquanto acto de individualização e afectação de bens ou direitos do executado.