Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | MARLENE FORTUNA | ||
| Descritores: | ABERTURA DE INSTRUÇÃO REQUISITOS ARGUIDO | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 11/06/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | PROVIDO | ||
| Sumário: | Sumário (da responsabilidade do Relator): I. A “inadmissibilidade legal da instrução” abrange uma interpretação material, atenta a filosofia subjacente a essa fase preliminar e, por isso, engloba igualmente os casos em que o alegado no requerimento de abertura de instrução não satisfaz as finalidades da instrução. II. A incriminação prevista no art. 148.º do CP tipifica, como criminalmente puníveis, aqueles comportamentos imprudentes ou inadvertidos, negligentes portanto, que têm como consequência lesões na integridade físico-psíquica de outros. III. Se o RAI apresentado não só questiona os factos, no sentido de não ter existido, na sua óptica, a produção de qualquer resultado típico (lesões, socorrendo-se da prova pericial que enuncia), como também aduz razões de direito, as quais, no seu entender, poderão levar ao não preenchimento dos elementos do tipo objectivo em causa, ou seja, a não verificação de quaisquer lesões físicas (resultado lesivo típico), está vedada ao JIC a rejeição daquela peça processual por inadmissibilidade legal. | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa: I. RELATÓRIO Nos autos de instrução n.º 28/23.2SRLSB do tribunal da Comarca de Lisboa - Tribunal Central Instrução Criminal - TCIC - Juiz 9, em que é arguida AA, o Exm.ª Sr.ª Juiz de Instrução proferiu despacho a rejeitar o requerimento de abertura de instrução (doravante RAI) apresentado pela arguida com fundamento na sua inadmissibilidade legal, de acordo com as disposições conjugadas dos arts. 286.º, n.º 1 e 287.º, n.ºs 2, a contrario sensu e 3, ambos do Código de Processo Penal (doravante CPP). ** Inconformado com esta última decisão, veio a arguida interpor recurso, pugnando, em síntese, pela revogação do despacho e substituição por outro que admita o RAI e declare aberta a fase de instrução (cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido). ** O Ministério Público respondeu, pugnando pela improcedência do recurso. ** O recurso foi admitido a ........2025 para este Tribunal da Relação de Lisboa, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo. ** Nesta Relação, a Exm.ª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, defendendo a improcedência do recurso. ** Foi cumprido o estabelecido no art. 417.º, n.º 2 do CPP. ** Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência. Cumpre apreciar e decidir. ** II. OBJECTO DO RECURSO O âmbito do recurso é definido, como é sobejamente sabido, pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, no caso vertente, a questão que constitui objecto do recurso consiste em saber se deve ser revogado o despacho recorrido que rejeitou o RAI, com fundamento na sua inadmissibilidade. ** III. FUNDAMENTAÇÃO É do seguinte teor a decisão recorrida (transcrição): «Regularmente notificada do despacho de acusação do Ministério Público veio a arguida AA requerer a abertura de instrução, com os fundamentos constantes de fls. I72 a 174 dos autos, que aqui se dão por reproduzidos e, em síntese, que seja aberta a instrução e se realizem as diligências instrutórias pelo JIC consideradas necessárias ou pertinentes e que seja a final proferido despacho que declare, com as legais consequências, a nulidade da acusação ou de não pronuncia, extinguindo-se os autos em relação à requerente. O Tribunal é competente e a arguida tem legitimidade processual para requerer a abertura de instrução sendo o seu requerimento tempestivo e estando o mesmo dispensado do pagamento prévio de taxa de justiça. Estabelece o art.º 287º, nº 1, al. a) do Código de Processo Penal que "a abertura da instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento pelo arguido, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação.". Refere o no 2 do citado preceito que o "requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283º.". A instrução é uma fase facultativa de algumas formas de processo criminal, cuja abertura depende de requerimento que pode ser formulado apenas por determinados sujeitos processuais e nas circunstâncias legalmente previstas. Conforme refere o artigo 286º do Código de Processo Penal a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito. O âmbito desta discussão é, assim, limitado pelo objectivo que a lei estabelece para esta discussão. Na fase de instrução está em causa a comprovação da objectiva legalidade da acusação, pela verificação da reunião de material probatório demonstrativo da existência de crime e do seu autor e pela formulação do juízo de prognose de forte probabilidade de condenação do arguido suspeito. Trata-se, assim, de verificar se se confirma o acerto da decisão de acusar, se a acusação é a decorrência logica dos elementos recolhidos no inquérito e aí analisados pelo Ministério Público. Tal comprovação só pode realizar-se sob o horizonte do conjunto de razões de facto e de direito de discordância em relação à decisão do Ministério Público, vertidas no requerimento de abertura de instrução apresentado e a sua finalidade é a realização de um juízo sobre se se verificam os pressupostos legais para a submissão, ou não, da causa, ou uma sua parte a julgamento - neste sentido, vide Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29 de Janeiro de 2014, Juíza Desembargadora Relatora, Maria do Carmo Silva Dias, processo no 1878/11.8TAMAI.Pl, espelhando o entendimento de Pedro Anjos Frias, na Revista Julgar n.º 19 (Janeiro - Abril de 2013) no artigo intitulado "Um olhar destapado sobre o conceito de inadmissibilidade legal da instrução". Assim, no requerimento de abertura de instrução, terá de ser exposto um conjunto de razões que espelhe o desacerto do juízo indiciário que foi consequente na decisão de deduzir acusação, isto é, "as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação (...), bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito (...)", de harmonia com o disposto no artigo 287.º, n.º 2 do Código de Processo Penal. Conforme referido no supra citado Acórdão a apresentar, v.g., uma mera versão ou contraversão factual - ainda que espelho de uma intenção verosímil alheada do inquérito, do que neste se passou e da decisão com que o mesmo findou obstaculiza-se a concretização da actividade de comprovação judicial da decisão em acusar cuja materialidade é conformada pelo disposto no artigo 288º, n.º 4 do Código de Processo Penal que, justamente, remete para o supra citado n.º 2 do artigo 287º do mesmo diploma legal. Assim, em resumo, terá que, para provar que a decisão de acusar/arquivar foi errada, pôr em causa o juízo indiciário. Não basta, nesta fase, contestar a acusação, sendo necessário atacar os elementos factuais recolhidos no inquérito que fundaram a acusação, ou atacar a validade de tais meios de prova ou a análise que o Ministério Público fez de tais meios de prova. O requerimento, como já referido, não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que for caso disso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no artigo 283º, n.º 3, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal. Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 2910112014, relatora Maria do Carmo Silva Dias, in www.dgsi.pt., (embora em transcrição da decisão recorrida): "não valem como repositórios de razões de discordância aqueles requerimentos oferecidos pelo arguido cujo conteúdo consista ou se limite: - A apresentar uma mera versão ou contraversão factual - ainda que espelho de uma intenção verosímil - totalmente alheada do inquérito, do que neste se passou e da decisão com que o mesmo findou (contestação motivada),' - A repetir ou a completar o inquérito; - A negar os factos vertidos na acusação pública, como o sua autoria, participação, etc. (simples contestação) ; - A invocar factualidade nova trazida para dentro do processo apenas por meio do requerimento para a instrução (aliás, em flagrante violação do principio da lealdade sempre e quando: se garantiu ao arguido a sua audição e este nada disse nesse momento ou posteriormente (i); ou sempre que a existência ou possibilidade de constatação de tal factualidade "'nove" fosse notória a todas as luzes para qualquer decisor no momento do encerramento do inquérito, ou seja, que com ela pudesse e devesse contar (ii); - A pretender antecipar a fase do julgamento, isto é, a pretender realizar na instrução tudo o que é típico (próprio) do julgamento, transformando-a num simulacro de julgamento; - A pretender substituir a ideia matriz da comprovação preordenado à submissão ou não a julgamento do arguido por toda uma outra ideia que se concretize em apreciar se o arguido deve ou não ser condenado pelo crime que lhe é imputado. O objecto da comprovação tem que ser concreta e especificadamente enunciado ou definido no/pelo requerimento do sujeito processual nela interessado, por força da conjugação do nº 2 do artigo 287º com o no 4 do artigo 288" ambos do Código de Processo Penal. Assim, (...) sem exposição de razões de discordância com a natureza e recortes definidos obstaculiza-se a concretização da actividade de comprovação judicial da decisão em acusar. " No caso vertente e após análise do requerimento de abertura de instrução apresentado pela arguida requerente de instrução e constante de fls. 172 a 174 dos autos considera-se que não foi dado cumprimento ao imperativo legal supra enunciado, porquanto o que o referido requerimento evidencia é a discordância do despacho do Ministério Público por entender que não se verificam lesões ou sequelas relacionadas com o embate na ofendida. Ora, a instrução visa a comprovação da decisão de acusar em ordem a submeter ou não a causa a julgamento e não se confunde, por isso, mesmo com a fase de julgamento nem com a contestação a deduzir em tal fase. Ademais a fase de instrução tem de proporcionar de acordo com o artigo 286º do Código de Processo Penal uma verdadeira alternativa ao Juiz de instrução, ou seja, a alternativa de acordo com as regras legais de submeter ou não a causa a julgamento sendo essa a consequência da comprovação judicial a efectuar. Não sendo esta fase uma antecipação de julgamento, impugnar factos e apresentar uma contraversão do inquérito é, em bom rigor, contestar a acusação e não uma discordância crítica que se subsuma ao disposto no n.º 2 do artigo 287º do Código de Processo Penal, não reclamando, por isso, a prossecução da actividade judicial de comprovação da decisão. "A instrução não é um julgamento 'antecipado', com o mesmo nível de garantias e direitos de defesa, com a mesma intensidade de produção e apreciação da prova, A instrução visa apenas a comprovação da acusação, isto é, saber se existe fundamento para abrir a fase de julgamento, que é a fase central e paradigmática do processo penal, segundo o modelo garantista herdado do iluminismo." - Maia Costa in "Código de Processo Penal Comentado", Almedina, 2014,pág. 1 000. Tal como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 08/10/2019 proferido nos autos de processo 1003/17.1GBABF-A.ELi "A instrução tem de se pautar pela finalidade de culminar, alternativamente, em que o processo siga, ou não, para julgamento, sob pena de redundar em fase sem virtualidade para atingir o desiderato que lhe esta subjacente". A ausência, quer de fundamentação, quer de utilidade, da instrução, reconduzem-se a causas de inadmissibilidade da mesma. Um requerimento de abertura de instrução nos termos em que foi apresentado pela arguida não serve as finalidades da instrução. Recorre-se mais uma vez à decisão recorrida e objecto do referido Acórdão da Relação do Porto de 2910112014, e com a qual se concorda: "Assim, se o RAI apresentado (...) não tem aptidão para fundar e firmar as finalidades da instrução, deve ser rejeitado, pois que, o mesmo é dizer, com e em tais condições não pode haver lugar à instrução e esta é legalmente inadmissível (...) Assim se respeitará, de um lado, a natureza da fase de instrução, de outro, a celeridade processual, de outro ainda, a proibição da prática de actos inúteis e, por último, acentuar-se-á o princípio da auto responsabilização do sujeito processual". Assim, e pelos fundamentos expostos, entende-se que o requerimento de abertura de instrução nos termos em que foi apresentado é legalmente inadmissível. Em face do exposto, rejeito o requerimento de abertura de instrução apresentado nestes autos pela arguida com fundamento na sua inadmissibilidade legal, de acordo com as disposições conjugadas dos artigos 286º, n.º1 e 287º, n.ºs 2, a contrario sensu e nº 3, ambos do Código de Processo Penal.» Acusação pública (transcrição): «1. No dia ... de ... de 2023, cerca das 08h05m, a arguida AA conduzia o veículo automóvel de marca ..., modelo X, com a matrícula ..-VL-.., no ..., em Lisboa, em direcção à .... 2. Nas mesmas circunstâncias de tempo, BB conduzia o veículo automóvel de marca Volkswagen, modelo AA, de matrícula ..-OR-.., no mesmo sentido de trânsito e mesma via em que seguia a arguida, poucos metros mais à frente, transportando a sua filha CC. 3. Os veículos da arguida e de BB encontravam-se parados em virtude da sinalização semafórica assim o impor. 4. O veículo da arguida, por distração desta, andou para a frente e esta confundindo os pedais, e em vez de imobilizar o veículo, acelerou. 5. Pelo que, a arguida embateu com a frente do veículo por si conduzido na traseira do veículo conduzido por BB. 6. À data do embate o piso estava seco e limpo, e a visibilidade era boa. 7. Por força do embate, o veículo de BB foi projectado para a frente, a uma distância não concretamente apurada. 8. O vidro traseiro do veículo de BB partiu-se e os seus estilhaços atingiram a cadeira de retenção de crianças instalada no banco traseiro e onde seguia a sua filha. 9. Com a conduta descrita a arguida causou a BB e a CC fortes dores ao nível da coluna cervico-dorsal. 10. Como consequência da actuação da arguida o veículo conduzido pela arguida e o veículo de BB sofreram danos. 11. Ao actuar da forma descrita, a arguida procedeu de forma livre, sem o cuidado e atenção a que estava obrigado e de que era capaz, prosseguindo a sua marcha de forma imprudente e desatenta, com desrespeito pelas regras de paragem, as quais podia e devia ter adoptado, de modo a evitar o embate do qual resultaram para as ofendidas as lesões supra descritas, que a arguida não previu mas devia ter previsto. 12. Sabia ainda a arguida que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.» Requerimento de abertura da instrução (transcrição na parte que releva): «1. A acusação pública deduzida contra a requerente ‒ pela alegada prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punível pelo disposto no artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal ‒ é uma manifestação clara da perda de noção do ridículo. 2. Não há, nos autos, registo de qualquer lesão da integridade física de qualquer das intervenientes nos factos: nem da aqui requerente, por um lado, nem da assistente e da sua filha, por outro lado. 3. De resto, o que se diz na acusação (Vide facto 9.º) é que a arguida “causou a BB e a CC fortes dores ao nível da coluna cervico-dorsal”, como se com esta alegação (que não encontra nos elementos probatórios carreados para os autos qualquer suporte!) ficasse descrita a ofensa à integridade física merecedora de tutela criminal. (…) 5. A requerente embateu com o seu carro na traseira do carro da queixosa, tendo assumido a sua culpa pelo sucedido desde o primeiro momento. 6. Do sucedido, porém, não resultaram quaisquer danos que não materiais (nos automóveis), já devidamente tratados entre seguradoras. 7. Elucidativos disso mesmo são, de resto, os elementos constantes dos autos, dos quais se destaca o exame pericial médico-legal (que o Ministério Público indicou como elemento de prova, porventura por não ter lido o seu conteúdo), onde pode ler-se, designadamente, o seguinte: 8. Em relação à filha da queixosa: «Da assistência clínica: Na sequência do evento, foi transportada pelos Bombeiros para o Serviço de Urgência do Hospital ..., apresentando queixas álgicas ao nível da coluna cervico-dorsal, tendo realizado análises e radiografias da coluna vertebral, que não terão evidenciado lesões traumáticas agudas. Teve alta hospitalar, no mesmo dia. Algumas semanas depois, por manutenção das dores ao nível da coluna cervical, recorreu a uma consulta de Ortopedia, no ... Descobertas, a título privado, tendo-lhe sido reiterado que não existiam alterações nos exames imagiológicos previamente realizados. Nega recurso a outros serviços clínicos. Da atividade académica: Após o evento em apreço, nega interrupção da sua atividade escolar, que mantém. (...) Foi disponibilizado CD do Departamento de Imagiologia do Hospital ..., onde constam imagens de radiografias das colunas cervical, dorsal e lombar e da omoplata esquerda, datadas de .../.../2022, sem evidência de lesões traumáticas agudas. (...) B. EXAME OBJETIVO A examinanda não apresenta lesões ou sequelas relacionáveis com o evento. CONCLUSÕES Na ausência de lesões e/ou sequelas objetivadas e/ou documentadas, os peritos não têm elementos para se pronunciar medico-legalmente sobre as consequências da eventual ofensa à integridade física.» 9. E em relação à assistente: «Da assistência clínica: Na sequência do evento, foi transportada pelos Bombeiros para o Serviço de Urgência do Hospital ... apresentando queixas álgicas ao nível da coluna cervico-dorsal, tendo realizado análises e radiografias da coluna vertebral, que não terão evidenciado lesões traumáticas agudas. Teve alta hospitalar, no mesmo dia. Nega recurso a outros serviços clínicos. Da atividade laboral: Após o evento em apreço, nega interrupção da sua atividade laboral, que mantém. (...) Foi disponibilizado CD do Departamento de Imagiologia do Hospital... onde constam imagens de radiografias das colunas cervical, dorsal e lombar e da omoplata esquerda, datadas de .../.../2022, sem evidência de lesões traumáticas agudas. (...) B. EXAME OBJETIVO A examinanda não apresenta lesões ou sequelas relacionáveis com o evento. CONCLUSÕES Na ausência de lesões e/ou sequelas objetivadas e/ou documentadas, os peritos não têm elementos para se pronunciar medico-legalmente sobre as consequências da eventual ofensa à integridade física.» Ou seja, 10. Não foram detetadas quaisquer lesões físicas à assistente ou à sua filha (que não é assistente nem exerceu o direito de queixa, mas o Ministério Público achou por bem incluí-la na acusação, sabe-se lá sob que raciocínio técnico), 11. Pelo que, naturalmente, não pode bastar a alegação de que a assistente e a filha sofreram “dores”, sem que seja possível relacioná-las com uma lesão detetada e documentada no dia do “acidente”. 12. A ser assim, para que os tribunais criminais não fizessem outra coisa senão julgamentos de ofensas à integridade física, bastaria, no contexto de um sinistro rodoviário sem qualquer relevância, “chamar a ambulância” e dizer que se tem muitas dores. Enfim. 13. Inexistindo uma qualquer lesão na integridade física, é evidente que a acusação é inepta para suportar uma futura condenação o da arguida. Pelo que, 14. A acusação é nula, nos do disposto no artigo 283.º, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal, nulidade que aqui se argui com todas as consequências legais, na medida em que não contém uma narração de factos que possam vir a fundamentar a aplicação de uma pena ou medida de segurança, 15. E mesmo que assim não se entendesse/entenda, a acusação seria/será sempre manifestamente infundada, pelo que, no juízo de prognose que cumpre a V/Exa., nesta fase, fazer, é evidente que a acusação pública deduzida nestes autos é insuscetível de vir a suportar uma condenação da arguida AA, pelo que deverá ser proferido despacho de não pronúncia. (…)» *** APRECIAÇÃO DO RECURSO Entrando, assim, no cerne da questão, desde já se avança que, pelas razões que adiante se dirão, assiste razão à recorrente. De acordo com o disposto no art. 287.º, n.º 2 do CPP: «[O] requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação (...), sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do nº 3 do artigo 283º». Tal como se escreve no ac. do TRP de 21.9.2014, publicado in www.dgsi.pt: «I-A instrução requerida pelo arguido destina-se a comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação (para não ser submetido a julgamento, o que depende da formulação de um juízo negativo que terá por suporte factos e razões alegadas no RAI) exigindo-se, para o efeito, que o requerimento de abertura de instrução (RAI) contenha, ainda que em súmula, as razões de facto e de direito que fundamentam a discordância relativamente à acusação, podendo, se for caso disso, indicar os actos de instrução que pretende que o juiz leve a cabo, os meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e os factos que, através de uns e de outros, espera provar (art. 287.º, n.º 2, do CPP). II - As razões de facto e de direito que fundamentam a discordância do arguido, para serem aptas e idóneas à abertura de instrução, têm de estar directamente relacionadas com a acusação contra si proferida e com o inquérito que a sustenta. O que se compreende uma vez que a dedução de acusação (pelo Ministério Público, como neste caso sucede), depende de no inquérito terem sido recolhidos indícios suficientes do acusado ter cometido o crime que nessa peça lhe é imputado (art. 283º, nºs 1 a 3, do CPP). III - O RAI pode ser rejeitado (nº 3 do art. 287º do CPP) por “Inadmissibilidade legal da instrução”, conceito este que o legislador não define. O facto de indicar alguns casos em que se verifica formalmente essa situação (v.g. quando se está perante uma forma de processo especial, quando a instrução é requerida fora das situações indicadas no art. 287º, nº 1, do CPP), não significa que tal conceito (“inadmissibilidade legal da instrução”) deva ser interpretado de forma restrita ou que tenha de ser restringido a uma visão formal. IV - A “inadmissibilidade legal da instrução” abrange uma interpretação material, atenta a filosofia subjacente a essa fase preliminar e, por isso, engloba igualmente os casos em que o alegado no requerimento de abertura de instrução não satisfaz as finalidades da instrução, como sucede, por exemplo, quando o RAI é inepto (seja apresentado pelo assistente, seja apresentado pelo arguido).» (sublinhados nossos). Volvendo ao caso que nos ocupa, verifica-se que a arguida está acusada da prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art. 148.º, n.º 1, do Código Penal (doravante CP) [a que acresce a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor prevista no art. 69.º, n.º 1, al. a), do mesmo diploma legal]. De harmonia com o preceituado no art. 148.º do CP, comete o ilícito penal aí sancionado «quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa». Esta incriminação tipifica, assim, como criminalmente puníveis, aqueles comportamentos imprudentes ou inadvertidos, negligentes portanto, que têm como consequência lesões na integridade físico-psíquica de outros. A negligência vem definida no art. 15.º do CP, só sendo juridico-penalmente relevante nos casos expressamente previstos na lei (cfr. art. 13º do CP), os quais estão ligados designadamente à existência de determinadas condutas e actividades da vida actual que, aliadas à evolução tecnológica, vão aumentando o grau de risco inerente às condições normais da vida do dia-a-dia; actividades essas, todavia, que não podem deixar de acontecer sob pena de paralisação de toda a vida social. Quer dizer, até certo ponto há um risco permitido, o qual é definido pelas normas que regulam o exercício de tais actividades. Um dos exemplos desta situação é o trânsito rodoviário, o qual tem no Código da Estrada a definição das regras que permitem distinguir quando estamos perante uma situação de risco permitido e quando estamos perante uma situação susceptível de criar perigo para determinados bens jurídicos, a qual ultrapassa tal risco permitido. É aqui que entra o dever objectivo de cuidado, o qual deve ser aferido pela actuação do homem médio cuidadoso e consciente do sector a que pertence o agente quando colocado perante a concreta situação de perigo que este contemplava. Assim, para que haja, então, o preenchimento do tipo de ilícito inerente à negligência é necessário que exista: - uma actuação que não observa o cuidado objectivo exigido pelo caso concreto; - a possibilidade de prever o perigo de realização do tipo (neste caso, o perigo da ocorrência da ofensa à integridade física de uma pessoa); - a produção do resultado típico (lesão/lesões). Não basta, porém, que ocorra o resultado típico, pois é ainda necessário que exista um nexo de causalidade entre esse resultado e a conduta do agente, e que aquele possa «imputar-se objectivamente à conduta e subjectivamente ao agente» (cfr. Ac. do STJ de 05.11.97, in CJSTJ, Ano V, tomo 3, pág. 227), isto é, que a conduta seja adequada (art. 10º do C.P.) a produzir aquele resultado. Ora, lido o RAI, verifica-se que a recorrente não só questiona os factos, no sentido de não ter existido, na sua óptica, a produção de qualquer resultado típico (lesões, socorrendo-se da prova pericial que enuncia), como também aduz razões de direito, as quais, no seu entender, poderão levar ao não preenchimento dos elementos do tipo objectivo em causa, ou seja, a não verificação de quaisquer lesões físicas (resultado lesivo típico). Como dizem M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, in “Código Penal – Parte Geral e especial – com notas e comentários”, Março 2014, págs. 595-596 «[A]lém da violação do dever de cuidado e da previsibilidade objetiva, concorre o resultado como elemento dos crimes negligentes de resultado. Quem conduz um automóvel e, por seguir distraído, não para num sinal vermelho, age com manifesta falta de cuidado, mas se nada aconteceu, se o condutor não provocou ferimentos em quem ia atravessar, falta a concorrência de um evento típico (…)». Donde se conclui pela procedência do recurso. *** IV. DECISÃO Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso, e em consequência: a. revoga-se o despacho que rejeitou o RAI por inadmissibilidade legal; b. determina-se a sua substituição por outro que dê seguimento aos termos do processo, ou seja, que receba o RAI e declare aberta a fase de instrução. Sem custas por não serem devidas (cfr. art. 513.º n.º 1 do CPP). *** Lisboa, 6 de Novembro de 2025 Marlene Fortuna Eduardo de Sousa Paiva Cristina Luísa da Encarnação Santana |