Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4877/15.7T8SNT.L1-8
Relator: ILÍDIO SACARRÃO MARTINS
Descritores: DOAÇÃO EM CONSIDERAÇÃO DO ESTADO DE CASADO
DIVÓRCIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/19/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: -A doação feita ao réu e mulher, pelo pai desta, ora autor, em consideração do estado de casados um com o outro, (os quais se vieram posteriormente a divorciar), está abrangida pela sanção prevista no nº 1 do artigo 1791º do Código Civil.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial: Acordam os Juizes, no Tribunal da Relação de Lisboa.


I-RELATÓRIO:


J... intentou acção com processo comum contra M.., pedindo que o réu seja condenado a pagar-lhe a quantia de € 40.000,00.

Em síntese, alegou que intentou uma acção de condenação contra o réu pedindo que este fosse condenado a pagar-lhe a quantia 40.000,00€, que alegadamente lhe havia emprestado. O réu na defesa disse que a referida quantia lhe foi doada, o que o autor aceita. O réu recebeu aquela quantia pela única razão de à data se encontrar casado com a filha do autor. Tendo-se dissolvido o casamento do réu com a filha do autor, pretende este que o réu seja condenado a devolver o benefício recebido.

O réu contestou por excepção e por impugnação.

Por excepção invoca a impossibilidade de tutela jurídica, assim como a ilegitimidade passiva, que foram julgadas improcedentes no despacho saneador.

Por impugnação, alegou, em resumo, a inexistência de doação. Embora o réu tenha alegado naquela outra acção que o autor havia feito uma doação, isso traduziu-se numa estratégia de defesa, versão que não se provou. Aquela quantia de 40.000,00€ foi entregue pelo autor ao réu como princípio de pagamento de uma dívida daquele para com este.

Finalmente o réu aduz que o autor deduz pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar; adulterou a verdade dos factos e omite factos relevantes para a decisão da causa.

Conclui pela improcedência da acção, pedindo que o autor seja condenado em multa e indemnização condigna, por litigância de má-fé. 

No decurso da acção faleceu o autor, tendo sido habilitadas para ocupar o seu lugar as suas herdeiras, M... e M..., respectivamente, mulher e filha.

Foi proferida SENTENÇA que julgou a acção parcialmente procedente e condenou o réu a pagar às habilitadas a quantia de € 20.000,00. Julgou ainda improcedente a invocada litigância de má-fé do autor.

Não se conformando com a sentença, dela recorreu o réu, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:

1ª-Vem o presente recurso interposto da sentença do Tribunal da Comarca de Lisboa Oeste – Amadora - aliás douta, notificada ao aqui ora recorrente, na qual, salvaguardado o devido respeito, se faz incorrecta decisão quanto à matéria de facto dada como provada, por terem sido cometidos diversos erros quanto ao apuramento da matéria de facto dada como assente e, ainda, incorrecta interpretação e aplicação do direito.
2ª-O aqui ora recorrente pugna, assim, pela não manutenção da sentença ora posta em crise, aliás douta, porquanto a mesma enferma de erro de julgamento de facto e de direito, ao simplesmente julgar procedente (embora parcial) a pretensão formulada na p.i., aliás douta, e, também, por ter desconsiderado, por completo, a prova apresentada nos autos pelo recorrente [depoimento de parte do autor e depoimento da testemunha M... (esta, nos presente autos, autora habilitada), prestados nos autos que sob o processo nº 25086/13.4T2SNT, correram termos pela Instância Central de Sintra, 1ª Secção, Juiz 2, da Comarca de Lisboa Oeste - Sintra - depoimentos que foram devidamente transcritos nos presentes autos, para que fossem admitidos ao abrigo do princípio do valor extra processual da prova (de acordo com o artigo 421º, nº 1 e 2 do Código de Processo Civil)]; bem como não levou em consideração o facto de não ter sido junto aos autos (pelo autor e pela Caixa Geral de Aposentações) a documentação solicitada e que serviria para provar a fundamentação da pretensão invocada pelo aqui ora recorrente.
3ª-O tribunal “a quo”, relativamente à matéria de facto, que deu como provada errou no apuramento de alguns desses factos tendo atribuído, valor verdadeiro a factos constantes do articulado (contestação) apresentado pelo réu (aqui recorrente) nos autos que sob o processo nº 25086/13.4T2SNT, correu termos pela Instância Central de Sintra, 1ª Secção, Juiz 2, da Comarca de Lisboa Oeste – Sintra (autos antigos), sem que sobre eles tenha recaído qualquer prova (designadamente quanto aos factos 3, 4, 5 e 6).
4ª-O problema do tribunal “a quo” radica no facto de este se ter socorrido de factos que serviram de fundamento à defesa do aqui recorrente, noutro processo (anteriores autos que, sob o processo nº 25086/13.4T2SNT, correram termos pela Instância Central de Sintra, 1ª Secção, Juiz 2, da Comarca de Lisboa Oeste - Sintra), bem como por ter aproveitado a motivação constante da sentença proferida nessa mesma acção.
5ª-O tribunal “a quo” deu como verdadeiros factos que foram, até, declarados não provados, em anterior sentença da mesma Comarca (autos antigos que sob o processo nº 25086/13.4T2SNT, correu termos pela Instância Central de Sintra, 1ª Secção, Juiz 2, da Comarca de Lisboa Oeste – Sintra), mas que foram conhecidos do Exmº juiz do tribunal “a quo”, apenas porque foram juntos aos presentes autos com as peças processuais, tendo levado esses factos à matéria dada como provada.
6ª-O tribunal “a quo”, na sentença ora em crise, deu como definitivamente indiscutíveis factos não cobertos pela força do caso julgado, e sem ter apreciado as provas que a tal juízo conduziram.
7ª-O tribunal “a quo” na sentença em crise, aquando do apuramento da matéria de facto dada como provada, não andou bem por ter julgado com base em factos que não se encontravam demonstrados e provados nos presentes autos.
8ª-Trata-se de um verdadeiro erro de julgamento, decorrente do facto de a decisão do tribunal “a quo” ter sido proferida com base em factos não demonstrados e provados.
9ª-O tribunal “a quo” violou, assim e entre outras, a norma presente no artigo 607º nº 4 do Código de Processo Civil.
10ª-Destarte, devem os factos 3, 4, 5 e 6 da sentença, aliás douta, ora em crise saírem do elenco dos factos dado como provados, permanecendo apenas os factos 1. e 2.
11ª-É consabido que o julgador é livre de apreciar as provas. Todavia, tal apreciação deve ser vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da lógica e às regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório.
12ª-A livre convicção não pode confundir-se, como fez o tribunal “a quo” com a íntima convicção do julgador, impondo-lhe a lei que extraia das provas um convencimento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido da responsabilidade e bom senso, e valoradas segundo parâmetros da lógica do homem médio.
13ª-O tribunal “a quo” prosseguiu com a sua íntima convicção ao ter dado como provada a existência de doação nos presentes autos tendo esta sido extraída sem qualquer convencimento lógico e motivado, e sem sentido da responsabilidade e bom senso, e valoradas segundo parâmetros da lógica do homem médio.
14ª-O facto de o recorrente não ter conseguido produzir prova no sentido de que efectivamente se tinha tratado de um princípio de pagamento de uma dívida, deveu-se a culpa derivada também do próprio do tribunal “a quo”.
15ª-O tribunal “a quo” não levou em consideração a falta (incumprimento) de junção de documentos aos autos e deixou sem efectiva sanção jurídica a actuação “ilegal” do autor, permitindo ainda manter uma situação “ilegal” criada por essa actuação que conduziu, estrategicamente, à impossibilidade de produção de prova dos fundamentos alegados pelo aqui recorrente na contestação apresentada nos presentes autos.
16ª-Errou o tribunal “a quo”, de forma incompreensível, quando proferiu sentença nos presentes autos sem que tivesse previamente obtido a resposta da Caixa Geral de Aposentações acerca do valor mensal da pensão do autor que, associado aos documentos em falta pelo autor, serviria também para provar a fundamentação alegada pelo recorrente.
17ª-O tribunal “a quo” concedeu-se aqui um verdadeiro benefício ao infractor (leia-se autor).
18ª-Trata-se, pois, de um mais verdadeiro erro de julgamento, o facto de a decisão do tribunal “a quo” ter sido proferida sem que estivessem juntos aos autos os documentos que serviriam para provar a tese apresentada pelo aqui ora recorrente.
19ª-O tribunal “a quo” errou também ao ter desconsiderado, por completo, o depoimento de parte do autor e o depoimento da testemunha M... (esta agora autora habilitada nos presente autos), prestados nos autos antigos que sob o processo nº 25086/13.4T2SNT, correu termos pela Instância Central de Sintra, 1ª Secção, J2, da Comarca de Lisboa Oeste – Sintra -, depoimentos devidamente transcritos nos presentes autos, para que fossem admitidas ao abrigo do princípio do valor extra processual da prova (nos termos do artigo 421º nº 1 e 2 do Código de Processo Civil).
20ª-Trata-se de mais um verdadeiro erro de julgamento, decorrente do facto de a decisão do tribunal “a quo” não ter apreciado as provas apresentadas pelo recorrente, fazendo-o em flagrante violação dos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da lógica e às regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório.
21ª-A decisão do tribunal “a quo” ao ter optado pela aplicação, ao caso concreto dos presentes autos, do artigo 1791º  nº 1 do Código Civil, mesmo que eventualmente se reconhecesse que se tinha tratado de uma real doação (o que só por mera hipótese de raciocínio se concede), errou, salvado o devido respeito.
22ª-Nem todos os benefícios recebidos em vista do casamento ou em consideração do estado de casado podem ser tratados como a lei os trata agora, mas sim como eram pensados no tempo em que foram concedidos.
23ª-Há uma dimensão no divórcio, eticamente assumida pela antiga lei, que faz sair da natureza intrínseca do conceito de benefício a doação.
24ª-É que, ainda hoje, segundo o artigo 1760º nº 1 alª b), do Código Civil, as doações para casamento caducam se ocorrer divórcio ou separação judicial de pessoas e bens por culpa do donatário, se este for considerado único e principal culpado.
25ª-Também não foi alterado o disposto no artigo 1766º nº 1 alª c) que refere que «a doação entre casados caduca ocorrendo divórcio ou separação judicial de pessoas e bens por culpa do donatário, se este for considerado único ou principal culpado».
26ª-Deve considerar-se que os artigos 1760º nº 1 alª b) e 1766º nº1 alª c), ambos do Código Civil, dizem o que efectivamente o legislador pretende que digam; sendo que, assim, as doações não se podem subsumir dentro do conceito de benefícios (preditos no artigo 1791º nº 1, do Código Civil) pois que, para que estas (doações) caduquem ainda hoje carecem da culpa (ou principal culpa) de um dos cônjuges, o que não existe nos presentes autos.
27ª-O autor (agora autoras habilitadas) não tem assim o direito de, na invocação do artigo 1791º nº1 do Código Civil, vir pedir o reconhecimento da caducidade da “doação” (doação que, aliás, só por mera hipótese de raciocínio se concede que tenha ocorrido) que fez ao recorrente.
28ª-Também sempre se dirá que, e caso se tivesse tratado de uma verdadeira doação (o que aqui só por mera hipótese de raciocínio se concebe) sempre essa doação se tornaria impossível agora de devolver ao autor, considerando o simples facto de tal montante já se ter esgotado (gasto) em prol da satisfação do casal.
29ª-Errou o tribunal “a quo” ao não ter decidido pela litigância de má-fé do autor.
30ª-O autor com a sua actuação (instauração dos presentes autos) contrariou o princípio da licitude do exercício dos meios processuais que exige que este exercício seja sincero e que a parte esteja convencida da justiça da sua pretensão.
31ª-O autor sabe perfeitamente de que não se tratou de uma doação; pois, caso contrário, não teria intentado a anterior acção com os fundamentos nela constantes.
32ª-A lei impõe agora com mais ênfase que qualquer autor, antes de intentar uma acção, avalie a sua razoabilidade, evitando-a se não houver fundamento sério para a dedução da pretensão, sendo ilegítima uma atitude irreflectida.
33ª-O autor limitou-se a apresentar a versão dos presentes autos (doação) só pelo facto de lhe ter sido negada a anterior pretensão consubstanciada no empréstimo, bem sabendo que agora também não lhe assiste razão.
34ª-Destarte, é desde logo evidente que existe fundamento para a condenação do autor por litigância de má-fé, pelo que, salvado o devido respeito, errou o tribunal “a quo”.
Termina, pedindo que seja revogada a sentença recorrida, absolvendo-se o réu, ora recorrente do pagamento do montante em que foi condenado.

Não houve contra-alegações.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II-FUNDAMENTAÇÃO.

A)-Fundamentação de facto.

Mostra-se assente a seguinte matéria de facto:

1º-O autor é ex-sogro do réu, em virtude de sua filha, M..., ter sido casada com este, até ao passado dia 10.12.2014, data em que transitou em julgado a acção de divórcio sem consentimento, que dissolveu o casamento de ambos.
2º-Em 16.10.2013, o autor intentou uma acção de condenação contra o ora réu, pedindo que este fosse condenado a pagar-lhe a importância de € 40.000,00 que, alegadamente, lhe havia emprestado no início de 2006.
3º-O réu contestou aquela acção, alegando que a referida quantia de € 40.000,00 não lhe fora emprestada, mas antes, o autor, à custa do seu património, havia disposto dela gratuitamente a favor do réu.
4º-No artigo 74º da referida contestação alega o réu, que o autor havia disposto da referida quantia e naqueles moldes em benefício não só do réu, mas também da então sua mulher, filha do autor.
5º-No artigo 80º da dita contestação o réu refere que “No dia imediato (03.04.2006) procedeu, junto do balcão daquela instituição bancária (leia-se, Caixa Geral de Depósitos) sita na Amadora, ao levantamento em dinheiro, da totalidade do montante monetário indicado no cheque (leia-se, € 40.000,00) ”.
6º-O réu recebeu do autor a quantia referida em 3º e 4º pela razão de, então, estar casado com a filha deste.

B)-Fundamentação de direito.

As questões colocadas e que este tribunal deve decidir, nos termos dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2 do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, em vigor desde 1 de Setembro de 2013, são as seguintes:
-Impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto;
-O princípio do pagamento de uma dívida;
-O depoimento de parte do falecido autor e o depoimento da sua filha, ora habilitada, prestados no outro processo;
-A questão de direito – artigo 1791º nº 1 do Código Civil;
-A litigância de má fé do falecido autor.

IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO PROFERIDA SOBRE A MATÉRIA DE FACTO.
Alega o réu, ora apelante, que os factos 3º, 4º, 5º e 6º da sentença devem sair do elenco dos factos dado como provados, permanecendo apenas os factos 1º e 2º.
Refere o apelante que o tribunal “a quo”, relativamente à matéria de facto, que deu como provada errou no apuramento de alguns desses factos tendo atribuído, valor verdadeiro a factos constantes do articulado (contestação) apresentado pelo réu (aqui recorrente) nos autos que sob o processo nº 25086/13.4T2SNT, correu termos pela Instância Central de Sintra, 1ª Secção, Juiz 2, da Comarca de Lisboa Oeste – Sintra (autos antigos), sem que sobre eles tenha recaído qualquer prova (designadamente quanto aos factos 3, 4, 5 e 6).

Cumpre decidir.

Da simples leitura dos factos provados sob os nºs 3º, 4º, 5º e 6º só se pode concluir que houve acerto na decisão, importando agora repescar os respectivos fundamentos, com os quais estamos de acordo.

Assim, ali foi considerado o seguinte:
“3. a 5., a prova destes factos assentou no teor da certidão junta de fls. 18 a 35, que contém a contestação do réu apresentada no processo comum nº 25086/13.4T2SNT, que correu termos pela 1ª Secção da Instância Central Cível de Sintra.

Quanto ao facto referido em 6.:

Provou-se com base dos seguintes elementos conjugados:

Por um lado, a alegação do réu na contestação apresentada no processo a que se referem os factos 2. a 5. – proc. 25086/13.4T2SNT, que correu termos pela Instância Central de Sintra, 1ª Secção, J2, desta Comarca – na qual o réu refere que a quantia de 40.000,00€ foi doada a si e à sua ex-mulher, filha do autor, por este.

Por outro lado, a motivação da sentença nessa acção, onde se refere que: Diversas testemunhas afirmaram ter ouvido dizer a várias pessoas, mormente à ex-mulher do réu e à filha do autor e a este, que o autor oferecera a quantia de 40.000,00€ ao réu e à esposa, filha do autor, para compra do táxi, negócio que indubitavelmente teve lugar. Tais depoimentos foram produzidos por diversas testemunhas mencionadas na dita motivação, mormente pela testemunha A..., primo do autor, que se mostrou particularmente isento e descomprometido no seu depoimento e, por isso, credível.

Estes elementos foram apreciados segundo o princípio da livre apreciação da prova e ainda conjugados com as regras da experiência comum para se compreender a razão de o autor ter entregue ao réu e mulher a dita quantia de 40.000€ a título gratuito, conforme o réu declara na contestação da acção que correu termos na Instância Central de Sintra, 1ª sec., sob o proc. 25086/13.4T2SNT.

Infra, na apreciação de direito, se explicará porque é que a declaração do réu naquele outro processo não é tida como confissão, mas antes é apreciada segundo o princípio da livre apreciação da prova.

Foi com base neste princípio que se apreciou a declaração do réu na alegação que fez na contestação do processo 25086/13.4T2SNT. O réu declarou na contestação apresentada nesse processo que a quantia de 40.000,00€ lhe foi doada pelo autor; o que foi corroborado pelas testemunhas nesse processo, designadamente um primo do autor, chamado A..., que segundo a juiz que aí apreciou os factos lhe mereceu credibilidade.

É certo que o réu fez aquela declaração no âmbito da contestação apresentada naquele processo pretendendo contrariar a versão do autor, o qual invocava como causa de pedir o empréstimo ao réu dos ditos 40.000,00€.

Nessa acção, a versão do autor não se provou e a do réu, não integrando os factos essenciais da causa de pedir (ao contrário, pretendia impedir a prova desta), em princípio, não teria de integrar o elenco dos factos provados e não provados.

Porém, a versão alegada pelo réu nessa acção (que os 40.000,00 foram doados pelo autor a si e a sua mulher) foi corroborada por testemunhas na mesma acção e o autor na presente acção diz aceitá-la, embora referindo que o empréstimo foi feito só ao réu. Será esta a realidade do que se passou.

Caso a versão agora trazida pelo réu na presente acção (de que os 40.000,00 € foram entregues pelo autor ao réu como princípio de pagamento de uma dívida daquele para com este) correspondesse à realidade passada, não se perceberia porque é que o réu não a teria invocado na acção com o processo 25086/13.4T2SNT, indicando prova dos correspondentes factos. Ao invés, o réu nessa outra acção alegou que se tratava de uma doação e foi produzida prova, designadamente testemunhal, nesse sentido.

Não será ainda despiciendo verificar que, embora o réu na presente acção alegue que os 40.000,00€ lhe foram entregues pelo autor como princípio de pagamento de uma dívida deste para com aquele não se produziu qualquer prova nesse sentido, prescindido mesmo o réu das testemunhas arroladas.

É certo que cabia ao autor provar os factos que alega constitutivos da causa de pedir - o qual juntou prova documental da versão apresentada pelo réu no processo 25086/13.4T2SNT e que aqui diz aceitar no que concerne à doação ao autor - mas o réu não fez qualquer contraprova de que a versão por si indicada naquele outro processo não correspondia a realidade, limitando-se a alegar uma nova versão na presente acção.

Concatenando os elementos de prova e factores descritos, apreciados à luz da experiência comum é de concluir pela prova do facto”.

Estes argumentos contidos na fundamentação da sentença relativamente à matéria de facto provada são o melhor argumento que poderemos utilizar com vista a manutenção da matéria de facto provada sob os nºs 3º, 4º, 5º e 6º e, assim, julgar improcedente a pretensão do apelante.

Assim, contrariamente ao alegado pelo apelante, mantém-se aquela matéria de facto.

O PRINCÍPIO DO PAGAMENTO DE UMA DÍVIDA.
Nas conclusões 14ª a 18ª refere o apelante que o facto de não ter conseguido produzir prova no sentido de que efectivamente se tinha tratado de um princípio de pagamento de uma dívida, deveu-se a culpa derivada também do próprio do tribunal “a quo”, que não levou em consideração a falta (incumprimento) de junção de documentos aos autos e deixou sem efectiva sanção jurídica a actuação “ilegal” do autor, permitindo ainda manter uma situação “ilegal” criada por essa actuação que conduziu, estrategicamente, à impossibilidade de produção de prova dos fundamentos alegados pelo aqui recorrente na contestação apresentada nos presentes autos.

Cumpre decidir.

Na tese do réu, ora apelante, a quantia de € 40.000,00 que o seu ex-sogro lhe entregou destinava-se ao pagamento de uma dívida, que poderia ser provada pela junção aos autos dos documentos referidos nas conclusões 14ª a 18ª.

Voltamos a reproduzir parte da fundamentação da sentença que faz soçobrar a tese do apelante.

“O réu declarou na contestação apresentada nesse processo que a quantia de 40.000,00€ lhe foi doada pelo autor; o que foi corroborado pelas testemunhas nesse processo, designadamente um primo do autor, chamado A...., que segundo a juiz que aí apreciou os factos lhe mereceu credibilidade.
Porém, a versão alegada pelo réu nessa acção (que os 40.000,00 foram doados pelo autor a si e a sua mulher) foi corroborada por testemunhas na mesma acção e o autor na presente acção diz aceitá-la, embora referindo que o empréstimo foi feito só ao réu. Será esta a realidade do que se passou.
Caso a versão agora trazida pelo réu na presente acção (de que os 40.000,00 € foram entregues pelo autor ao réu como princípio de pagamento de uma dívida daquele para com este) correspondesse à realidade passada, não se perceberia porque é que o réu não a teria invocado na acção com o processo 25086/13.4T2SNT, indicando prova dos correspondentes factos. Ao invés, o réu nessa outra acção alegou que se tratava de uma doação e foi produzida prova, designadamente testemunhal, nesse sentido.
Não será ainda despiciendo verificar que, embora o réu na presente acção alegue que os 40.000,00€ lhe foram entregues pelo autor como princípio de pagamento de uma dívida deste para com aquele não se produziu qualquer prova nesse sentido, prescindido mesmo o réu das testemunhas arroladas.
É certo que cabia ao autor provar os factos que alega constitutivos da causa de pedir - o qual juntou prova documental da versão apresentada pelo réu no processo 25086/13.4T2SNT e que aqui diz aceitar no que concerne à doação ao autor - mas o réu não fez qualquer contraprova de que a versão por si indicada naquele outro processo não correspondia a realidade, limitando-se a alegar uma nova versão na presente acção.

Improcedem, pois, as conclusões das alegações do réu, ora apelante.

O DEPOIMENTO DE PARTE DO FALECIDO AUTOR E O DEPOIMENTO DA SUA FILHA, ORA HABILITADA, PRESTADOS NO OUTRO PROCESSO.
Alega ainda o apelante que o tribunal “a quo” errou também ao ter desconsiderado, por completo, o depoimento de parte do autor e o depoimento da testemunha M... (esta agora autora habilitada nos presente autos), prestados nos autos antigos que sob o processo nº 25086/13.4T2SNT, correu termos pela Instância Central de Sintra, 1ª Secção, J2, da Comarca de Lisboa Oeste – Sintra - depoimentos devidamente transcritos nos presentes autos, para que fossem admitidas ao abrigo do princípio do valor extra processual da prova (nos termos do artigo 421º nº 1 e 2 do Código de Processo Civil).

Cumpre decidir.

O depoimento de parte do falecido autor e o depoimento testemunhal da sua filha M..., ora habilitada, produzidos no anterior processo, são, nos presentes autos, apreciadas segundo o princípio da livre apreciação da prova (Código Civil artigos 361º e 396º e CPC artigo 607º nº 5), pelo que se mantém a tese de que o autor doou ao réu e sua mulher a quantia de € 40.000,00, conforme o próprio réu declarou na contestação que apresentou naquele outro processo.
Improcedem as conclusões, também nesta parte.

A QUESTÃO DE DIREITO - ARTIGO 1791º Nº 1 DO CÓDIGO CIVIL.
O falecido autor J... intentou a presente acção, na qualidade de doador, contra o réu, donatário, então seu genro, porque casado com a filha daquele, a habilitada M..., visando a perda do benefício obtido pelo réu com a doação.
Mostra-se provado que o casamento entre o réu e a M... foi dissolvido por sentença que decretou o divórcio entre ambos e que transitou em julgado no dia 10.12.2014.
Está provado que o réu recebeu do falecido autor a quantia de € 40.000,00, pelo facto de estar casado com a filha deste, a habilitada M....

A doação feita pelo autor ao réu está abrangida pelo disposto no artigo 1791º nº 1 do Código Civil, na redacção dada pela Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro, que preceitua o seguinte:

“Cada cônjuge perde todos os benefícios recebidos ou que haja de receber do outro cônjuge ou de terceiro, em vista do casamento ou em consideração do estado de casado, quer a estipulação seja anterior quer posterior à celebração do casamento”.
Não devem considerar-se abrangido pela norma em questão os donativos usuais que tenham sido feitos ao cônjuge pelo seu parceiro ou por terceiro. Devem considerar-se abrangidas por esta norma especialmente as doações entre vivos, mortis causa e as próprias disposições testamentárias[1].
Tal doação foi feita ao réu e mulher, por estarem casados um com o outro, os quais se vieram posteriormente a divorciar, por sentença transitada em julgado em 10.12.2014.
Efectivamente, está abrangida pela sanção prevista no nº 1 do artigo 1791º do Código Civil a doação feita por terceiro (neste caso, o autor) a ambos os cônjuges, em consideração do estado de casado do donatário.
A razão de ser desta perda de benefício em virtude do divórcio, agora independentemente de culpa, radica no “reforço do movimento de “despatrimonialização” do casamento, ou seja, a ideia de que o casamento não é um meio eticamente legítimo de adquirir património”[2] (Eliana Gersão, Estudos de Homenagem ao Professor Figueiredo Dias, vol. IV, pág.347
A doação acima mencionada foi feita em partes iguais, a favor do réu e da mulher, a ora habilitada M..., nos termos do artigo 944º do Código Civil.
Assim, há que declarar a perda do benefício obtido pelo réu com a doação efectuada, pelo que as herdeiras do falecido autor, habilitadas nos presentes autos, têm direito a receber do réu, a quantia de € 20.000,00, correspondente ao benefício por este obtido.
Entendimento contrário, como aquele que consta da pretensão do réu exposta nos números 21 a 28 das conclusões das alegações do recurso do réu, pode mesmo entender-se como excedendo manifestamente os fins impostos pela boa fé (do doador e da donatária, seu ex-cônjuge), consubstanciando abuso do direito, na vertente do venire contra factum proprium, pois o mesmo aceitou aqui como verdadeira a mencionada doação, mas, apesar disso, vem negar a devolução do que bem sabe que recebeu apenas “em consideração do estado de casado” com a filha do falecido autor.

A LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ DO FALECIDO AUTOR.
Finalmente, o réu, ora apelante, pugna pela condenação do autor como litigante de má fé.

Cumpre decidir.

Como refere Lebre de Freitas, a propósito das alterações introduzidas pelo nº 2 do Decreto-Lei nº 329-A/95, a lei processual “ passou a sancionar, ao lado da litigância dolosa, a litigância temerária: quer o dolo, quer a negligência grave, caracterizam hoje a litigância de má fé, com o intuito, com se lê no preâmbulo do diploma, de atingir uma maior responsabilização das partes”[3].
A lide temerária ocorre quando se actua com culpa grave ou erro grosseiro. É dolosa quando a violação é intencional ou consciente.
Mas será sempre de exigir que a prova de tal culpa ou do dolo seja clara e indiscutível.
Agora, o incumprimento gravemente culposo ou doloso dos deveres de cooperação e das regras de boa fé é sancionado civilmente através do instituto da litigância de má fé previsto no artigo 542º do C.P.C.
Tal como está hoje configurado, o instituto da litigância de má-fé visa permitir ao juiz, quando necessário, proceder a uma “disciplina” imediata do processo, oferecendo resposta pronta, ainda que necessariamente limitada, para atitudes aberrantes, iniquidades óbvias, erros grosseiros ou entorpecimento evidente da justiça[4].
Ora, no dia 1 de Setembro de 2013 entrou em vigor o novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, conforme consta do seu artigo 8º.

O artigo 542º do NCPC, preceitua o seguinte:

 2-Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a)Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b)Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c)Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d)Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

Como refere Lebre de Freitas, a propósito das alterações introduzidas pelo nº 2 do Decreto-Lei nº 329-A/95, a lei processual “ passou a sancionar, ao lado da litigância dolosa, a litigância temerária: quer o dolo, quer a negligência grave, caracterizam hoje a litigância de má fé, com o intuito, com se lê no preâmbulo do diploma, de atingir uma maior responsabilização das partes”[5].

A lide temerária ocorre quando se actua com culpa grave ou erro grosseiro. É dolosa quando a violação é intencional ou consciente. Mas será sempre de exigir que a prova de tal culpa ou do dolo seja clara e indiscutível.

Agora, o incumprimento gravemente culposo ou doloso dos deveres de cooperação e das regras de boa-fé é sancionado civilmente através do instituto da litigância de má-fé previsto no artigo 542º do C.P.C.

Ora, da análise dos factos provados, não nos parece de modo algum evidente que o falecido autor tenha litigado de má-fé contra o réu, tendo mesmo sido dada razão ao autor, ainda que de modo parcial.

No caso dos autos, não estamos perante uma situação claramente enquadrável na figura da litigância de má-fé, pois não foram, clara e ostensivamente ultrapassados os limites daquilo a que Luso Soares chama de litigiosidade séria, que "dimana da incerteza"[6] por parte do autor.

Não ficou demonstrado que o autor tivesse qualquer intenção de prejudicar o réu, limitando-se a discutir pormenores factuais não coincidentes.

Sem necessidade de maiores considerações, improcedem as conclusões, não havendo lugar à condenação do autor, como litigante de má-fé.

EM CONCLUSÃO.
A doação feita ao réu e mulher, pelo pai desta, ora autor, em consideração do estado de casados um com o outro, (os quais se vieram posteriormente a divorciar), está abrangida pela sanção prevista no nº 1 do artigo 1791º do Código Civil.

III-DECISÃO.
Atento o exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a douta sentença recorrida.
Custas pelo apelante.



Lisboa, 19/1/2017



Ilídio Sacarrão Martins
Teresa Prazeres Pais 
Octávia Viegas



[1][1]Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. IV, 2ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, em anotação ao artigo 1791º, pág. 564.
[2]Eliana Gersão, Estudos de Homenagem ao Professor Figueiredo Dias, vol. IV, pág.347, citada no Ac RC de 15.11.2016, procº nº 185/14.9TBBR.C1, in www.dgsi.pt/jtrc.
[3][3]“ Código de Processo Civil Anotado”, pág. 196-197.
[4]Regime Jurídico da Litigância de Má fé, Estudo de Avaliação de Impacto, DGPJ, Ministério da Justiça, Novem de 2010, acessível na Internet.
[5]“Código de Processo Civil Anotado”, pág. 196-197.
[6]A  Responsabilidade Processual Civil, Almedina, 1987, pág. 26.

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