Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | GRANJA DA FONSECA | ||
| Descritores: | FORO CONVENCIONAL COMPETÊNCIA TERRITORIAL LEI APLICÁVEL | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 03/15/2007 | ||
| Votação: | MAIORIA COM * VOT VENC | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | AGRAVO | ||
| Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
| Sumário: | 1 – A cláusula de convenção de foro é uma cláusula que não respeita ao sinalagma do contrato, que as partes celebraram, tendo antes a ver com a patologia deste e com a fixação de um pressuposto processual da competência territorial dos tribunais, consentida pelo n.º 1 do artigo 100º do Código de Processo Civil. 2 – Quanto à aplicação no tempo da lei processual civil, a regra é a de que a nova lei processual deve aplicar-se imediatamente, não apenas às acções que venham a instaurar-se após a sua entrada em vigor, mas a todos os actos a realizar futuramente, mesmo que tais actos se integrem em acções pendentes, ou seja, em causas anteriormente postas em juízo, salvo se a lei nova se fizer acompanhar de normas de direito transitório ou de para ela valer uma norma transitória. 3 – Dispondo o artigo 6º da Lei 14/2006, de 26 de Abril, que esta lei se aplica apenas às acções e aos requerimentos de injunção instaurados ou apresentados depois da sua entrada em vigor, ou seja, depois de 1 de Maio de 2006, significa que, tendo o autor proposto em juízo uma acção, depois dessa data, exigindo o cumprimento coercivo do contrato de crédito ao consumo celebrado com o réu, o conhecimento da incompetência relativa passou a ser nessa acção de conhecimento oficioso, por força da alteração dos artigos 110º, n.º 1, alínea a), 74º, n.º 1, alínea a) e 100º, do CPC. 4 - A aplicação da actual redacção do artigo 110º, n.º 1, alínea a) do CPC a contratos celebrados anteriormente à sua publicação e entrada em vigor, em que as partes tenham estabelecido um foro convencional em razão do território, nos termos do artigo 100º do CPC, não é inconstitucional. (G.F.) | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa: 1. Na acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato de crédito ao consumo que [Banco M. ] diz ter celebrado com [E. ], residente em Coimbra, o Exc. mo Juiz do 5º Juízo Cível de Lisboa, onde a acção foi instaurada, julgou verificada a excepção dilatória de incompetência relativa do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa e, consequentemente, determinou a remessa dos presentes autos para o Tribunal Judicial de Coimbra, por ser o territorialmente competente. Inconformado, agravou o autor, formulando as seguintes conclusões: 1ª – O despacho recorrido, ao aplicar o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 110º do Código de Processo Civil, com a redacção que lhe foi dada pela Lei 14/2006, de 26 de Abril, à hipótese dos autos, atento o que consta do contrato aos mesmos junto com a petição inicial, em que as partes escolheram um foro convencional nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 100º, n. os 1, 2, 3 e 4 do Código de Processo Civil violou o disposto nos artigos 5º e 12º, n. os 1 e 2 do Código Civil. 2ª – O despacho recorrido, ao interpretar e aplicar, como o fez, a alínea a) do n.º 1 do artigo 110º do Código de Processo Civil, com a redacção que lhe foi dada pela Lei 14/2006, de 26 de Abril, à hipótese dos autos e, consequentemente, a não considerar válida e eficaz a escolha do foro convencional constante do contrato dos autos, atenta a data da celebração do mesmo e o disposto no artigo 100º, n. os 1, 2, 3 e 4, do Código de Processo Civil, do que então se dispunha no artigo 110º do mesmo normativo legal, maxime na alínea a) do respectivo n.º 1, é inconstitucional por violação dos princípios da adequação, da exigibilidade e da proporcionalidade e da não retroactividade consignados no artigo 18º, n. os 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa, e, também ainda, por violação dos princípios da segurança jurídica e da confiança, corolários ambos do princípio de um Estado de Direito Democrático, consagrado no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa. 3ª – Impõe-se, pois, como se requer, a procedência do presente recurso, a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que reconheça a competência territorial do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa para conhecer dos autos onde o mesmo foi proferido. Não houve contra – alegação. Foi proferido despacho tabelar de sustentação. 2. Para além do que consta do relatório, têm relevância para a decisão a proferir os seguintes factos: 1º - A presente acção deu entrada no Tribunal Judicial de Lisboa, em 14 de Agosto de 2006. 2º – Através desta acção pretende o [Banco] “o cumprimento de obrigação pecuniária emergente de contrato nos termos do Decreto – Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro”. 3º - O Réu é residente na área do Tribunal Judicial de Coimbra. 4º - As partes convencionaram no artigo 15º das condições gerais do contrato que todos os litígios emergentes do mesmo “serão dirimidos pelo Tribunal da Comarca de Lisboa, com renúncia expressa a qualquer outro”. 5º - A Lei 14/2006, de 26 de Abril, entrou em vigor em 1 de Maio de 2006. 3. Tendo em conta as conclusões do Recorrente, que delimitam afinal o âmbito do recurso, são duas as questões que cumpre apreciar e conhecer no presente recurso: a) - A primeira resume-se à questão de saber se as alterações introduzidas, em sede de processo civil, pela Lei 14/2006, de 26 de Abril, se aplicam ou não às questões emergentes do contrato em causa nos autos, celebrado anteriormente à publicação e entrada em vigor de tal Lei, em que as partes, à luz dos preceitos legais em vigor aquando da celebração do mesmo, escolheram foro convencional. b) - A segunda, caso seja negativa a resposta à primeira questão, é a da saber se a alteração introduzida na alínea a) do n.º 1 do artigo 110º do Código de Processo Civil pela referida Lei 14/2006, de 26 de Abril, padece de inconstitucionalidade, na medida em que permite a aplicação do disposto deste preceito, na sua nova redacção, a contratos celebrados antes da entrada em vigor desta lei, dos quais conste cláusula estipulando qual o tribunal territorialmente competente para a resolução de eventuais litígios dele emergentes por alegada violação dos princípios da adequação, da exigibilidade e da proporcionalidade e da não retroactividade, consignados no artigo 18º, n. os 2 e 3 da Constituição da República Portuguesa, e, também ainda, por violação dos princípios da segurança jurídica e da confiança, corolários ambos do princípio de um Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa. 4. Como se referiu, no caso vertente, as partes elegeram no contrato que firmaram em 12 de Janeiro de 2004 um foro convencional, atribuindo competência territorial para dirimir os litígios dele emergentes ao Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa. Será, por isso, oportuno relembrar que a cláusula de convenção de foro é uma cláusula que não respeita ao sinalagma do contrato, tendo antes a ver com a patologia deste e com a fixação de um pressuposto processual da competência territorial dos tribunais, pelo que está em causa a aplicação retroactiva de leis processuais. Ora, quanto à aplicação no tempo da lei processual civil, a regra é a de que a nova lei processual deve aplicar-se imediatamente, não apenas às acções que venham a instaurar-se após a sua entrada em vigor, mas a todos os actos a realizar futuramente, mesmo que tais actos se integrem em acções pendentes, ou seja, em causas anteriormente postas em juízo(1). Da submissão a esta regra exceptua-se, evidentemente, o caso de a lei nova ser acompanhada de normas de direito transitório ou de para ela valer uma norma transitória. Esta acção foi instaurada depois da entrada em vigor da Lei 14/2006, de 2006, cujas alterações, como melhor se explicitará, estão na origem do recurso. Dispunha o artigo 74º, n.º 1 do CPC, com a redacção que lhe fora dada pelo Decreto- Lei 329-A/95, de 12 de Dezembro, que «a acção destinada a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de cumprimento será proposta, à escolha do credor, no tribunal do lugar em que a obrigação devia ser cumprida ou no tribunal do domicílio do réu». Acrescentava o artigo 100º, n.º 1 CPC, igualmente na redacção dada pelo DL n.º 329-A/95, que «as regras de competência em razão da matéria, da hierarquia, do valor e da forma de processo não podem ser afastadas por vontade das partes, mas é permitido a estas afastar, por convenção expressa, a aplicação das regras de competência em razão do território, salvo nos casos a que se refere o artigo 110º». Ora, segundo o artigo 110º, «a incompetência em razão do território deve ser conhecida oficiosamente pelo tribunal, sempre que os autos fornecerem os elementos necessário, nos casos seguintes: a) – Nas causas a que se referem os artigos [(...), 74º, n.º 2, (...)]; b) – Nos processos cuja decisão não seja precedida de citação do requerido; c) – Nas causas que, por lei, devam correr como dependência de outro processo». Por isso, os artigos 74º, n.º 1, 100º, n.º 1 e 110º, n.º 1, alínea a) do CPC, não impediam que as partes pudessem afastar por convenção a aplicação das regras da competência em razão do território, nomeadamente, quando a acção se destinasse a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de cumprimento, visto não se tratar de qualquer dos casos em que a competência em razão do território devia ser conhecida oficiosamente pelo tribunal. Entretanto foi publicada a Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, cujo artigo 1º alterou a redacção de diversos preceitos do Código de Processo Civil, entre eles a dos artigos 74º, n.º 1 e 110º, n.º 1, alínea a). Passou, então, o artigo 74º, n.º 1 a dispor que “a acção destinada a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de cumprimento é proposta no tribunal do domicílio do réu, podendo o credor optar pelo lugar onde a obrigação deveria ser cumprida, quando o réu seja pessoa colectiva ou quando, situando-se o domicílio do credor na área metropolitana de Lisboa ou do Porto, o réu tenha domicílio na mesma área metropolitana”. E o artigo 110º passou a incluir as causas a que se refere a primeira parte do n.º 1 do artigo 74º, na alínea a) do seu n.º 1, o que significa que nelas o conhecimento da incompetência relativa passou a ser de conhecimento oficioso, vedando, assim, a possibilidade de as partes afastarem, por convenção, as regras de competência territorial nesses casos, como resulta do disposto no artigo 100º. Por fim, dispõe o artigo 6º da Lei 14/2006, de 26 de Abril, que «a presente lei aplica-se apenas às acções e aos requerimentos de injunção instaurados ou apresentados depois da sua entrada em vigor» (pelo que, nada dispondo sobre a data desta última, coincidiu a mesma com o quinto dia após a publicação – artigo 2º, n.º 2 da Lei 74/98, de 11 de Novembro -, isto é, a nova redacção dos referidos artigos do CPC entrou em vigor no dia 1 de Maio de 2006). Ora, como se referiu, pretende a Autora exigir nos presentes autos o cumprimento coercivo do contrato de crédito ao consumo que diz ter celebrado com o Réu, ou seja o cumprimento de obrigações pecuniárias. A acção foi proposta em juízo no dia 14 de Agosto de 2006, quando já se encontrava em vigor a actual redacção do artigo 74º, n.º 1, que impunha imperativamente, sem possibilidade de afastamento por vontade das partes, mercê de foro convencional, que a mesma «fosse proposta no tribunal do domicílio do réu», ou seja no Tribunal Judicial de Coimbra, pelo facto do Réu residir na área dessa Comarca. Por outro lado, também não podia a Autora, no caso dos autos, «optar pelo tribunal do lugar em que a obrigação deveria ser cumprida», uma vez que nem o réu é «pessoa colectiva», nem, «situando-se o domicílio do credor na área metropolitana de Lisboa», o réu tem «domicílio na mesma área metropolitana». Não oferece, pois, dúvidas que, tal como se decidiu, será competente para conhecer e julgar a presente acção o Tribunal Cível da Comarca de Coimbra. 5. Discorda o recorrente da interpretação dada à alínea a) do n.º 1 do artigo 110º que, na ferida redacção, estatui: 1 – A incompetência em razão do território deve ser conhecida oficiosamente pelo tribunal, sempre que os autos fornecerem os elementos necessários, nos casos seguintes: a) – Nas causas a que se referem [...] a primeira parte do n.º 1 [...] do artigo 74º [...]. E atribui-lhe a violação de diversos princípios constitucionais. Como questão idêntica foi já decidida pelo Tribunal Constitucional, num outro processo, em que, também aí, a ora recorrente assacava a violação dos mesmos princípios à interpretação dada à referida norma, procuraremos seguir de perto, com a devida vénia, o aludido acórdão(2), procurando demonstrar que, também nesta parte, não assiste razão à recorrente. 5.1. Alega o recorrente, em primeiro lugar, que a norma questionada viola os princípios da adequação, da exigência, da proporcionalidade e da não retroactividade consignados no artigo 18º, n. os 2 e 3 da Constituição. É, contudo manifesto que, nesta parte, não lhe assiste qualquer razão. E, desde logo, pela razão evidente de que aquele preceito constitucional se refere às leis restritivas de direitos, liberdades e garantias, o que, manifestamente, não é o caso da norma que vem questionada. Com efeito, não se vislumbra qual o direito, liberdade e garantia que possa estar a ser restringido pela norma cuja constitucionalidade vem questionada, sendo certo que não pode ser, ao contrário do que o recorrente refere, o «direito das partes contraentes [...] poderem escolher, poderem acordar um foro convencional, em razão do território, para dirimir conflitos emergentes do dito contrato, isto é, do contrato dos autos». Como é óbvio, o direito de as partes convencionarem o foro territorialmente competente para a resolução dos litígios eventualmente resultantes dos contratos que celebrem não é um direito constitucionalmente garantido, não constituindo direito, liberdade e garantia, no sentido do artigo 18º da Constituição, pelo que, no caso, este preceito não é, pura e simplesmente aplicável. Aliás, ainda que se pretendesse fundar a alegada inconstitucionalidade numa eventual violação da exigência de proporcionalidade, como limitação geral ao exercício do poder público, decorrente do princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2º da Constituição, sempre se dirá que tal pretensão também não procederia, pois, além de não estar em causa nenhum direito constitucionalmente garantido, também se não vislumbra que a medida legislativa seja manifestamente inadequada, corresponda a opção manifestamente errada do legislador ou tenha carácter manifestamente excessivo ou inconvenientes manifestamente desproporcionados em relação às vantagens que apresenta. 5.2. Alega ainda o recorrente que a norma que vem questionada, na parte em que seja aplicável a contratos celebrados antes da entrada em vigor da referida Lei n.º 14/2006, é inconstitucional, por se traduzir numa situação de retroactividade violadora dos princípios da segurança jurídica e da confiança, decorrente do princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2º da Constituição. Como o Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado, o princípio da não retroactividade da lei encontra-se consagrado na Constituição, de modo expresso, unicamente para a matéria penal (desde que a lei nova não seja mais favorável para o arguido) – n. os 1 e 4 do artigo 29º -, para as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias – n.º 3 do artigo 18º - e para o pagamento de impostos – artigo 103º, n.º 3 -, podendo, consequentemente, dizer-se que a Constituição não consagra um princípio geral de proibição de emissão de leis retroactivas. O Tribunal vem, porém, igualmente afirmando, [...] que o princípio do Estado de direito democrático postula «uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas», razão pela qual «a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do Estado de direito democrático, terá de ser entendida como não consentida pela lei básica». Mas, sendo assim, o Tribunal tem, contudo, tido sempre o cuidado de esclarecer que o que se acaba de dizer não conduz a que seja absolutamente vedada ao legislador a emissão de normas retroactivas. Em cada caso, haverá que «proceder a um justo balanceamento entre a protecção das expectativas dos cidadãos decorrentes do princípio do Estado de direito democrático e a liberdade constitutiva e conformadora do legislador, também ele democraticamente legitimado, legislador, ao qual, inequivocamente, há que reconhecer a legitimidade (senão mesmo o dever) de tentar adequar as soluções jurídicas às realidades existentes, consagrando as soluções mais acertadas e razoáveis, ainda que elas impliquem que sejam “tocadas” relações ou situações que, até então, eram regidas de outra sorte. Um tal equilíbrio será postergado nos casos em que, ocorrendo mudança de regulação pela lei nova, esta vai implicar, nas relações e situações jurídicas já antecedentemente constituídas, uma alteração inadmissível, intolerável, arbitrária, demasiado onerosa e inconsistente, alteração com a qual os cidadãos e a comunidade não poderiam contar, expectantes que estavam, razoável e fundadamente, na manutenção do ordenamento jurídico, que regia a constituição daquelas relações e situações. Em tais casos, a lei viola aquele mínimo de certeza e segurança que as pessoas devem poder depositar na ordem jurídica de um Estado de direito democrático, impondo-se, então, a intervenção do princípio da protecção da confiança e segurança jurídica que está implicado pelo princípio do Estado de direito democrático, por forma a que a nova lei não vá, de forma acentuadamente arbitrária ou intolerável, desrespeitar os mínimos de certeza e segurança, que todos têm de respeitar». No caso em apreço, porém, tal não se verifica. 5.2.1. Em primeiro lugar, porque qualquer expectativa que as partes possam ter no momento da celebração de um contrato relativamente à intangibilidade de uma cláusula de escolha do foro territorialmente competente para julgar eventuais litígios emergentes do mesmo é sempre, no mínimo e por natureza, limitada. E isto porque uma tal cláusula sempre estará condicionada pela eventualidade de uma reorganização judiciária, a que o legislador decida proceder, e que, no limite, pode mesmo fazer desaparecer o tribunal que as partes convencionaram como territorialmente competente. Por outro lado, há que ter em conta que a cláusula de convenção de foro é uma cláusula que não respeita ao sinalagma do contrato, tendo antes a ver com a patologia deste e com a fixação de um pressuposto processual da competência territorial dos tribunais. Competência esta que também possui normas que estão subtraídas, de todo, à possibilidade de convenção. Ora o facto é que, sempre se entendeu que, em matéria processual, as expectativas das partes ou não merecem, de todo, a tutela da confiança ou só em termos mitigados dela podem beneficiar. Além disso, no caso concreto, a acção foi proposta já após a entrada em vigor da nova lei, sendo certo que a competência dos tribunais se fixa de acordo com a lei em vigor à data da respectiva propositura. Não pode, assim, afirmar-se que, no momento da celebração do contrato, o recorrente gozasse de uma forte expectativa jurídica, legitimamente fundada, de que mesmo no regime jurídico vigente antes da Lei 14/2006, de 26 de Abril, qualquer litígio resultante do mesmo viria a ser julgado pelo tribunal convencionado. Com efeito, embora existir a expectativa de que um eventual litígio decorrente do contrato celebrado viesse a ser julgado pelo foro convencionado, essa expectativa sempre seria «enfraquecida» ou «menos consistente», pela possibilidade, razoável, de uma interpretação do quadro normativo anterior à entrada em vigor da citada Lei n.º 14/2006 que conduzisse já, por outra via, à invalidade da referida cláusula. Acresce, finalmente, que, no caso concreto, no que se refere às acções destinadas à cobrança de dívidas resultantes da celebração de contratos de crédito ao consumo, a solução normativa editada pelo legislador, mesmo na interpretação que agora vem questionada -, no sentido da aplicação, a contratos já existentes, da regra da impossibilidade de alteração, por convenção das partes, das normas sobre a competência territorial, por força do disposto na nova alínea a) do n.º 1 do artigo 110º, que, passando a determinar o conhecimento oficioso da incompetência em razão do território nas causas a que se refere a primeira parte do n.º 1 do artigo 74º, inviabiliza o funcionamento da estipulação efectuada ao abrigo do artigo 100º, n.º 1, todos do CPC –, também não é arbitrária, podendo justificar-se à luz do objectivo constitucional de protecção dos interesses dos consumidores, enunciado no artigo 60º da Constituição”. Na verdade, visando, além do mais, a protecção dos interesses dos consumidores, teve a sua génese a proposta de Lei n.º 47/X, subjacente à Lei 14/2006, de 26 de Abril. Com efeito, segundo o Plano de Descongestionamento dos Tribunais, constatou-se que os grandes litigantes promovem frequentemente acções nos tribunais onde lhes é mais conveniente e barato litigar. A litigância de massa concentra-se sempre nos mesmos locais, congestionando, por isso, os respectivos tribunais. Os consumidores são frequentemente obrigados a grandes deslocações para poderem contestar essas acções. Para o evitar, o autor passa a ter de propor a acção no tribunal do domicílio do réu, excepto quando ambas as partes tenham domicílio nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, evitando-se, deste modo, a concentração da litigância de massas e promove-se a proximidade entre o cidadão e a Justiça. Logo, a Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, procurou assim, e antes de mais, proteger o consumidor perante os grandes litigantes (v. g. Bancos e Sociedades Financeiras), aproximando o centro da decisão da lide da residência daquele. E evitam-se-lhe, deste modo, despesas acrescidas, nomeadamente, com deslocações, própria, do seu mandatário, das testemunhas; e reconhece-se, simultaneamente, que o poder económico da contraparte e a sofisticação da sua estrutura operativa suportam melhor os incómodos e as despesas de uma acção judicial proposta em foro distinto do foro da respectiva sede. Mas a Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, procurou ainda mitigar os efeitos nefastos da litigância de massa, descongestionando os tribunais onde essas sociedades credoras têm a sua sede e pulverizando-a tendencialmente por todo o território nacional. Procurou, assim, obter uma concordância prática entre, por um lado, a protecção dos interesses económicos e a segurança dos consumidores (artigo 60º, n.º 1 da Constituição); e, por outro, os direitos à iniciativa privada e de acesso ao direito (artigos 61º, n.º 1 e 20º, ambos da Constituição). Ponderando o regime deste modo instituído pela Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, verifica-se que é apto a realizar os objectivos que presidiram à sua criação (princípio da adequação). Constitui o meio menos restritivo que precisa de ser utilizado para alcançar os fins em vista (princípio da exigibilidade). Não impõe uma restrição desproporcionada no direito do credor em obter tutela judicial para o seu crédito, em ter acesso aos tribunais (princípio da proporcionalidade), não afectando o direito a que uma causa seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo. Não afecta expectativas do credor de tal modo consistentes que tenham de prevalecer sobre os interesses públicos que ditaram o regime em causa (princípios da segurança e confiança). Nesse caso, a expectativa da Autora na continuação do quadro jurídico (regras de competência territorial) não implicou qualquer investimento baseado numa determinada previsão, muito pelo contrário. Não afecta de forma intolerável, inadmissível e arbitrária a expectativa da manutenção do quadro legislativo da competência territorial e convencional. O regime ora instituído pela Lei 14/2006, de 26 de Abril, vem mesmo inserir-se, e de forma natural, na evolução do sistema legislativo que, sobretudo desde o Decreto – Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, vem sucessivamente reforçando a protecção do consumidor. Concluindo: A aplicação da actual redacção do artigo 110º, n.º 1, alínea a) do CPC (introduzida pela Lei 14/2006) a contratos celebrados anteriormente à sua publicação e entrada em vigor, em que as respectivas partes tenham estabelecido um foro convencional em razão do território, nos termos do artigo 100º do CPC, (como sucede com o caso dos autos), não é inconstitucional. 6. A incompetência em razão do território deve ser conhecida oficiosamente pelo tribunal, sempre que os autos forneçam os elementos necessários (...) nas causas a que se referem (...) a primeira parte do n.º 1 do artigo 74º (cfr. artigo 110º, n.º 1, alínea a). O juiz deve suscitar e decidir a questão da incompetência até ao despacho saneador, podendo a decisão ser incluída neste sempre que o tribunal se julgue competente; não havendo lugar a saneador, pode a questão ser suscitada até à prolação do primeiro despacho subsequente ao termo dos articulados (cfr. artigo 110º, n.º 3). E, uma vez julgada verificada, determinará a remessa do processo para o tribunal competente, como é regra nos casos de incompetência relativa (artigos 111º, n.º 3 e 108º, ambos do CPC). Donde, sendo o Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, incompetente, em razão do território, para conhecer dos autos, o Exc. mo Juiz declarou, e muito bem, a aludida incompetência deste Tribunal e ordenou a sua remessa ao Tribunal da Comarca de Coimbra, competente para o efeito. 7. Pelo exposto, negando provimento ao agravo, confirma-se a decisão recorrida. Custas pelo agravante. Lisboa, 15 de Março de 2007. Granja da Fonseca Pereira Rodrigues Fernanda Isabel Pereira ________________________________ DECLARACÃO DE VOTO Concederia provimento ao agravo, por entender que, no essencial e no que respeita à não aplicação retroactiva da lei, ao recorrente assiste razão. Na cláusula ... do contrato de mútuo dos autos, convencionou-se que "para todas as questões emergentes do presente contrato estipula-se como competente o foro da Comarca de Lisboa com expressa renúncia a qualquer outro". Tendo o Tribunal da Comarca de Lisboa sido expressamente escolhido pelas partes, seria, em princípio, o competente para apreciar e decidir a presente acção. A menos que a referida cláusula do contrato em questão não fosse de considerar válida, o que nem sequer é posto em causa. Com efeito, o artigo 100° do Código de Processo Civil, facultava afastar, por convenção expressa, que satisfizesse os requisitos de forma do contrato, a aplicação das regras em razão do território (salvas algumas excepções a que se refere o n.o 1 do art. 1100). Daí que estando fixado por convenção o tribunal ao qual a causa devia ser afecta e observados que se mostrassem os requisitos aludidos no preceito citado, só aquele tribunal seria o competente para a respectiva acção. Porém, a Lei 14/2006, de 26 de Abril veio afastar a possibilidade de se convencionar o foro das acções destinadas a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de cumprimento nos casos em que o réu não seja uma pessoa colectiva ou quando, situando-se o domicílio do credor na área metropolitana de Lisboa ou do Porto, o réu não tenha domicílio na mesma área metropolitana. Ora, muito embora as normas processuais, por princípio, sejam de aplicação imediata, na medida em que o direito processual enquanto ramo do direito público se realiza através de normas de interesse e de ordem pública, o certo é também que esse seu carácter tem de ser conjugado com outros princípios de igual dignidade e tutela jurídica. Assim, nos termos do 120/1, do Código Civil, a lei, por regra, só dispõe para o futuro, mas se lhe for atribuída eficácia retroactiva, presume-se, em todo o caso, que ficam salvaguardados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular. Também de acordo com o artigo 18.0/3 da Constituição da República "as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais". Como se vê, o princípio do efeito irretroactivo da lei é um princípio com assento na lei fundamental, pelo que não pode deixar de prevalecer sobre quaisquer normas da lei ordinária que o coloquem em causa. A alteração introduzida pela Lei 14/2006, de 26 de Abril, que é uma lei restritiva de direitos em relação à anterior, teve um objectivo claro que foi o de obstar a que as grandes empresas, normalmente sedeadas em Lisboa ou no Porto, através de uma norma convencionada em sede contratual, acordassem que para conhecimento de qualquer questão emergente dos contratos, o foro competente fosse sempre o foro de uma dessas comarcas, fazendo para elas convergir todas as acções, quando muitas delas, senão a maioria, se poderiam dispensar pelas restantes comarcas do país. Contra este interesse das grandes empresas de poderem concentrar numa ou duas comarcas a resolução dos litígios onde eram parte, veio o Estado contrapor o seu desiderato de desanuviar esta concentração de processos das grandes metrópoles, fazendo diminuir as pendências nelas verificadas e tirar melhor partido dos meios existentes e dispersos pelo território nacional, a fim de obter melhores resultados na administração da justiça. Porém, não parece que tenha sido intenção do legislador fazer aplicar retroactivamente a lei, de modo a não respeitar situações jurídicas já constituídas, situações como a verificada no caso dos autos com a estipulação do foro da comarca de Lisboa para conhecer de qualquer litígio relativo ao contrato de mútuo em referência, cuja estipulação foi válida e se constituiu antes da entrada em vigor da nova lei. De contrário, a lei até o diria expressamente. Mas, convenhamos, que nem seria consentâneo com os princípios aludidos que o fizesse. É o respeito pela lex contractus que o aconselha. Como anota J. Baptista Machado, a lei nova sobre o regime dos contratos não se aplica aos contratos anteriores, já que "é a lei de origem ou lex contractus que regula todos os efeitos dos contratos: quer os efeitos directos, quer os chamados efeitos indirectos. Assim, p. ex., não se aplica aos contratos de mútuo anterior a LN que vem reduzir o máximo legal da taxa de juros compensatórios, como já dissemos. Conforme também já dissemos, é segundo a lei do tempo do contrato que deverá apreciar-se o grau de diligência a que o devedor está adstrito ou as causas modificativas da sua responsabilidade. 0 mesmo se diga, p. ex., relativamente ao lugar do cumprimento da obrigação e à solidariedade entre os condevedores. Por outro lado, é também a lei do tempo do contrato que se aplica aos efeitos do inadimplemento ou do adimplemento"1. E nesta linha de argumentação, pode acrescentar-se que a lei aplicável ao tempo da celebração de contrato que facultava a estipulação de determinado foro para dirimir qualquer litígio dele emergente, estipulação na realidade firmada com a celebração do mesmo contrato, será a mesma lei que determinará o tribunal territorialmente competente para conhecer da acção, ainda que esta tenha sido já intentada na vigência da lei nova, que, ao contrário da anterior, não permita a escolha do foro para a acção. Note-se que dentro da economia do contrato de mútuo a estipulação do foro competente pode ter sido relevante no assumir das obrigações de cada uma das partes. Designadamente não seria insignificante para a financiadora do crédito que para a resolução de um qualquer litígio decorrente do contrato este viesse a ser dirimido, indiferentemente, na comarca de Lisboa ou em qualquer distanciada comarca do país. Por isso, faz todo o sentido que uma cláusula contratual, válida, a estabelecer o tribunal competente para a acção seja respeitada pelo próprio legislador, como se entende que no caso aconteceu. O que o legislador pretendeu com a lei nova foi, certamente, estabelecer que as partes de futuro não pudessem convencionar sobre a atribuição da competência a um determinado tribunal desde que tal contrarie o estatuído na mesma lei, mas não colocar em causa as situações jurídicas já definidas anteriormente ao abrigo da lei antiga. Vigorando no nosso ordenamento jurídico o princípio da irretroactividade da lei, o alcance da nova lei (Lei 14/2006) foi apenas o de retirar aos sujeitos jurídicos a possibilidade de celebrarem pactos de aforamento, e não que os pactos anteriormente celebrados deixariam de ser válidos, pois que isso atentaria claramente contra a segurança jurídica que subjaz ao referido princípio da irretroactividade da lei, e consubstanciaria que estaríamos perante, não uma aplicação imediata da lei, mas uma aplicação retroactiva da mesma, o que não se aceita nem concebe. Dentro deste entendimento se tem de concluir que a lei nova não é aplicável para aferir do tribunal competente territorialmente para conhecer da presente acção, sendo antes de aplicar a lei antiga que facultava às partes estipular o foro de Lisboa como o competente para a acção. Pensamos que a divergência de entendimentos sobre a matéria em apreço radica na diferença de concepção sobre a natureza jurídica da cláusula contratual pela qual foi estipulado o foro competente, que para a tese adversa à que aqui se defende parece ser de natureza adjectiva, enquanto que aqui se opina que tal cláusula, enquanto contratual, é de natureza substantiva, inerente a interesses meramente privados das partes contratantes e em oposição aos interesses de ordem pública das normas processuais. Estes, em síntese, os motivos pelos quais concederia provimento ao agravo. ____________________________________ 1 Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2ª edição, 47. 2 Tribunal Constitucional, Acórdão n.º 691/2006, Processo 937/2006, in Diário da República, 2ª série, de 31 de Janeiro de 2007. |