Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9264/2006-6
Relator: MARIA MANUELA GOMES
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
CASO JULGADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/31/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: REVISÃO DE SANTENÇA ESTRANGEIRA
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: I - Se foi instaurada uma acção em tribunais portugueses antes da propositura da acção no tribunal de origem, idêntica quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, a sentença estrangeira não pode ser reconhecida.
II - A existência de caso julgado formado anteriormente na ordem jurídica portuguesa constitui fundamento de impugnação do pedido de confirmação e o disposto na al. d) do artigo 1096º do mesmo código, segundo o qual não obsta ao reconhecimento a existência de um caso julgado português quando o tribunal estrangeiro foi o primeiro a ser demandado, situação que se verifica no caso em análise.
III - O nosso direito adopta a mesma solução que foi consagrada para a litispendência pela Convenção da Haia de 1971. A litispendência não impede o reconhecimento, se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição (se a acção foi proposta primeiramente no tribunal estrangeiro).
IV - A mesma doutrina vale para o caso julgado: a excepção do caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal português (se procedente) não obsta ao reconhecimento, se a jurisdição foi prevenida pelo tribunal estrangeiro.
V - A impugnação do pedido de execução será julgada procedente quando se mostre (al. g do art. 771º, aplicável por força do nº 1 do art. 1100º) que a decisão revidenda é contrária a outra que constitua caso julgado para as partes, formado anteriormente. A hipótese é a do conflito entre duas decisões, das quais uma é portuguesa. O caso julgado português prevalecerá, se for anterior ao estrangeiro”.
VI – Tendo sido intentada acção de divórcio em primeiro lugar num tribunal suíço, que proferiu sentença em 6 de Fevereiro de 1969, da qual não foi interposto recurso, não pode aquela sentença do tribunal de origem deixar de reconhecer-se, apesar de, posteriormente, ter sido instaurada uma acção em tribunal português que, por sentença de 4 de Abril de 1978, transitada em 14 de Abril do mesmo ano, decretou, igualmente o divórcio.
FG
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa
1. M, residente na Suiça, intentou acção de revisão de sentença estrangeira, com processo especial, contra V, residente em Lisboa, pedindo a revisão e confirmação de sentença de 6.02.1969, proferida pelo Tribunal de Comarca de L, da Suiça, que decretou o divórcio entre ambos.
Para tal alegou, em síntese, que casou com o requerido, no dia 17.01.1958, em L, na Suiça, casamento esse que foi dissolvido pela sentença atrás referida, transitada em julgado no dia 7.03.1969.
Citado, o requerido veio contestar.
Invocou que a sentença revidenda não estava integralmente documentada, já que não continha a parte atinente à sua fundamentação e que, na data em que a mesma transitou em julgado – em Março de 1969 - não teria sido possível à requerente obter a sua confirmação em Portugal, razão pela qual o requerido não recorreu dela; o Tribunal de L era, então, internacionalmente incompetente segundo a lei portuguesa para decretar o divórcio do casal, porque a requerente tinha adquirido a nacionalidade portuguesa por virtude do casamento e, na data da propositura da acção ainda residia ainda em Portugal; o direito português não admitia a partilha como foi feita, nem, no que toca à fixação de alimentos entre ex-cônjuges atendeu aos limites nacionais dos rendimentos do prestador e condenou-o numa indemnização sem se ter sequer apurado a ilicitude ou a culpa.
Alegou ainda a existência de caso julgado na medida em que, antes da revisão da sentença de divórcio do tribunal suíço, o casamento entre as partes veio a ser dissolvido por sentença do Tribunal de Família de Lisboa, proferida no dia 4.04.1978 e transitada em julgado no dia 12 do mesmo mês e ano e também foram definitivamente resolvidas, para além de outras, a questão dos alimentos devidos pelo requerido, quer à requerente, quer aos filho no âmbito de um outro processo que correu termos no então denominado Tribunal Tutelar de Menores de Lisboa.
A requerente respondeu à matéria das excepções invocadas, invocando basicamente que o Tribunal de L era internacionalmente competente e que o requerido se conformou com decidido pelo Tribunal de L, tanto que não recorreu.

Em sede de alegações, requerente e requerido mantiveram as posições já assumidas nos autos e o Ministério Público, a final, pronunciou-se no sentido de não ser atendida a pretensão da requerente, com o fundamento de que “parecem existir obstáculos legais à confirmação e revisão pretendidas da decisão”.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2. Para a decisão da presente acção importa realçar a seguinte factualidade provada:
a) M e V casaram um com o outro, no dia 17 de Janeiro de 1958, em L, Basileia, Suiça;
b) Esse casamento foi transcrito na Conservatória dos Registos Centrais no dia 7.08.1958.
c) Por sentença de 6.02.1969, proferida pelo Tribunal de Comarca de L, num processo intentado pela ora requerente contra o aqui também requerido foi decretada a dissolução do casamento daqueles, por divórcio.
d) Através dessa mesma sentença foi regulado o exercício do poder paternal do filho do casal (então ainda menor) e foi fixado que o requerido pagaria mensalmente à requerente, a título de alimentos para ela a quantia de Fr. 600, deveria entregar-lhe os objectos propriedade pessoal dela, que enunciou, e metade dos bens comuns e ainda condenou aquele a pagar à requerente uma indemnização no valor global de Fr. 6 354,30.
e) A sentença acima referida, que não foi objecto de recurso, transitou em julgado no dia 7.03.1969.
f) Em processo que correu termos no 2º Juízo do Tribunal de Família de Lisboa, por sentença de 4.04.1978, foi o casamento das partes - referido em a) e b) – dissolvido por divórcio;
g) Esta sentença transitou em julgado no dia 14.04.1978.
h) A dissolução do casamento decretada em Portugal foi levada ao registo no dia 2.02.1983.

3. De harmonia com o disposto no nº 1 do artigo 1100º do Código de Processo Civil, o pedido de revisão só pode ser impugnado com fundamento na falta de algum dos pressupostos enunciados no artigo 1096º do mesmo diploma, que são de conhecimento oficioso à luz do estatuído no artigo 1101º do CPC, ou por se verificar algum dos casos de revisão especificados nas alíneas a), c) e f) do artigo 771º também do Código de Processo Civil.
Não se suscitam dúvidas sobre que a sentença revidenda transitou em julgado; do processo não consta qualquer elemento donde se infira que provenha de Tribunal cuja competência tenha sido provocada em fraude à lei, sendo certo que não versa sobre matéria exclusiva competência dos tribunais portugueses. Não consta que não tenham sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes.

            Ao contestar, porém, o requerido invocou, essencialmente, não só que a sentença revidenda não podia ser revista por não ter sido apresentado o texto integral daquela, bem como a existência de caso julgado na medida em que, antes revisão da sentença de divórcio proferida pelo tribunal suíço, o casamento entre as partes veio a ser dissolvido, em Portugal, por sentença do Tribunal de Família de Lisboa, proferida no dia 4.04.1978 e transitada em julgado no dia 12 do mesmo mês e ano.
            3.1. A resolução da primeira questão suscitada passa por saber se, face ao nosso ordenamento jurídico, o processo de revisão de sentenças estrangeiras envolve uma revisão de mérito -  em que se tem de conhecer do fundo ou mérito da causa -  ou se, pelo contrário, aquela se basta com uma revisão formal – na qual o tribunal e limita a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma ou determinadas condições de regularidade.
            Como bem se deixou dito no acórdão deste Tribunal de 14.11.2006 (proc. nº 3329/20006), disponível em www.dgsi.pt/jtrl, “…entre nós está instituído, desde há muito – desde o CPC de 1876 – o sistema da revisão meramente formal, embora com alguns desvios, sistema que de modo algum foi posto em causa, antes saiu reforçado, com as alterações introduzidas pela revisão do C. P. Civil operada em 1995/1996.
            “Essas alterações, no que ao art. 1096º respeita, repercutiram-se, nomeadamente, na redacção das suas alíneas c) e), f) e na eliminação da sua alínea g), cujo regime passou a constar, com alterações, do nº 2 do art. 1100º.
            “No que toca à alínea f), a sua nova redacção passou a estar em consonância com a terminologia usada no art. 22º do Código Civil, além de que a referência expressa, agora feita no preceito, à “decisão” “(…) vai no sentido de se dever tão somente tomar em linha de conta a decisão contida na sentença estrangeira e não os respectivos fundamentos, como era geralmente entendido na vigência da versão do anterior preceito, não só por tal ser mais compatível com o nosso sistema de controle das sentenças estrangeiras, que é fundamentalmente de revisão formal, mas também porque o ter-se acrescentado o advérbio manifestamente tem por fito, como já se viu, limitar a intervenção da reserva de ordem pública internacional aos casos que assumem um grau particularmente grave de desconformidade do resultado concreto a que se chega com os valores fundamentais da ordem jurídica do foro.
            “Já Alberto dos Reis, referindo-se a versão anterior do preceito, entendia que o que se exige “é que a sentença não contenha decisões contrárias aos princípios de ordem pública portuguesa. Há que atender, portanto, à decisão em si, à situação que a decisão cria e estabelece, e não aos fundamentos em que assenta.
            E continua: “Também no tocante à alínea a) do mesmo preceito – cuja redacção não foi tocada pela dita reforma – e ao sentido a atribuir à expressão “decisão” que nela é usada e a respeito da qual se exige que possua a característica da inteligência ou inteligibilidade, sempre se entendeu que estava em causa tão só o dispositivo da sentença, ou seja, aquilo que o tribunal estrangeiro decidiu e já não “a coerência lógica entre as premissas e a conclusão” (Ferrer Correia, Lições de Direito Internacional Privado, I, pág. 464) “pois isso já seria, de certo modo, proceder a uma revisão de mérito, a qual tem carácter excepcional entre nós”./António Marques dos Santos, Aspectos do Novo Processo Civil, Lex, 1997, pag.110)”
            Pode, pois, concluir-se que o legislador ao aludir a “decisão”, está a reportar-se à parte dispositiva da sentença, à parte onde se contém o comando nela emitido.
            Daí que nada obste, a que no caso em análise – em que não há dúvidas sobre a autenticidade do documento de onde consta a decisão a rever que é perfeitamente autêntica e inteligível, visto ser claro que no processo de onde foi extraída a certidão em causa foi, para além do mais, dissolvido, por divórcio, o casamento celebrado entre as partes - se tenham como verificadas, as exigências ínsitas nas alíneas a) e f) do art. 1096º do CPC, já que, por outro lado, o reconhecimento de tal comando decisório, em si mesmo considerado, não conduz a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.
            Carece, por isso, nesta parte, o requerido de razão, mesmo no que toca aos limites da pensão de alimentos e à indemnização fixada, aspectos que respeitam ao mérito da causa.
           
            3.2. Para além disso, invocou o requerido a existência de caso julgado na medida em que, antes da revisão da sentença de divórcio proferida pelo tribunal suíço, o casamento entre as partes veio a ser dissolvido, em Portugal, por sentença do Tribunal de Família de Lisboa, proferida no dia 4.04.1978 e transitada em julgado no dia 12 do mesmo mês e ano.
            Nos termos do já citado art. 1096º, al. d) do CPC, para que a sentença seja confirmada é necessário “Que não possa invocar-se a excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal português, excepto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição”.
            Daí que a generalidade dos autores afirme que a unidade e coerência do sistema jurídico tornam imperioso que se evite o surgimento de dois casos julgados contraditórios na ordem jurídica portuguesa.
            E assim concluem: “Se foi instaurada uma acção em tribunais portugueses antes da propositura da acção no tribunal de origem, idêntica quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, a sentença estrangeira não pode ser reconhecida” (Luís Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado, III, pág. 365).
            Mas quid iuris quando, não obstante a existência de uma sentença estrangeira, definitiva, sobre matéria idêntica quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, antes desta ser revista e confirmada, vier a ser proferida em território nacional decisão sobre a mesma questão, transitada e julgado?
Como salienta o autor citado (obra referida, pág. 366) existe uma contradição insanável entre a previsão contida no artigo 771º al. g) (correspondente depois à al. f) por força das alterações introduzidas ao CPC pelo DL nº 38/2003, de 8 de Março e ainda aplicável ao caso)[1] conjugada com o artigo 1100º nº 1 ambos do Código de Processo Civil, da qual resulta que a existência de caso julgado formado anteriormente na ordem jurídica portuguesa constitui fundamento de impugnação do pedido de confirmação e o disposto na al. d) do artigo 1096º do mesmo código, segundo o qual não obsta ao reconhecimento a existência de um caso julgado português quando o tribunal estrangeiro foi o primeiro a ser demandado, situação que se verifica no caso em análise.
Seguindo Alberto dos Reis e, mais recentemente, Teixeira de Sousa, citados por aquele autor, consideramos que, no quadro legal ainda aplicável ao caso, deve prevalecer o disposto na al. d) do citado artigo 1096º e que deve, por conseguinte, conceder-se revisão e confirmação à sentença proferida por um tribunal estrangeiro se demandado antes do tribunal português, apesar do caso julgado que se possa ter formado relativamente à decisão deste.
Também Ferrer Correia, (Lições de Direito Internacional Privado I, 4ª Reimpressão da edição de Outubro/2000, pág. 481) escreveu: “ O nosso direito adopta a mesma solução que foi consagrada para a litispendência pela Convenção da Haia de 1971. A litispendência não impede o reconhecimento, se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição (se a acção foi proposta primeiramente no tribunal estrangeiro). A mesma doutrina vale para o caso julgado: a excepção do caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal português (se procedente, como é óbvio) não obsta ao reconhecimento, se a jurisdição foi prevenida pelo tribunal estrangeiro. No entanto, a excepção de caso julgado em Portugal aparece de novo no capítulo dos fundamentos da oposição ao pedido, e aparece nos termos seguintes: a impugnação do pedido de execução será julgada procedente quando se mostre (al. g do art. 771º, aplicável por força do nº 1 do art. 1100º) que a decisão revidenda é contrária a outra que constitua caso julgado para as partes, formado anteriormente. A hipótese é a do conflito entre duas decisões, das quais uma é portuguesa. O caso julgado português prevalecerá, se for anterior ao estrangeiro”.[2]

Logo, tendo sido, no caso em apreciação, intentada a acção de divórcio em primeiro lugar num tribunal suíço, que proferiu sentença em 6 de Fevereiro de 1969, da qual não foi interposto recurso, não pode aquela sentença do tribunal de origem deixar de reconhecer-se, apesar de, posteriormente, ter sido instaurada uma acção em tribunal português que, por sentença de 4 de Abril de 1978, transitada em 14 de Abril do mesmo ano, decretou, igualmente o divórcio.
Neste sentido decidiu já aliás este Tribunal, por acórdão de 9.02.2006, proc. nº 6467/2003, subscrito pelos ora relatora e 1º adjunto.

            Não ocorre qualquer dos outros fundamentos de revisão a que alude o artigo 771º do Código de Processo Civil.
            Verificam-se, pois, os pressupostos legais de revisão e de confirmação da sentença em análise e, consequentemente, a acção deve proceder quanto a esse pedido.
           
Decisão.
4. Termos em que se acorda em julgar procedente a pretensão de revisão da mencionada sentença de 6.02.1969, proferida pelo Tribunal de Comarca de L, que, para além do mais, decretou o divórcio entre a requerente e o requerido.
            Custas pelo requerido.
           
           Lisboa, 31 de Janeiro de 2008.          
                                  (Maria Manuela B. Santos G. Gomes)
                                           (Olindo dos Santos Geraldes)
                                                    ( Fátima Galante )
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[1] Contradição que desapareceu face à nova redacção dada ao art. 771º do CPC, pelo DL nº 303/2007, de 24 de Agosto, ainda não aplicável ao caso
[2] E acrescenta, ponho a tónica na data do trânsito em julgado das decisões, todavia sem real apoio na letra da lei: “Aqui, contrariamente ao que se passa no quadro da al. d) do art. 1096º, a prevenção da jurisdição não desempenha qualquer papel; o que decide é o momento do trânsito em julgado das decisões”