Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4191/15.8T8LSB.L1-6
Relator: TERESA PARDAL
Descritores: ARRESTO
PERDA DE GARANTIA PATRIMONIAL
BANCO DE TRANSIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/09/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: - Numa providência cautelar de arresto em que as requerentes invocam um direito de crédito de que era devedora uma instituição de crédito a quem foi aplicada a medida de resolução prevista nos artigos 145º-A e seguintes do DL 298/92 de 31/12, tal direito de crédito transferiu-se para o banco de transição criado pela medida de resolução e ora requerido na providência, encontrando-se, assim sumariamente indiciado o direito invocado, uma vez que o mesmo não consta na discriminação dos passivos excluídos pela medida de resolução.
- O processo de alienação do banco de transição criado pela medida de resolução não é fundamento de justo receio de perda de garantia patrimonial, existindo mecanismos legais próprios para protecção do direito invocado pelas requerentes.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:


RELATÓRIO:

1 – A-1,
2 – A-2,
3 – A-3,
4 – A-4,
5 – A-5 e
6 – A-6

intentaram contra N…, SA  a presente providência cautelar de arresto alegando, em síntese, que fazem parte de um mesmo grupo de sociedades e, no exercício da sua actividade comercial, as 2ª, 3ª, 4ª, 5ª e 6ª requerentes forneceram diversos materiais à sociedade B.., SA, sociedade de direito venezuelano, que pertence ao grupo da sociedade P…Venezuela (P…), tendo celebrado com estas duas sociedades um acordo de pagamento, por força do qual a segunda sociedade se comprometeu a pagar em prestações os valores em dívida às requerentes e, para garantia deste pagamento, ficou estabelecido que o Banco… emitiria cartas de crédito a favor das requerentes, à solicitação de P…, Services BV no valor total das dívidas.

Mais alegaram que em 28/03/2014, após pedido da P…, Services BV, o Banco… emitiu cartas de crédito irrevogáveis a favor de cada uma das 2ª a 6ª requerentes, mas propôs-lhes pagar antecipadamente 100% do seu valor, metade em dinheiro e metade em instrumentos financeiros, devendo estes instrumentos financeiros ser recebidos por outra empresa do grupo com sede na europa, que veio a ser a 1ª requerente, proposta esta que foi aceite, recebendo as 2ª a 6ª requerentes metade em dinheiro e a 1ª requerente a outra metade em instrumentos financeiros, no valor de USD 80 781 000,00, em Abril de 2014, sendo estes consubstanciados em três obrigações da sociedade R…, SA, que lhes foi indicada como uma sociedade sólida.

Contudo, a sociedade R… foi declarada insolvente em Dezembro de 2014, tendo a sentença fixado em 22/01/2014 a cessação dos pagamentos, pelo que, em execução deste acordo de dação em cumprimento, previsto no artigo 837º do CC, o Banco… lhes pagou com títulos que à data não tinham qualquer valor, pretendendo agora as requerentes, ao abrigo do artigo 838º do mesmo código, optar pela prestação primitiva, ou seja, pelo pagamento de USD 80 781 000,00, da qual era devedor o Banco… e actualmente é devedor o ora requerente N…, para o qual foi transferido o direito de crédito das requerentes, por força de deliberação do Banco de Portugal.

Mas, encontrando-se o N… em processo de alienação, não está definido se o comprador ficará ou não onerado com os seus litígios em tribunal, o que pode ter como consequência que receberá o crédito emergente das cartas de crédito, sem ficar com a obrigação de as pagar às requerentes, ignorando-se também a sua capacidade de pagamento. 

Concluíram alegando que têm um direito de crédito sobre o requerido, existindo justo receio de perda de garantia patrimonial e requerendo o arresto sobre o direito de crédito do requerido sobre a P…, Services, BV, sociedade de direito holandês, relativo ao pagamento das prestações vincendas emergentes da emissão das cartas de crédito a favor das requerentes, até ao valor em dívida de USD 80 781 000,00, nos termos que aí define.

Sobre o requerimento inicial recaiu despacho que decidiu nos seguintes termos:

Logo, não estando justificados os créditos alegados a favor das requerentes contra a requerida, ou os demais pressupostos da providência cautelar requerida, tal determina a improcedência manifesta da providência, cfr. artº 590º nº1 do Código de Processo Civil. Pelo exposto, indefiro liminarmente a presente providência”.

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Inconformadas, as requerentes interpuseram recurso deste despacho e alegaram, formulando as seguintes conclusões:

A. A situação de insolvência da R…, conforme as recorrentes configuraram a acção, só releva para demonstrar a ausência de valor dos títulos entregues em cumprimento das cartas de crédito, não define nem o âmbito subjectivo, nem o âmbito objectivo da causa de pedir, nem tem reflexo no pedido formulado – e, por isso, é irrelevante para definir o objecto da acção.

B. Não obstante, o Tribunal a quo dedicou quase toda a sua atenção a apreciar essa matéria, o que torna a sentença nula, por excesso de pronúncia, nos termos previstos na alínea d) in fine do nº1 do artigo 615º do Código de Processo Civil.

C. O Tribunal a quo, em vez de analisar a única subalínea da deliberação de resolução do Banco… relevante para o caso concreto, devidamente indicada na petição inicial, preferiu ponderar subalíneas que, manifestamente, não são aplicáveis ao caso.

D. O Tribunal a quo analisou a alínea a) do nº1 do Anexo 2 da deliberação de resolução, que se refere aos activos do Banco… que são transferidos para o N…, quando é manifesto que no caso concreto está em causa um passivo e não um activo do Banco….

E. Não obstante, o Tribunal a quo insistiu nesse enquadramento, chamando insistentemente à colação o caso do penhor da T…, que não tem qualquer conexão com o caso dos autos, por representar uma posição activa do Banco…/N… – e não passiva, como sucede no caso dos autos.

F. O Tribunal a quo apreciou também o disposto na subalínea ii) da alínea b) do nº1 do Anexo 2, que se refere às obrigações contraídas pelo Banco… perante a entidade do G…, o que não é o caso dos autos, que se refere a obrigações contraídas pelo Banco… perante terceiros, as recorrentes. 

G. O Tribunal a quo apreciou ainda o regime das obrigações emitidas pelo Banco…, que nada releva para o caso concreto, uma vez que não estão em causa este tipo de títulos.

H. Por fim, também a questão da responsabilidade exclusiva dos emitentes pelos títulos de dívida comercializados pelo Banco… é alheia ao processo em causa porque o que as recorrentes pretendem é o pagamento de 100% das cartas de crédito de que são beneficiários e não o pagamento dos instrumentos financeiros que lhes foram entregues em pagamento das mesmas.
 
I. O Tribunal a quo não soube, ou não quis, apreciar o caso que foi submetido à sua decisão, tendo-se focado em normas sem a mínima conexão com os factos, ignorando a única subalínea onde o mesmo se insere, a subalínea vii) da alínea b) do nº1 do Anexo 2 da deliberação de resolução.

J. A operação das recorrentes é uma emissão de cartas de crédito, com acordo de pagamento antecipado de 100%, ocorrida entre Março e Maio de 2014, que não gerou obrigações subordinadas. Toda a operação tem amplo suporte documental, como se verifica através dos documentos juntos com o requerimento inicial.

K. A operação das recorrentes enquadra-se portanto na excepção à excepção prevista na parte final da subalínea vii) da alínea b) do Anexo 2 e, consequentemente, transferiu-se do Banco… para o N….
 
L. Também o princípio da coerência, expresso na deliberação de resolução, impõe reconhecer a transmissão para o N… da obrigação de pagamento antecipado do Banco… às recorrentes. A não ser assim, criar-se-ia uma situação de quebra de sinalagma, bipartindo a relação jurídica criada pelas cartas de créditos, de tal forma que o Banco… teria a parte passiva (débito a favor das recorrentes) e o N… a parte activa (crédito sobre a P…), o que não se pode admitir. 

M. Por decidir em sentido oposto, sem qualquer fundamento inteligível, a sentença recorrida padece de erro grosseiro na aplicação do Direito, porque não soube fazer a devida subsunção dos factos alegados no Direito aplicável, a deliberação do Banco de Portugal. 

N. A sentença recorrida não ponderou nem todos os factos carreados para os autos pelas recorrentes, nem o enquadramento jurídico do processo de venda do N…, revelado à saciedade pelo caderno de encargos, incorrendo por isso em erros crassos de apreciação da matéria de facto.

O. O Tribunal a quo não ponderou que (i) o risco em causa nos autos é a possibilidade, real e objectiva, de alteração da pessoa do devedor das recorrentes aliado ao facto de a sua operação se poder transferir só com lado passivo, que (ii) o caderno de encargos da venda do N… é omisso quanto às situações litigiosas, nem que (iii) o risco alegado reflecte uma convicção do mercado.

P. O risco eminente de perda/diminuição da garantia patrimonial reside, no caso em análise, no facto de o devedor das recorrentes poder deixar de ser o N… para passar a ser o Banco… (insolvente …), já após o crédito sobre a P… ter sido pago, por mera decisão discricionária do Banco de Portugal.

Q. Note-se que o crédito das recorrentes sobre o N… emerge de cartas de crédito, emitida a pedido da P…. Assim, em substância, o N… é um mero intermediário no processo. Porém, se o N… receber o valor da carta de crédito da P… e não tiver de o pagar às recorrentes (por força de uma transmissão da dívida para o Banco…, posterior ao pagamento da P…), a relação jurídica perverte-se, porque o N… se enriquece à custa das recorrentes e do próprio Banco…, que recebe a dívida a pagar às recorrentes, mas não recebe o correlativo crédito sobre a P….

R. Se se concretizar o risco do N… deixar de ser o devedor das recorrentes sem ser decretado o arresto, tal significa que o N… poderá fazer seus os pagamentos recebidos da P…, dilui-los no seu património, de tal forma que, se e quando a dívida das recorrentes se transferir do N… para o Banco…, pode já não subsistir o correlativo crédito sobre a P… que, por força da correlatividade da operação, sempre se transferiria para o Banco…, se não estivesse já pago e diluído no património do N….
S. Atento o exposto, é notório que, não sendo decretado o arresto, a P… pagará ao N… e, concretizando-se o risco de transmissão, o crédito das recorrentes passará para o Banco…, sem o correlativo crédito sobre a P…, o que configura um óbvia diminuição da garantia patrimonial do crédito das recorrentes.

T. O Tribunal a quo não soube compreender ou enquadrar estes factos, decidindo como se o que estivesse em causa fosse o património do N…, quando isso não foi o alegado pelas recorrentes.

U. A transmissão de situações litigiosas é um aspecto fulcral de qualquer processo de alienação, mas, na alienação do N… facilmente se compreenderá que, atenta a impugnação massiva que o seu processo de criação está a sofrer, é um aspecto determinante.

V. É evidente que nenhum comprador vai negociar a operação de aquisição sem discutir a questão da transmissão das situações litigiosas, portanto, a preocupação das requerentes faz eco de regras básicas de experiência comum, válidas para qualquer operação de aquisição de empresas, não podendo haver dúvidas de que o homem médio, colocado na posição das recorrentes, teria a mesma percepção – tanto é assim é que a comunicação social comenta esse facto, como demonstram os documentos juntos aos autos.

W. O risco alegado é, portanto, absolutamente preciso e objectivo e, por isso, à luz de uma prudente avaliação, justifica plenamente o receio de perda ou diminuição da garantia patrimonial.

X. E, se dúvidas houvesse quanto à verificação do justo receio, impunha-se ao Tribunal a quo convidar as recorrentes a aperfeiçoar a sua alegação ou permitir a produção de prova quanto a esta matéria (atenta a mitigação do ónus de alegação no novo Código de Processo Civil) e não indeferir liminarmente o procedimento cautelar.

Y. Nos termos do disposto na alínea b) do nº5 do artigo 145º-H do RGICSF e no ponto 1.4 do caderno de encargos, o Banco de Portugal pode, a qualquer momento (até à venda do N…) alterar o perímetro dos activos, passivos e elementos extrapatrimoniais transmitidos entre o Banco… e o N…. 

Z. O Banco de Portugal é o dominus absoluto do procedimento de venda, podendo alterá-lo livre e discricionariamente, sempre que o considere necessário, cfr o disposto no nº9 do artigo 145º-G do RGICSF e, sobretudo, os nºs 1 e 2 do artigo 145º-I do mesmo diploma, tudo reflectido no ponto 3.4 do caderno de encargos.

AA. É incontornável reconhecer que o Banco de Portugal pode, a qualquer momento, decidir livremente que as situações jurídicas litigiosas sejam transferidas do N… para o Banco… ou até decidir que a venda do N… não abrange situações jurídicas litigiosas, determinando que fiquem no Banco… ou qualquer outra entidade que entenda designar.

BB. Na verdade, como é do conhecimento público, a maioria dos aspectos do processo de venda é secreta, como comprova a menção constante à confidencialidade do processo no caderno de encargos.

CC. Do enquadramento económico e jurídico do caso, não pode afirmar-se, com segurança, que o caderno de encargos (ou qualquer diploma legal) assegure que as situações litigiosas continuarão no N… após a sua venda, muito pelo contrário, o quadro legal demonstra que, facilmente – sem prévio conhecimento público e sem possibilidade de impugnação – o Banco de Portugal pode deliberar a transmissão de quaisquer situações patrimoniais do N… para o Banco….

DD. Ora, é precisamente este perigo de deliberação de transmissão de situações jurídicas (e consequentemente alteração do devedor das recorrentes), já após a extinção da relação de correlatividade criada pela emissão da carta de crédito, que baseia e justifica o risco de perda/diminuição da garantia patrimonial.

EE. Importa sublinhar que a lei exige para o preenchimento do requisito do “justo receio” apenas um perigo de lesão – e não uma certeza de lesão, portanto a situação descrita preenche o conceito legal.

FF. Ao definir os requisitos do arresto, a lei usou, propositadamente, um conceito indeterminado, consequentemente, qualquer tipo de circunstância, desde que objectiva e idónea, pode preencher o conceito de “justo receio”.

GG. Porém, o Tribunal a quo entendeu que, para que fique demonstrada a existência de justo receio da perda/diminuição da garantia patrimonial, é necessário que o requerente demonstre que “(…) o requerido pretende alienar o seu património, ou pretende vender o seu único património”.   
      
HH. Ora, tal interpretação é ilegal, por restringir, sem qualquer fundamento legal ou interpretativo, o âmbito de aplicação do mesmo, o que torna a sentença inválida, por erro na interpretação e aplicação do Direito (artigo 391º do Código de Processo Civil e artigo 619º do Código Civil).

II. Assim, as circunstâncias e factos demonstrados nos autos, aliados ao quadro jurídico aplicável, demonstram cabalmente que, segundo regras de experiência comum, é necessária tutela cautelar, para evitar que, transmitidas as situações litigiosas para o Banco… (ou outra entidade), que o crédito das recorrentes o seja sem o correlativo débito da P…, por o mesmo já estar extinto.

JJ. Por tudo o exposto, não podia o Tribunal a quo ter decidido pelo indeferimento liminar do arresto, impondo-se, portanto revogar a decisão recorrida.

Termos em que, e nos melhores de Direito, deve o presente recurso ser julgado procedente e ser admitido o procedimento cautelar de arresto, seguindo os seus termos até final.

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As questões a decidir são:

I) Nulidade da decisão recorrida.
II) Requisitos da providência cautelar de arresto.
III) Se deverá haver convite ao aperfeiçoamento.

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FACTOS:

Os factos a atender são os que constam no relatório deste acórdão.

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ENQUADRAMENTO JURÍDICO:

I) Nulidade da sentença:
As apelantes invocam a nulidade da decisão recorrida por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615º nº1 d) do CPC, em virtude de aí serem feitas considerações sobre alíneas do nº1 do anexo 2 da deliberação do Banco de Portugal, que as apelantes entendem não ter relevância para a apreciação do objecto do processo.
Contudo, não se verifica a invocada nulidade, verificando-se, sim, apenas, que na decisão recorrida foi adoptada uma fundamentação com a qual as apelantes não concordam, o que constitui uma questão de mérito, a apreciar de seguida. 

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II) Requisitos da providência cautelar de arresto.
Nos termos do artigo 391º nº1 do CPC, “o credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor”.

O primeiro requisito exigido neste artigo é, assim, a existência de um direito de crédito de que sejam titulares as requerentes face ao requerido.

Para o efeito, alegam as requerentes, ora apelantes, que, tendo sido prestados serviços pelas 2ª a 6ª requerentes a uma sociedade e tendo sido celebrado com esta sociedade e com outra do mesmo grupo um acordo de pagamento destes serviços, mediante o qual a segunda procederia ao pagamento do preço em prestações, dando como garantia a emissão de cartas de crédito pelo Banco…, este veio propor efectuar o pagamento antecipado com a entrega às 2ª a 6ª requerentes de metade do valor em dívida em dinheiro e a outra metade à 1ª requerente em instrumentos financeiros, consubstanciados em três obrigações da sociedade R…, que, à data, já estava em situação de insolvência, facto que era do conhecimento do Banco…, mas do qual não foi dado conhecimento às requerentes.

Declarada, entretanto, a insolvência da sociedade R… e face ao consequente desvalor dos instrumentos financeiros que lhes foram dados em pagamento, invocam então as requerentes o seu direito a optar pela prestação primitiva devida pelo Banco…, sendo este direito integrado nos passivos que transitaram para o N…, ora requerido.

Integrando estes factos uma dação em cumprimento celebrada entre as requerentes e o Banco…, através da qual este procedeu ao cumprimento da sua obrigação com uma prestação diferente da acordada (artigo 837º do CC) e constituindo facto notório (artigo 412º nº1 do CPC) que a sociedade R… foi declarada insolvente, poderão os mesmos factos, depois de submetidos a prova, indiciar o vício da prestação dada em cumprimento pelo Banco…, bem como a existência de um direito de crédito das requerentes, fundado no artigo 838º do CC, de optar pela prestação primitiva, ou seja, de reclamar o valor das cartas de crédito correspondentes.

Constitui, igualmente, facto notório que, face ao desequilíbrio financeiro apresentado pelo Banco…, por deliberação de 3 de Agosto de 2014, o Banco de Portugal decidiu aplicar-lhe uma medida de resolução, prevista nos artigos 145º-A e seguintes do DL 298/92 de 31/12 (Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras), determinando a constituição de um banco de transição, nos termos do artigo 145º-G do mesmo diploma, que é o ora requerido N…, para o qual determinou que fossem transferidos os activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão do Banco…, nos termos dos Anexos 2 e 2-A da deliberação.

Esta deliberação veio a ser esclarecida por deliberação de 11 de Agosto de 2014, que clarificou e ajustou o perímetro dos activos, passivos e elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão do Banco… transferidos para o N…, alterando e consolidando a redacção do referido Anexo 2.

O objectivo da medida de resolução aplicada foi o de separar dos activos problemáticos – que permanecem na instituição primitiva para futura liquidação – o restante e essencial da sua actividade, transferindo este para o banco de transição, na tentativa de minimizar o impacto do desequilíbrio financeiro do banco nos clientes, contribuintes e erário público e de fazer recair os respectivos custos nos accionistas e nos credores subordinados, ao não permitir a transferência para o banco novo de obrigações do banco primitivo contraídas perante accionistas, pessoas ou entidades de alguma forma ligadas à instituição ou pessoas responsáveis pela fragilidade da sua situação, impossibilidade esta que era desde logo imposta pelo artigo 145º-H do RGICSF.

O Anexo 2 da deliberação do Banco de Portugal contém, então, no seu nº1, os critérios de transferência dos activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos para o N…, reflectindo a referida imposição do artigo 145º-H relativamente aos passivos mencionados e estabelecendo os seus próprios critérios em relação aos outros passivos e activos.

Face a este quadro, alegam as requerentes que se transferiu para o N… o passivo constituído pelo seu direito de crédito, invocado nos presentes autos, assim considerando terem um direito sobre o requerido.

Não o entendeu a decisão recorrida, que considerou que o direito invocado pelas requerentes não terá transitado para o requerido.

A alínea a) do nº1 do referido Anexo 2 refere-se à transferência dos activos, discriminando, nas subalíneas (i) a (vi) as situações em que não se verifica a transferência.

Mas, como alegam as apelantes, o crédito por si invocado constitui um passivo do banco e, como tal, a respectiva situação tem de ser enquadrada nos critérios da alínea b) do mesmo nº1 do Anexo 2, que se ocupa dos critérios de transferência dos passivos.
            
É a seguinte a redacção da alínea b):
“As responsabilidades do Banco… perante terceiros que constituam passivos ou elementos extrapatrimoniais deste são transferidos na sua totalidade para o N…, com excepção dos seguintes (“Passivos Excluídos”):
(i) Passivos para com (a) os respectivos accionistas, cuja participação seja igual ou superior a 2% do capital social ou por pessoas ou entidades que nos dois anos anteriores à transferência tenham tido participação igual ou superior a 2% do capital social do Banco…, membros dos órgãos de administração ou de fiscalização, revisores oficiais de contas ou pessoas com estatuto semelhante noutras empresas que se encontrem em relação de domínio ou de grupo com a instituição; (b) as pessoas ou entidades que tenham sido accionistas, exercido as funções ou prestado os serviços referidos na alínea anterior nos quatro anos anteriores à criação do N…, e cuja acção ou omissão tenha estado na origem das dificuldades financeiras da instituição de crédito ou tenha contribuído para o agravamento de tal situação; (c) os cônjuges, parentes ou afins em 1º grau ou terceiros que actuem por conta das pessoas ou entidades referidos nas alíneas anteriores; (d) os responsáveis por factos relacionados com a instituição de crédito, ou que deles tenham tirado benefícios, directamente ou por interposta pessoa, e que estejam na origem das dificuldades financeiras ou tenham contribuído, por acção ou omissão no âmbito das suas responsabilidades, para o agravamento de tal situação, no entender do Banco de Portugal;       
(ii) Obrigações contraídas perante entidades que integram o G… e que constituam créditos subordinados nos termos dos artigos 48º e 49º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, com excepção das entidades integradas no Grupo Banco… cujas responsabilidades perante o Banco… foram transferidas para o N…, sem prejuízo, quanto a estas entidades, da exclusão prevista na subalínea (v);
(iii) Obrigações contraídas ou garantias prestadas perante terceiros relativamente a qualquer tipo de responsabilidades de entidades que integram o G…, com excepção das entidades integradas no Grupo Banco… cujas participação sociais tenham sido transferidas para o N…;
(iv) Todas as responsabilidades resultantes da emissão de instrumentos que sejam, ou em algum momento tenham sido, elegíveis para o cômputo dos fundo próprios do Banco… e cujas condições tenham sido aprovadas pelo Banco de Portugal;
(v) Quaisquer responsabilidades ou contingências, nomeadamente as decorrentes de fraude ou da violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contra-ordenacionais.
(vi) Quaisquer responsabilidades ou contingências do Banco… relativas a acções, instrumentos ou contratos de que resultem créditos subordinados perante o Banco…
(vii) Quaisquer obrigações, garantias, responsabilidades ou contingências assumidas na comercialização, intermediação financeira e distribuição de instrumentos de dívida emitidos por entidades que integram o G…, sem prejuízo de eventuais créditos não subordinados resultantes de estipulações contratuais, anteriores a 30 de Junho de 2014, documentalmente comprovadas nos arquivos do Banco…, em termos que permitam o controlo e fiscalização das decisões tomadas”

Ora, da leitura destas subalíneas, não se vê que o direito invocado pelas requerentes integre qualquer um dos passivos excluídos.
Poder-se-ia, eventualmente, levantar a questão relativamente à subalínea (v), tendo em atenção o alegado pelas requerentes, no sentido de que terão sido enganadas pelo Banco… quando este lhes garantiu a solidez da sociedade R… numa altura em que esta já estava em situação de insolvência.

Mas as responsabilidades a que se refere a subalínea (v) parecem respeitar apenas a responsabilidades extracontratuais, penais ou contra-ordenacionais e não, como é o caso invocado nos autos, à responsabilidade contratual.

A situação invocada pelas requerentes terá então de se integrar na subalínea (vii), preenchendo a ressalva da sua última parte e não se incluindo, portanto, nos “passivos excluídos”.

A decisão recorrida defendeu que seria junto do processo de insolvência da R… que as requerentes deveriam reclamar o seu crédito, mas, com a presente providência, as requerentes declaram optar pela prestação primitiva ao abrigo do artigo 838º do CC, renunciando, deste modo, às obrigações da R… e reclamando da instituição o valor das cartas de crédito correspondentes.

O mesmo se dirá das considerações feitas na decisão recorrida sobre a interpretação dada pelo Banco de Portugal relativamente à obrigação dos emitentes das obrigações ou outros títulos de dívida não emitidos pelo Banco…, uma vez que as requerentes não vêm pedir o valor das obrigações da R…, mas sim renunciar a estas, ao reclamar o cumprimento da prestação primitiva do Banco…. 
    
Haverá, portanto, que considerar transferido para o ora requerido o passivo que corresponde ao direito invocado pelas requerentes e assim se mostrando alegados os factos integradores de um direito das requerentes sobre o requerido para os efeitos do primeiro requisito previsto no artigo 391º do CPC, ou seja, para efeitos de admissão liminar, mas, obviamente, sujeito a produção de prova, da qual não poderia ser dispensada a junção da tradução dos documentos juntos pelas requerentes em língua estrangeira.

Resta saber se estão alegados factos suficientes para demonstrar o segundo requisito do artigo 391º, ou seja, o justificado receio de perda da garantia patrimonial do crédito das requerentes.

Conforme tem vindo a ser pacificamente entendido, o justo receio de perda de garantia patrimonial tem de ser um receio baseado em critérios objectivos e não em receios subjectivos do credor, pois só assim será efectivamente um receio “justo” (Lebre de Freitas, CPC anotado, em anotação ao antigo artigo 381º do CPC, a propósito do conceito geral de “fundado receio de lesão” e Alberto dos Reis, CPC anotado, volume II, página 19).

No presente caso, alegam as requerentes que o risco de perda de garantia patrimonial do seu direito reside no facto de o requerido N… estar em processo de venda, não resultando do respectivo caderno de encargos que o comprador ficará onerado com os litígios, correndo-se o risco de, uma vez alienado o ora requerido, este deixar de ser responsável pelo passivo a que corresponde o direito invocado pelas apelantes, apesar de ficar titular do direito de crédito correspondente e que as requerentes pretendem arrestar.

O facto de o N… estar em processo de venda (o que constitui também um facto notório), bem como o conteúdo do caderno de encargos respectivo não é, porém, fundamento para integrar um risco objectivo de perda de garantia patrimonial.

É certo que o artigo 145º-H do DL 298/92, que contém as linhas fundamentais dos critérios para as transferências dos activos e passivos para o banco de transição, estabelece no seu nº5, que após a transferência prevista no nº1, o Banco de Portugal pode, a todo o tempo, transferir outros activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão da instituição de crédito originária para o banco de transição e vice versa.

Mas, desde logo, o facto de não constar no caderno de encargos o destino dos direitos litigiosos, não significa necessariamente que estes não venham a fazer parte do passivo que vai ser vendido, podendo vir integrá-lo ou não e o mesmo acontece com o crédito que as requerentes pretendem arrestar e que constitui a contrapartida das cartas de crédito cujo pagamento reclamam.

Aliás, estabelece o nº13 do referido artigo 145º-H, que “a eventual transferência parcial dos activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão para o banco de transição não deve prejudicar a cessão integral das posições contratuais da instituição de crédito originária, com transmissão das responsabilidades associadas aos elementos do activo transferidos, nomeadamente no caso de contratos de garantia financeira, de operações de titularização ou de outros contratos que contenham cláusulas de compensação ou de novação”, do que resulta que, caso o passivo que é constituído pelo crédito das requerentes não venha a integrar o passivo a alienar, o mesmo acontecerá com o direito de crédito do banco sobre a respectiva contrapartida e que as requerentes pretendem arrestar.  

Por outro lado, faz parte da medida de resolução aplicada ao Banco… que o banco de transição venha a ser alienado, ao abrigo do artigo 145º-I do DL 298/92, estando prevista tal alienação no artigo 3º dos estatutos deste último (Anexo 1 da deliberação do Banco de Portugal).

E a possibilidade de ser alterada a composição dos activos e passivos até à concretização da venda, para além de legalmente prevista no nº5 do artigo 145º-H, é uma contingência que decorre da gestão da situação de desequilíbrio financeiro da instituição e da necessidade de negociação das condições da alienação, nomeadamente do preço a fixar, alienação esta que sempre se soube que iria ocorrer.

Esta contingência e incerteza decorrem naturalmente da excepcional natureza da medida de resolução aplicada e da situação que a gerou e condiciona todos os créditos sobre o N… e não apenas o das requerentes, não podendo considerar-se um objectivo receio de perda de garantia patrimonial, sob pena de se desvirtuar o objectivo da medida de resolução, legalmente prevista, aplicada pelo Banco de Portugal.

Caso o direito das requerentes não viesse a integrar o passivo do banco a alienar, tal direito não se extinguiria e não ficaria desprotegido, existindo mecanismos legais para a sua protecção, pois, sem prejuízo do disposto no acima transcrito nº13 do artigo 145º-H, estabelece o nº3 do artigo 145º-B (cuja epígrafe é “Princípios orientadores da aplicação de medidas de resolução”) que “caso se verifique, no encerramento da liquidação da instituição de crédito objecto da medida de resolução, que os credores dessa instituição cujos créditos não tenham sido transferidos para outra instituição de crédito ou para um banco de transição assumiram um prejuízo superior ao montante estimado, nos termos da avaliação prevista no nº6 do artigo 145-F e no nº4 do artigo 145º-H, que assumiriam caso a instituição tivesse entrado em processo de liquidação em momento imediatamente anterior ao da aplicação da medida de resolução, têm os credores direito a receber essa diferença do Fundo de Resolução”. 
 
Não pode, portanto, a situação particular do N… integrar o segundo requisito do artigo 391º, sem prejuízo da possibilidade de virem a ser intentadas acções principais e da discussão que, nessa sede, possa vir a ter lugar.

Acresce que, no caso particular dos autos, as requerentes não alegam, no seu requerimento inicial, as concretas cláusulas do acordo de pagamento que celebraram com a P…, tendo juntado o documento respectivo, mas não a sua tradução, ficando por esclarecer em que medida é que as sociedades devedoras das requerentes ficam desoneradas, nomeadamente se tal desoneração depende ou não do cumprimento da garantia prestada pelo Banco….

E se é certo que, aparentemente, o Banco… cumpriu a sua obrigação, ao antecipar o pagamento, com a entrega de metade do valor em dívida e a outra metade em obrigações da R… (com esse cumprimento aparentemente desobrigando as sociedades devedoras), a verdade é que são as próprias requerentes que vêm declarar que, face aos vícios da prestação do Banco… (consubstanciados pela situação de insolvência da R…), optam pela prestação primitiva nos termos do artigo 838º do CC, pelo que consideram não estar cumprida a obrigação.

E não tendo sido alegado os concretos contornos e condições do acordo celebrado com as sociedades devedoras, também não foi alegada a situação patrimonial destas sociedades e a possibilidade ou impossibilidade de accionar o seu património para satisfação do crédito que invocam.

Igualmente, não alegam as requerentes, no seu requerimento inicial, qual a posição do requerido relativamente ao crédito que invocam, ou seja, se o crédito é ou não litigioso e se, portanto, tem justificação o seu receio de que o mesmo não seja integrado no passivo para efeitos da alienação.

Tudo visto, tem de se concluir que os factos alegados não são suficientes para integrarem um justo receio de perda de garantia patrimonial, não se encontrando preenchido o segundo requisito exigido no artigo 391º do CPC.

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III) Se deverá haver convite ao aperfeiçoamento.
Alegam ainda as apelantes que, a ser entendido que a petição inicial não contém toda a matéria necessária à sua procedência, deveria o tribunal ter proferido despacho com convite a aperfeiçoamento.

Estabelece o artigo 590º nº1 do CPC que quando a petição é apresentada a despacho liminar, como é o caso da providência cautelar, pode esta ser indeferida liminarmente, nomeadamente se o pedido for manifestamente improcedente; porém, o nº4 do mesmo artigo estatui que “incumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido”.

Mas, como acima se referiu, a situação particular do requerido N… não pode servir para justificar o receio de perda de garantia patrimonial e, como tal, o pedido de arresto fundamentado nessa situação está destinado à improcedência, não havendo cabimento para o despacho de convite ao aperfeiçoamento relativamente às insuficiências da concretização da restante matéria de facto alegada (e à junção da tradução dos documentos em língua estrangeira).
  
Improcedem, portanto, as alegações das apelantes.
                                                       
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DECISÃO:

Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e confirma-se o despacho recorrido.   
   Custas pelas apelantes.


                                                      
Lisboa,2015-07-09


Maria Teresa Pardal
Carlos Marinho                                                         
Anabela Calafate