Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3552/2004-3
Relator: RODRIGUES SIMÃO
Descritores: ABUSO SEXUAL
PROVA TESTEMUNHAL
DEPOIMENTO INDIRECTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/27/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: ANULADO JULGAMENTO
Sumário:
Decisão Texto Integral: Acordam em audiência no Tribunal da Relação de Lisboa:

I - Relatório.

1. No Pr. C/C 80/03.7JA.PDL, vindo do 4º Juízo de Ponta Delgada, recorrem o Mº Pº e o arguido (JF) do acórdão de fls. 322/333, publicado em 18-02-04, que condenou este pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, do artº 172° nº 2 do Código Penal, na pena de 6 (seis) anos de prisão e na indemnização civil de € 25.000,00.

(...)


II - Fundamentação.

6. Colhidos os vistos e realizada audiência, cumpre decidir.

As questões dos recursos([1]) são (em parte na formulação dos próprios recorrentes):

I – No recurso do Mº Pº -
a) “Resulta da factualidade provada que a conduta do arguido causou, no menor G, perda da tonicidade do esfíncter anal com apagamento das estrias normais, o que constitui dano irreversível, é causa de incontinência intestinal crónica e acarreta incómodos e sofrimento à criança... Assim sendo, está preenchido o conceito de doença permanente, previsto na supra citada alínea C) e, como tal, a agravação a que se refere o nº 3 do artº 177º do CP”, pelo que “a moldura penal abstracta no caso vertente será a de 4 anos e 6 meses de prisão a 15 anos de prisão”?

b) “Dentro dessa moldura penal e face aos critérios de determinação da medida concreta da pena a pena justa e adequada ao caso vertente é a de 9 anos de prisão”?

II – No recurso do arguido -

c) “Fora das excepções expressamente previstas no art. 129° nº 1 do CP Penal, não é válido como meio de prova o depoimento indirecto”, pelo que “Tendo sido ouvido, como foi, em audiência o menor G, não pode ser considerado meio de prova válido o depoimento indirecto relativo ao que este terá dito a terceiros” e a sentença terá violado “...o nº l do art. 129° nº 1 do CP Penal ao considerar válido como meio de prova os depoimentos das testemunhas (PR) e (AC) na parte em que aludiram a declarações do menor G”?
d) “...a interpretação que faz o douto acórdão recorrido, no sentido de que é admissível a valoração probatória do depoimento indirecto quando é chamada a depor a pessoa cujas declarações se dizem terem sido reproduzidas e, ainda por acréscimo, quando o depoimento destas é inconclusivo” viola “...o art. 32° nºs 1 e 5 da Constituição...”?

e) e “...ainda o princípio de imediação consagrado no art. 355º do CP Penal”?

f) haverá na sentença falta de exame crítico da prova produzida?

g) e errado julgamento em matéria de facto, pois existem todos os vícios do artº 410º, nº 2 do CPP?

h) “a...sentença violou os limites ao princípio da livre apreciação da prova constantes do art. 163° nº 1 do CP Penal, pois divergiu, sem fundamentar, dos peritos (relatório de fls. 116 a 118 e depoimentos em audiência) no que respeita à localização temporal do abuso sexual (pelo menos um mês antes do menor passar a ir para a casa do arguido) e aos seus efeitos (lesões já existentes pelo menos quando o menor passou a ir para casa do arguido e que implicavam já abuso sexual continuado)”?

i) deve improceder o pedido cível?

8. As declarações orais prestadas em audiência foram documentadas, razão pela qual o recurso versa matéria de facto e de direito - artº 428º do CPP.

Porque o arguido/recorrente deu um cumprimento mínimo ao disposto no artº 412º, nº 3 do CPP, haverá que conhecer alargadamente e em toda a sua dimensão da matéria de facto, para além da simples verificação na decisão respectiva da existência de algum dos vícios do artº 410º, nº 2 do CPP, passíveis de conhecimento em recurso independentemente de alegação([2]), desde que, como se sabe([3]), resultem do texto da decisão.

9. No entanto, com carácter prévio, há que ponderar uma outra questão que a análise dos autos nos suscita.

9.1. Os tribunais de recurso destinam-se, no fundamental, a corrigir os erros eventualmente verificados nos julgamentos realizados em 1ª instância([4]).

O direito e a jurisprudência têm como principais objectivos a realização da justiça e a reconstituição da paz social.

Por isso, a prevenção do erro judiciário deve, sem dúvida, prevalecer sobre a também necessária certeza.

9.2. Neste caso, temos que o tribunal de 1ª instância não conseguiu que o menor ofendido tenha prestado declarações.

São de realçar os visíveis cuidados do tribunal na explicação das razões pelas quais, apesar disso, se convenceu da veracidade dos factos imputados ao arguido.

Mas, temos para nós que, em matéria de crimes de abuso sexual, a prova tem de passar pela audição dos ofendidos, a não ser que esta seja em absoluto impossível: é que os factos ocorrem normalmente em privado, só com dois intervenientes, e, em regra, as provas em relação à autoria não são objectivas e directas.

Ora, estas são sempre e por natureza menos fiáveis.

Neste caso, consideramos que, apesar daquele cuidado, a motivação não é absolutamente satisfatória.

Pela simples razão de que, a nosso ver, poderia e deveria ter-se ido mais longe na procura de que o menor pudesse prestar declarações sobre os factos e a sua respectiva autoria.

10. Da motivação da convicção resulta que, recorde-se, “In casu, apesar de todos os esforços nesse sentido encetados, não foi possível extrair do menor G nenhum depoimento, confirmando ou negando os eventos fulcrais em causa nos presentes autos. Tal resultou de bloqueamento inultrapassável, motivado pela sua tenra idade e por outros factores mais complexos, quiçá os que se reportam no relatório de fls 255 e sgs. Situação que em nada difere daquela que se verifica, por exemplo, quando ao autor de certas afirmações sobrevém anomalia psíquica. O que importa em suma é constatar não ter sido possível obter daquele o pretendido depoimento. Pelo que se frustrou a possibilidade de o chamar a depor, factor que, como já constatámos, determina a abertura à valoração do depoimento indirecto”.

O recorrente contesta o valor do depoimento indirecto e na verdade temos que a letra do preceito do artº 129º do CPP não comporta o caso dos autos, na medida em que não se estava perante qualquer impossibilidade decorrente de “...morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de ser(em) encontrada(s)”.

10.1. Perante a negação do arguido e a impossibilidade de ouvir directamente o menor ofendido, o tribunal recorreu especialmente para fundamentar a sua convicção de que foi o arguido o autor dos factos imputados, ao depoimento da mãe do menor, sendo adjuvantes ainda os depoimentos dos vários médicos que o examinaram.

Diz o tribunal que a mãe do menor referiu haver este indicado perante si o arguido como o autor dos factos imputados, quando estava também presente “...o médico (AC)...”.
Mas, quando se refere o depoimento deste médico (AC), omite-se a que seria a menção correspondente, pois apenas se diz que este se limitou a confirmar a constatação por si feita de que o menor havia sido abusado sexualmente.

Qual o valor e significado dessa omissão?

Ela é, pelo menos perturbadora.

Ainda que não conduza, como se pretende, à falta do exame crítico da prova, que, repete-se, foi levado a cabo, com cuidado pelo tribunal recorrido.

11. Segundo a “Acta” de julgamento de fls. 315, a inquirição do menor G teve lugar num dos gabinetes, onde se deslocou o tribunal, tendo essa inquirição sido procurada levar a cabo pela Psicóloga autora do relatório de fls. 254 e na presença da mãe do menor.

Embora tal não venha explicitado, quando nessa “Acta” se refere “o Tribunal”, este incluiria os 3 juízes, o magistrado do Mº Pº, um funcionário e 2 advogados (o dos assistentes e o do arguido).

Também estavam presentes a Psicóloga e mãe do menor.

Ignora-se se o arguido estaria também presente.

Temos assim e pelo menos, um total de 9 (nove) pessoas para ouvir um menor então com cerca de 3 anos e 4 meses de idade.

Por outro lado, só duas dessas pessoas não estariam com vestes profissionais, pois, como este pormenor não vem esclarecido, temos de partir do princípio que assim sucederia.

Há que concluir que o ambiente para o menor não seria o ideal para lhe permitir esclarecer os factos ocorridos.

Da dita “Acta” de julgamento de fls. 315 não resulta esclarecido que tenham existido esforços para o menor ser ouvido e, a terem existido, de que forma eles foram levados a cabo.

Nem que tenham existido sugestões de algum dos sujeitos processuais para ultrapassar o impasse, como seria natural num ambiente distendido e dialogante.

Da gravação da prova também nada resulta a propósito.

Existem assim vários pontos que suscitam dúvidas nesta tentativa, diríamos que praticamente “normal”, de recolha de declarações ao menor.
Mas, acresce, o tribunal ignorou o uso dos mecanismos previstos na lei para a protecção de testemunhas em processo penal.
11.1. Com efeito, a Lei 93/99, de 14-07 que, nos termos do seu artº 1º, “...regula a aplicação de medidas para protecção de testemunhas em processo penal...”, diz no artº 26º, a propósito de “Testemunhas especialmente vulneráveis”, “1 - Quando num determinado acto processual deva participar testemunha especialmente vulnerável, a autoridade judiciária competente providenciará para que, independentemente da aplicação de outras medidas previstas neste diploma, tal acto decorra nas melhores condições possíveis, com vista a garantir a espontaneidade e a sinceridade das respostas. 2 - A especial vulnerabilidade da testemunha pode resultar da sua diminuta ou avançada idade, do seu estado de saúde ou do facto de ter de depor ou prestar declarações contra pessoa da própria família ou de grupo social fechado em que esteja inserida numa condição de subordinação ou dependência” (sublinhados nossos).

Adiantando depois, no artº 29º, onde se regula a “Intervenção nas fases subsequentes ao inquérito”, que “O juiz que presida a acto processual público ou sujeito ao contraditório, com vista à obtenção de respostas livres, espontâneas e verdadeiras, pode: a) Dirigir os trabalhos de modo que a testemunha especialmente vulnerável nunca se encontre com certos intervenientes no mesmo acto, designadamente com o arguido; b) Ouvir a testemunha com utilização de meios de ocultação ou de teleconferência, nomeadamente a partir de outro local do edifício do Tribunal, aplicando-se devidamente adaptado o disposto no artigo 4º a artigo 15º;c) Proceder à inquirição da testemunha, podendo, depois disso, os outros juízes, os jurados, o Ministério Público, o defensor e os advogados do assistente e das partes civis pedir-lhe a formulação de questões adicionais” (sublinhados e realce nossos).

Nada disso foi feito pelo tribunal recorrido.

Ora, só desta forma se poderia almejar obter declarações do ofendido e que nestas se garantisse “a espontaneidade e a sinceridade das respostas”.

Consideramos pois que existe irregularidade processual, nos termos e para os efeitos do artº 123º, nº 2 do CPP (última parte): isto é, mostra-se afectado o valor do acto “praticado”, o julgamento.

Na verdade, como se disse acima, há que afastar todas as dúvidas sobre a justeza da decisão, em matéria tão sensível: para além do especial melindre da questão de que tratam os autos, estão em causa direitos gerais e abstractos que têm a ver com a liberdade individual e o processo penal democrático, ou, dito de outro modo, com o adequado exercício do poder judicial.

11.2. Assim, o julgamento terá de ser repetido, fazendo uso, em relação ao menor ofendido, do sistema de protecção de testemunhas em processo penal.

Nesse âmbito, designadamente, haverá que proceder à audição do menor, “...com utilização ... de teleconferência, nomeadamente a partir de outro local do edifício do Tribunal”, na presença, para além do “Magistrado acompanhante”, apenas da mãe e de “...um técnico de serviço social ou outra pessoa especialmente habilitada para o seu acompanhamento...”, a qual até pode ser a psicóloga acima referida ou outra pessoa a requisitar,– cfr. artºs 10º e 27º da dita L 93/99, de 14-07.

III - Decisão.

12. Nestes termos, não se conhece dos recursos, declara-se inválido o julgamento efectuado e ordena-se a repetição deste nos termos ora referidos (em 11.2.).

12.1. Sem tributação.

Lisboa,   27 de Outubro  de 2004


(António Rodrigues Simão)

(Carlos Santos de Sousa)

(Mário Armando Correia Miranda Jones)

(João Cotrim Mendes)


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                        ([1]) Delimitados, como se sabe, nos seus âmbitos, pelas conclusões formuladas pelos recorrentes (cfr. artºs 684º, nº 3 do CPC e 4º do CPP, Simas Santos e Leal Henriques “Recursos em Processo Penal”, 3ª edição, pág. 48 bem como Acs. do STJ de 16-11-95, in BMJ 451/279 e de 31-01-96, in BMJ 453/338).
                ([2]) Cfr. “Assento” do STJ de 19-10-1995, in Dº Rª, I-A Série, de 28-12-1995.
                ([3]) Cfr. por todos, Ac. do STJ de 22-09-93, in CJ/Ac.STJ, Ano I, III/210 e Maia Gonçalves, in “CPP Anotado”, 7ª edição, pag. 597.
([4]) Pois, como afirmou o Prof. Germano Marques da Silva, in "Aplicação das Alterações ao Código de Processo Penal", publicado no Fórum lustitiae, ano 1°, n° 0, págs. 21 e 22, há que compreender "...plenamente que o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, mas constitui apenas remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância...".