Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
32033/17.2YIPRT.L1-1
Relator: RIJO FERREIRA
Descritores: NOTIFICAÇÃO A MANDATÁRIOS
PLURALIDADE DE MANDATÁRIOS
NULIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/18/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: No caso de pluralidade de mandatários e na ausência de expressa indicação em sentido diverso, a notificação dos actos processuais deve ser efectuada ao mandatário que praticou o acto que directamente determinou a prática do acto a comunicar.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM
NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
NESTES AUTOS DE ACÇÃO ESPECIAL PARA CUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÃO PECUNIÁRIA
ENTRE
B…..
CONTRA
G.....

I – Relatório

A Autora intentou no Balcão Nacional de Injunções em 30JAN2017, através do CITIUS, procedimento de injunção tendente à cobrança de dívida identificada na seguinte forma no lugar a isso destinado no formulário do requerimento de injunção:

Capital: 6000.00 Juros de mora: 165.12 à taxa de: 0.00% desde até à presente data;
Outras quantias: 0.00 Taxa de Justiça paga: 102.00
Contrato de: Fornecimento de bens ou serviços
Data do contrato: 09-08-2016 Período a que se refere: a

Exposição dos factos que fundamentam a pretensão:
1. A requerente é uma sociedade unipessoal por quotas cujo objecto é a prestação de serviços de contabilidade, consultoria
para negócios e gestão.
2. No exercício da sua atividade comercial, forneceu à requerida os bens/serviços constantes das faturas infra descriminadas.
3. Tais faturas foram recepcionadas pela requerida, que não reclamou, nem dos serviços prestados, nem do montante
faturado.
4. Apesar disso, não pagou, até ao presente as quantias em dívida, pelo que delas é devedora, bem como devedora é dos
juros de mora entretanto vencidos e vincendos, até integral pagamento.
5. Consequentemente, a requerida é devedora das seguintes quantias, cujo pagamento ora se reclama:
Fatura Vencimento Montante Juros
1650/2016 24-08-2016 € 3.000, 00 €91, 48
1879/2016 24-09-2016 € 3.000, 00 €73, 64
Total ( capital e juros): ..................................... € 6.165, 12

Nesse mesmo requerimento indicou como mandatário J….. e o respectivo endereço electrónico.
A Ré deduziu oposição alegando haver celebrado com a Autora um contrato de prestação de serviços de contabilidade, de processamento de salários e de apoio financeiro, que as faturas cuja cobrança era pretendida se reportam a serviços de apoio financeiro de AGO e SET2016, mas que as mesmas não são devidas por o respectivo serviço não ter sido prestado, conforme os factos que discrimina.
Face à dedução de oposição o procedimento foi enviado ao tribunal para distribuição, disso tendo sido notificado o indicado mandatário da Autora.
J….., na qualidade de mandatário da Autor, veio as autos comprovar o pagamento da taxa de justiça e apresentar uma procuração da Autora a favor de J….. e M….. e um substabelecimento, com reserva, deste em J…...
Foi então proferido o seguinte despacho:

[…]
Convertido, porém, em petição inicial pela dedução de oposição, deve a autora ser convidada, mediante despacho de aperfeiçoamento, a indicar, de forma completa, a causa de pedir, nomeadamente a identificação das declarações negociais relativas ao contrato de prestação de serviços de contabilidade (teor do acordo negocial), os serviços prestados pela autora, a contraprestação acordada e a realizada, o prazo da prestação, a mora, etc., respeitando o pedido e a causa de pedir sucintamente formulada no requerimento de injunção.
Deste modo, e ao abrigo da supra citada norma, convido a autora a, no prazo de dez
dias, aperfeiçoar o seu articulado nos termos referidos supra ou apresentar nova  petição inicial suprindo essas irregularidades.

Despacho esse que foi notificado à Autora através de notificação electrónica elaborada em 22MAI2017 dirigida a M…..
Constatando não ter havido resposta ao convite formulado o Mmº Juiz a quo ordenou, em 27JUN2017, a notificação das partes para, no prazo de 10 dias, se pronunciarem quanto ao conhecimento imediato do mérito da acção por carência de factos essenciais para a sua procedência.
Tal notificação foi efectuada através de notificação electrónica elaborada e 28JUN2017 dirigida a M…..
Por requerimento de 12SET2017 veio a Autora, através do seu mandatário J….., requerer lhe fosse concedido o prazo de 10 dias para aperfeiçoar a petição inicial uma vez que os despachos anteriores haviam sido notificados a M….., que já não colaborava com o escritório (tratando-se a menção ‘com reserva’ constante do substabelecimento de mero lapso, pois que queria dizer ‘sem reserva’), e não ao subscritor do requerimento de injunção que foi quem sempre interveio no processo.
Em 18SET2017 foi proferida sentença que absolveu a Ré do pedido com fundamento na insuficiente articulação de factos por parte da Autora.
Essa sentença foi notificada à Autora por notificação electrónica elaborada em 19SET2017 dirigida a M…...
Por requerimento de 19SET2017 M….. veio renunciar ao mandato.
Inconformada, em 23OUT2017apelou a Autora concluindo, em síntese, que deveria ter sido concedido prazo para a resposta ao convite por não ter sido dele notificado, como oportunamente requereu, sem que sobre esse requerimento tenha recaído qualquer decisão; que os autos continham os factos essenciais para a decisão da causa; a considerar-se em contrário, então estar-se-ia perante um caso de ineptidão da petição inicial.
Houve contra-alegação onde se propugnou pela manutenção do decidido.

II – Questões a Resolver

Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a incorrecta fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito aplicável). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara na 1ª instância), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões porque entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece; sob pena de indeferimento do recurso.
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:

- da falta de notificação do convite para aperfeiçoamento da petição inicial;
- da ausência de alegação de factos essenciais;
- da ocorrência de ineptidão da petição inicial.

III – Fundamentos de Facto

A factualidade relevante é a constante do relatório deste acórdão, para o qual se remete.

IV – Fundamentos de Direito

A falta de notificação ao mandatário judicial dos actos praticados no processo para que este possa assumir as suas competências e obrigações funcionais é geradora de nulidade porquanto é susceptível de influir (como os caso dos autos bem o demonstra) no exame e decisão da causa (art.º 195º do CPC)[1].
Enquanto nulidade deve ser arguida, não estando presente no acto (como é manifestamente o caso), nos 10 dias seguintes a ter intervindo no processo ou dela ter (ou dever ter) conhecimento.
Depois da notificação do despacho de aperfeiçoamento e até ao pedido de concessão de prazo para tal aperfeiçoamento por não ter sido ele o notificado[2], o mandatário J….. não praticou nem foi notificado de qualquer acto no processo. Nem se vislumbra a verificação de qualquer circunstancialismo de que se possa retirar que devia ter disso conhecimento (sendo a esse respeito irrelevante o facto, invocado pela Ré, da identidade de direcções dos diversos mandatários uma vez que actualmente as notificações são efectuadas por correio electrónico e os diversos advogados do mesmo escritório não terem acesso às contas de correio electrónico dos seus colegas). Pelo que a arguição da falta de notificação foi tempestiva.
E tendo sido arguida ficou o Mmº juiz a quo obrigado a pronunciar-se sobre a questão; pronúncia que, não tendo sido efectuada anteriormente, deveria ter sido levada a cabo na sentença recorrida (até para justificar a prolação da mesma sem a realização de audiência de julgamento).
A omissão de pronúncia sobre questões que deviam ser apreciadas constitui nulidade prevista no art.º 615, nº 1, al. d), do CPC, a ser invocada na alegação de recurso.
Entende-se, pois, que a Apelante, ao invocar que não foi apreciado o seu requerimento de 12SET2017 (conclusão 14ª) veio arguir a sentença de nula por omissão de pronúncia.
Omissão de pronúncia que, na sequência do que vem exposto, é evidente e como tal tem de ser reconhecida.
Não obstante a apontada nulidade, deverá este tribunal apreciar a questão, em função do disposto no art.º 665º do CPC, uma vez que estão acessíveis todos os elementos de facto relevantes, as partes já tiveram o ensejo de se pronunciar sobre a questão e, por se tratar de questão meramente processual, não se afigura a existência de relevante alteração ou restrição de direitos ou expectativas processuais (designadamente quanto ao duplo grau de jurisdição).
No caso dos autos tendo o substabelecimento sido com reserva (sendo que não se pode considerar tal menção como mero lapso uma vez que isso não resulta evidente do conteúdo ou do contexto do documento) significa que ambos os advogados – o que substabeleceu e o substabelecido – ficaram com poderes de representação da Autora.
Tendo a parte constituído diversos mandatários, a todos eles assistem poderes para representar essa parte pelo que não se levantam dúvidas de que qualquer deles pode agir em juízo em nome.
A questão que se levanta é a de saber se a mesma regra se deve aplicar quando se trata de comunicações do tribunal (e das outras partes) ao mandatário.
A esse propósito invoca a Apelada a jurisprudência do acórdão do STJ de 04DEZ2007[3] segundo a qual “as notificações a fazer no processo poderão ser feitas a qualquer deles, nos respectivos escritórios”.
Haverá, no entanto, de considerar que tal afirmação é datada no tempo (foi proferida há mais de 10 anos), tendo entretanto ocorrido alterações muito significativas quer no modo como se exerce a advocacia (que passou de individualizada e em cooperação restrita a empresarial com protocolos estritos de divisão do trabalho e cooperação alargada) e como se desenvolve o processo (que deixou de ser em papel com comunicações por carta registada para passar a tramitação quer do processo quer das comunicações por via electrónica).
O mesmo acórdão do STJ reconhecia, aliás, que a regra acima enunciada não deveria ser seguida “se tiver sido escolhido domicílio específico para recebimento das notificações, situação em que as mesmas serão então dirigidas para esse domicílio”. Podendo, nessa perspectiva, entender-se que na actualidade em que as comunicações são efectuadas para o endereço de correio electrónico do mandatário esse endereço constitui a escolha de um domicílio específico.

Num processo que deve ser equitativo (art.º 20º, nº 4, da Constituição) em que todos, incluindo o tribunal, estão sujeitos aos princípios da cooperação e boa-fé (artigos 7º e 8º do CPC), que é tramitado de forma electrónica e em que as comunicações com os advogados, que exercem a sua actividade segundo padrões empresariais, são também efectuadas por transmissão electrónica de dados, afigura-se-nos não ser irrelevante a qual dos plúrimos advogados constituídos se notifica a prática de um acto processual. Pelo contrário tal pode redundar, como o caso dos autos é evidência, em sérias repercussões, e não pode ser deixado ao arbítrio do funcionário judicial ou, pior ainda, a um qualquer algoritmo do sistema informático.
Entendemos, por outro lado, que quando um advogado pratica actos processuais através do CITIUS, subscrevendo electronicamente essa peça processual, está de uma forma impressiva a especificar dever ser ele o destinatário das comunicações electrónicas consequenciais a esse acto. Especificação essa que, ademais, se nos afigura implícita em todo e qualquer acto praticado pelo mandatário judicial.
Pelo que temos como adequada, em face do contexto actual e do que vem dito, formular a regra de que, no caso de pluralidade de mandatários e na ausência de expressa indicação em sentido diverso, a notificação dos actos processuais deve ser efectuada ao mandatário que praticou o acto que directamente determinou a prática do acto a comunicar.

No caso concreto dos autos sempre foi o mandatário J….. que praticou os actos processuais da Autora (o mandatário M….. apenas interveio nos autos para renunciar ao mandato), designadamente o requerimento inicial, pelo que deveria ter sido ele o destinatário da comunicação do convite ao aperfeiçoamento. A ausência de tal comunicação constitui nulidade, determinante da anulação do subsequente processado. Sendo que não se evidencia nos autos qualquer circunstancialismo no relacionamento entre os dois advogados em causa donde se possa extrair, por apelo a critérios de diligência devida, um conhecimento ou cognoscibilidade do despacho judicial por parte do mandatário J….. com a virtualidade de sanar tal nulidade.

Sendo que o reconhecimento da aludida nulidade preclude o conhecimento das demais questões posta no recurso.


V – Decisão

Termos em que se decide:

- declarar, por omissão de pronúncia, nula a sentença recorrida;
- em substituição, declarar ter ocorrido a nulidade de falta de notificação do despacho de aperfeiçoamento;
- anular o processado subsequente à prolação do despacho de aperfeiçoamento;
- determinar a notificação do mesmo ao actual mandatário da Autora.

Custas da apelação pela Ré.

                                                                                                              Lisboa, 18SET2018

Rijo Ferreira
Afonso Henrique
Rui Vouga

[1] - numa outra dimensão pode até ser configurada como uma violação do direito fundamental a um processo equitativo garantido pelo art.º 20º, nº 4, da Constituição, e, consequentemente, dada a aplicabilidade directa de tais direitos estabelecida no art.º 18º da Constituição, como nulidade de conhecimento oficioso.
[2] - entendendo-se o requerimento de 12SET2017 como arguição da nulidade de falta de notificação do mandatário, uma vez que o que releva é a substância do alegado e não as qualificações jurídicas efectuadas pelos requerentes.
[3] - processo 07B3967.